Colecção História e Filosofia da Ciência Os Fundamentos da Ciência Moderna na Idade Média Coordenação da Colecção e Revisão Científica Ana Simões e Henrique Leitão ti PORTO EDITORA ~..,......~.~ 321 os FUNDAMENTOS DA CI~CIA MODERNA NA IDADE MÉDIA Difusão e assimilação da filosofia natural de Aristóteles A introdução das obras de Aristóteles na língua latina e a sua difusão e assimilação subsequente transformaram a vida intelectual da Europa Ocidental. Mas a influência de Aristóteles não dependeu unicamente das suas próprias obras. Para calcularmos o enorme impacto de Aristóteles, teremos de considerar os comentários às suas obras que foram elaborados por gregos na Baixa Antiguidade e por árabes durante os séculos IX a XlI. Embora as obras genuínas de Aristóteles moldassem a percepção medieval do mundo, muitas obras que lhe eram erradamente atribuidas também moldaram a forma como na Idade Média eram avaliadas as suas ideias. A estas temos ainda de acrescentar traduções latinas do árabe de tratados não aristotélicos contendo ideias derivadas da filosofia natural de Aristóteles, particularmente em medicina e astrologia. Este complexo conjunto de ideias e interpretações aristotélicas foi herdado pelos filósofos naturais da Idade Média Latina. Baseando-se nestas fontes, os estudiosos medievais dedicaram-se a acrescentar os seus próprios comentários às obras de Aristóteles, bem como a compor tratados especializados em que as ideias de Aristóteles detinham lugar proeminente. A totalidade deste corpus literário - a herança e as adições a esta - é aquilo a que hoje chamamos "Aristotelismo". Este termo, que nunca foi utilizado na Idade Média, caracteriza de forma adrnirável o mais importante componente da vida intelectual do período que compreende os séculos XlI e XV (a Idade Média propriamente dita) e mesmo para além deste, até ao fim do século XVII. 't;.""",.. o NOVO rNICIO, A ERA DA TRADUÇÃO NOS S~CULOS XII E XIII 133 um neoplatónico que era também cristão. A influência exercida por Alexandre e Temístio sobre a filosofia natural na Idade Média Latina veio em grande parte através dos comentários aristotélicos de Averróis, o famoso comentador muçulmano, que citava frequentemente passagens das suas obras. O comentário de Simplício a Sobre os Céus (De caelo), que Guilherme de Moerbeke traduziu para latim no século XlII, transmitiu importantes ideias sobre cosmologia e física. Embora a maior parte das obras de João Filopão permanecesse desconhecida no Ocidente Latino até ao século XVI, algumas das suas ideias eram conhecidas através da tradução parcial de Guilherme de Moerbeke do seu comentário a Sobre a Alma, através dos ataques que Simplício lhe dirigiu no seu comentário a Sobre os Céus de Aristóteles e ainda através de citações ocasionais das suas ideias nos comentários aristotélicos de Avercóis. Filopão é importante na história da ciência na medida em que criticou as ideias de Aristóteles sobre fisica e cosmologia. A teoria do impetus, ou a doutrina da força impressa. que desempenhou um importante papel na fisica árabe e na física medieval latina, derivou a em última análise do comentário de Filopão à Física de Aristóteles. Filopão insistiu também, contra Aristóteles, em que o movimento finito era possível no vácuo e que dois pesos desiguais, deixados cair de uma dada altura, embateriam no solo quase ao mesmo tempo. No seu comentário ao Génesis (De opificio mundi), rebateu o conceito da eternidade do mundo de Aristóteles e insistiu também em que as matérias celeste e terrestre são idênticas, ao invés de radicalmente diferentes, como afirmara Aristóteles. Nos últimos anos, o trabalho dos comentadores gregos tem vindo a ser muito mais apreciado e, em última análise, as suas contribuições para a história da ciência medieval e da ciência moderna podem revelar-se mais Contribuições dos comentadores gregos Através de comentários aos trabalhos de Aristóteles, o mundo grego da Baixa Antiguidade contribuiu significativamente para a filosofia natural. Trabalhando entre os anos 200 e 600 d. c., os comentadores gregos deixaram nume- rosos tratados que totalizam aproximadamente quinze mil páginas de texto grego, na edição conhecida por Comentários a Aristóteles em Grego Antigo (Commentaria in Aristotelem Graeca). Dos autores que comentaram Aristóteles, uns eram aristotélicos e outros neoplatónicos, sendo estes últimos muito críticos em relação à obra de Aristóteles. Deste grupo, aqueles que maior influência tiveram sobre a ciência e a filosofia islâmicas e latinas foram Alexandre de Afrodisias (fl. 198-209), Temistio (fl. finais da década 40 do ano 300-384/385), Simpl1cio (ca. 5OO-f. 533) e João Filopão (ca. 490-década de 70 do século VI), importantes do que em tempos se julgou. Contribuições dos comentadores islâmicos Quando as obras de Aristóteles foram traduzidas do grego (ou mesmo do siríaco) para o árabe durante os séculos IX e X, pouco demorou para que os eruditos islâmicos estudassem essas obras e escrevessem comentários sobre elas. Os comentários e discussões islâmicos sobre as ideias e as obras que influenciaram o Ocidente foram escritos antes de 1200. Dado que vários comentários gregos sobre Aristóteles, inspirados no neoplatonismo, tinham sido traduzidos para o árabe, muitas vezes eram introduzidas ideias neoplatónicas nos comentários islâmicos a Aristóteles. Entre os eruditos 341 os FUNDAMENTOS DA CI1':NCIA MODERNA NA IDADE MEDIA muçulmanos que escreviam sobre Aristóteles em árabe e que tinham obras traduzidas para latim, os mais importantes foram al-Kindi (ca. 801-ca. 866), al-Farabi (ca. 870-950), Avicena (lbn Sina) (980-1037), al-Ghazali (1058-1111) e Averróis (lbn Rushd) (1126-1198). Deste grupo, Avicena, al-Ghazali e Averróis foram os que tiveram o maior impacto sobre a ftlosofia natural aristotélica no Ocidente. O erudito hebraico mais influente no Islão e que contribuiu para o saber europeu foi Moisés Maimónides (1135-1204), que escreveu em árabe. Na sua obra Kitab al Shifa (O Livro da Cura [da Ignorância]), uma enciclopédia ftlosófica traduzida no século XII por Domingo Gundisalvo e Avendaut (Abraham ibn Daud), Avicena comentou muitos aspectos da filosofia natural de Aristóteles. A segunda parte dessa obra era dedicada à física que, na tradução latina incompleta do século XlI, foi chamada Sufficientia e era constituída por oito partes. Nas secções de que os filósofos naturais medievais dispunham, Avicena expunha as suas ideias sobre os céus, a geração e a corrupção, os elementos, os meteoros, os animais, os minerais e a alma. A sua grande obra de medicina, Cânone de Medicina, terá sido talvez mais importante nas escolas médicas das universidades medievais do que foram as obras de Galeno. Embora al-Ghazali tivesse um impacto significativo no Ocidente, isso não se deveu às suas próprias opiniões e interpretações. Al-Ghazali escrevera uma súnlula das opiniões filosóficas de al-Farabi e de Avicena seguida por uma critica severa às opiniões de ambos. Mas só a primeira foi traduzida para latim. Deste modo, as opiniões de al-Farabi e de Avicena foram atribuídas a al-Ghazali. A sua crítica filosófica não traduzida, A Incoerência dos Filósofos, tornou-se conhecida no Ocidente através da crítica que lhe fez Averróis em A Incoerên- cia da Incoerência, que foi traduzida para latim. Entre todos os autores islâmicos, Averróis foi aquele que mais influenciou o panorama aristotélico no Ocidente Latino. Um eminente erudito observou que "Se existe um processo de naturalização em literatura correspondente ao da cidadania, os escritos de Averróis pertenciam tanto à língua em que foram escritos, como à língua em que foram traduzidos e através da qual exerceram a sua influência sobre o curso da filosofia mundial".5 É uma das grandes ironias da história que as obras escritas em árabe de Averróis fossem praticamente ignoradas pelo mundo de expressão árabe nos paises islâmicos, ao passo que muitas dessas mesmas obras viriam a exercer uma grande influência na Cristandade através das traduções latinas. O NOVO INICIO: A ERA DA TRADUÇÃO NOS slicuws Xli E Xlll 135 Até ao momento, foram identificados trinta e oito comentários de Averróis, em árabe, sobre obras de Aristóteles. Este número extraordinário resulta do facto de Averróis ter escrito pelo menos dois, e frequentes vezes três, diferentes tipos de comentários sobre qualquer tratado de Aristóteles. A propósito da Física, por exemplo, escreveu um epítome, ou breve súmula; um comentário médio, ou paráfrase do texto; e um comentário longo, que era a discussão pormenorizada, sequencial, das sucessivas secções de todo o texto. Aplicou este mesmo tratamento tripartido a Sobre os Céus e à Metafísica. Noutros casos, por exemplo, Sobre a Geração e a Corrupção e Meteorologia, escreveu só comentários médios e longos. Dos trinta e oito comentários em árabe, quinze foram traduzidos para latim durante a primeira parte do século XIII (por Miguel Escoto e outros) e dezanove foram ainda traduzidos do hebraico para latim durante o século XVI (os comentários de Averróis foram ainda mais influentes na tradição aristotélica hebraica do que na latina). Nos seus comentáríos, Averróis procurou purgar o pensamento aristotélico das interpretações neoplatónicas que, no seu entender, tinham distorcido o verdadeiro significado de Aristóteles. Estava convencido de que Aristóteles conseguira compreender tanta verdade acerca do mundo quanto era possível a um ser humano fazê-lo, utilizando a prova demonstrativa. Obras pseudo-aristotélicas Iniciando-se cerca de duas gerações após a morte de Aristóteles, a atribuição ao filósofo de obras apócrifas começou com dois títulos gregos: Sobre as Cores (De coloribus) e Medtnica (Mechanica). Com o passar do tempo, surgiram outros apócrifos em grego. Porém, isto foi apenas o começo. O processo de falsas atribuições foi repetido em todas as línguas para as quais as obras de Aristóteles eram traduzidas, o que incluía siríaco, árabe, latim, hebraico, arménio e algumas línguas vernáculas europeias. Muitas das obras apócrifas debruçavam-se sobre pseudociência, principalmente alquimia, astrologia, quiromancia e fisionomia. A astronomia estava também representada. Muitas destas obras apócrifas foram traduzidas do árabe para o latim. No mundo latino, a maioria circulava independentemente das obras genuínas de Aristóteles. Parecem ter atraído um grupo social diferente do das universidades, onde, com poucas excepções, tinham pouco impacto e eram raramente citadas em obras sobre filosofia natural. Entre as excepções contam-se: Livro das Causas (Liber de causis, traduzido por Gerardo de Cremona), que se 361 os FUNDAMENTOS DA cIllNClA MODERNA NA IDADE MllDIA baseava nos Elementos de Teologia de ProcIo e teve particular influência entre teólogos, dando origem a comentários de Alberto Magno e São Tomás de Aquino; Das causas das Propriedades dos Elementos (De causis proprietatibus elementorum) que surge em numerosos códices dos livros de filosofia natural de Aristóteles e exerceu maior influência nos séculos XIII e XIV; e finalmente, embora menos importante para a filosofia natural do que os dois primeiros tratados, o Segredo dos Segredos (Secretum secretorum), o qual apresenta muitas máximas que encerram ostensivamente a sabedoria que se dizia ter sido transmitida por Aristóteles aos antigos governantes. De todos os apócrifos atribuídos a Aristóteles, o Segredo dos Segredos foi o mais popular, como o comprovam pelo menos seiscentos manuscritos existentes, dos quais cerca de vinte terão circulado com uma ou mais das obras genuinas de Aristóteles. Recepção das traduções Os textos de Aristóteles eram difíceis e as traduções nem sempre claras, dando ocasionalmente azo a acusações de obscuridade. Assim, os comentários de Avicena e Averróis foram entusiasticamente acolhidos como guias para a interpretação dos exigentes textos de Aristóteles. A influência de Aristóteles no pensamento ocidental começou muito antes das traduções em larga escala, em grande parte devido a duas traduções em latim do tratado em árabe sobre astrologia de Abu Ma'xar, uma datada de 1133 e a outra de 1140. A Introdução à Astronomia de Abu Ma'xar era um trabalho astrológico que incluía numerosas ideias e conceitos dos livros sobre filosofia natural de Aristóteles. Foram muitos os estudiosos do século XII que tiveram o seu primeiro contacto com as doutrinas de Aristóteles através do tratado de Abu Ma'xar. Mas este gotejar de ideias aristotélicas isoladas foi rapidamente submergido pelas traduções das suas obras. Apesar das novas traduções das obras de Aristóteles do século XII, poucos manuscritos desse período sobreviveram, o que indica que os tratados de Aristóteles tiveram pouca influência directa nesse século. Contudo, a situação alterou-se de modo dramático em meados do século XIII, altura em que surgiram em grande número manuscritos das obras de Aristóteles. Nessa altura, já a influência deste se tornara significativa e viria ainda a aumentar com o passar do tempo. Uma indicação importante do seu impacto reside na produção de comentários latinos aos seus trabalhos, assunto que será tratado num capítulo posterior. I I I f! O NOVO INICIO: A ERA DA TRADUÇÃO NOS sllCULOS lOl E lOll 137 Quase todos os antigos tratados gregos, traduzidos do grego ou do árabe, ou de ambas as línguas, para o latim eram anteriormente desconhecidos da Europa Ocidental Cristã. Como foi recebido este vasto corpus de ciência pagã e de filosofia natural? Como reagiram os Cristãos a um corpus literário a que eram totalmente alheios e que apresentava potenciais problemas para a fé? Embora esses tratados fossem novos para a Europa Ocidental, a experiência da literatura pagã não o era. Os Cristãos já há muito se tinham adaptado a ela. Tinham sido expostos ao pensamento pagão quase a partir do momento em que a religião cristã fora difundida para além da Terra Santa. O pensamento pagão era familiar não só para a parte oriental do Império Romano, de expressão grega, como também para os autores latinos no Ocidente, tais como Santo Agostinho, Santo Ambrósio e os encicIopedistas. Graças à experiência prévia do Cristianismo face à literatura pagã, as traduções latinas da ciência greco-árabe dos séculos XII e XIII podem ser encaradas como um segundo, e muito mais extenso, fluxo de pensamento pagão para os cristãos da Europa OcidentaL Se bem que a ciência e a filosofia natural da segunda vaga do pensamento pagão tenha provocado algum atrito entre fé e razão, os filósofos naturais cristãos, muitos dos quais teólogos, ficaram encantados por acolhê-la. Com a lógica e a filosofia natural de Aristóteles como seu núcleo, o novo conhecimento veio prover às necessidades do currículo das universidades então emergentes, que formaram um dos mais duradouros legados institucionais da Idade Média e que devo agora descrever. A UNIVERSIDADE MEDIEVAL 139 3. A universidade medieval Uma descrição da estrutura e do funcionamento das universidades medievais é essencial, tendo em conta a importância dessas instituições no desenvolvimento da ciência ocidental. As universidades emergiram em resultado da transformação da sociedade e da vida intelectual que ocorrera na Europa Ocidental por altura do século XII. A Europa feudal dos séculos VII e VIII sofreu drásticas alterações no século XI. Durante o final do século XI e no decurso de todo o século XII, as condições politicas melhoraram substancialmente, devido em larga medida aos senhores feudais de expressão francesa que trouxeram governos mais ou menos estáveis à Normandia, à Inglaterra, à Itália, à Sicília, à Espanha e a Portugal. O vigor de uma Europa revitalizada era também evidenciado pela reconquista da Península Ibérica, que estava em pleno curso nos finais do século XI. Assim que se garantia uma segurança cada vez maior, a economia da Europa renasceu e o nível de vida subia para todos os segmentos da sociedade. Este novo estado de coisas foi proporcionado por melhorias significativas na agricultura, muito particularmente pelo advento do arado pesado, a que se atrelava agora o cavalo em vez do boi. Esta substituição tomou-se possível graças à introdução da ferradura com cravos e do arreio de coalheira que, juntos, fizeram do cavalo um auxiliar muito mais eficaz para a agricultura do que o boi. Não menos significativa foi a substituição do sistema de rotação das culturas de dois campos para o de três, o que permitiu também um grande incremento na produção de alimentos. A abundância de alimentos contribuiu para originar um aumento populacional considerável que, por seu turno, possibilitou a expansão de vilas e cidades. Na realidade, o crescimento demográfico obrigou à construção de centenas de novas vilas. Os Europeus começaram a colonizar terras anteriormente despovoadas ou subpovoadas, ou a expandir-se para leste contra os Eslavos, como o fizeram os Germanos no seu movimento para lá do rio Elba. Nos Países Baixos, o povo começou inclusive a conquistar terreno ao mar. Os Europeus estavam em movimento e protagonizaram migrações significativas. Muitas das novas vilas foram povoadas por homens livres, muitos deles antigos servos que tinham fugido para as vilas em busca de melhores condições de vida. Nos finais do século XII, o nível de comércio e de manufactura na Europa era provavelmente maior do que no auge do Império Romano. Entre os séculos IX e XIII, a Europa transformou-se. Passou a existir uma economia monetária. 