nietzsche e epicuro: aproximações em torno da filosofia como

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Revista Filosofia Capital
Vol. 5, (2010) - Edição Especial
Novas Perspectivas Intelectuais
e suas Interfaces Existenciais.
ISSN 1982 6613
NIETZSCHE E EPICURO: APROXIMAÇÕES EM
TORNO DA FILOSOFIA COMO METÁFORA
MÉDICA
NIETZSCHE AND EPICURUS: APPROACHES
AROUND THE PHILOSOPHY MEDICAL AS
METAPHOR
OLIVEIRA, Jelson Roberto de1
RESUMO
Pretendemos nesse artigo analisar a ambígua relação entre Epicuro e Nietzsche no que diz
respeito à filosofia como metáfora médica. Se em Epicuro, a filosofia se apresenta como
“medicina da alma”, em Nietzsche ela é compreendida como “medicina da cultura”. Se no
filósofo grego ela remeteria a uma análise em vista da evacuação dos falsos temores, no
filósofo alemão ela está ligada ao fortalecimento que promove o aprofundamento da doença
até a sua superação. A tarefa, portanto, remete ao enfrentamento do paradoxo interpretativo de
Nietzsche: de um lado, Epicuro é apresentado como um decadente, de outro, como um
resistente ao movimento socrático e portador de uma vivacidade dionisíaca ligada à
reinterpretação da relação entre vida e moral.
Palavras-chave: Epicuro; Nietzsche; Metáfora médica.
ABSTRACT
We intend in this article examine the ambiguous relationship between Epicurus and Nietzsche
in relation to philosophy as a medical metaphor. If at Epicurus, philosophy presents itself as
"medicine of the soul" in Nietzsche it is understood as "medical culture". If the Greek
philosopher she would refer to a review in view of the evacuation of false fears, the German
philosopher it is linked to empowerment that promotes the deepening of the disease to
overcome them. The task, therefore, refers to both the interpretation of Nietzsche's paradox:
on one hand, Epicurus is presented as a decadent, the other as a resistant movement Socratic
and hold a lively Dionysian linked to reinterpret the relationship between life and morals.
Keywords: Epicurus; Nietzsche; Medical metaphor.
1
Doutor em Filosofia; professor do programa de pós-graduação em Filosofia da PUCPR. E-mail: [email protected].
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INTRODUÇÃO
“Foram precisos cem anos para a Grécia
descobrir quem fora Epicuro, esse deus do
jardim.
– Mas descobriu?” (BM, 7).
O parentesco entre as filosofias de
Nietzsche e de Epicuro forma um mosaico
bastante rico e curioso. Pode-se afirmar que
o nome de Epicuro acompanha as principais
transformações
do
pensamento
de
Nietzsche e, por isso, se altera de acordo
com os interesses interpretativos de cada
“período”. Nos escritos tardios (terceiro
período ou período da maturidade), Epicuro
representa para Nietzsche um fenômeno
patológico, um sintoma da décadence2 e
sua filosofia não é considerada mais do que
uma “sabedoria moral” (Klugheits-Moral),
uma phronesis que contrapõe o prazer à dor
(KSA 10, 7 [209], da primavera-verão de
1883, p. 307) 3 fazendo com que a
felicidade se ligue à posse de uma boa
saúde, entendida como negação do
sofrimento e da doença (KSA 11, 25 [17],
da primavera de 1884, p. 16). Nesses
escritos, Epicuro está ligado a uma
medicina tranquilizadora própria dos
homens fracos (BM, 200) e, portanto, como
2
Sobre esse tema, cf. nosso trabalho anterior:
OLIVEIRA, 2008, p. 12-50.