40 I os FUNDAMENTOS DA CIENCIA MODERNA NA IDADE MI!DIA Modificações na governação estavam também a ser levadas a cabo. A luta entre vilas e cidades, por um lado, e os governantes seculares e edesiásticos, por outro, estava em curso. As populações urbanas procuravam tanto quanto possível governar-se autonomamente e esforçavam-se por se libertarem das contribuições impostas pelos herdeiros nobres. Desenvolveu-se o conceito de uma comuna com direitos concomitantes de cidadania. De forma oportunista, as cidades europeias fizeram causa comum com papas, reis, imperadores ou príncipes independentes, para aumentarem o seu poder e protegerem os seus direitos. Assim, as cidades tornaram-se uma força poderosa na vida económica, politica, religiosa e cultural do continente europeu. Dado que as universidades europeias eram criações urbanas, poder-se-ia inferir que seriam de algum modo o produto das forças descritas, mas isso seria incorrecto. As cidades eram apenas uma condição necessária, mas não suficiente, para o emergir de universidades. A urbanização pode ter oferecido uma matriz essencial para o início e o florescimento das universidades, mas dificilmente se consideraria uma garantia para o processo ocorrer de facto. Desde as sociedades primitivas do Antigo Egipto e da Mesopotâmia que diversas civilizações urbanas surgiram e desapareceram, mas nenhuma produzira algo de comparável às universidades da Europa. Na verdade, as universidades dificilmente se podem considerar essenciais para que uma civilização atinja um elevado grau de realização cultural. Para manter registos, preservar tradições literárias e aumentar o conhecimento e a sabedoria acumulados, uma civilização precisa apenas de assegurar que alguns dos seus membros saibam ler e escrever, que um número suficiente se ocupe das tarefas requeridas e que o registo escrito seja preservado e transmitido de geração em geração. As sociedades que satisfizeram estes requisitos atingiram grande craveira intelectual, como o demonstram bem as civilizações medievais do Islão e da China. Embora o Ocidente Latino herdasse a sua ciência e filosofia natural dos Gregos e dos Árabes, a universidade foi uma invenção que se gerou em condições peculiares ao Ocidente no século XII. A vida comercial florescente nos centros urbanos tomara aconselhável, até mesmo necessário, que aqueles que praticavam o mesmo negócio ou mister se organizassem em guildas ou corporações. Os advogados medievais designavam frequentemente a essas organizações por universitas, isto é "totalidade" ou "todo", pretendendo assim significar que a guilda em questão representava todos os praticantes legais desse negócio ou mister. Os mestres e os estudantes constituíam uma parte vital da sociedade do século XII. Estabeleceram escolas importantes em várias catedrais da Europa A UNIVERSIDADE MEDll!VAL 141 Ocidental, especialmente em Paris, Chartres e Orleães. Estudantes e mestres deslocavam-se habitualmente de uma escola para outra, os estudantes em busca do mestre certo, os mestres procurando atrair um número suficiente de estudantes que lhes proporcionassem uma remuneração apropriada. Os mestres e os estudantes eram, na sua maioria, estrangeiros nas cidades onde ensinavam e estudavam e, consequentemente, não tinham direitos nem privilégios. Agindo individualmente, de pouca importância se revestiam perante as autoridades municipais, estatais e eclesiásticas com as quais tinham de negociar as condições de ensino. Em Paris e noutros locais, mestres e estudantes viram as vantagens de uma associação e usaram a universitas de um negócio ou mister como modelo para a sua própria organização. No final do século XII, havia já organizações "de facto" de mestres, estudantes, ou mistas, conhecidas por "'universidades" (por exemplo: universitas magistrorum ou "universidade de mestres"; universitas scholarium ou "'universidade de estudantes"; e universitas magistrorum et scholarium ou "universidade de mestres e estudantes"). Consequentemente, o termo uníversitas veio, por si só, a ser suficiente para identificar uma instituição educacional. Embora muitas guildas e corporações tivessem utilizado o tenno universitas antes das instituições educacionais de ensino superior, estas últimas acabaram por o reter permanentemente, talvez por terem durado mais do que as outras. Tendo em conta o seu significado subsequente, o termo universidade (universitas) requer uma nova explicaçãO. De inicio o termo aplicava-se a um único grupo que constituía uma associação autónoma legalmente reconhecida. Assim, uma faculdade de artes era uma "universidade", tal como o era uma faculdade de medicina ou uma faculdade de teologia. Os mestres e os estudantes da faculdade de artes fonnavam a sua própria corporação legal, ou universidade, tal como o faziam os mestres e os estudantes da faculdade de medicina, e assim por diante. Muitas associações de estudantes eram também reconhecidas como universidades, particularmente na Itália. O tenno inicialmente utilizado, e que era de uso corrente em meados do século XIII, para abranger todas estas universidades individuais diferentes, ou associações de universidades, era studium generale (Estudos Gerais). Cada mestre ou estudante era membro da sua universidade ou corporação individual, mas também era membro do studium generale. Nos casos em que uma única faculdade ou corporação, ou mesmo duas, mantinha uma escola, a designação studium generale não lhe era normalmente conferida. O termo atribuía-se em geral a escolas que tinham prestígio suficiente, tais como as universidades de Paris, Oxford e Bolonha, ou eram suficientemente grandes para 421 A UNIVERSIDADE MEDIEVAL os FUNDAMENTOS DA CItNCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA incluírem pelo menos três das quatro faculdades tradicionais (artes, teologia, direito e medicina), ou ambas as coisas. Uma das principais vantagens de uma escola designada como studium generale residia num importante direito automaticamente conferido aos que nela se graduavam: a "licença (ou direito) de ensinar em qualquer parte", conhecido em latim por ius ubique docendi. Na prática, contudo, era mais o prestígio de um studium que validava o direito de os graduados ensinarem em qualquer parte. É óbvio que o termo studium generale é o equivalente do nossO actual termo "universidade". É possível que no final da Idade Média, "universidade" tenha substituído a designação studium generale, tornando-se o termo que hoje conhecemos e que usaremos daqui em diante. Como entidades corporativas, as várias guildas medievais eram associações que detinham o monopólio de certos privilégios. As universidades não constituíram excepção e recebiam um tratamento especial por parte das autoridades eclesiásticas e seculares, as quais pretendiam encorajar o seu desenvolvimento. A cada faculdade era concedida a jurisdição sobre os seus próprios assuntos internos e, por conseguinte, o direito de ajuizar merecimento de mestres e estudantes que nela entrassem como membros da corporação. A universidade, formada pelas suas faculdades e estudantes, tinha o direito legal de negociar, relativamente a uma vasta gama de problemas, com as autoridades externas que controlavam as várias jurisdições governamentais e religiosas em que se encontrava localizada. Havia igualmente privilégios relevantes a nível pessoaL Aos membros das universitas eram concedidos certos direitos cruciais, sendo o mais importante o de estatuto clerical. Embora a maioria de mestres e estudantes não fosse ordenada nem tivesse intenções de o ser, o estatuto clerical atribuia-Ihes os direitos do clero. Assaltar um estudante ou um mestre que fosse em viagem equivalia a assaltar um padre e era um acto sujeito a penas severas. O estatuto clerical permitia também aos estudantes que fossem presos por autoridades civis exigir julgamento nos tribunais eclesiásticos, regra geral mais clementes do que os civis. Permitia igualmente que estudantes e mestres recebessem benefícios edesiásticos e aproveitassem os frutos desses benefícios enquanto prosseguissem nas suas actividades universitárias regulares. Para além destes privilégios individuais, um importante direito associativo permitia que as universidades suspendessem as lições e abandonassem inclusive as respectivas cidades se sentissem que os seus direitos tinham sido violados. Isto constituía uma arma económica significativa contra as cidades onde as universidades se localizavam. Tais privilégios faziam da universidade uma instituição poderosa e permitiam-lhe exercer considerável influência na sociedade medievaL I 143 Por volta de 1200, as universidades floresciam em Bolonha, Paris e Oxford, tendo provavelmente surgido nesta ordem. Embora sejam escassos os documentos susceptíveis de lançar luz sobre as suas origens e desenvolvimento inicial até ao século XIII, altura em que se encontravam já bem estabelecidas, o dealbar das universidades estava intimamente associado ao novo conhecimento que fora traduzido para latim no decurso do século XII. Na verdade, a universidade foi o meio institucional através do qual a Europa Ocidental organizou, absorveu e expandiu o grande volume de conhecimento novo, o instrumento através do qual moldou e disseminou uma herança intelectual comum que se perpetuou pelas gerações seguintes. As primeiras universidades internacionais na sua esfera de acção - Paris, Oxford e Bolonha -, foram de longe as mais famosas da Idade Média. (Paris e Oxford ficaram célebres como centros de filosofia e ciência; Bolonha era igualmente notável pelas suas escolas de direito e medicina.) Por volta de 1500, tinham sido criadas aproximadamente mais setenta universidades. As da Europa Setentrional guiavam-se pelo padrão da de Paris, ao passo que as do Sul escolheram Bolonha como modelo. De 1200 a 1500, três séculos de história cultural e intelectual moldaram a universidade, dando-lhe uma forma que persistiu até aos dias de hoje. Embora não caiba aqui apresentar uma descrição pormenorizada da estrutura e do funcionamento da universidade medieval, algumas indicações sobre a sua organização poderão revelar-se úteis. A universidade medieval era acima de tudo uma associação de mestres e estudantes dividida no máximo em quatro faculdades (essencialmente, artes, direito, medicina e teologia) em cada uma das quais se matriculavam estudantes com a intenção de atingirem o bacharelato ou o grau de mestre. O grau de mestre em artes era geralmente um requisito prévio para o acesso às faculdades superiores de direito, medicina e teologia. Assim sendo, um mestre da faculdade de artes podia ser também um estudante matriculado para obter o grau de bacharel ou de mestre em teologia, medicina ou direito. As universidades de Paris e de Bolonha ofereceram dois modelos díspares para a organização das universidades fundadas durante a Idade Média. Dos dois modelos, só o da Universidade de Paris será aqui discutido (apesar da sua importância, a Universidade de Bolonha é muito menos relevante no que se refere à fdos06a natural). A Universidade de Paris era uma "universidade de mestres", assim considerada porque os mestres em artes agiam como corpo governativo de toda a universidade. Os mestres em artes de Paris controlavam o currículo, os exames, a admissão de novos mestres e a atribuição do bacharelato ou do grau de 441 os FUNDAMENTOS DA CIWCIA MODERNA NA IDADE MllDIA A UNIVERSIDADE MEDlEVAi 145 mestre em artes. Os estudantes e os mestres das faculdades de artes - e só das esse tempo podia alongar-se para além disso, até sete ou mesmo oito anos. O faculdades de artes - estavam organizados em quatro "nações" baseadas na grau de mestre em artes era um requisito prévio para entrar em qualquer das faculdades superiores de direito, medicina e teologia, cada uma das quais exigia um número adicional de anos de estudo. Assim, o número de estudantes geografia e designadas como Francesa, Picarda, Normanda e Inglesa (ou Anglo-Germânica, que incluía estudantes da Europa Central e Setentrional). Os mestres em artes que subsequentemente vinham a ser professores nas faculdades superiores de medicina, direito e teologia mantinham a qualidade de membros das respectivas nações. As nações, cada uma das quais chefiada por um proctor, dirigiam na realidade as universidades, já que elegiam o seu principal funcionário, o reitor. Pelos padrões modernos, as inscrições nas universidades medievais eram poucas. O número de estudantes em grandes instituições como Paris, Oxford, Bolonha e Toulouse rondaria provavelmente os mil, mil e quinhentos. EntravaIll cerca de quinhentos estudantes anualmente na Universidade de Paris. Como o period~ médio de estudo por 'aluno era de cerca de dois anos,o número total de estudantes a aprenderem em Paris em qualquer momento era superior a mil, talvez perto de mil e duzentos. Ao longo do decorrer da Idade Média, contudo, o número de estudantes a matricular-se parece ter aumentado. A longo prazo, os números são impressionantes. Em relação ao resto da Europa, os estudiosos calculam que aproximadamente setecentos e cinquenta mil estudantes se tenham matriculado nas universidades entre 1350 e 1500. O número sempre crescente de estudantes indica também que o número de universidades aumentou no mesmo período, durante o qual foram fundadas mais de quarenta. Nos finais da Idade Média, existia aproximadamente uma universidade em cada estado da Europa, quer fundada por um papa quer por um governante secular. Em retrospectiva, é óbvio que nenhuma instituição surgida na Europa durante a Idade Média demonstrou ser mais permanente do que a universidade. Estudantes e mestres que completava com êxito graus nas faculdades superiores representava uma pequena percentagem da comunidade estudantil total, talvez menor do que a daqueles que alcançam doutoramentos nas modernas universidades. A frequência universitária de um estudante, ainda que por um curto período de tempo e mesmo sem a aquisição de qualquer grau, era favoravelmente encarada pela sociedade e considerada útil para a carreira do estudante. Durante a Idade Média, não existia uma hierarquia de instituições educacionais comparável às divisões nítidas entre as actuais escolas primárias, liceus e universidades. Por conseguinte, não era necessária, para admissão, frequência de uma escola de "nível inferior". Na realidade, nem a capacidade de ler e escrever latim seria um requisito essencial. Dada a quase inexistência de condições ou requisitos prévios, a entrada numa universidade medieval era relativamente simples. Existiam, no entanto, duas exigências indispensáveis para a admissão. A primeira era a matrícula oficial que era responsabilidade do reitor da universidade. Para conseguir a matricula, o estudante que pretendia entrar, e tinha geralmente catorze ou quinze anos de idade, devia pagar uma propina e prestar um juramento. Esse juramento variava de universidade para universidade mas implicava geralmente, por parte do estudante, um compromisso de lealdade para com o reitor e a promessa de promover o bem-estar e a integridade da universidade. O estudante jurava também que se não vingaria de quaisquer injustiças que lhe pudessem ser feitas. Em troca, o reitor admitia o estudante na comunidade universitária e, daí em diante, esperava-se que o protegesse sempre que necessário. Apesar do seu significado, 'a cerimónia de prestação do juramento era sobretudo um exercicio formal. Porém, o mesmo já não sucedia em relação à segunda exigência, a qual obrigava que cada aluno se associasse a um mestre. Os estudantes associados ou menos, sem adquirir o grau de bacharel. A percentagem de estudantes a ao mesmo mestre formavam um grupo natural. Os seus destinos académicos estavam sujeitos à jurisdição do mestre e deste se esperava, consequentemente, que introduzisse o estudante na comunidade e na vida universitárias. quem era atribuído esse grau era, pois, relativamente baixa. Quanto mais longo fosse o tempo necessário para se completar com êxito um grau, tanto menor O mestre deveria preparar os seus estudantes para exames, certificando-se de que estes estavam à altura das várias exigências que lhes eram postas nas dife- seria a percentagem dos estudantes que o recebiam. Enquanto o grau de bacha- rentes provas. Cabia também ao mestre elaborar um plano de estudos para os seus alunos, de acordo com o qual frequentariam às suas lições por um periodo A maioria dos estudantes das universidades medievais partia após dois anos rel requeria três ou quatro anos, o grau de mestre em artes exigia mais um ou dois anos, num total de cinco ou seis anos de escolaridade. Ocasionalmente, de três ou quatro anos ou assistiriam a aulas sugeridas pelo mestre e leccionadas 46\ os FUNDAMENTOS DA CIENC1A MODERNA NA IDADE MEDIA por outros. A escolha de um mestre por parte de um aluno seria provavelmente feita com base em critérios pessoais, os quais poderiam implicar considerações corno geografia, ligações familiares e amizades. É provável que o agrupamento mestre-estudantes permitisse relacionamentos mais personalizados dentro da estrutura institucional, mais formal e até mesmo proibitiva, da universidade no seu conjunto. Ensino na faculdade de artes o ensino era a actividade mais importante nas universidades medievais, mas os próprios professores - os mestres - não eram muito considerados. Embora existissem mestres famosos, a sua fama raramente dependia do seu modo de ensinar. Os professores eram encarados corno pouco mais do que peças substituíveis. Pelo menos dois factores estiveram na base deste estado de coisas. O curriculo nas diferentes universidades medievais era muito semelhante e, na maioria dos casos, repetia-se anualmente. Dado que não existiam especialistas em ternas nem áreas nas faculdades de artes das universidades medievais, não havia cursos opcionais a fazer parte do curriculo. Todos os mestres em artes eram considerados capazes de ensinar qualquer dos cursos regulares em filosofia natural (talvez também cursos nos ternas do quadrívio). Assim, neste sentido, os mestres eram substituíveis. O segundo factor, que vem reforçar o primeiro, dizia respeito aos métodos e às técnicas de ensino. A instrução na universidade centrava-se na lição (lectio) e no debate (disputatio). As lições eram de dois típos básicos, ordinárias e extraordinárias. As lições ordinárias formavam a base do programa de ensino e eram sempre dadas de manhã por mestres regentes designados, isto é, mestres no ensino activo. Corno prova da sua importância, nenhuma outra lição ou actividade era permitida durante as lições ordinárias. Pelo contrário, as lições extraordinárias tinham geralmente lugar à tarde ou em algum dia em que não estivesse marcada qualquer lição ordinária. A.~ lições extraordinárias eram mais flexiveis e informais e podiam ser ministradas tanto por estudantes corno por mestres. Um terceiro tipo de liçãO menos importante, também leccionado à tarde, era geralmente dedicado a um sumário ou a urna revisão de problemas resultantes de um texto clássico. A intenção das lições ordinárias consistia na apresentação dos textos requeridos para a constituiçãO do curriculo oficial. Os estudiosos que se A UNIVERSIDADE MEDIEVAL 147 debruçam sobre o assunto pouco têm dito acerca do que realmente sucedia numa sala de aula universitária típica da Idade Média, provavehnente porque professores e estudantes deixaram poucas descrições das suas experiências. Contudo, é provável que as lições nas salas de aula fossem urna experiência passiva para os estudantes, que se limitariam a ouvir e talvez a tornar algumas notas. Os estudantes que possuíam cópias do texto em discussão - e poucos as tinham - podiam acompanhar a lição com a leitura. As lições eram, sobretudo, o domínio dos mestres que tinham urna liberdade considerável para introduzir as suas próprias opiniões. Em lições que durariam pelo menos urna hora e chegariam talvez a ter duas, um mestre em artes podia dedicar grande parte do tempo ao estudo de um texto obrigatório, digamos a Física ou Sobre os Céus de Aristóteles. Durante o século XIII, desenvolveram-se algumas técnicas para apresentação de textos. Inicialmente, o mestre lia o texto oficial e comentava termos e expressões que requeressem explicação. Pouco depois, contudo, os mestres começaram a resumir o texto e também a acrescentar opiniões esclarecedoras e comentários críticos. As traduções de Avicena podem ter servido de modelo para esta abordagem. Os comentários aristotélicos de Alberto Magno constituem um notável exemplo da técnica de Avicena. Outro método para a apresentação de urna lição ordinária consistia em separar o texto e o comentário. Nesta abordagem, o professor, ou comentador, não se limitava meramente a explicar cada secção do texto, podendo também incluir as opiniões de outros comentadores e autores, bem corno as suas. Os numerosos comentários de Averróis às obras de Aristóteles eram deste tipo e poderão ter servido de modelo aos comentários escolásticos do século XIII. São Tomás de Aquino, Walter Burley e Nicole Oresme foram apenas alguns dos escolásticos que seguiram o método de Averróis. Nos finais do século XIII, emergiu um novo método de análise textual que estava destinado a suplantar todos os outros. Na medida em que os mestres medievais tinham um elevado grau de liberdade quanto ao tratamento dos textos obrigatórios, alguns deles começaram a dar especial atenção a ternas e a problemas especiais inerentes ao texto, regra geral considerando-os perto do fim da lição. Porém, gradualmente, os mestres reduziram o tempo dedicado ao comentário sequencial directo substituindo-o pela discussão de problemas especiais. A seu tempo, a consideração desses problemas especiais, ou questões (questiones), veio a substituir totalmente o comentário. Entretanto, o significado das questiones transcendeu a sala de aula, porque as lições de muitos professores eram registadas por escrito e "publicadas". Devemos entender 481 os FUNDAMENTOS DA CI1!NClA MODERNA NA IDADE M1!D1A publicaçãO como um processo segundo o qual os escribas da livraria da universidade faziam cópias-padrão das lições dos mestres. Dessas cópias, outras cópias se podiam fuzer depois para serem alugadas ou vendidas a estudantes e a professores. Deste modo se disseminavam os exemplares de uma obra. Daqui emergiu a mais importante das categorias de literatura escolástica, as questiones. Este género tornou-se quase sinónimo de método escolástico, dado que, como veremos, utilizou a forma básica de um debate escolástico. Os debates escolásticos, em que os estudantes eram participantes activos, constituíam um aspecto vital da educação universitária. Enquanto nas salas de aula medievais os estudantes eram provavelmente ouvintes passivos, nos debates tinham oportunidade de aplicar os conhecimentos aprendidos. Asemelhança das lições, os debates dividiam-se em ordinários e extraordinários. O debate ordinário (disputario ordinaria) tinha o mesmo estatuto que a lição ordinária. Os mestres conduziam estes debates numa base regular, geralmente uma vez por semana, e exigiam que os estudantes assistissem. Os outros mestres também podiam assistir; todavia, cabia ao mestre que presidia colocar uma questão, normalmente sobre um assunto que pretendia examinar mais cuidadosamente e para o qual não teria tido tempo nas lições ordinárias. Os outros mestres e estudantes participavam, uns defendendo, outros contestando a questão levantada. Era, no entanto, o mestre presidente quem "resolvia" a questão, isto é, quem sintetizava os vários argumentos numa resposta definitiva ao problema posto. Neste exercicio, os estudantes aprendiam a debater questões contenciosas, alcançando assim uma experiência valiosa para a sua preparação como mestres. Durante os primeiros dois anos, os estudantes eram, habitualmente, observadores silenciosos. Contudo, nos terceiro e quarto anos, esperava-se que eles respondessem a perguntas e propusessem respostas. Com base nesta experiência, e desde que cumprissem todos os requisitos prévios necessários, aos estudantes que respondiam satisfutoriamente era dada permissão para resolver um debate, ou seja, os estudantes podiam dar a resposta final a uma questão, baseando-se em todos os argumentos prévios, a favor ou contra. Completada com êxito a resolução (determina rio), o estudante passava a bacharel em artes. Os bacharéis em artes que continuavam os estudos para obterem o grau de mestre em artes, tinham de passar pelo menos por mais dois anos de estudo. Além de assistirem a lições de filosofia natural, passavam geralmente algum tempo dando aulas à tarde sobre textos que lhes eram atribuídos pelos seus respectivos mestres, quer textos sobre lógica, quer, o que era mais comum, sobre os livros de filosofia natural de Aristóteles. Também fazia parte A UNiVERSIDADE MEDlEVAL 149 dos deveres do bacharel assistir a debates conduzidos tanto por mestres como por estudantes. Quando esta parte do currículo de um estudante se completava a contento do mestre, este recomendava que fosse permitido ao seu estudante "iniciar-se", isto é, que lhe fosse permitido encetar um processo em duas fases que terminava com a atribuição do grau de mestre em artes. Na primeira fase, o bacharel participava num debate em que, pela última vez, respondia ao seu mestre. Durante a segunda, o bacharel recebia a insígnia do mestrado e proferia uma breve lição inaugural, e depois presidia ao debate de duas questões, "resolvendo" ambas. Como parte dos requisitos para o direito à iniciação, o futuro mestre tinha de jurar que ensinaria na faculdade de artes durante pelo menos dois anos, dando lições ordinárias e presidindo a debates semanais. Para além dos "'debates ordinários", um mestre podia, de tempos a tempos, tomar a seu cargo um "debate quodlibetário" (disputatio de quodlibet). Com início na faculdade de teologia no século XIII e estendendo-se à faculdade de artes no século XIV, os mestres realizavam debates públicos uma ou duas vezes por ano, geralmente por altura do Advento e da Quaresma. Sendo debates públicos, qualquer um podia assistir: estudantes, mestres e aqueles que não tinham qualquer ligação à universidade mas desejavam observar um espectáculo fora do comum, intelectual e gratuito, ou ainda que, não importa por que razão, preferiam estar dentro de portas durante o tempo do debate. Num debate quodlibetário, um mestre presidia. O debate decorria geralmente em dois dias. As questões - e haveria muitas eram propostas por membros da assistência. Qualquer questão era permitida, por mais controversa que fosse. Algumas dessas questões eram teológica e politicamente explosivas, colocadas na esperança de conseguirem embaraçar o mestre que presidia. Mas muitas questões - se não a maioria - eram sobr~ problemas de filosofia natural. Durante o primeiro dia do debate, podiam ser propostas até trinta ou quarenta questões diferentes. Membros da assistência podiam ser escolhidos para participar. Podiam colocar questões ou responder-lhes. Eram propostas soluções hipotéticas a muitas questões. Na medida em que as questões eram numerosas, abrangendo uma grande variedade de assuntos e frequentemente sem relação entre si, o mestre não era obrigado a considerá-las na ordem em que tinham sido propostas. Pelo contrário, esperava-se que ele as organizasse numa ordem exequível antes de, no dia seguinte, entrar na arena pública, altura em que demonstraria o seu virtuosismo ao resolver definitivamente cada questão pela ordem pela qual as organizara. O debate quodlibetário proporcionava uma fuga emocional à comunidade universitária, urna libertação momentânea do rígido formato dos debates e das lições ordinários. 50 I os FUNDAMENTOS DA CI~C!A MODERNA NA IDADE MÉDIA Currículo da Faculdade de Artes Até aqui, vimos como os estudantes obtinham os seus graus nas universidades medievais e os métodos de ensino desenvolvidos pelos mestres. É agora altura de descrever o que os mestres ensinavam e o que se esperava que os estudantes aprendessem. Antes da introdução da ciência greco-árabe e da filosofia natural, a educação das "artes" medieval baseava-se, como vimos no primeiro capítulo, nas sete artes liberais. Com a introdução das obras de Aristóteles e da ciência greco-árabe no final do século XII e no século XIII, cessou o primado das tradicionais sete artes e estas tornaram-se veículos de acesso ou auxiliares da filosofia ou, mais precisamente, da filosofia naturaL O novo conhecimento transformou as artes liberais. Três dos quatro temas do antigo quadrívio - aritmética, geometria e astronomia - viram-se francamente enriquecidos pela ciência greco-árabe. O trÍvio das sete artes liberais também se expandiu em particular na área da lógica, ou dialéctica. A lógica foi a primeira das sete artes liberais a ser bastante afectada pelo novo conhecimento, particularmente pela "nova lógica" de Aristóteles que consistia em tratados de Aristóteles desconhecidos no Ocidente antes do século XII (Analíticos Anteriores e Analíticos Posteriores, Tópicos e Refutações Sofisticas). Das sete artes liberais, a lógica desempenhava o papel mais significativo no novo currículo, em grande parte porque era entendida como um instrumento de análise aplicável a todos os campos, papel que o próprio Aristóteles lhe atribuíra, ao chamar às suas obras sobre lógica Organon, ou instrumento. Contudo, para além da lógica, que fazia parte do trívio tradicional, os temas do quadrívio passaram para segundo plano, sendo substituídos no proscénio pela filosofia de Aristóteles, a qual veio a ser subdividida em três partes conhecidas colectivamente por "as três filosofias": natural, moral e metafísica. O currículo das universidades medievais era essencialmente constituído pela lógica, os temas do quadrívio e as três fIlosofias, das quais a filosofia natural era sem sombra de dúvida a mais importante. Lógica A lógica era uma disciplina técnica que desenvolveu uma terminologia própria destinada a enfrentar inúmeros problemas de linguagem e inferência. Ocupava-se das propriedades dos termos e de como o contexto em que um A UNIVERSIDADEMEDJEVAL 151 termo surgia e afectava o seu significado, bem como das relações entre proposições. Ao longo da história medieval da lógica, foi abordado um grande número de problemas que exigiram a criação de novos termos e novas técnicas. Os próprios termos que vieram a ficar associados a essa história são testemunho da riqueza da lógica medieval e dos numerosos conceítos e técnicas criados pelos seus praticantes. Contudo, por volta do século XVI, o conhecimento da lógica medieval, com a sua complicada terminologia, quase desaparecera. À medida que o humanismo se tomou mais significativo no século XV e, especialmente, no século XVI, os autores humanistas atacaram o que consideravam ser a esterilidade e barbárie da lógica medieval. Termos e expressões tradicionais, muitos deles baseados nos Tópicos de Aristóteles, eram presa fácil para as suas criticas mordazes. Tornou-se dificil defender uma disciplina com uma panóplia de termos como "suposição", "significação", "univocação", "equivocação", "copulação", "apelação", restrição", "categorema", "sincategorema", "consequência", "obrigação", "exponibilia", "sofismata" e "insolubília". No século XVI a educação humanista dava ênfase ao estilo e ao conteúdo da linguagem, por oposição aos seus aspectos formais. Além disso, a lógica medieval parece ter estado ligada, tanto quanto possível, a uma forma de expressão puramente verbal. Era-lhe necessário desenvolver um método de representação das várias relações lógicas possíveis de forma análoga ao desenvolvimento da álgebra simbólica, que tinha vindo a progredir desde o século XV. Embora a lógica medieval fosse geralmente usada em exercícios e problemas hipotéticos, os autores escolásticos aplicavam por vezes o seu conhecimento de lógica formal a problemas de filosofia natural, presumindo que os leitores entenderiam o seu papel na discussão. Quadrívio O quadrívio funcionava como fonte de ciência teórica e exacta para os estudantes universitários medievais. Contudo, diferia radicalmente do quadrívio nos currículos das escolas monásticas e das catedrais da Alta Idade Média. A ênfase posta nas ciências exactas nas universidades da Baixa Idade Média não tinha igual amplitude nem alcance. Em Oxford, as ciências exactas tornaram-se parte integrante do currículo a partir do século XIII, mas foi-lhes conferida muito menos importância em Paris e noutros locais. Em Paris, a matemática e as outras ciências do quadrívio raramente faziam parte do que era proposto no curso regular. A matemática, por exemplo, não era s21 OS FUNDAMENTOS DA CI~NCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA habitualmente ensinada em Paris no século XIII e só o foi, embora de forma esporádica no século XIV. Os mestres interessados nas ciências exactas podiam dar cursos privados a alunos que mostrassem interesse em tal. Embora existissem na Idade Média numerosas obras de aritmética, geometria, astronomia e música, muitas traduzidas do árabe ou do grego, só um número limitado fazia parte dos textos obrigatórios nos cursos universitários. No entanto, a maioria dos tratados sobre ciências exactas estava disponível. Na verdade, muitos tinham sido escritos na Idade Média por eruditos com educação universitária, durante a qual pela primeira vez se tinham familiarizado com as ciências. Das quatro ciências do quadrívio, a aritmética e a música eram as que mais se assemelhavam às suas correspondentes da Alta Idade Média, ao passo que a geometria e a astronomia eram praticamente novas ciências. Boécio, um autor da Alta Idade Média, favoreceu os tratados fundamentais de aritmética e música, nomeadamente os seus Arithmetica e Musica. Mas em ambos os casos, os tratados escritos no século XIII e no século XIV foram muito além de Boécio. Embora a Musica de Boécio, juntamente com o tratado de Santo Agostinho, Sobre a Música (De musica), fossem os textos-padrão para o ensino da música nos cursos de artes, novos e importantes tratados foram escritos no século XIV por Johannes de Muris, Philippe de Vitry e Guillaume de Machaut. Estes e outros autores desempenharam um papel importante ao criarem uma notação musical. Em aritmética, o tratado teórico de Boécio foi suplantado pelos Livros VII a IX dos Elementos de Euclides, que versavam sobre a teoria dos números, e pela Arithmetica de Jordano de Nemore (fi. ca. 1220), em dez livros, que incluía mais de quatrocentas proposições e se tornou a fonte-padrão da aritmética teórica na Idade Média. A geometria era a base do currículo nas ciências exactas e os Elementos de Euclides, obra quase desconhecida durante a Alta Idade Média, o seu texto fundamental. Dos treze livros genuínos e dois apócrifos da versão medieval latina dos Elementos, só os primeiros seis livros eram geralmente exigidos. Tal como a aritmética, a geometria tinha um aspecto prático, ou aplicado. Na Idade Média, a sua aplicação mais importante era na astronomia. Entre as obras de astronomia, a mais conhecida e de maior relevo era o Almagesto de Ptolomeu, que proporcionava as bases para o conhecimento técnico do tema. Embora surgisse nas listas curriculares, o Almagesto era demasiado técnico para ser usado como texto. Eram necessários tratados muito mais simples. Duas obras do século XIII tentaram suprir essa necessidade. A mais famosa e popular foi o Tratado da Esfera (Tractatus de sphaera) de João de A UNIVERSIDADE MEDlEV AL IS3 Sacrobosco (John of Holywood), cujos quatro capítulos ofereciam um breve estudo das diferentes partes do universo esférico finito. Embora o quarto livro fosse supostamente dedicado ao movimento planetário, o tratamento do tema era tão sumário que um professor desconhecido de astronomia compôs uma obra para remediar essa deficiência. A Teórica dos Planetas (Theorica planetarum) familiarizou gerações de estudantes com as definições e os elementos básicos da astronomia planetária e proporcionou-lhes um sistema estrutural do cosmo. Num nível mais prático, os estudantes também aprendiam algo acerca do cálculo dos vários dias festivos no calendário eclesiástico. Com este fim, utilizavam-se tratados computacionais que eram usados sob o título genérico de computus, os mais populares dos quais foram provavelmente os de João de Sacrobosco e Robert Grosseteste. A geometria desempenhava também um papel no uso de um instrumento astronóntico chamado quadrante (por exemplo, o Tratado sobre o Quadrante de Roberto Anglico) e encontrou igualmente aplicação em tratados sobre pesos ou na ciência da estática, associados ao nome de Jordano de Nemore, e em tratados sobre perspectiva, ou óptica, em obras associadas aos nomes de Ptolomeu, Alhazen (lbn al-Haytham), John Pecham e outros. O significado dado às ciências exactas no currículo universitário não é evidente nas listas curriculares, a maior parte das quais não sobreviveu, e que, de qualquer modo, eram pouco pormenorizadas. Podemos avaliar melhor a sua importância a partir da atitude dos eruditos que eram igualmente professores universitários. A geometria já não era avaliada apenas pelo seu uso prático em medições, ou mesmo como um auxiliar vital para a compreensão filosófica. Roger Bacon e Alexandre de Hales enalteceram as suas virtudes como instrumento para a compreensão da verdade teológica. Encararam a geometria como essencial para um correcto entendimento do sentido literal de numerosas passagens das Escrituras como, por exemplo, as que respeitam à Arca de Noé e ao Templo de Salomão. Só interpretando o sentido literal com o auxílio da geometria se podia atingir o sentido espiritual mais elevado. A geometria era ainda considerada obrigatória para uma compreensão adequada da filosofia natural, como Robert Grosseteste defendeu no seu tratado Sobre Linhas, Angulos e Figuras. Um universo que era constituído por linhas, ângulos e figuras não podia ser devidamente interpretado sem a geometria. Nem, aliás, o comportamento da luz que, tal como a maioria dos efeitos fisicos, se multiplicava e disseminava geometricamente na natureza. Também à aritmética era atribuído grande valor. Aliás, era muitas vezes considerada a mais importante entre as ciências matemáticas. No seu tratado A UNIVERSIDADE MEDIEVAL 54\ os FUNDAMENTOS DA CII'lNCIA MODERNA NA IDADE MIDIA do século XN, Comensurabilidade ou Incomensurabilidade dos Movimentos Celestes, Nicole Oresme dá a conhecer o modo como a aritmética era encarada e como se devia entender a sua relação com a geometria. No quadro de um debate imaginário entre geometria e aritmética, a Aritmética apresenta-se como a primogénita de todas as ciências matemáticas e a fonte de todas as razões racionais, por conseguinte fonte igualmente da comensurabilidade dos movimentos celestes e da harmonia das esferas. A previsãO do futuro assenta também em tabelas astronómicas exactas, cuja precisão depende dos números da Aritmética. Ao contra-argumentar, a Geometria reivindica maior domínio do que o da Aritmética, na medida em que abrange razões não só racionais como irracionais. Quanto à bela harmonia alegadamente trazida ao mundo pela racionalidade da Aritmética, a Geometria contra-ataca ao fazer notar que a rica diversidade do mundo apenas poderia gerar-se através de uma combinação de razões racionais e irracionais, que só ela origina. Tanto a geometria como a aritmética detinham um grande valor por serem essenciais à compreensão dos modos de funcionar da natureza e à descrição da variedade de movimentos e acções verificada no mundo. A ênfase dada, na Idade Média, à geometria e à aritmética devia fazer hesitar aqueles que têm defendido que os filósofos naturais e os teólogos medievais eram hostis à matemática. A ciência da astronomia, que incluía a astrologia, era igualmente louvada com regularidade como instrumento essencial para compreender o universo. A astronomia podia prever, mas não determinar, acontecimentos futuros. Roger Bacon considerava-a essencial à Igreja e ao Estado, bem como aos lavradores, alquimistas e médicos. Robert Grosseteste encarava-a como inestimável para muitas outras ciências, incluindo a alquimia e a botânica. A música era igualmente concedido um estatuto elevado. Era considerada útil na medicina porque os médicos podiam empregá-la como parte de um regime geral de saúde. Bacon considerava também a música importante para estimular as paixões na guerra e acalmá-las na paz. Dado que as expressões e os instrumentos musicais eram frequentemente mencionados nas Escrituras, pensava-se que o teólogo sensato faría bem em aprender tudo o que pudesse sobre música. Três filosofias I ~i Embora as sete artes liberais tivessem sido ampliadas e, inclusive, transformadas na Baixa Idade Média, nem por isso deixaram de representar a configuração tradicional da educação. O conhecimento realmente novo nas ISS universidades do século XIII surgiu com a introdução das obras filosóficas de Aristóteles, que viriam a constituir a principal exigência para o grau de mestre em artes. Com base nas obras de Aristóteles, distinguiam-se três domínios filosóficos principais: filosofia moral (ou ética), metafísica e filosofia natural. O texto mais relevante para a primeira destas áreas temáticas era a Etíca a Nicómaco enquanto a Metafisica era o texto mais importante para a segunda. Das três filosofias, a filosofia natural de Aristóteles era a mais importante e constituía o cerne de uma educação universitária. Os livros naturais (libri naturales) de Aristóteles eram utilizados como textos para o estudo da filosofia natural, incluindo Física (Physica) e Sobre a Alma (De anima), provavelmente os dois livros mais importantes da filosofia natural, juntamente com Sobre os Céus (De caelo), Sobre a Geração e a Corrupção (De generatione et corruptione), Meteorologia (Meteora) e Pequenas Obras sobre Coisas Naturais (Parva naturalia). Embora não sendo geralmente tema de lições e só raras vezes, se porventura alguma, textos obrigatórios, as obras biológicas de Aristóteles pertencem também à literatura da filosofia natural medieval. Na Idade Média, a filosofia natural era utilizada como alicerce da filosofia moral e estava quase sempre interligada à metafísica. Até mesmo a teologia recorria profusamente a ela, o mesmo sucedendo com a medicina e, em determinadas ocasiões, a música. Em função da sua importância vital, este livro centrar-se-á na filosofia natural e em mostrar como os problemas que tratava e os métodos usados para os resolver se viriam a revelar inestimáveis para o desenvolvimento dos prímórdios da ciência moderna. Faculdades superiores de teologia e de medicina As faculdades superiores de teologia e de medicina serviam-se extensivamente da filosofia natural; por isso, parece-me oportuno fornecer alguma informação acerca destas faculdades. Embora as escolas de teologia não exigissem, regra geral, o grau de mestre em artes para admissão aos seus programas, a maioria dos que a eles acediam possuíam-no ou tinham uma educação substancial em artes, particularmente lógica e filosofia natural. Como veremos no Capítulo 5, muitos teólogos encaravam a lógica e a filosofia natural como ferramentas essenciais à elucidação dos problemas teológicos, muito embora as autoridades eclesiásticas se queixassem frequentemente - até ao século XVI - de que os teólogos estavam, tanto para seu bem como para o da própria teologia, demasiado interessados nestes temas seculares. ",.