3
Nesse artigo usaremos as siglas convencionais para
citação dos escritos de Nietzsche: Co. Ext. III
(Terceira
Consideração
Extemporânea
–
Schopenhauer como Educador); NT (O Nascimento
da Tragédia); HH I (Humano, Demasiado Humano,
vol. I); OS (Humano, Demasiado Humano II:
Opiniões e sentenças diversas); AS (Humano,
Demasiado Humano II: O andarilho e sua sombra);
A (Aurora); GC (A Gaia Ciência); GM (Para a
genealogia da Moral); KSA (Sämtliche Werke.
Kritische Studienausgabe - edição crítica em 15
volumes organizada por Giorgio Colli e Mazzino
Montinari – a sigla será seguida do número do
volume, número do fragmento, ano de escrita e
página da edição); BM (Além de Bem e Mal); EH
(Ecce Homo); CI (Crepúsculo dos Ídolos). Seguindo
as letras, para as obras publicadas, constarão os
números arábicos referentes ao número do aforismo
da obra.
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um “típico décadent”, predecessor da
“religião do amor” pelo seu absoluto
“medo da dor, até do infinitamente pequeno
na dor” (AC, 30) o qual teria cultivado a
“ausência de sofrimento” e o “repouso no
seu mais alto sono” (GM, III, 17). Epicuro é
receitado, assim, para “quem prevê, em
alguma medida, que o destino lhe permitirá
tecer um longo fio” tal como aqueles que se
dedicaram ao “trabalho intelectual” (GC,
306). Ou seja, o epicurismo do jardim é a
doutrina dos fracos que não podem digerir
as “pedras e vermes” que advem da
existência.
Mas essa perspectiva se diferencia
daquela adotada nos escritos do chamado
segundo período, que são anteriores a 1882
- até a segunda metade dos anos de 1870.
Aí Epicuro é visto por Nietzsche como
alguém que rompera com a tradição
filosófica racional-idealista e produzira a
sua própria “verdade” a partir da luta contra
a dor. Como momento de transição, de
amadurecimento e de ruptura com as teses
de Schopenhauer e Wagner, Nietzsche se
interessa e testemunha nesse tempo, a
“vivacidade” (AS, 227) do pensamento de
Epicuro em muitas das suas temáticas,
mormente no que diz respeito à
compreensão da própria filosofia como
“tarefa médica”. Nos escritos desse período,
que incluem os dois volumes de Humano,
demasiado humano, o volume de Aurora e
os quatro primeiros livros de A Gaia
Ciência, além dos fragmentos póstumos e
das cartas, o nome e as ideias de Epicuro
são bastante frequentes e remetem à
maneira de interpretar a filosofia a partir da
metáfora médica, como higiene que conduz
à derrocada dos idealismos metafísicos.
Se é verdade que sobram críticas a
Epicuro na obra de Nietzsche, é também
verdade que no cenário bibliográfico desse
período, poder-se-ia falar de um “momento
epicurista” (CHOULET, 1998, p. 326)
vivido por Nietzsche, principalmente a
partir de duas vias: o naturalismo de seu
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pensamento (cuja base seria o encontro de
uma “verdade” natural, útil e imoral que
reconcilia natureza e razão, que opõe uma
“ética natural” a uma “moral do além”) e o
valor da amizade e das virtudes a ela
associadas. De um lado “Nietzsche joga o
naturalismo
epicurista
contra
a
desnaturalização
cristã” (CHOULET,
1998, p. 328) e de outro, associa o seu
nome à revalorização de um sentimento que
se estabelece a partir da afirmação de si. O
naturalismo, entretanto, não é outra coisa
que uma apologia ao “real” abundante, livre
e imoral, cuja efetividade se apresenta
como prazer de viver, abandono ao abismo
natural associado a Dioniso. Malgrado
todas as suas ambigüidades – e graças a
elas - Epicuro também é um resistente, no
âmbito cultural da décadence.