- .... ~ .... t 561 os FUNDAMENTOS DA CIllNCIA MODERNA NA IDADE Ml!DlA Tendo bases sólidas em filosofia natural, os estudantes estavam prontos a iniciar o longo trajecto que os conduziria a um mestrado (ou doutoramento) em teologia, percurso que, em diferentes períodos, se estendeu por dez a dezasseis anos. Aqueles que alcançavam o grau em questão rondavam muitas vezes os trinta e cinco anos, uma idade bastante avançada numa época em que a esperança média de vida não seria superior a cinquenta anos. Os estudantes de teologia estudavam intensamente dois textos: a Bíblia e as Sentenças de Pedro Lombarda. Neste curso prolongado, cada estudante assistia a lições sobre os dois textos básicos durante os primeiros cinco a sete anos, findos os quais ascendia a "bacharel bíblico" (baccalarius biblicus) e passava a dar lições sobre certos livros da Bíblia durante dois anos. Os que ultrapassavam esta fase estavam aptos a leccionar durante aproximadamente dois anos sobre as Sentenças, passando a ser conhecidos por "bacharéis sentenciais" (baccalarii Sententiarií). Ao concluir este ciclo de lições, o candidato chegava a "bacharel formado" (baccalarius formatus) ao fim de mais quatro anos, ao longo dos quais se dedicava a muitas das actividades dos mestres em teologia. como, por exemplo, proferir sermões e dirigir debates quodlibetários. Após todos estes anos de estudo e treino, o bacharel completava finalmente tudo o que lhe era exigido para obter a licença para ensinar e receber o grau de mestre em teologia. Entre as disciplinas universitárias, a medicina estava mais intimamente ligada às artes do que à teologia. Na preparação para o estudo e a prática da medicina, a astrologia e a filosofia natural desempenhavam papéis significativos. A maioria dos estudantes que frequentava escolas médicas tinha o grau de mestre em artes ou uma formação razoável em artes. Era uma prática bastante comum reduzir a extensão do estudo àqueles que eram considerados proficientes nas artes. O tempo de estudo para o grau médico variava entre seis e oito anos. Tal como nas outras faculdades, os estudantes obtinham os seus graus em medicina assistindo a lições obrigatórias sobre textos determinados, tomando parte em debates e submetendo-se a exames orais. Dado que a quase totalidade dos que obtinham o grau em medicina se dedicavam à prática privada, o currículo médico era orientado para a prática, embora os textos fossem bastante teóricos. Os estudantes adquiriram experiência prática durante o Verão, dando assistência a médicos, quer na universidade quer na prática privada. A partir do século XN, também se esperava que assistissem a dissecações que, em principio, seriam realizadas regularmente. Havia uma grande quantidade de literatura médica na Idade Média e, como base das lições, só podiam utilizar-se textos seleccionados. As obras traduzidas do árabe desempenhavam um papel fundamental e incluíam A UNIVERSIDADE MEDIEVAL 157 numerosos tratados de Galeno (ca. 129-ca. 200), o grande médico grego, bem como de certos médicos muçulmanos, muito particularmente de Avicena (Ibn Sina) (Cdnone de Medicina), de Rhazes (al-Razi, f. 925) (Liber continens) e de Averróis Obn Rushd) (Colliget). Papel social e intelectual da universidade A finalidade das faculdades de teologia, medicina e direito é bastante evidente. Tratavam-se de escolas profissionais. O propósito de uma faculdade de teologia era formar teólogos; o de uma faculdade de medicina, formar médicos; e o de uma faculdade de direito, formar advogados. Os textos que se estudavam em cada uma dessas faculdades destinavam-se a esses fins. Mas qual era o objectivo da faculdade de artes? Que pretendiam os bacharéis e os mestres alcançar com o currículo que acabei de descrever? Que valor poderia ter uma educação baseada na lógica, numas poucas ciências exactas e na filosofia natural? A finalidade mais evidente do currículo de artes era formar novos mestres que fossem ensinar nas faculdades de artes da Europa. E, evidentemente, alguns, se não muitos, mestres em artes ganhavam a vida como professores. Aliás, os novos mestres eram obrigados a ensinar durante pelo menos dois anos após a obtenção do grau. Mas, que dizer dos mestres que não escolhiam fazer carreira no ensino? Que perspectivas se abriam àqueles estudantes que tinham apenas um bacharelato em artes ou apenas um ano ou dois de formação em artes? Haveria oportunidades de emprego para indivíduos que tinham poucos anos de educação em artes e estavam familiarizados com a lógica, o quadrívio e as três filosofias? Para esses indivíduos, as melhores oportunidades de emprego estariam provavelmente numa corte real 0lJ. ducal, ou na Igreja, ou talvez mesmo num governo comunal ou municipaL Mesmo uma breve frequência numa universidade implicava a capacidade de escrever latim e pelo menos um conhecimento rudimentar de cálculos aritméticos, o que eram talentos úteis para potenciais burocratas. Mas, em muitos casos, os antigos estudantes devem ter sido capazes de fazer uso da sua educação para oferecerem aos seus empregadores muito mais do que o mínimo que lhes era exigido. Ao fim e ao cabo, tinham sido expostos a múltiplas ideias sobre a vida e o mundo físico que eram consideradas importantes na sua época. E, no entanto, o currículo de artes que descrevi parece, à primeira vista, remoto e irrelevante para o funcionamento da sociedade medieval. Porque seria esse currículo tão teórico e desprovido de cursos práticos que pudessem revestir-se de maior utilidade para as necessidades da sociedade? Por que motivo 581 os FUNDAMENTOS DA CI!NCIA MODERNA NA IDADE MIIDIA A UNIVERSIDADE MEDIEVAL 159 não incluíam as universidades medievais nos seus currículos temas práticos importantes das artes mecânicas (artes mechanicae), como arquitectura, ciência militar, metalurgia e agricultura? Embora a comunidade universitária reconhecesse o valor intrínseco do currículo de artes e o seu valor como curso preliminar de acesso às faculdades superiores de medicina, teologia e direito, torna-se mais dificil determinar como encarava a sociedade, no seu todo, um currículo de artes baseado na lógica, em pedaços de um punhado de ciências exactas e numa dose extrema de filosofia e filosofia natural aristotélicas. Na realidade, o currículo de artes na universidade medieval não fora desenvolvido para responder às necessidades práticas da sociedade. Evoluiu do legado intelectual greco-árabe que chegara através das traduções dos séculos XII e XIII. Esse legado consistia num corpo de obras teóricas que deveriam ser estudadas seu valor intrínseco e não por razões práticas ou monetárias. A antiga tradição, exemplificada por Aristóteles e reforçada por Boécio e outros, punha grande ênfase no amor ao conhecimento pelo conhecimento. Desdenhava daqueles que aprendiam para ganhar a vida ou para fazer coisas de ordem prática. Professores e estudantes da sociedade medieval concordavam plenamente com este ponto de vista e foi de acordo com ele que moldaram a universidade medieval. Mas determinar se uma coisa é prática ou não depende de quem a avalia. O tipo de ensino teórico realçado na Antiguidade e na Idade Média (ver Capítulo 7) pode ter sido encarado como eminentemente pragmático e judicioso. Era possível deduzir dele conhecimento acerca do modo como o mundo cionava e adquirir assim uma consciência profunda das causas e dos efeitos perpétuos que davam forma à existência humana. Muitos teriam julgado esse conhecimento mais valioso do que qualquer outro e, portanto, eminentemente prático. Apesar da sua atitude fundamental, os eruditos medievais consideravam importante conhecer a estrutura e o funcionamento do Universo, pois era o principal objectivo de uma educação em artes. Com a aceitação das universidades pela Igreja e pelo Estado, a sociedade no seu todo acabou por aceitar o ideal de conhecimento de artes da universidade, um ideal que era considerado de grande valor pessoal para cada indivíduo, mas de pouco valor directo para as actividades seculares da sociedade. Este estado de coisas manteve-se durante séculos. Não houve qualquer expansão significativa do currículo de artes durante a Idade Média. Só com o Renascimento vieram a dar-se modificações e, mesmo então, a expansão inclinou-se para a inclusão de temas humanistas, como a história e a poesia, que estiveram ausentes durante a Idade Média, em vez de o fazer na direcção dos temas práticos. Na realidade, o ideal de conhecimento antigo e medievaladquirir saber pelo saber - permaneceu quase intacto. nm- Se o programa de artes nas universidades medievais não ofereceu benefícios práticos à sociedade, nem por isso deixou de lançar as bases do desenvolvimento da ciência e do espírito científico. Isto ficou a dever-se à estrutura e às tradiçóes peculiares da universidade, certamente um legado incomparável da Idade Média para a civilização ocidental. As suas extraordinárias realizações chegaram inclusivamente a infiltrar-se no mundo árabe. Ibn Khaldun 0332-1406), um grande historiador islâmico, declarou: Chega-nos igualmente a notícia de que as ciências filosóficas são grandemente cultivadas na terra de Roma e ao longo da costa adjacente setentrional ao país dos Cristãos Europeus. Diz-se que são ali de novo estudadas e ensinadas em numerosas aulas. As suas exposições sistemáticas são globais, as pessoas que as conhecem numerosas e os que as estudam muitíssimos. 1 Embora a universidade medieval fosse radicalmente diferente de qualquer instituição conhecida dos Antigos Gregos, Romanos e Arabes, é bem familiar para os estudantes e os professores de qualquer universidade modema que é, afinal, a sua descendente directa. Cultura manuscrita da Idade Média Antes do advento da imprensa em meados do século XV, a existência dos tratados de ciência e filosofia natural medievais dependia de cópias manuscritas. Consequentemente, os tratados estavam sujeitos a todas as fantasias e incertezas de qualquer sistema que tenha de confiar num escriba ou num copista para produzir uma ou mais cópias de um exemplar, ou para escrever uma lição enquanto era proferida. Os textos latinos medievais estavam ainda sujeitos a outras vicissitudes próprias desse sistema os erros por comlssao ou omissão porque os copistas medievais tinham desenvolvido um elaborado sistema de abreviaturas destinadas a acelerar o processo de copiar e também a poupar papel. Essas abreviaturas conferiam frequentemente mais um elemento de incerteza à interpretação de um texto, tanto para alguém que pretendia lê-lo, como para alguém que desejava copiá-lo. As dificuldades na decifração dos manuscritos medievais afectaram a moderna compreensão da ciência medieval sobretudo de duas maneiras. A primeira diz respeito à integridade da obra de um autor enquanto ia sendo copiada, recopiada e lida por estudantes e eruditos ao longo dos 60 I os FUNDAMENTOS DA CleNClA MODERNA NA IDADE MllDlA séculos. Dado que as cópias podiam variar drasticamente em resultado de erros dos copistas, introduzidos em qualquer altura do processo de disseminação, a compreensão dos objectivos de um autor em algumas, ou talvez em muitas, passagens era quase inevitavelmente distorcida. O facto de só se dispor de obras escritas e copiadas à mão significava que versões do mesmo tratado em Paris, Oxford e Viena podiam divergir substancialmente. Nos textos astronómicos e matemáticos, por exemplo, diagramas e figuras essenciais podem ter sido incluídos em algumas versões, mas omitidos ou só parcialmente reproduzidos noutras. Mesmo quando um diagrama era incluído, os erros do copista podiam reduzir ou destruir a sua utilidade. Em textos puramente verbais, podiam ser omitidas ou acrescentadas palavras pelo copista. Muitas das cópias de obras medievais que sobreviveram até hoje não eram feitas por copistas profissionais, mas por estudantes que tinham copiado os textos para seu uso pessoal. Essas cópias eram frequentemente passadas a outros estudantes que introduziam mais erros e alterações. A estes problemas, acrescentava-se ainda o da legibilidade. A caligrafia dos copistas era muitas vezes dificil de decifrar e em muitos casos simplesmente ininteligível. Os livreiros da universidade tinham como responsabilidade a produçãO de textos de confiança para o pessoal universitário. Sucedia muitas vezes receberem directamente do autor a versão original de um tratado. Desse original, faziam uma ou mais cópias. Os livreiros estavam autorizados a emprestar os textos, no todo ou em parte, a estudantes que, por uma taxa, os podiam copiar para uso próprio. Como é óbvio, as cópias dos estudantes variavam em qualidade. Muitas eram subsequentemente passadas a outros estudantes que por sua vez as copiavam. Eram introduzidos erros em praticamente todas as fases do processo de multiplicação e disseminação dos textos. Talvez a única excepção esteja nas cópias da Bíblia que eram cuidadosamente inspeccionadas. A segunda maneira pela qual a interpretação dos manuscritos medievais pode afectar a nossa compreensão da ciência medieval tem a ver com os limites impostos aos modernos estudiosos que lêem ou preparam para publicação tratados escritos na Idade Média. A maioria começaria provavelmente com uma lista dos manuscritos existentes do tratado em questão. A qualidade destes manuscritos, que sobreviveram aos estragos do tempo, determina o seu nível de inteligibilidade. Em muitos casos, hiatos significativos na compreensão desse tratado permenecerão provavelmente mesmo depois de os estudiosos modernos terem completado o seu trabalho editorial. ~ evidente que as diferenças entre a versão original de um tratado medieval e todas as suas cópias posteriores eram, na melhor hipótese, consideráveis e, na pior, imensas. Do nosso ponto de vista, é fácil perceber como foi dificil a A UNIVERSIDADE MEDIEVAL 161 prática da ciência na Idade Média. A preservação de versões razoavelmente fiéis dos textos básicos greco-árabes que tinham sido traduzidos para latim era, em si mesma, uma tarefa enorme. A isso temos de acrescentar a panóplia de textos científicos, comentários e questões medievais que foram copiados e recopiados. E, infelizmente, nem todos os textos foram copiados e recopiados. Houve muitos tratados que simplesmente desapareceram. Durante a Idade Média, o conhecimento tinha tantas possibilidades de desaparecer como de ser preservado. Devia ser requerido um esforço enorme só para manter o status quo ou para reconstituir um texto que fora corrompido. Embora não nos seja possível avaliar os efeitos negativos para a ciência e para a filosofia natural medievais devidos à sua dependência de textos escritos à mão, podemos conjecturar que terão sido enormes. A introdução da imprensa em meados do século XV alterou significativamente este quadro. Com o advento dos livros impressos, o conhecimento em geral e a informação técnica em particular puderam ser disseminados com uma rapidez e uma exactidão dificilmente imagináveis no tempo dos manuscritos. A ciência foi particularmente beneficiada pela imprensa. Cópias idênticas de uma obra científica podiam ser espalhadas pela Europa num tempo relativamente breve. E, no entanto, discute-se ainda qual terá sido precisamente o papel da imprensa na geração da Revolução Científica. Somos forçados a perguntar se, na ausência da imprensa, o velho sistema de copistas poderia ter sido melhorado a ponto de multiplicar as cópias dos tratados científicos e dar assim resposta às necessidades intelectuais da Europa. E as bibliotecas reais, ducais, municipais e universitárias, em constante expansão, teriam proporcionado aos estudiosos europeus um acesso suficiente para permitir a expansão contínua da ciência e da instrução? Felizmente, não nos cabe responder a essas perguntas neste estudo. As contribuições fundamentais para o dealbar da ciência modema sobre que nos debruçamos aqui já tinham ocorrido muito antes de a imprensa de Gutenberg ter transformado a cultura manuscrita da Europa numa cultura impressa. Embora a reprodução e a disseminação de manuscritos levantasse sérios problemas na Idade Média, não devemos concluir que fossem insuperáveis. Apesar dos obstáculos, a qualidade dos textos escritos à mão sobre ciência e filosofia natural à disposição dos estudiosos medievais era frequentemente mais do que adequada para a sua compreensão e para a introdução de contribuições significativas. O legado que chegou até nós pode ser compreendido e muitas vezes admirado. No cerne desse legado estava a filosofia natural de Aristóteles, profundamente enraizada na universidade medieval, e que irei agora descrever de forma sucinta. o LEGAI;JO DE ARISTÓTELES PARA A IDADE MEDIA 163 4. O legado de Aristóteles para a Idade Média Os livros naturais de Aristóteles constituíam a base da filosofia natural nas universidades e é neles que devemos procurar como é que os estudiosos medievais compreendiam a estrutura e