Duas vias de uma aproximação
Assim como trata outros pensadores,
Nietzsche inventa para si o Epicuro que lhe
convém. Pode-se dizer dos nomes próprios,
aquilo que o filósofo alemão disse dos
nomes simples: “as palavras são bolsos nos
quais se guardou ora isto, ora aquilo, ora
várias coisas de uma vez!” (AS, 33). Nessa
medida, é o próprio Nietzsche quem
introduz o nome do filósofo do Jardim entre
os seus “pares” na confissão de parentesco
intelectual que encerra o primeiro livro do
segundo volume de Humano, demasiado
humano, intitulado Opiniões e sentenças
diversas, publicado em 1879: “Quatro pares
foram os que a mim, o oferente, não se
negaram: Epicuro e Montagine, Goethe e
Spinoza, Platão e Rousseau, Pascal e
Schopenhauer” (OS, 408). Pode-se afirmar
que é esse o “Jardim” nietzschiano porque
nele se reúnem os amigos, cuja convivência
assume as características da liberdade de
espírito e do nomadismo conceitual.
Os pares aqui listados não são por si
só, como logo se vê, nem amigos e nem
mesmo adversários, mas “bolsos” nos quais
Nietzsche guarda a sua própria filosofia,
como invenção de suas vivências e como
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expressão de debates (concordâncias e
discordâncias) que remetem à ideia de
inimizade como dispositivo prático que se
associa diretamente à noção mesmo de
amizade, tanto cara para Epicuro quanto
para Nietzsche. Em outras palavras: esses
oito pensadores são “inventados” por
Nietzsche como adversários resgatados do
Hades com sangue e sacrifício. O final do
aforismo deixa claro o motivo da
referência: esses “mortos” continuam vivos
(“como se agora, depois da morte, não
pudessem jamais se cansar de viver”). O
que permanece vivo são seus pensamentos,
portanto, e sua eternidade é substituída pela
vivacidade de suas ideias, sobre as quais se
ergue também a filosofia de Nietzsche. É
esse o tom do parágrafo 227 do Andarilho e
sua sombra, que tem por título justamente
“O eterno Epicuro” e que diz: “Em todos os
tempos Epicuro viveu e ainda vive,
desconhecido daqueles que se chamavam e
se chamam epicuristas, e sem reputação
entre os filósofos. Além disso, ele esqueceu
o próprio nome: foi a bagagem mais pesada
que algum dia lançou fora”. Esquecido de
seu próprio nome (que em grego remete a
“aquele que faz caridade”), Epicuro se
tornou eterno por suas ideias que
acompanham de forma assídua a história do
Ocidente. Mas a sua eternidade (aludida no
título desse aforismo) está na sua
experiência sensível e na organização
atômica da matéria e no eterno movimento
dos átomos e, principalmente, nas suas
idéias e não na crença da imortalidade da
alma.
A confissão desse parentesco por
parte de Nietzsche faz notar que nos
escritos desse segundo período, o nome de
Epicuro está ligado a duas acepções
complementares que aparecem diretamente
ligadas ao tema da filosofia como
“metáfora médica” – e que, no limite, estão
ligadas à anfibologia com que o nome de
Epicuro é sempre apresentado: de um lado,
a uma filosofia do alívio e da alegria frente
à existência e, de outro, ao fato de que essa
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filosofia foi apropriada pelo cristianismo
para o alívio dos fracos. Na primeira
significação, Epicuro estaria ligado ao
processo de aliviar a vida – pela afirmação;
e no segundo, no alívio da vida - pela
evacuação e negação. Nesse sentido,
Epicuro representa para Nietzsche uma
ambivalência paradoxal: de um lado, o
filósofo alemão permanece atento à
fecundidade do pensamento epicurista no
que diz respeito ao seu anti-platonismo,
revelado como valorização do prazer, luta
contra a superstição e certa naturalização do
conhecimento, ligado à “indiferença dos
deuses, o sentimento de gratidão pelas
coisas, o sonho de um jardim como
arquitetura da amizade” (CHOULET, 1998,
p. 311); de outro lado, Epicuro também é
visto como um socrático decadente, dada a
sua contribuição posterior para o
cristianismo e à moralização de seu
pensamento (que não seria outra coisa do
que uma herança do socratismo). Em
termos gerais, trata-se de uma pergunta
sobre as forças que movem a cultura: poder
ou decadência, abundância ou miséria?