o funcionamento do Universo. Recorrendo a hipóteses, principios demonstrados e princípios evidentes em si mesmos, Aristóteles impôs um sentido sólido de ordem e coerência a um mundo até aí considerado desconcertante. Os discípulos medievais de Aristóteles, que constituíram a classe dos filósofos naturais na Baixa Idade Média, iriam eventualmente alargar os principios de Aristóteles a actividades e problemas para além do que o próprio filósofo considerara. Aristóteles estava convencido de que o mundo que procurava compreender era eterno, sem principio nem fim. Encarava a eternidade do mundo como algo bem menos problemático do que qualquer assunção de um início cósmico que implicaria igualmente um futuro fim para o mundo. Era melhor postular a eternidade do que ser forçado a entrar numa explicação que iria requerer uma infinita regressão de principios causais. A ideia de que a matéria pudesse ter um início parecia impossível aos Antigos Gregos porque, se chegássemos a uma alegada matéria primitiva, isso conduziria inevitavelmente à questão de saber o que a teria causado, e assim por diante. Entretanto, sem um início, o mundo não podia ter sido criado, pelo que as ideias de Aristóteles sobre a eternidade do mundo o colocavam em oposição aos teólogos das grandes religiões monoteístas, Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. De todas as questões sobre as quais a filosofia natural e a teologia se debruçaram durante o século XIII na Europa Ocidental, os teólogos encararam a eternidade do mundo como a mais difícil e a mais ameaçadora para a fé (ver capítulo Por outro lado, se o mundo de Aristóteles era eterno e portanto suspeito, a insistência na sua unicidade colocavam-no em plena concordância com as escrituras sagradas das três grandes religiões. Encarava o mundo em que vivemos como único, uma grande esfera finita, para além da qual nada podia existir. Toda a matéria existente estava contida neste mundo, e nada ficava de fora. Sem corpo, não podiam existir fora do mundo "nem lugar, nem vazio, nem tempo" porque as definições de "lugar", "vazio" e "tempo" dependiam da existência de corpo. Para Aristóteles, o lugar próprio de um corpo era sempre a superfície interna de um outro corpo que o rodeava imediatamente e estava em contacto directo com ele. Assim, um lugar é definido como algo em que um corpo deve estar presente. Sem a existência de um corpo para lá do 641 os FUNDAMENTOS DA CIl'.NCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA mundo em que vivemos, nenhum lugar pode existir (para mais infomlaçóes sobre a noção de lugar, ver mais adiante neste capítulo). De modo semelhante, um vazio é algo em que a existência de um corpo é possível, embora de forma não actuaL Por conseguinte, se nenhum corpo pode existir, nenhum vácuo é igualmente possíveL Por fim, o tempo é a medida do movimento. Sem corpo não é possível movimento nem, por conseguinte, tempo. Aristóteles concluiu que toda a existência se situa no interior do nosso cosmo, e nada no seu exterior. O "nada" nesta acepção não deve ser concebido como um vácuo, sendo mais bem caracterizado como a total ausência de ser. A decisão mais importante que Aristóteles tomou acerca do mundo físico eterno foi talvez a de o dividir em duas partes radicalmente diferentes, a terrestre, que se estendia desde o centro da Terra até à esfera lunar, e a celeste, que abarcava tudo desde a Lua até às estrelas fixas. Na região terrestre, a observação e a experiência tornavam evidente que a mudança era incessante, ao passo que na região celeste a mudança era quase inexistente. As observações astronómicas herdadas do passado convenceram Aristóteles de que nunca tinham sido detectadas quaisquer mudanças nos céus (Sobre os Céus 1.3.270b.13-17), pelo que inferiu que as mudanças não ocorriam - nem podiam ocorrer nele. Para compreender melhor o mundo de Aristóteles, será vantajoso descrever primeiro a região terrestre da mudança, o que, por sua vez, tornará mais compreensíveis as propriedades e os atributos imutáveis da região celeste. Região terrestre: domínio de incessante mudança Grande parte da filosofia natural de Aristóteles consiste numa tentativa de identificar e explicar os princípios da mudança na região terrestre, princípios que moldaram as interpretações medievais dos processos que fazem do mundo o que ele é. Embora vivamos num mundo que não teve começo, mesmo assim Aristóteles explica como devemos imaginar o desenvolvimento da matéria e como ela se diferencia nos quatro elementos básicos - terra, água, ar e fogo - que formam as partes constituintes de todos os corpos materiais da região terrestre. A base subjacente a todos os corpos materiais é a matéria-prima que, embora real, não tem existência independente. Aristóteles deduz simplesmente a sua realidade porque era essencial pressupor a existência de algum tipo de substrato em que qualidades e formas podiam tornar-lhe-se inerentes e produzir matéria sensível. A matéria-prima não tem propriedades próprias, estando sempre associada a qualidades que se lhe tornam inerentes e a definem. o LEGADO DE ARlSTÓTELES PARA A IDADE Ml'.DIA 165 Que propriedades ou qualidades ergueriam a matéria-prima a um nível mais elevado de existência, digamos ao nível de um elemento? Depois de eliminar uma série de possibilidades, Aristóteles argumenta que dois pares de qualidades contrárias, ou opostas, podiam atingir esse efeito: quente e frio, seco e húmido. Dado que nada poderia ser simultaneamente quente e frio, nem seco e húmido, nenhum par de qualidades opostas se poderia tomar inerente simultaneamente à matéria-prima. Contudo, as combinações de pares não opostos são possíveis e podem produzir elementos. Se as qualidades frio e seco se tomassem inerentes à matéria-prima, produziriam o elemento terra; frio e humidade produziriam água; calor e humidade, ar; e calor e secura, fogo. Assim foram obtidos os quatro elementos. Os corpos da região terrestre não eram, contudo, elementos puros, mas misturas, ou compostos, de dois ou mais elementos, geralmente designados na Idade Média como corpos "mistos". Na filosofia natural, ou fisica, de Aristóteles, cada corpo é um composto de matéria e forma, onde a matéria-prima existe como substrato a que a forma se torna inerente. A forma de uma coisa, ou de um corpo, é a soma das suas características essenciais, as propriedades que fazem dessa coisa o que ela é. Natureza, no domínio terrestre, mais não é do que um termo colectivo para a totalidade dos corpos existentes, cada um constituído por matéria e forma. Cada um desses corpos pertence à sua própria espécie e possui as propriedades e características - ou seja, a forma - da sua espécie. Se estiver livre de impedimentos, agirá em conformidade com essas propriedades. Aristóteles atribuiu, pois, aos corpos do mundo o poder de actuarem de acordo com as suas capacidades naturais. Deste modo, concebeu uma causalidade secundária, quando os corpos eram capazes de actuar sobre outros corpos, isto é, quando eram capazes de causar efeitos noutros corpos. Aristóteles acreditava que cada efeito era produzido por quatro causas agindo em simultâneo; nomeadamente, uma causa material, ou aquilo de que alguma coisa é feita; uma causa formal, ou a estrutura básica a ser imposta a alguma coisa; uma causa eficiente, ou o agente de uma acção; e uma causa final, ou a finalidade para a qual se empreende a acção. As causas que produzem uma pedra não só a fazem pesada, mas, se nada se lhes opuser, também lhe conferem a capacidade de cair naturalmente em direcção ao centro da Terra com um movimento rectillneo. De modo semelhante, os agentes que produzem o fogo conferem-lhe leveza e, consequentemente, a capacidade de se elevar naturalmente para cima, sempre que nada os contrariar. Aristóteles ocupou-se também dos tipos de mudanças que as quatro causas podiam originar, distinguindo quatro tipos: (1) mudança substancial, quando uma forma suplanta outra na matéria subjacente a esta, como 661 os RJNDAMENTOS DA CIID<CJA MODERNA NA IDADE MeoIA quando o fogo reduz uma acha a cinzas; (2) mudança qualitativa, quando a cor de uma folha é alterada de verde para castanho na mesma matéria subjacente; (3) mudança de quantidade, quando um corpo cresce ou diminui mantendo sob todos os outros aspectos a sua identidade; e, finalmente, mudança de lugar, quando um corpo sofre mudança ao deslocar-se de um para outro. Destes quatro tipos de mudança, só o primeiro e o quarto requerem explicação. A mudança substancial é a forma mais básica de mudança, implicando geração e corrupção. Para Aristóteles, cada mu'dança substancial implicava que algo tinha passado a existir porque qualquer outra coisa tinha deixado de existir. Este passar-a-existir e deixar-de-existir das coisas era a base de toda a mudança na região terrestre. Acontecia com todas as substâncias compostas de matéria e forma, o que, na região terrestre, incluía todas as coisas. As formas, ou qualidades, eram potencialmente substituíveis por outras suas contrárias. Quando isto sucedia, uma substância era transformada noutra. Por exemplo, o fogo, que possui as qualidades primeiras de calor e secura, transforma-se em terra, que possui as qualidades primeiras de secura e frio, quando o calor no fogo é substituído pelo frio, sua qualidade, ou forma, contrária. Enquanto uma forma exisk realmente na matéria diz-se da sua contrária que está em privação embora tendo o potencial de substituir a forma actual. Eventualmente, cada forma ou qualidade potencial virá a tornar-se naquilo em que é susceptível de se tomar. De outro modo uma forma permaneceria irrealizada e a natureza tê-Ia-ia produzido em vão. Enquanto uma forma de um par de formas contrárias se realiza em matéria, a sua contráría está ausente e em privação, porque duas formas contrárias não podem existir em simultâneo no mesmo corpo. Virtualmente tudo muda, isto é, geração e corrupção implicam a posse de uma forma, e a exclusão da outra, de um par de formas ou qualidades contrárias. A última das quatro mudanças, mudança de lugar, representa aqUilO a que geralmente chamamos movimento, a deslocação de um corpo de um lugar para outro. A doutrina do lugar de Aristóteles pode ser encarada de duas maneiras. No seu significado mais lato, diz respeito à estrutura do mundo sublunar; e no seu sentido mais estrito, diz respeito ao lugar específico de um único corpo. O sentido lato de lugar é, na realidade, a doutrina do lugar natural, na qual Aristóteles concebeu a parte do mundo abaixo da Lua como uma região estruturada, dividida em quatro regiões concêntricas, sendo cada uma o lugar natural de um dos elementos, e a região em direcção à qual esse elemento se deslocaria naturalmente se estivesse livre de qualquer impedimento. Assim, o anel concêntrico exterior, localizado logo abaixo da superfície côncava o LEGADO DE ARISTÓTELES PARA A IDADE MI'DIA 167 da esfera é o lugar natural do fogo; o anel concêntrico seguinte é o lugar do ar, para o qual o ar se ergue quando se encontra nas regiões abaixo, e para o qual cairia se, por alguma razão, estivesse localizado na região do fogo; abaixo do ar, fica o anel da água; e abaixo desse a esfera da nossa Terra, cujo centro coincide com o centro geométrico do Universo. A esfericidade da Terra era uma verdade básica no sistema do mundo de Aristóteles. Como prova observável da esfericidade da Terra, Aristóteles apontou as linhas curvas na superfície da Lua durante um eclipse lunar, inferindo com toda a razão que eram projectadas pela sombra de uma Terra esférica interposta entre o Sol e a Lua. Fez igualmente notar que, ao mudarmos de posição na superfície terrestre, surgiam à vista diferentes constelações, indicando que a Terra possuía uma superfície esférica. A esfericidade da Terra parecia ser ainda confirmada pelo modo como se observava que os corpos caíam para a superfície terrestre, em linhas não paralelas que se encontravam no seu centro. Se todos os corpos terrestres caíam desta maneira, agrupar-se-iam no centro do mundo e formariam naturalmente uma esfera. Os argumentos de Aristóteles em favor de uma Terra esférica foram aceites de imediato. Mas, e quanto ao lugar de qualquer corpo particular? A doutrina do lugar de Aristóteles baseia-se na convicção fundamental de que o mundo é uma plenitude material na qual a existência de espaço vazio é impossíveL Daqui se depreende que o lugar de qualquer coisa na região sub-lunar consiste na matéria que a rodeia. Ou, como Aristóteles o descreveu, o lugar de uma coisa é "o limite do corpo continente em que este está em contacto com o corpo contido".1 O limite, ou superfície interior do continente, devia igualmente ser destituída de movimento, uma qualificação que levantou sérios problemas na história da doutrina do lugar de Aristóteles. Acontecia frequentemente que quando a condição do contacto era conseguida, a da imobilidade não era, e vice-versa. No entanto, quando um corpo se adequava a estas condições rigorosas, presumia-se que estivesse no seu "lugar próprio", isto é, num lugar que apenas ele ocupava. Os lugares que incluíam mais do que um corpo distinto eram caracterizados como "lugares comuns". Na medida em que Aristóteles pressupôs que cada corpo estava em algum lugar, foi inevitavelmente levado a perguntar se a superfície exterior da esfera exterior que continha o mundo estaria ela própria num lugar, uma questão que equivalia a perguntar se o próprio mundo está em algum lugar. Na convicção de que não existiam corpos para lá do mundo, Aristóteles argumentou que, se nenhum corpo material, e consequentemente nenhuma superfície de um corpo, podia rodear o nosso mundo, nenhum corpo poderia funcionar como seu lugar. Paradoxalmente, embora cada corpo no mundo esteja num lugar, a última esfera, ou o próprio f" 'I" "tt ~l(i ~7 681 os FUNDAMENTOS DA CI~NClA MODERNA NA IDADE MÉDIA mundo, não está directamente em nenhum lugar. Aparentemente constrangido por esta consequência da sua doutrina do lugar, e temendo que o considerassem inconsistente, Aristóteles encontrou uma espécie de lugar para a última esfera, argumentando que a última esfera está indirectamente num lugar, devido às suas partes, porque "numa orbe cada parte contém outra".2 Muitos dos comentadores de Aristóteles rejeitaram esta sua tentativa enigmática de atribuir um lugar à última esfera. E os que o não fizeram foram frequentemente levados a encontrar bizarras explicações para defender o mestre, como quando Averróis argumentou que a última esfera está num lugar por acidente (per acddens) porque o seu centro, a Terra, está num lugar por essência (per se). São Tomás de Aquino considerou "ridículo dizer que a última esfera está num lugar acidentalmente, [simplesmente] porque o centro está num lugar".3 Como poderia um continente estar num lugar em virtude da coisa que contém? Movimento na física de Aristóteles O movimento dos corpos foi um problema que Aristóteles abordou com frequência, embora em nenhuma parte da sua obra conhecida se encontre um tratamento sistemático e abrangente desse problema. A explicação que se segue é baseada em argumentações dispersas por várias das suas obras, sobretudo na Física e em Sobre os Céus. Num mundo sublunar que não incluía espaços vazios e era uma plenitude material, o movimento, ou movimento local como era algumas vezes designado, tinha de ser de um lugar nessa plenitude para outro. Aristóteles distinguiu dois tipos de movimento: natural e violento (ou antinatural), divisão que terá provavelmente tido origem na observação comum. A divisão do movimento local em natural e violento, e o conjunto de conceitos, argumentos e hipóteses tisicas associados a estes dois movimentos contrários constituíram o cerne da física sublunar de Aristóteles. Movimento natural de corpos sublunares. O conceito de movimento natural de Aristóteles dependia de propriedades óbvias que ele observava nos quatro elementos - terra, água, ar e fogo - que formavam a base material de todos os corpos terrestres. Via-se que alguns corpos, como as pedras quando caíam de uma certa altura, se moviam em linha recta em direcção ao centro da Terra. Outros corpos, tais como o fogo e o fumo, pareciam erguer-se sempre em direcção à esfera lunar, afastando-se do centro da Terra. Dado que O LEGADO DE ARlSTOTELES PARA A IDADE MIDIA 169 se observara, com base na experiência, que a classe de corpos que caiam naturalmente para o centro da Terra era mais pesada do que as classes de corpos que se erguiam, Aristóteles concluiu que, se não for contrariado, um corpo terrestre pesado se movia naturalmente para baixo, numa linha recta, em direcção ao centro da Terra. Assim, o centro da Terra - ou, mais precisamente, o centro geométrico do Universo - era o lugar natural de todos os corpos pesados. Em contrapartida, os corpos leves moviam-se naturalmente para cima, em linha recta, em direcção à esfera lunar. Aristóteles descreveu estes movimentos naturais ascendente e descendente como acelerados. Apliquemos agora estas generalizações especificamente aos quatro elementos. Sempre que um corpo elementar, composto de terra, estava acima do seu próprio lugar natural - quer fosse na água, no ar quer na região do fogo acima do ar - era considerado absolutamente pesado porque, se não fosse contrariado, cairia em direcção ao centro da Terra. O fogo era considerado absolutamente leve; sem ser contrariado, erguer-se-ia sempre para cima e em direcção ao seu lugar natural acima do ar e abaixo da esfera lunar. Para sublinhar a absoluta leveza do fogo, Aristóteles declarou ser "um facto palpável" que "quanto maior a quantidade {de fogo], mais leve é a massa e mais rápido o seu movimento ascendente".' Ao presumir que quanto maior a quantidade de fogo, mais leve se toma e mais depressa se ergue, Aristóteles parece ter dissociado a absoluta leveza do conceito de peso, conceito que se toma ininteligível neste contexto. Quanto à água e ao ar, Aristóteles encarou-os como elementos intermédios, dotados apenas de peso e leveza relativos. Quando estivesse abaixo do seu lugar natural, algures dentro da terra, a água subiria naturalmente; mas quando se encontrasse acima do seu lugar natural, no ar ou no fogo, cairia. Entretanto, o ar cairia quando estivesse no lugar natural do fogo, mas subiria quando se encontrasse no' lugar natural da terra ou da água. Até aqui descrevemos o comportamento natural, idealizado, de cada um dos quatro elementos. Mas os elementos não existiam naturalmente no seu estado primitivo. No mundo real, os corpos eram na verdade compostos, constituídos de proporções variadas de todos os quatro elementos. Os corpos que caíam naturalmente para o centro da Terra, faziam-no porque o seu elemento predominante era pesado (quanto mais pesado o corpo, maior a sua velocidade descendente); aqueles que se erguiam naturalmente para cima faziam-no porque eram dominados por um elemento leve (quanto maior a quantidade de ar ou fogo num corpo aéreo ou ígneo, maior seria a sua velocidade ascendente). 10 I os FUNDAMENTOS DA CI1'.NCIA MODERNA NA IDADE M1'.DIA Três pares de opostos desempenhavam um papel significativo na interpretação aristotélica da estrutura do mundo terrestre, ou sublunar. Podem ser esquematizados como segue: 1. Superfície côncava da esfera lunar Centro geométrico do Universo (ou centro da Terra) 2. Ascendente Descendente 3. Leveza absoluta (fogo) Peso absoluto (terra) Estes pares de opostos eram utilizados como condições de fronteira virtuais para a explicação de Aristóteles do movimento dos corpos. A coluna da esquerda diz-nos que um corpo absolutamente leve (fogo) se ergueria naturalmente num movimento ascendente rectilíneo em direcção à esfera lunar, enquanto a da direita nos informa que um corpo absolutamente pesado cairia naturalmente para baixo, em linha recta, em direcção ao centro da Terra. Embora Aristóteles soubesse que a terra era mais densa do que o ar e a água, teria negado que a densidade pudesse explicar a queda de uma pedra através do ar ou da água. Uma pedra apenas cai porque é absolutamente pesada. O fogo não se ergue em direcção ao seu lugar natural perto da superfkie da esfera lunar por ser menos denso do que a terra, a água ou o ar, mas antes por ser absolutamente leve. Na realidade, o fogo nem sequer possui peso no seu próprio lugar natural, de modo que, se o ar abaixo dele fosse retirado, o fogo não cairia nem se moveria para baixo. Retrospectivamente, podemos ver que a introdução das noções de peso e leveza absolutos feita por Aristóteles dificilmente conduziria ao progresso da física, embora o próprio Aristóteles a considerasse um aperfeiçoamento significativo relativamente a Platão e aos atomistas, que tinham atribuído peso a todas as coisas e para os quais o peso era um conceito relativo. Das duas possibilidades que se lhe apresentavam, Aristóteles escolheu aquela que historicamente viria a revelar-se menos útil. Contudo, fê-lo por ter tornado o seu sistema dependente em elevado grau de uma diversidade de contrários absolutos, preferindo evitar as comparações relati- k1 vistas de Platão e dos atomistas. Para oferecer uma explicação causal para o movimento natural (e, como o LEGADO DE ARISTÓTELES PARA A IDADE MEDIA 111 eram sempre consideradas entidades distintas. Embora pudesse parecer que os movimentos naturais não requeriam explicações causais na medida em que são "naturais", Aristóteles atribuiu um agente específico (chamado generans, ou gerador, na Idade Média) como causa primeira do movimento natural. O agente causador, ou gerador, era a coisa que tinha inicialmente produzido o corpo agora em movimento. Por exemplo, um fogo produz outro fogo (como quando se incendeia uma acha) e confere ao novo fogo todas as propriedades que pertencem ao fogo, sendo uma delas a capacidade espontânea de se erguer naturalmente quando não constrangido. De modo semelhante, qualquer agente natural que produz uma pedra confere-lhe todas as suas propriedades essenciais, incluindo a tendência natural para cair para a Terra quando é retirada do seu lugar natural. Embora tendo identificado o generans, ou gerador de uma coisa, como uma espécie de remota causa motriz no movimento natural, Aristóteles interpretou a queda de um corpo como se o seu peso fosse a causa imediata do seu movimento natural descendente; e encarou a subida de um corpo como se a sua leveza fosse a causa imediata do seu movimento natural ascendente. Partindo do príncipio que todas as outras coisas são iguais, Aristóteles pôde concluir que a velocidade é directamente proporcional ao peso do corpo em movimento natural e inversamente proporcional à resistência que encontra, medida pela densidade do meio através do qual o corpo se move, e que o tempo do seu movimento é directamente proporcional à resistência, ou densidade, do meio e inversamente proporcional ao seu peso. Por exemplo, a velocidade de um corpo podia ser duplicada, quer duplicando o seu peso (mas mantendo o meio constante), quer reduzindo para metade a densidade do meio (e mantendo constante o peso do corpo). De modo idêntico, o intervalo de tempo associado movimento podia ser duplicado, quer duplicando a densidade do meio (mas mantendo o peso constante), quer reduzindo para metade o peso do corpo (e mantendo constante a densidade do meio). Embora reconhecendo que os corpos pesados, não constrangidos, aceleravam quando se aproximavam do seu lugar natural, Aristóteles discutiu os movimentos naturais como se as suas velocidades fossem uniformes. 1\ ~ princípio geral de que para cada efeito há uma causa e pressupôs que cada coisa animada e inanimada capaz de se mover é movida por qualquer outra H coisa que se encontra, ela própria, em movimento ou em repouso. 5 (Ou, para para fora ou para longe dos seus lugares naturais. Assim, uma pedra que é lançada rectilinearmente para cima, para o ar, ou é arremessada numa trajec- citar a versão sucinta medieval deste princípio, "toda a coisa que é movida é movida por uma outra".) A coisa que fazia mover e a coisa que era movida tória horizontal, está em movimento violento; o movimento de um fogo que é de algum modo forçado para baixo a partir do seu lugar natural e em I veremos, para o movimento violento, ou antinatural), Aristóteles invocou o Movimento violento, ou antinatural, de corpos sublunares. Os movimentos que são violentos, ou antinaturais, ocorrem quando os corpos são impelidos 72 I os FUNDAMENTOS DA CillNCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA direcção à Terra é antinatural, ou violento. De igual modo, o movimento do ar quando é forçado a sair do seu lugar natural, para baixo em direcção à terra ou para cima em direcção ao lugar natural do fogo, é caracterizado por um movimento violento. Aristóteles formulou regras específicas em que descreveu as consequências que adviriam da aplicação de uma força motriz a um objecto que lhe resistisse. Embora essas regras sejam expressas em termos de força, corpo resistente, distância atravessada e tempo, em vez de serem expressas directamente em termos de velocidade, esta última permite um resumo mais apropriado. A velocidade de um corpo em movimento violento é inversamente proporcional ao seu próprio poder de resistência, que é deixado indefinido, e directamente proporcional ao poder motriz, ou força aplicada. Em símbolos, Voe F/R, em que V é a velocidade, F a força motriz e R a resistência total oferecida à força aplicada, uma quantidade que, presumivelmente, inclui o objecto ou corpo resistente mais a resistência do meio externo em que o movimento ocorre. Para duplicar uma velocidade V, a resistência R poderia ser reduzida a metade e F mantida constante; ou F duplicada e R mantida constante. Para reduzir Va metade, F poderia ser reduzida a metade e R mantida constante; ou R duplicada e F mantida constante. O movimento violento exigiu uma explicação causal radicalmente diferente da atribuída ao movimento natural. O motor inicial, ou agente causal, era identificado de imediato porque tinha de estar em contacto físico directo com o corpo que fazia mover. Alguém que atira uma pedra para cima ou empurra um carro por uma estrada é o motor, ou energia motriz, desses movimentos violentos. Mas a fonte de energia que permitia a um corpo continuar o seu movimento depois de perdido o contacto com o seu motor inicial estava muito longe de ser óbvia. Por exemplo, como podia uma pedra continuar o seu movimento depois de perder o contacto com a mão que a lançara? Aristóteles defendeu que o meio externo no exemplo da pedra, o ar -- era a fonte do movimento contínuo. Acreditava que o motor original não só punha a pedra em movimento como ainda, e simultaneamente, activava o ar. Aparentemente, a primeira porção, ou unidade, de ar activada empurra a pedra e, ao mesmo tempo activa a segunda unidade de ar adjacente que faz mover a pedra um pouco mais para a frente. A segunda unidade, por seu turno, activa simultaneamente a seguinte, ou terceira, unidade de ar, e assim por diante. A medida que o processo decorre, a força motriz das sucessivas unidades de ar vai progressivamente diminuindo até que se atinge uma unidade de ar que é apenas capaz de activar a unidade de ar imediatamente a seguir, mas incapaz de lhe comunicar a força para mover o corpo para mais o LEGADO DE ARiSTÓTELES PARA A iDADE MeDIA 173 longe. Nesse ponto, a pedra começa a cair com o seu movimento natural descendente. Através deste mecanismo, Aristóteles utilizou ao mesmo tempo o meio como força motriz e resistência. Não só acreditava que o meio, como força motriz, tinha de estar em contacto constante com o corpo que fazia mover, como estava também convencido de que o mesmo meio tinha de flmcionar como um travão do movimento desse corpo a fim de prevenir o impossível: a ocorrência de uma velocidade infinita ou de um movimento instantâneo. Aristóteles considerou óbvio que a resistência ao movimento aumentava à medida que aumentava a densidade do meio, e decrescia à medida que o meio se rarefazia. Dado que uma rarefacção ilimitada do meio resultaria num aumento da velocidade proporcional e ilimitado, Aristóteles concluiu que se o meio desaparecesse por completo, deixando um vácuo, o movimento seria instantâneo (ou para além de qualquer proporção, segundo as suas palavras). O absurdo de uma velocidade infinita foi apenas um entre vários argumentos que levaram Aristóteles a rejeitar a existência de um vácuo. Os princípios fundamentais que ele considerava activos no mundo seriam inúteis em espaços vazios. O movimento seria impossível por uma série de razões. A natureza homogénea de um espaço vazio contínuo significava que cada parte tinha de ser idêntica a qualquer outra parte. Dado que não poderiam existir lugares naturais diferenciáveis num espaço homogéneo, os corpos não teriam qualquer motivo válido para se moverem numa direcção em vez de noutra. Os movimentos naturais seriam impossíveis, tal como o seriam os movimentos violentos, porque o meio externo que Aristóteles considerava essencial para o movimento violento estaria ausente. Se o vazio fosse infinito e o movimento pudesse de algum modo ocorrer, esse movimento ou seria eterno pois o que poderia fazer parar um corpo em movimento num vácuo de que estavam ausentes outros corpos e lugares naturais que o fizessem parar? - ou, na ausência de resistências externas, seria instantâneo_ Entre os restantes argumentos de Aristóteles contra o vazio, um é digno de nota. Corpos de pesos diferentes cairiam necessariamente a velocidades iguais no vácuo, o que Aristóteles considerava um absurdo, pois deviam cair a velocidades directamente proporcionais aos respectivos pesos. Mas esta última relação só podia ocorrer num plenum, onde um corpo mais pesado abrisse caminho através do meio material mais facilmente do que o faz um corpo menos pesado. Na ausência de um meio, Aristóteles não descortinava uma razão plausível para que um corpo se movesse a uma velocidade maior do que a de outro. Concluiu pois que o mundo era necessariamente um plenum cheio de matéria em todos os seus pontos. 741 OS FUNDAMENTOS DA CItlNClA MODERNA NA IDADE MÉDIA RegiãO celeste: incorruptível e imutável A parte do mundo que Aristóteles visualizava para além da superfície convexa da esfera do fogo era radicalmente diversa da parte terrestre acabada de descrever. Aristóteles considerava a região celeste tão incomparavelmente superior à terrestre que lhe atribuiu propriedades que sublinhavam essas profundas diferenças. Se a incessante mudança era básica para a região terrestre, então a ausência de mudança teria de caracterizar a região celeste. Esta convicção foi reforçada em Aristóteles pela sua crença de que os registos humanos não revelavam modificações nos céus. Dado que os quatro elementos da região sublunar estavam envolvidos em incessante mudança, eram obviamente inadequados para os céus imutáveis. Em Sobre os Céus (livro 1, caps. 2 e 3), Aristóteles estabeleceu o contraste entre o movimento rectilíneo natural dos quatro elementos sublunares (terra, água, ar e fogo) e o movimento circular, regular, observável e aparentemente natural dos planetas e das estrelas fixas da região celeste. O contraste entre a linha recta e o círculo, a primeira finita e incompleta, o segundo fechado e completo em si próprio, convenceu Aristóteles de que a figura circular era necessária e naturalmente superior à figura rectilínea. Dado que os quatro corpos elementares se moviam num movimento natural rectilíneo (ascendente e descendente), Aristóteles concluiu que o movimento circular dos corpos celestes observado tinha necessariamente de estar associado a uma espécie diferente de corpo elementar simples: um quinto elemento, ou éter. Como que para sublinhar a importância especial do éter, Aristóteles chamava-lhe frequentemente "primeiro corpo". As suas propriedades primitivas eram quase o oposto das dos elementos terrestres. Enquanto os elementos terrestres se moviam naturalmente em movimentos rectilíneos, o éter movia-se naturalmente num movimento circular, um movimento superior porque a circunferência era uma figura completa em si mesma, ao passo que a linha recta não o era. Enquanto os quatro elementos e os corpos compostos por eles se encontravam em estado de fluxo constante, o éter celeste não sofria mudanças de substância, de quantidade ou de qualidade. A mudança substancial era impossível porque Aristóteles pressupunha que os pares de qualidades opostas, ou contrárias, tais como calor e frio, humidade e secura, rarefeito e denso, que eram forças básicas para a mudança na região terrestre, estavam ausentes dos céus e, por conseguinte, não desempenhavam aí qualquer papel. A rejeição de qualidades contrárias nos céus levou Aristóteles a negar também a existência das qualidades contrárias de leveza e peso, de onde concluiu que o éter celeste não podia ser leve nem pesado. As qualidades leveza e peso na O LEGADO DEARISTOTELES PARA A IDADEMIDIA 175 região terrestre estavam associadas a movimentos rectilíneos ascendentes e descendentes: os corpos pesados aproximavam-se da Terra quando se moviam naturalmente para baixo; e os corpos leves afastavam-se da Terra quando se moviam naturalmente para cima. Na ausência de peso e leveza na região celeste, Aristóteles inferiu que os movimentos rectilíneos não podiam ali ocorrer. Assim, não só era evidente pela observação que os movimentos celestes eram circulares, como também, de acordo com as propriedades do próprio éter, era óbvio para Aristóteles que os movimentos rectilíneos eram impossíveis na região celeste. Dado que se pode observar que planetas e estrelas se movem no céu, Aristóteles supôs que a mudança de posição era o único tipo de mudança possível nos céus. Os corpos celestes mudam continuamente de posição, deslocando-se pelo céu num movimento sem esforço, uniforme e circular. Este movimento circular uniforme é um movimento natural, tal como os movimentos rectilíneos ascendentes e descendentes são naturais para os corpos terrestres. Mas enquanto os movimentos ascendente e descendente eram movimentos terrestres contrários, o movimento circular não tinha contrário. Aristóteles concluiu que o movimento circular, para o qual não havia movimento contrário, era natural para os corpos compostos de éter celeste, para o qual não havia qualidades contrárias. Na ausência de todos os contrários, a mudança, tal como era observada na região terrestre, não podia ocorrer nos céus etéreos. Os corpos celestes tinham de se deslocar eternamente através dos céus num movimento natural, uniforme e circular. Embora mudassem de posição, a ausência de contrários impedia variações nas suas distâncias. Aristóteles pressupôs, assim, que os corpos celestes nem se aproximavam nem se afastavam da Terra. Aristóteles associava a mudança à matéria, mas negava que houvesse mudança nos céus. Deveria concluir-se daí que os céus careciam de matéria e que o éter celeste, independentemente do que pudesse ser, não devia ser considerado como matéria? Quanto a esta importante questão, os comentários de Aristóteles são inconclusivos e os filósofos naturais da Idade Média tiveram liberdade para reflectir sobre o seu significado. Ambas as interpretações a de que a matéria existia nos céus e a de que não existia tiveram os seus apoiantes. Quer fosse quer não fosse concebido como matéria, o éter celeste levantava outros problemas. Sendo uma substância perfeita que se estendia desde a tua até às estrelas fixas, Aristóteles parece ter considerado o éter como homogéneo, com todas as suas partes idênticas entre si. Um olhar para os céus deveria ter sido suficiente para eliminar uma tal noção. No mínimo, a região celeste consistia em corpos visíveis rodeados por porções de céu vazias, uma configuração 761 os FUNDAMENTOS DA Cl€NCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA que dificilmente poderia sugerir homogeneidade. Se os corpos celestes e o céu vazio eram ambos compostos do mesmo éter, porque diferiam? Porque eram os planetas e as estrelas visíveis e o resto do céu, para todos os efeitos, invisíveis? Porque variavam as suas propriedades? Talvez estas questões nunca tivessem ocorrido a Aristóteles, por isso ele não lhes deu resposta nenhuma. Quando este tipo de questões surgiram aos seus comentadores gregos, árabes e latinos, estes tiveram de idealizar as suas próprias respostas, um destino comum a todos aqueles que dedicaram uma grande parte das suas vidas a desvendar o significado dos textos de Aristóteles. Aristóteles foi, no entanto, muito claro no que diz respeito à natureza dos espaços celestes vazios. Estavam cheios de esferas etéreas, invisíveis, transparentes, encaixadas umas nas outras e cada uma delas girava num movimento regular e uniforme. Os corpos celestes - planetas e estrelas fixas - estavam de algum modo embutidos nessas esferas que os levavam consigo. Aristóteles baseou o seu sistema nos anteriores sistemas matemáticos de esferas concêntricas idealizados por Eudóxio de Cnido e Calipo de Cízico no século IV a. C. No esquema deste último, sobre o qual Aristóteles fundou directamente a sua cosmologia de esferas concêntricas, ao planeta Saturno, por exemplo, era atribuído um total de quatro esferas que justificariam a sua posição celeste. Destas, uma dava conta do movimento diário de Saturno; outra do seu movimento próprio ao longo do zodíaco, ou eclíptica; e as duas restantes representavam os seus movimentos retrógrados, observados ao longo do zodíaco. Aristóteles transformou as esferas matemáticas de Calipo num sistema de orbes celestes físicos, reais, centrados na Terra e que eram coextensos com a regiãO celeste. A fim de impedir a transmissão dos movimentos zodiacal e retrógrado de Saturno para Júpiter, o planeta logo abaixo de Saturno, Aristóteles atribuiu a Saturno três esferas neutralizadas que giravam em sentidos contrários e que anulavam os movimentos das outras. A finalidade destas três esferas era contrariar o movimento de três das quatro esferas de Saturno, com excepção da esfera que representava o movimento diário (como o movimento diário era comum a todos os planetas, a cada um era atribuída uma esfera especial destinada a dar continuidade, admitindo-se assim que o movimento diário fosse transmitido através de cada conjunto de esferas planetárias). Como o explica D. R Dicks: Assim, para as quatro esferas de Saturno, A, B, C e D, postula-se uma esfera neutralizante D' colocada dentro de D (a esfera mais próxima da Terra e que transporta o planeta no seu equador) e que roda em tomo dos mesmos pólos e à mesma velocidade que D mas na direcção O LEGADO DE ARISTÓTELES PARA A IDADE MÉDIA 177 oposta, de modo que os movimentos de D e D' se anulam um ao outro, e cada ponto em D parecerá mover-se apenas devido ao movimento de C. Dentro de D' é colocada uma segunda esfera neutralizante, C', desempenhando a mesma função relativamente a C que D' desempenha para D; e dentro de C' existe uma terceira esfera de movimento inverso ao de B', que, de modo semelhante, neutraliza o movimento de B. O resultado final é que o único movimento restante é o da esfera exterior do conjunto, representando a rotação diária, de modo que as esferas de Júpiter (o planeta logo abaixo) podem agora descrever as suas próprias revoluções como se as de Saturno não existissem. Do mesmo modo, as esferas neutralizantes de Júpiter abrem caminho às de Marte e assim por diante (sendo o número de esferas neutralizantes, em cada caso, menor em uma unidade do que o número original de esferas de cada conjunto) até chegarmos à Lua que, sendo o último dos corpos planetários (isto é, o mais próximo da Terra) não precisa, de acordo com Aristóteles, de esferas neutralizantes.' Em vez das quatro esferas que Calipo considerou necessárias para explicar o movimento de Saturno, verificamos que Aristóteles lhe atribuiu sete. De modo semelhante, pensou ser necessário acrescentar esferas neutralizantes, de movimento contrário, às de todos os planetas, à excepção da Lua, localizada directamente acima da região sublunar. Aristóteles afasta-se pois do sistema de Calipo de trinta e três esferas matemáticas, ou hipotéticas, para os cinquenta e cinco orbes físicos. Uma questão importantíssima colocava-se de imediato: que levava os orbes a moverem-se com um movimento uniforme circular, transportando os planetas e as estrelas? Aristóteles deixou a este respeito uma herança dupla e incompatível. No seu tratado cosmológico, Sobre os Céus, recorreu a um princípio interno do movimento ao descrever o éter celeste como um ucorpo simples naturalmente constituído de tal modo que mover-se num círculo é virtude da sua própria natureza" (2.1.284 a. 14-15). Mas na Física e na Metafisica, Aristóteles pressupôs que os motores espirituais externos, ou inteligências, eram os agentes causais dos movimentos rotativos dos orbes celestes. Neste esquema, Aristóteles presumiu que cada orbe tIsico tinha o seu próprio motor imaterial, o qual, se bem que completamente imóvel, estava eternamente apto a fazer com que o orbe anunciado se movesse sem esforço ao redor da Terra, num movimento circular uniforme. Estes motores uinamovíveis" ou uinamovidos" eram únicos no mundo porque eram susceptíveis de causar movimento sem que eles próprios estivessem em movimento. 