“Que vida é exposta nesses ‘valores’?”
(CHOULET, 1998, p. 313) e quanto valem
para a vida os valores anunciados por
Epicuro e, consequentemente, por toda a
filosofia?
Na primeira acepção, o nome de
Epicuro está ligado ao processo de heróico
alívio da existência, o que inclui a vitória da
serenidade sobre o espetáculo do barulho
moderno, do remorso contra o passado e da
negação do presente. Em sua obra sobre
Nietzsche, Mazzino Montinari afirma que
Epicuro é “o filósofo do Andarilho e sua
sombra” (2001, p. 79). Uma das referências
dessa afirmação se encontra no curto
fragmento 23 [56], do final de 1876-verão
de 1877, no qual Nietzsche explicita seu
“Elogio de Epicuro”. Segundo Olivier
Ponton, esse “elogio” estaria ligado à
“celebração da leveza homérica que dá uma
nova coerência ao pensamento de Nietzsche
sobre o alívio da vida” (2006, p. 303). Em
outras palavras: Nietzsche aproxima
Epicuro do tema do “idílio heróico” (KSA
8, 43 [3], de 1879, p. 610) representado
pelas figuras de Claude Lorrain e Nicolas
Poussin (cf. AS, 295), como expressão de
uma “poetização da realidade” capaz de
alterar os arquétipos da negação e do peso
da existência, para celebrar a “calma, [a]
simplicidade e [a] grandeza” da vida4. Essa
“trindade
da
alegria”
(AS,
332)
representada pela grandeza, serenidade e
luz solar (essas “três boas coisas” [Ruhe,
Gröβe, Sonnenlicht], formam o desejo do
pensador como aquele que busca a perfeita
serenidade heróica, nascida de uma alma
agitada que vence o sofrimento e o desejo).
Na expressão de Ponton (2006, p. 307),
Epicuro simula, nesse sentido, ao figura de
um “herói da vida fácil” e sua presença
remete à reiterada busca de Nietzsche pela
vida no Jardim, ao qual se liga o tema da
solidão, do distanciamento, da afirmação de
si, da alegria e da amizade.
Desse ponto de vista, a oferta de
Epicuro aparece como dádiva de uma
tranquilidade arrebatadora, de “um modo
heróico-idílico de filosofar”, como se lê no
aforismo 295 de O andarilho e sua sombra.
4
Em O Andarilho e sua sombra, § 192, Nietzsche
descreve a desejada simplicidade epicurista: “Um
pequeno jardim, figos, queijos e mais três ou quatro
amigos, essa foi a opulência de Epicuro.” Essa
expressão de “opulência” é retomada numa carta a
Malwida von Meysenbug, de 4 de agosto de 1877,
para definir a experiência de Nietzsche em Sorrento
nos anos 1878, quando ele alimenta a idéia de refundar um Jardim da Amizade, onde pudesse
conviver com “espíritos livres”: “eu jamais vivi
numa tal opulência como em Sorrento” (KSB 5, p.
267). Epicuro serve, assim, de referência para esse
“projeto” pessoal de Nietzsche que envolve, nessa
época, uma “ética da amizade”, tal como aparecer
num fragmento póstumo de 1876 (KSA 8, 19 [9], p.
333): “Os que sabem congratular-se conosco estão
acima e mais perto de nós do que os que conosco se
compadecem. A congratulação (Mitfreude) faz o
‘amigo’ (Freund) (o que se congratula)
(Mitfreunder), a compaixão (Mitleid) faz o
companheiro de dores. Uma ética da compaixão
precisa do complemento de uma superior ética da
amizade”.
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Escrito em referência ao quadro de
Bartolomeu Rónai, sob inspiração do
poema goetheano que dá título ao aforismo
(Et in Arcadia ego [Eu também vivi na
Arcádia]), o texto de Nietzsche parece uma
brincadeira com a escola literária do século
XVIII que remete ao bucolismo Arcádio, à
exaltação da natureza e do mundo
campestre a la Epicuro. Trata-se de uma
sátira de Nietzsche à promessa que teria
sido dirigida por Epicuro aos homens
doentes e ao sentimento de terem em si o
mundo e de serem parte dele. Mas, fiel ao
paradoxo que prende o nome de Epicuro a
muitas ambigüidades, a Arcádia representa
também, no contexto de O andarilho e sua
sombra, a força e a grandeza heróica
daqueles que se distanciam da multidão
para tomar sol e respirar ar puro. Trata-se
de um idílico trágico e dionisíaco que sabe
transfigurar a fraqueza e a decadência em
grandeza e afirmação, na qual está ausente
qualquer conotação metafísica de fuga da
realidade. Como mostrou Philippe Choulet
(1998, p. 313), esse paradoxo se explica
pela “mudança no eixo de avaliação do
racionalismo” impetrado por Nietzsche em
diferentes momentos de suas obras,
principalmente quando envolve o nome de
Aristóteles.
Ainda em Aurora, 72, Nietzsche
recupera Epicuro para criticar a retomada,
por parte do cristianismo, do terror causado
pelo “após-a-morte” a partir da idéia dos
“castigos infernais” e dos “horrores
subterrâneos”, fazendo com que a morte
seja o grande móvel da conversão e da
moralização cristãs: “a morte definitiva
como punição do pecador e a
impossibilidade de ressurreição como
ameaça extrema” (A, 72). A morte, como
móvel moral, representa num primeiro
momento a negação da imortalidade e de
outro, a ameaça de uma imortalidade na
danação e no sofrimento eterno. O que
fizera Epicuro, ao evacuar o temor da morte
como algo que não diz respeito ao humano,
fora anular esse poder moralizante da
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morte. Agora, segundo Nietzsche, a ciência
partiria de um desinteresse sobre esse tema
e esse é mais um “benefício indescritível”
que advém da vivacidade do pensamento
epicurista. Ao invés do Deus punitivo do
cristianismo,
Nietzsche
resgata
os
“indiferentes desconhecidos” deuses de
Epicuro, cuja existência fazem com que a
vida seja não um resultado da constante
vigilância e providência divinas, em vista
da punição ou da redenção final, mas uma
aceitação do “querido acaso” que faz olhar
a vida com inocência e ver cada
acontecimento
como
resultado
“constantemente no melhor possível” (GC,
277). Contra a providência vigilante e
punitiva do Deus cristão, Epicuro
representa o “tinha de acontecer”, o “foi
como foi”, ou seja, a afirmação exata do
instante, do tempo presente como aceitação
do passado sem remorso.
Mas talvez seja no parágrafo 45 do
primeiro livro de A Gaia Ciência que
Nietzsche desvela o sentido ético da
filosofia de Epicuro – nesse texto, que tem
como título justamente Epicuro, se lê:
“Sim, orgulho-me de sentir o caráter de
Epicuro diferentemente de qualquer outro,
talvez, e de fruir a felicidade vesperal da
Antiguidade em tudo o que dele ouço e
leio”. Nietzsche vê em Epicuro (e talvez
com ele partilhe) essa felicidade nascida de
“um ser continuamente sofredor”, a
felicidade que faz contemplar o mar da
existência
como
calma
superfície,
partilhando a felicidade que acalma esse
mar bravio.