781 os FUNDAMENTOS DA CIENCIA MODERNA NA IDADE MEDIA A regressão potencialmente infinita de causas e efeitos para todos os movimentos interrompia-se nos motores inamovidos, que eram pois as fontes últimas e imóveis de todos os movimentos. Embora Aristóteles se referisse a cinquenta e cinco motores inamovidos, o seu conceito de Deus concentrava-se no motor inamovido associado à esfera das estrelas fixas, a fronteira do mundo. Para Aristóteles, o mais remoto dos motores inamovidos era o "primeiro motor", que desfrutava do estatuto especial de primeiro entre iguais. No entanto, o seu papel como motor celeste em nada diferia do dos outros motores inamovidos, ou inteligências, como algumas vezes eram designados. Mas como podia um motor inamovido imaterial determinar que um orbe físico se movesse? "Produz movimento por ser amado" foi a resposta de Aristóteles (Metafisica 12.7.1072b.3-4). Aristóteles deixou por dizer precisamente o que pretendia explicar. Como se relacionavam a causa motora e a coisa movida? Esta sua frase de sentido obscuro não só veio pôr à prova o engenho dos muitos comentadores subsequentes, como também originou a ideia intrigante do amor como uma força motriz cósmica que parece ter captado a imaginação de poetas e menestréis. No último verso da Divina Comédia, Dante fala de "O amor que move o Sol e as outras estrelas" (l'amor che move iI sole e l'altre stelle)' e uma canção anónima francesa proclama "O amor, o amor faz girar o mundo" (L'amour, {'amour Jait toumer le monde)B. E se bem que não lhe tenha surgido qualquer contrapartida em lingua inglesa na Idade Média ou na Renascença, esta ideia do amor emergiu finalmente na opereta de Gilbert e Sullivan, Iolanthe, onde ficamos a saber que "Ê o amor que faz girar o mundo".9 Embora não haja de modo algum a certeza de que Aristóteles seja a fonte destes sentimentos poéticos, ele é seguramente um - se não o - principal candidato. Tendo caracterizado o éter celeste como substância divina e incorruptível e encarado a matéria terrestre como fonte de incessante mudança através da geração e da corrupção, Aristóteles estava convencido de que a região celeste imutável exercia uma influência dominante sobre a região terrestre sempre em mudança. Era próprio de uma coisa mais nobre e perfeita influenciar uma coisa menos nobre e menos perfeita. Daqui decorria também um reforço poderoso da crença astrológica tradicional. Os vários modos como o dominio celeste se efectivava viriam a alimentar as especulações dos filósofos naturais até ao final do século XVII, altura em que a concepção do Cosmo foi radicalmente alterada. Mas, tal como com a causa do movimento celeste, Aristóteles deixou a este respeito um legado ambíguo. Embora acreditasse que os corpos terrestres estavam sujeitos ao domínio celeste, acreditou igualmente que pudessem causar efeitos por si próprios, não sendo pois meras entidades O LEGADO DE ARISTOTELES PARA A IDADE MEDIA 179 passivas, dependentes de causas celestes. Como entidades compostas de matéria e forma, os corpos terrestres possuíam as suas próprias naturezas capazes de causar efeitos. Um corpo pesado caía para o centro da Terra não em virtude de qualquer poder celeste, mas porque possuía uma natureza que lhe permitia fazê-lo sempre que não houvesse qualquer impedimento. Cada espécie de ser animado e inanimado tinha aspectos e propriedades característicos que permitiam aos seus membros individuais agir de acordo com essas propriedades. O responsável pela actividade celeste e pela sua influência nos assuntos terrestres era indubitavelmente o Sol, cujas influências eram manifestas e palpáveis. A sua deslocação anual ao longo da eclíptica originava as estações que, por sua vez, davam origem a várias gerações e corrupções. A geração humana dependia também do Sol, como o evidencia a muito citada frase de Aristóteles de que "o homem é gerado pelo homem e igualmente pelo 501".10 A excepção da Lua, as provas de actividade celeste dos outros planetas eram quase inexistentes. No entanto, Aristóteles pressupôs que estavam também activamente envolvidos na mudança terrestre. Mas foi incapaz de explicar como as actividades dos ,corpos celestes, excluindo o Sol, se relacionavam com as naturezas independentes dos corpos terrestres. Uma vez mais, os comentadores subsequentes ficavam entregues às suas próprias elucubrações. A maioria das principais ideias e conceitos de Aristóteles sobre o mundo físico acabou de ser descrita. Essas opiniões de Aristóteles contribuíram para moldar a explicação medieval das mudanças que ocorriam na região terrestre e esclarecer porque não ocorriam mudanças na região celeste. As ideias aqui descritas formam o cerne da filosofia natural medieval, e algumas delas impulsionaram novas áreas do pensamento. As ideias de Aristóteles não só forneceram o esqueleto da filosofia natural medieval como também muitos dos seus músculos e tecidos. E, no entanto, há temas sobre os quais Aristóteles pouca orientação deixou, quer porque o tópico lhe era desconhecido, quer porque pouco tinha a dizer a seu respeito. Noutras ocasiões, foi vago, ou ambíguo, e os seus comentadores tiveram de tirar as suas próprias conclusões. Outras vezes, as suas explicações revelaram-se inadequadas e exigiram substituição. Em alguns casos, as suas interpretações foram drasticamente modificadas com base na experiência, como sucedeu com o seu sistema de orbes concêntricos, ou com base na teologia cristã, como foi o caso da eternidade do mundo. No entanto, a maioria das ideias de Aristóteles foi utilizada como o melhor e o mais fiável guia para a compreensão da natureza e das suas obras. Para os estudiosos medievais, Aristóteles era o verdadeiro Filósofo. 80 I os FUNDAMENTOS DA CI~NC[A MODERNA NA IDADE MllDIA No seu comentário ao Sobre os Céus caelo), Averróis prestou a Aristóteles a mais honrosa homenagem, ao declarar que o filósofo era: A regra e o exemplo que a natureza idealizou para mostrar a perfeição última do homem... os ensinamentos de Aristóteles são a suprema verdade, porque a sua mente era a expressão última da mente humana. Daí que se tenha afirmado com toda a razão que foi criado e nos foi dado pela divina providência para virmos a saber tudo o que é possível saber-se. Louvemos a Deus por ter colocado este homem à parte de todos os outros no que respeita à perfeição e de lhe ter permitido aproximar-se tão perto da mais elevada dignidade que à humanidade foi permitido atingir. J! David Knowles, um historiador de filosofia medieval, não exagerava ao considerar este como "o mais impressionante panegírico alguma vez prestado por um grande filósofo a outro».12 Na verdade, Averróis considerou Aristóteles quase infalível porque, ao longo de mil anos, não fora detectado nenhum erro nos seus escritos. ll Aristóteles era também muito admirado no Ocidente Latino. Dante falou por muitos ao descrever Aristóteles como "o Mestre daqueles que sabem"." São Tomás de Aquino encarava Aristóteles como alguém que atingira o nível mais elevado do pensamento humano sem o beneficio da fé cristã. Poderia supor-se que, com tão reverentes atitudes, os estudiosos medievais teriam tentado permanecer tão próximo quanto possível do grande mestre. Mas, pelos motivos já aduzidos, afastaram-se frequentemente. No capítulo 6, irei descrever o modo como os discípulos e os admiradores medievais de Aristóteles modificaram e expandiram a sua filosofia natural, mesmo defendendo os seus prindpios básicos e permanecendo fiéis ao seu espírito. Antes, porém, descreverei a introdução turbulenta da filosofia natural aristotélica na Europa durante o século XIII. ENSINAMENTOS ARISTOTIlLICOS E os TEOLOGOS I 81 5. O acolhimento e o impacto dos ensinamentos aristotélicos e a reacção da Igreja e dos seus teólogos Existiam importantes pontos de conflito entre a doutrina da Igreja e as ideias defendidas nos livros de filosofia natural de Aristóteles. A introdução das obras de Aristóteles na Cristandade Latina no século XIII era potencialmente problemática para a Igreja e os seus teólogos. O choque, que era quase inevitável, não tardou e parece ter sido particularmente violento na Universidade de Paris, que possuía a maior escola teológica da Idade Média Latina e uma das melhores e maiores faculdades de artes. No entanto, nunca se deverá permitir que o conflito que se gerou obscureça o facto mais importante, ou seja, que as obras traduzidas de Aristóteles foram entusiasticamente acolhidas e muito respeitadas, tanto por mestres em artes como por teólogos. Na realidade, a filosofia de Aristóteles foi tão calorosamente recebida que, por muito que o tentassem, as forças contra ela reunidas viram-se incapazes de prevalecer. Condenação de 1277 A luta contra Aristóteles concentrou-se na Universidade de Paris e nos seus arredores. Em 1210, pouco depois de as obras de Aristóteles sobre filosofia natural terem ficado disponíveis em latim, o sínodo diocesano de Sens decretou que os livros de Aristóteles sobre filosofia natural e todos os seus comentários não podiam ser lidos em Paris, quer em público quer em privado, sob pena de excomunhão. Confinada à região de Paris, esta interdição foi repetida em 1215 especificamente para a Universidade de Paris. A 13 de Abril de 1231, a mesma interdição foi modificada e recebeu uma sanção do papa Gregório IX que, numa famosa bula, Parens scientiarum (frequentemente chamada, por outras razões, Magna Carta da Universidade de Paris), ordenou que os tratados ofensivos de Aristóteles fossem expurgados de erro, para essa tarefa nomeou a 23 de Abril uma comissão de três individuos. Por motivos até hoje desconhecidos, a comissão papal não chegou a apresentar 821 os FUNDAMENTOS DA ClllNCIA MODERNA NA IDADE MWIA qualquer relatório, e a ordem para que os livros de Aristóteles fossem expurgados nunca foi levada a cabo. Curiosamente, em 1245, o papa Inocêncio IV estendeu a interdição à Universidade de Toulouse, de onde fora feito anos antes (1229) um convite endereçado a mestres e estudantes para ali se dirigirem, dado que os livros de Aristóteles, proibidos em Paris, eram aí estudados livremente. A interdição lançada em Paris sobre os livros de Aristóteles sobre filosofia natural esteve em vigor durante aproximadamente quarenta anos, até 1255. (Ao que parece, só as obras sobre ética e lógica de Aristóteles eram ensinadas publicamente em Paris; apesar da interdição pública e privada, as obras sobre física e filosofia seriam provavelmente lidas em privado.) Nesse ano, uma lista dos textos utilizados em cursos na Universidade de Paris incluía todas as obras disponíveis de Aristóteles. As restrições, pesadas mas impraticáveis, impostas aos estudiosos parisienses tinham chegado ao fim e estes podiam agora desfrutar dos mesmos privilégios que os seus colegas de Oxford a quem nunca tinha sido negado o direito de estudar e de comentar todas as obras de Aristóteles durante os longos anos de proibição em Paris. Durante as décadas de 60 e 70 do século XIII, desenvolveu-se em Paris uma segunda fase da luta. Inspirados por São Boaventura (Giovanni Fidanza) (1221-1274), teólogos conservadores procuraram limitar a filosofia aristotélica, que constituía o cerne do novo conhecimento pagão e arábe. Já passara há muito o tempo em que uma simples interdição à leitura das obras de Aristóteles podia ser implementada Com alguns resultados. Em vez de interditarem obras, os teólogos conservadores tentaram resolver o problema pela condenação de ideias que pensavam ser perigosas e ofensivas. Quando se tornou evidente que os seus repetidos avisos sobre os perigos da filosofia secular eram inúteis, os teólogos tradicionalistas apelaram para o bispo de Paris, Etienne Tempier, que, em 1270, interveio e condenou treze artigos que provinham quer dos ensinamentos de Aristóteles quer dos comentários de Averróis às suas obras. Em 1272, os mestres em artes da Universidade de Paris instituíram um juramento que os obrigava a evitar a consideração de questões teológicas. Se, por qualquer motivo, um mestre em artes se sentisse incapaz de evitar um problema teológico, o seu juramento obrigava-o ainda a resolvê-lo em favor da fé. A intensidade da controvérsia foi sublinhada na obra Erros dos Filósofos de Giles de Roma, escrita entre 1270 e 1274, na qual se encontrava compilada uma lista de erros retirados das obras de Aristóteles, Averróis, Avicena, Al-Ghazzali (Abu-Hamid Muharnrned al-Ghazzali), al-Kindi e Moisés Maimonides, filósofos não cristãos. Quando estas medidas de contenção se revelaram incapazes de resolver a agitaçãO, o papa João XXI deu instruções ao bispo de Paris, ainda ENSINAMENTOS ARlsTOttLlCOS E os TEÓLOGOS 183 Etienne Tempier, para que tomasse providências. Após três semanas, em Março de 1277, Tempier, baseando-se na opinião dos seus consultores teológicos, proclamou a espectacular condenação de duzentos e dezanove teses. Embora a lista de artigos condenados pelas autoridades teológicas tivesse sido organizada à pressa, sem ordem aparente e com pouca atenção pelos aspectos de consistência ou repetição, muitos dos artigos eram relevantes para a ciência e para a filosofia natural. Contudo, a condenação de um artigo não significava que fosse controverso no âmbito da filosofia natural. As autoridades podiam apenas ter exagerado a sua importância ou simplesmente tê-lo considerado potencialmente perigoso para discussão pública. Na realidade, alguns artigos condenados podiam nem ter sido expressos por escrito, mas talvez apenas pronunciados em debates públicos ou em conversas privadas. Mais ainda, a inclusão de um artigo pode ter-lhe conferido uma importância que de outro modo nunca teria alcançado. A maioria dos duzentos e dezanove artigos condenados em 1277 reflectia questões que estavam directamente associadas com a filosofia natural de Aristóteles e, por conseguinte, essa condenação fazia parte da recepção aos ensinamentos de Aristóteles. Antes de nos debruçarmos sobre essas questões específicas, é essencial descrever uma luta interdisciplinar acesa que decorreu no século XIII, envolvendo a faculdade de artes e a faculdade de teologia. A questão consistia em determinar se a faculdade de artes tinha direito a um estatuto igual ao da faculdade de teologia. O contlito exprimiu-se de variadas maneiras, mas em nenhuma de forma tão básica como na luta inultrapassável entre razão e revelação. A razão era o modo de análise em filosofia, considerada frequentemente equivalente às ciências teóricas, a maioria das quais só se tornaria uma disciplina independente no século XVII, ou mais tarde. Os mestres em artes controlavam o domínio da razão e, por conseguinte, da filosofia. Mas os teólogos controlavam o domínio da revelação e não será difícil compreender porque detinham uma posição superior numa sociedade dominada pela religião. Na sua maior parte, os teólogos do século XIII estavam convencidos de que a revelação era superior a todas as formas de conhecimento e por conseguinte subscreviam a doutrina tradicional que considerava o conhecimento secular como auxiliar da teologia. São Boaventura, um dos teólogos mais importantes do século XIII, dedicou todo um tratado à defesa da tese de que os temas seculares ensinados na faculdade de artes da Universidade de Paris estavam subordinados à disciplina de teologia ensinada na faculdade de teologia. No tratado Da Redução das Artes à Teologia (De reductione artium ad theologiam), São Bonaventura procurou demonstrar que a teologia é a rainha 841 os FUNDAMENTOS DA CIWCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA das ciências porque, em última análise, todo o ensino e conhecimento depende da iluminação divina da Sagrada Escritura, cujo estudo é do domínio exclusivo de teólogos. No mundo de São Boaventura, como no de muitos teólogos, a fé e a razão estavam harmoniosamente unificadas, a primeira guiando e inspirando a segunda. Os professores das faculdades de artes de Paris e das outras universidades tinham uma visão radicalmente diferente quanto à relação da sua disciplina com a teologia. No sentido mais lato, ensinavam filosofia que, embora incluisse as sete artes liberais como temas introdutórios, era constituída principalmente por metafísica, filosofia natural e filosofia moral. Dado que a filosofia no seu todo se baseava quase totalmente nos escritos de Aristóteles, os professores das faculdades de artes, na sua maioria, consideravam-se seguidores de Aristóteles e encaravam este filósofo como a personificaçãO da análise racional. Na verdade, os seus meios de subsistência baseavam-se na explicação das ideias e dos pensamentos de Aristóteles. Como demonstração de respeito, os autores escolásticos medievais referiam-se geralmente a Aristóteles pelo título honorífico de "Filósofo" (philosophus). Encaravam-se a si próprios como guardiões da razão e tinham orgulho no seu papel como filósofos. Se não tivessem sido restringidos, os mestres em artes teriam provavelmente aplicado a razão a todos os ramos do conhecimento, incluindo à teologia. Na realidade. muitos deles teriam seguido a razão até às suas últimas consequências. mesmo que colidisse com a revelação, embora, no final, se submetessem à revelação com base na fé. De qualquer modo, encaravam a filosofia como o instrumento apropriado para compreender o mundo. Para eles, este facto justificava a sua independência em relação à teologia e, por isso, lutaram pela sua autonomia (para mais informação sobre este assunto, ver Capítulo 8). Embora os teólogos estivessem, eles próprios, interessados na filosofia (e na filosofia natural), e muitos a encarassem como urna disciplina distinta da teologia, a maioria atribuía-lhe o estatuto de subalterna. Durante o século XIII, o primeiro século da institucionalização da filosofia natural aristotélica na Europa Ocidental, as tensões entre estas duas disciplinas universitárias e as suas faculdades independentes eram quase inevitáveis. A disputa é evidente em pelo menos três controvérsias principais, as quais disseram respeito (I) à eternidade do mundo, (2) à chamada doutrina da dupla verdade e (3) ao poder absoluto de Deus. O atrito interdisciplinar que dividiu teólogos e filósofos naturais era composto de rivalidades intradisciplinares entre os próprios teólogos. Os neoconservadores agostinhos acirravam-se contra os dominicanos seguidores de São Tomás de Aquino, os primeiros ENSINAMENTOS ARlSTOTÉUCOS E os TEÓLOGOS 185 preocupados com a demasiada confiança que os dominicanos depunham na filosofia aristotélica e os segundos determinados em procurar obter uma harmonização entre razão e revelação. Entretanto, os próprios artigos condenados ilustram bem as controvérsias que ocorreram nos finais do século XlII. Os três artigos seguintes confirmam a hostilidade entre mestres em artes e teólogos: 152. Que as discussões teológicas são baseadas em fábulas. 