Na segunda acepção, Epicuro está
ligado à decadência da cultura antiga e a
sua apropriação pelo cristianismo. No
aforismo 224, de Opiniões e sentenças
diversas, o nome de Epicuro (unido ao de
Epiteto) é apresentado como a “voz da
razão e da filosofia” e ainda como a
“sabedoria em carne e osso”, que está nas
bases do cristianismo, ele mesmo
continuador da doença que se abateu sobre
a Antiguidade. Como pressuposto do
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cristianismo,
o
epicurismo
é
a
representação da surdez de uma civilização
degenerada, sobre o qual o cristianismo
“agiu e age como um bálsamo”. A
“tranquila comunidade cristã” espalhada
pelo mundo é apresentada como uma boa
notícia para os cansados, cuja existência
lembra justamente as “sombras do Hades:
figuras acanhadas, sussurrantes, deslizantes,
benévolas, com uma expectativa de ‘vida
melhor’, e por isso tão modestas, tão
calmamente
desprezadoras,
tão
orgulhosamente pacientes!”. Eis a descrição
que explica a proximidade identificada por
Nietzsche entre o cristianismo e o
epicurismo e a “utilização” que tornou o
segundo uma filosofia de alívio da vida, ou
seja, de negação da existência pela via da
busca da serenidade e da anulação da dor.
Como decadente Epicuro representa
uma sábia alternativa e um convincente
consolo
aos “infelizes, malfeitores,
hipocondríacos, moribundos” a quem ele
pode
oferecer
“duas
fórmulas
tranquilizantes” que dizem: “primeiro, dado
que seja assim, não nos diz respeito;
segundo, pode ser assim, mas também pode
ser de outro modo” (AS, 7). Esses “dois
meios
de
consolo”
oferecidos
brilhantemente por Epicuro para os doentes
de seu tempo, serve para muitas coisas,
segundo Nietzsche: como o “mitigador de
almas”, Epicuro é aquele que oferece o
remédio que tranquiliza pela evacuação
daquilo que causa o sofrimento sem que
seja necessário “resolver as questões
teóricas verdadeiras e extremas”. Ou seja, o
epicurista é aquele que faz desviar as
atenções dos agentes externos, seja pela
negação de sua importância, seja pela
constatação da pluralidade das hipóteses
que elas representam.
A filosofia como medicina
As duas acepções com as quais
Nietzsche apresenta o nome de Epicuro,
remetem à ideia da metáfora médica, pois
se ligam à temática que apresenta a ética
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como atividade de busca pela saúde da
alma. Nietzsche, com isso, permanece fiel e
atento à aparição dessa temática na
doxografia antiga, na qual se destacam as
obras de Epicuro, mormente na Carta a
Meneceu e nas Sentenças vaticanas, nos
quais a atividade filosófica é definida como
medicina da alma. Entretanto, podemos
afirmar que o filósofo alemão mantém a
distância necessária em relação a Epicuro
no que diz respeito à compreensão desse
papel a ser desempenhado pela filosofia, na
medida em que a ética da felicidade,
fundada por Epicuro, estava baseada numa
“teoria do conhecimento” ainda herdeira do
cômputo socrático “verdade + virtude” e
que, no fim, conduziria a uma negação dos
instintos. O resultado, portanto, é que
Epicuro estaria ligado ao cristianismo,
religião que se utiliza da racionalidade para
erigir a fé tanto quanto Epicuro se utiliza da
razão para erigir a sua moral.
Num fragmento coletado por Porfírio
encontramos: “Assim como realmente a
medicina em nada beneficia, senão liberta
dos males do corpo, assim também sucede
com a filosofia, se não liberta das paixões
da alma” (EPICURO, I, p. 13). Nitidamente
influenciado pelo hipocratismo, que obteve
seu auge entre os anos 430 e 380, o ato
médico é visto por Epicuro, pois, como uma
restauração de determinado ideal de saúde,
frente ao qual a própria medicina se tornaria
dispensável, já que é a saúde que dá
significado à medicina e não a enfermidade,
pois a cura é a meta da ciência médica. Ou
seja, o que dá sentido à medicina não é a
doença, como estado patológico, mas a
saúde, como estado ideal e desejável e a
medicina seria útil apenas na medida em
que possibilitaria uma intervenção nos
desequilíbrios de “humores” provocados
pelos agentes externos. Paradoxalmente, a
maior utilidade da medicina é se tornar
“inútil”, na medida em que seja dispensada
ou requisitada o mínimo possível. Assim, é
pela higiene que se efetiva a possibilidade
de pensar um estado de saúde que não é
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afetado pelos agentes externos: a medicina
é dispensável na medida em que existe a
higiene, associada a uma felicidade,
equilíbrio e tranquilidade do corpo.
A história da higiene é uma história
de regularidade e ritmo natural próxima,
portanto, da ideia de saúde. Por isso mesmo
o vocabulário grego epicurista não
distingue higiene e saúde, já que estar em
boa saúde é não se deixar impactar pelos
agentes externos, ou seja, não se descuidar
do corpo e suas afecções. Para os gregos,
esse cuidado do corpo estava associado à
dietética e à ginástica. Higéia, filha de
Asclépio, é o símbolo mítico desse cuidado
corporal: rainha da medicina, ela encarna o
instinto de vida que previne das doenças,
evitando a necessidade de seu pai intervir a
todo o momento a fim de curar ou aliviar a
dor (cf. COMMELIN apud DUVERNOY,
p. 80).
A ética, nessa medida, aparece como
uma busca pela calmaria e a tranquilidade
da alma desejada como virtude do sábio. A
ataraxia está associada justamente àquilo
que no campo da alma é expresso pela
noção de higiene e saúde corporal: a
restrição dos afetos e o controle dos
prazeres em vista da anulação da dor são
processos similares à fuga dos agentes
externos que causam os desequilíbrios de
humores e levam à doença do corpo. É isso
o que significa, no caso do homem prudente
(phronimos), pensar e agir “naturalmente”,
ou seja, sem recorrer à filosofia. Em outras
palavras: a filosofia aparece como um
processo pelo qual se expulsa para fora da
alma as perturbações e as afetações que
causam sofrimento e dor. A filosofia de
Epicuro, portanto, é mais uma phronesis
(sabedoria prática) do que uma philosophia
(sabedoria teórica) propriamente dita.
Trata-se de valorizar a prudência como
forma de vida e não o mero acúmulo de
saberes como expressão de erudição.
Para Epicuro, esse tipo de sabedoria
filosófica (a phronesis) seria um caminho
para a superação da decadência da cultura
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na qual proliferam almas cultas e, por isso
mesmo, doentias. A organização da
sociedade
estaria
impregnada
de
infelicidade, medo e doenças que tornam o
próprio epicurismo uma “profilaxia
epidemiológica” (DUVERNOY, 1993, p.
81), já que essa infelicidade se espalha
como uma epidemia que atinge toda a
população e o epicurismo da tradição
(pode-se citar especialmente Diógenes e
seus conselhos no muro de Enoanda) se
apresenta como remédio que salva dessa
patologia através da expulsão dos temores e
das aflições. Pelo mecanismo da crise
cultural, a peste atinge a todos e faz os
homens morrerem por contágio (cf.
Lucrécio em Da natureza das coisas, VI,
1138). Atingida pela peste, resta à cultura o
remédio da filosofia, ou seja, a reflexão e o
controle das necessidades e prazeres, a
diminuição das futilidades, a negação dos
fatores externos que impedem o cultivo da
higiene interior. Eis a necessidade sempre
presente da filosofia segundo Epicuro:
“Nunca se protele o filosofar quando se é
jovem, nem canse de fazê-lo quando se é
velho, pois que ninguém é jamais pouco
maduro nem demasiado maduro para
conquistar a saúde da alma” (EPICURO, I,
p. 13). Isso porque a filosofia é para a alma
uma restauração - é por ela que se
reconquista a saúde. Deve-se responder ao
seu convite, já que ela chama toda a cultura
doente para ser tratada.
A filosofia teria como tarefa livrar
dos temores e ajudar a evacuá-los pela
reflexão, já que os temores são
representações sem realidade, sem nenhuma
proveniência a não ser o próprio nada.