153. Que nada é mais conhecido por se conhecer teologia. 154. Que os únicos homens sábios do mundo são filósofos. Se os mestres em artes mantinham tais opiniões, e alguns ao que parece fizeram-no, podemos calcular o sentimento de ultraje e a animosidade que os teólogos manifestaram. A partir de 1220, ou até mesmo antes, as autoridades eclesiásticas preocuparam-se com o facto de a filosofia estar a penetrar rapidamente, e, talvez mesmo, a dominar a teologia. O papa Gregório IX tentou preservar a relaçãO tradicional entre teologia e fllosofia, com a segunda a actuar como auxilíar da primeira. Na realidade, Gregório reflectia uma enorme preocupação, que vinha desde os doutores da Igreja, de que os esforços para fortalecer a fé com a razão natural fossem potencialmente perigosos, pois implicavam que, de algum modo, a fé não conseguia manter-se só por si. Em 1228, Gregório IX ordenou em Paris que os mestres teológicos excluíssem a filosofia natural da sua teologia. A interdição de Gregório IX não prevaleceu. A filosofia começou a ser gradualmente reconhecida como uma disciplina autónoma, sendo Aristóteles a sua autoridade principal do mesmo modo que os santos padres eram autoridades em teologia, e as críticas contra o uso da filosofia natural em teologia desvaneceram-se, embora ressurgissem de tempos a tempos, IJlas sempre em vão. Talvez mais do que qualquer outro, São Tomás de Aquino procurou definir a relaçãO entre teologia e filosofia. Fê-lo tomando cada uma como uma ciência independente. Os princípios fundamentais da teologia são os artigos da fé, ao passo que os princípios da filosofia se fundam na razão natural. Por conseguinte, os artigos da fé não podem ser demonstrados pela razão. Se a teologia e a filosofia são ciências independentes, concluir-se-á daí que aqueles que se dedicam à filosofia não devem teologizar e que aqueles que estudam teologia não devem filosofar? Relativamente à teologia, São Tomás acreditava que um teólogo deveria servir-se da lógica, da filosofia natural e da metafísica na medida em que o considerasse necessário, embora não aprovasse que se teologizasse em filosofia. Ao estabelecer a teologia como uma ciência independente, São Tomás concedia implicitamente autonomia à 861 os FUNDAMENTOS DA CIENCIA MODERNA NA IDADE MeDIA filosofia daí, também à filosofia natural) como ciéncia, embora a encarasse ainda como subordinada à teologia. No conflito iniciado no século XII, a teologia mantinha a supremacia face à filosofia. Até ao século XVII, as verdades da fé, reveladas e não demonstradas, tinham prioridade definitiva sobre as verdades demonstradas pela razão. Eternidade do mundo Durante a década de 60 do século XIII, alguns dos mestres em artes, ou filósofos, exerciam já a autonomia na sua disciplina, ao raciocinarem unicamente em termos de princípios naturais. Mas era difícil permanecer indiferente ao impacto teológico das suas conclusões, como se verifica em relação à primeira das três questões controversas atrás mencionadas, nomeadamente, à eternidade do mundo. Esta questão era, para as relações entre ciência e religião na Idade Média, o que a teoria heliocêntrica de Copérnico veio a ser nos séculos XVI e XVII, e a teoria da evolução de Darwin nos séculos XIX e XX. A partir dos argumentos no final do primeiro livro Sobre os Céus, Aristóteles concluiu, logo no início do segundo livro, que "o mundo no seu todo não foi gerado e não pode ser destruido, como alguns alegam, antes é único e eterno, não havendo princípio nem fim para toda a sua vida".l Na medida em que Aristóteles baseava a sua filosofia natural na firme convicção de que o mundo é eterno, havia aí uma forte ameaça à narrativa da Criação no Génesis. A comprovar que a eternidade do mundo era encarada como potencialmente perigosa, vinte e sete dos duzentos e dezanove artigos condenados em 1277 (mais de dez por cento) eram dedicados à sua denúncia. A eternidade do mundo manifestava-se 'assim sob muitas formas. Por exemplo, o artigo 9 condenava a proposição segundo a qual "não houve um primeiro homem, nem haverá um último; pelo contrário, sempre houve e sempre haverá a geração do homem pelo homem"; o artigo 98 condenava a proposição de que "o mundo é eterno porque aquilo que tem uma natureza pela [actuação da] qual poderia existir por todo o futuro, [certamente] tem uma natureza pela [actuação da] qual poderia ter existido por todo o passado"; e a tese do artigo 107 de que os elementos são eternos mas que "foram feitos [ou criados] de novo na relação que hoje apresentam" foi igualmente condenada. Levando em linha de conta que as autoridades teológicas condenaram a eternidade do mundo em vinte e sete versões diferentes, poderiamos esperar descobrir que a crença na eternidade do mundo estava muito espalhada. Mas a verdade é que não há registo de alguém que tenha mantido essa opinião ENSINAMENTOS ARISTOTt:uCOS E OS TEOLOGOS I 87 herética sem reservas. Porque teriam então as autoridades condenado vinte e sete artigos para impedir que se disseminasse uma proposição que ninguém parecia advogar explicitamente? Embora seja possível que algumas destas proposições, ou todas elas, tenham sido defendidas em privado e que o tema fosse do conhecimento comum, uma resposta mais provável é a que decorre das respostas às afirmações sobre a eternidade do mundo, como é evidente nas reacções dos dois mestres em artes mais conhecidos do século XIII, Boécio de Dácia (f. após 1283) e Siger de Brabante (f. ca. 1284), os quais trocaram a França pela Itália após a promulgação da Condenação de 1277. Boécio e Siger escreveram, cada um, um tratado sobre a eternidade do mundo, e Boécio também abordou este terna na obra Questões sobre a Física (Quaestiones super libras Physicorum). No tratado Sobre a Eternidade do Mundo (De aeternitate mundi), Boécio argumenta que nenhum filósofo podia demonstrar que alguma vez tivesse surgido um primeiro movimento e daí que um início do mundo não seja determináveL Todavia, a eternidade do mundo é tão pouco demonstrável como a sua criação. Embora não se pudesse apresentar uma prova aceitável para qualquer destas duas afirmações, Boécio insistiu em que não há contradição entre a fé cristã e a filosofia. A fé deve prevalecer. E conclui que: o mundo não é eterno, antes foi criado de novo, embora... isto não possa ser demonstrado por argumentos, tal como se pode afirmar de outras coisas respeitantes à fé. Porque, se pudessem ser demonstradas, não pertenceriam à fé, mas à ciência. [... ] Há muitas coisas na fé que não podem ser demonstradas pela razão, como [por exemplo] que uma pessoa morta renasce exactamente como era antes, e que uma coisa gerada regressa sem geração. E quem não crê nestas coisas é um herético; [e] quem tenta conhecer estas coisas pela razão é um 10uco.2 Contudo, nas Questões Sobre a Física, escrito aproximadamente na mesma altura, Boécio defende que a matéria-prima é eterna e, por conseguinte, tem de ser co-eterna com Deus. Na verdade, Deus tem de ser encarado como o criador da matéria-prima. Para Boécio, esta conclusão decorria logicamente da aplicação da razão ao funcionamento do mundo. Neste contexto, Deus continua a ser considerado o criador tanto da matéria como do mundo, mas a matéria "criada" é, mesmo assim, eterna. Siger argumentou de modo semelhante. O mundo e as suas espécies não podem ter sido criados, porque nenhuma espécie poderia ser tornada real a partir de um estado prévio de potencialidade e, por conseguinte, cada espécie deve ter existido previamente. Embora a razão o levasse a esta conclusão, que 88 I os FUNDAMENTOS DA CIllNCIA MODERNA NA IDADE MllDIA parecia proclamar a eternidade do mundo, Siger tentou precaver-se contra possíveis acusações de heresia, insistindo em afirmar que "nós dizemos estas coisas como sendo a opinião do Filósofo [isto é, Aristóteles], embora sem as asseverar como verdadeiras".3 Onde os ditames da fé entravam em conflito com as conclusões de Aristóteles, a fé devia prevalecer. A atitude de Boécio e de Siger era provavelmente semelhante à de outros - talvez de muitos - mestres em artes de finais do século XIII e foi exposta, no século XIV, por João de Jandun, um famoso e controverso mestre em artes. Quando a doutrina da Igreja entrava em conflito directo com as conclusões da filosofia natural de Aristóteles - como sucedia na questão da eternidade do mundo -, os mestres em artes cediam perante a teologia e a fé. Na realidade, como já vimos, os mestres em artes de Paris estavam obrigados a fazê-lo por juramento desde 1272, um requisito que permaneceu efectivo até ao século XV. Mesmo entre os teólogos, havia opiniões contrárias. São Tomás de Aquino, um dos teólogos mais importantes, afastou-se dos seus colegas conservadores e adoptou uma posição semelhante à de Boécio de Dácia. Tal como Boécio, São Tomás de Aquino negou que qualquer demonstração adequada pudesse ser formulada em favor quer da criação quer da eternidade. Por conseguinte, é forçoso admitir que a eternidade do mundo é uma possibilidade (no que respeita aos argumentos de São Tomás de Aquino, ver Capítulo 6). Para o bispo de Paris e para os teólogos tradicionalistas de igual opinião, os argumentos propostos por Boécio, Siger e São Tomás de Aquino devem ter parecido suspeitos. Pareciam conferir respeitabilidade à crença na eternidade do mundo, ao mesmo tempo que minavam a confiança na sua criação. E, no entanto, com base na fé, os três proclamavam a sua crença na criação do mundo tal como é descrita no Génesis. Como o exprimiu São Tomás de Aquino: "Que o mundo teve um princípio... é um dogma de fé, mas não de demonstração ou de ciência. "4 Doutrina da dupla verdade A atitude que os mestres em artes assumiam quando se vergavam perante a fé deixava os teólogos inquietos e desconfiados. Defendiam, e muitas vezes declararam explicitamente, que as verdades da filosofia natural, baseadas na aplicação da razão natural aos princípios apriorísticos e à experiência sensorial, não se podiam conciliar com as verdades da fé. Nestas circunstâncias, a fé tinha de ser defendida. Mas era-o de forma ambígua, porque os mestres em ENSINAMENTOS ARlSTOTl!uCOS E OS TEÓLOGOS 189 artes deixavam geralmente intactas as conclusões racionais da filosofia natural, mesmo quando proclamavam as correspondentes verdades da fé. Se, por exemplo, a eternidade do mundo era considerada uma conclusão apropriada em filosofia natural, não deixava no entanto de ser contrária à fé e devia, por conseguinte, ser rejeitada. Nestas circunstâncias, era evidente que os argumentos a favor da eternidade do mundo não tinham sido rejeitados por serem imperfeitos, mas apenas porque eram contrários à fé. Isso dava a impressão de existirem duas verdades, uma para a filosofia natural e outra para a fé. Uma vez que os mestres em artes se abstinham geralmente de conciliar os princípios e as conclusões de Aristóteles - em que presumivelmente acreditavam - com as verdades da fé, poder-se-ia dizer que estavam, ainda que de forma subtil, a defender a causa de Aristóteles. No minimo, parece que transmitiram aos teólogos a impressão de que subscreviam uma doutrina de dupla verdade, como se torna evidente na Condenação de 1277. No prólogo à condenação, o bispo de Paris menciona brevemente uma doutrina da dupla verdade ao denunciar aqueles que dizem que "as coisas são verdadeiras de acordo com a filosofia, mas não de acordo com a fé católica; como se pudessem existir duas verdades contrárias".5 Como exemplo do que pretendia significar, o bispo podia apontar o artigo 90 que condenava os que acreditavam que "um filósofo natural devia negar em absoluto a novidade [isto é, a criação] do mundo porque ele deve ater-se a causas naturais e a razões naturais. Os fiéis, contudo, podem negar a eternidade do mundo porque devem ater-se a causas sobrenaturais." Embora possa parecer que alguns mestres em artes tenham estado próximos de aceitar implicitamente uma dupla verdade, ainda não se identificou nenhum que acreditasse literalmente numa doutrina da dupla verdade. Porém, com base no que ficou dito, podemos compreender ,o motivo pelo qual muitos teólogos podem ter pensado que Boécio de Dácia, Siger de Brabante e outros - incluindo mesmo um dos seus, São Tomás de Aquino - acreditavam realmente na eternidade do mundo, mesmo quando proclamavam a sua fidelidade ao dogma cristão da Criação. Isto torna-se óbvio na descrição feita por Armand Maurer acerca da abordagem de Boécio de Dácia à eternidade do mundo: Para que existissem duas verdades contrárias, a verdade cristã de que o mundo não é eterno teria de se opor a uma verdade filosófica de que o mundo é eterno. Mas é em vão que, no tratado de Boécio, procuramos a afirmação de que a eternidade do mundo é filosoficamente verdadeira. É-nos simplesmente dito que tal decorre dos principios da 90 1 os FUNDAMENTOS DA CItlNCIA MODERNA NA IDADE MIDIA filosofia natural. Num ponto, Boécio afirma que decorre das "verdades das causas naturais"; mas a conclusão em si não é afumada explicitamente como verdadeira. Boécio chega muito perto de afirmar uma verdade dupla mas no entanto evita fazê-lo tão declaradamente, que só podemos concluir que o terá feito de forma deliberada. Tal como Siger de Brabante, Boécio parece ter o maior cuidado em não colocar a fé e a filosofia em contradição aberta no domínio da verdade. E, contudo, aproxima-se tanto de o fazer que nos é-fácil ver por que motivo foi condenado pelo bispo de Paris. 6 limitações ao poder absoluto de Deus Das três principais controvérsias anteriormente apontadas, a terceira, a contestação do poder absoluto de Deus, pode ter sido considerada como a potencialmente mais subversiva para as tradições teológicas. Dispersas pelas obras de Aristóteles, havia proposições e conclusões que demonstravam a impossibilidade natural de certos fenómenos. Por exemplo, Aristóteles demonstrara que era impossível um vácuo ocorrer naturalmente dentro ou fora do mundo e demonstrara também a impossibilidade de que pudessem existir naturalmente outros mundos, além do nosso. Os teólogos vieram a encarar estas afirmações aristotélicas de impossibilidades naturais como restrições ao poder absoluto de Deus para fazer o que lhe aprouvesse. Porque não haveria Deus de poder criar um vácuo dentro ou fora do mundo, se escolhesse fazê-lo? Porque não haveria de criar outros mundos, se escolhesse fazê-lo? O artigo 147 reveIa a atitude do bispo de Paris e dos seus colegas quando denunciou como errónea a opinião de que Deus não podia fazer o que era naturalmente impossível. Os artigos seguintes da Condenação de 1277 faziam parte daqueles que impunham limites ao poder absoluto de Deus:7 21. Que nada acontece por acaso, mas todas as coisas ocorrem necessariamente e que todas as coisas futuras existirão necessariamente, e aquelas que não existirão ser-lhes-á impossível existir... 34. Que a primeira causa [isto é, Deus) não poderia fazer vários mundos. 35. Que sem um agente adequado, como um pai e um homem, um homem não podia ser feito [apenas) por Deus. 48. Que Deus não pode ser causa de um novo acto [ou coisa), nem Ele pode produzir algo de novo. ENSINAMENTOS ARISTOT~UCOS E OS TEOLOGOS 191 49. Que Deus não poderia mover os céus [ou mundo) num movimento rectilíneo, porque deixaria um vácuo. 139. Que um acidente existindo sem um sujeito não é um acidente, excepto equivocamente; [e] que é impossível que urna quantidade ou dimensão exista por si própria porque isso tomá-Ia-ia uma substância. 140. Que fazer com que um acidente exista sem um sujeito é um argumento impossível que implica uma contradição. 141. Que Deus não pode fazer existir um acidente sem um sujeito, nem fazer com que várias dimensões existam simultaneamente [no mesmo lugar). Poderiam citar-se muitos mais artigos limitativos do poder de Deus. Todos eram condenados porque as autoridades teológicas queriam que todas as pessoas aceitassem que o poder de Deus era infinito, desde que não entrasse em contradição lógica. Ao condenar a opinião de que Deus não podia criar outros mundos, o artigo 34 decretava que Deus podia criar tantos mundos quantos quisesse. Embora não se pedisse a ninguém para acreditar que Deus tinha criado outros mundos, o efeito do artigo 34 sobre a filosofia natural era o de encorajar a especulação sobre as condições e as circunstâncias que prevaleceriam se Deus tivesse realmente criado outros mundos. O artigo 49 negava a Deus a capacidade de fazer mover o céu extremo e, por conseguinte, o próprio mundo, num movimento rectilíneo, porque tal movimento teria deixado um vácuo depois de o mundo sair da sua posição actual. De acordo com a condenação do artigo 49 em 1277, os filósofos naturais escolásticos admitiram ordeiramente que, se tal aprouvesse a Deus, Ele podia na verdade mover o mundo rectilinearmente. Nos artigos 139, 140 e 141, as autoridades condenaram o principio aristotélico, na aparência evidente em si mesmo, de que um acidente não podia existir sem um sujeito, ou uma substância, a que era inerente e que Deus não podia criar um acidente, ou qualidade, que não fosse inerente a um sujeito ou substância. Condenaram ainda (nos artigos 139 e 141) o axioma aristotélico segundo o qual nem quantidade nem dimensão podiam existir independentemente de um corpo material e denunciaram também o princípio aristotélico, igualmente fundamental, de que duas ou mais dimensões não podiam existir em simultâneo no mesmo lugar. Os artigos 139, 140 e 141 não só se qualificavam como colocando limites ao poder de Deus, mas negavam também a Deus o poder de efectivar o dogma teológico da Eucaristia, no qual Deus transformava miraculosamente o pão e o vinho usados na missa no corpo e sangue de