Quem teme, teme o nada e não alguma
coisa concreta ou “real”. Temer o nada é
algo absolutamente prejudicial, já que não
tem nem sentido e nem sensação – é um
“antiprazer puro” (DUVERNOY, 1993, p.
83). Como “palavra vazia”, o temor é pura
infelicidade e deve ser recusado pela
reflexão filosófica e a aquisição da
verdadeira sabedoria. A reflexão filosófica
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Novas Perspectivas Intelectuais
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ISSN 1982 6613
expulsa os temores desvelando seu vazio e
sua falsa sensação e dando lugar à sensação
verdadeira. Essa cura da alma chega pela
atenção a alguns princípios que são
“fechados” em um corpus fixo que deve ser
repetido pela memória a fim de fazer ver
aquilo que não é como não sendo. O
sensualismo materialista presente na
filosofia de Epicuro conduz, assim, à
negação dos motivos da infelicidade pela
vida da “evacuação” daquilo que não é e é
tido como sendo.
A filosofia em si mesma não é a vida
feliz, mas o caminho até ela para aqueles
que adoeceram. A vida feliz, para Epicuro,
está em simplesmente viver. Os argumentos
filosóficos são remédios necessários para a
cura e não a própria cura (a própria
felicidade). Como pensamento correto e
justo, a filosofia se opõe aos pensamentos
que causam temor, às opiniões erradas que
levam à dor e ao sofrimento da alma. Ora,
essa terapia filosófica proposta por Epicuro
é positiva, gratificante e prazenteira: “Na
filosofia, ao contrário, o prazer advém ao
mesmo tempo que o conhecimento. Com
efeito, o gozo não advém depois do
conhecimento, mas, pelo contrário, gozo e
conhecimento
são
simultâneos”
(DUVERNOY, 1993, p. 86). É isso o que
faz da filosofia já por si mesma uma
atividade alegre e geradora de prazer.
Carregada de pensamentos que servem de
remédio para os temores, a filosofia de
Epicuro chega às máximas soberanas que
são máximas eficazes de um pensamento
sobre o prazer. Repetir as máximas seria
uma forma de acessar o remédio. A
farmácia de Epicuro é, portanto, a farmácia
que oferece – através da administração
repetida da dosagem - pílulas de apatia
frente aos falsos temores criados pela
cultura. Na solidão de seu Jardim, o filósofo
administra seus remédios e faz da filosofia
a técnica dos princípios que reconduzem à
saúde que nada mais são do que ausência de
perturbações, ou seja, conquista da
simplicidade: “A quem não basta pouco,
nada basta” (EPICURO, IV, p. 18).
Para o Nietzsche do segundo período,
principalmente, essa também é uma questão
central para a própria filosofia: a realização
de um diagnóstico da cultura e a
possibilidade de que ela venha a
implementar um processo de cura (no
sentido profilático e também terapêutico)
em relação aos motivos (ou causas) desse
adoecimento, cuja manifestação mais
imediata o filósofo alemão identifica na
ascensão
dos
idealismos
religiosos
(cristianismo), filosóficos (metafísica) e
artísticos (romantismo).
Desde seus primeiros escritos,
Nietzsche se anuncia o filósofo como
“médico da cultura”5 e pretende que o
filósofo seja um “médico filosófico” (GC,
Prólogo, 2), que possa desvendar as
relações que deram ensejo à moralidade
gregária como resultado da doença de seus
próprios arautos. Isso porque, para ele, toda
pretensão de “verdade” esconde a condição
de saúde do seu intérprete (KSA 10, 7 [62],
de 1883, p. 262), ou melhor, da patologia
daquele que, por não suportar a dinâmica da
vida, busca um apanágio para o sossego e
tranqüilidade que, no fundo, representa uma
fraqueza. Nesse sentido, se Nietzsche evoca
a tarefa epicurista, isso não significa que
esteja de acordo com seus resultados: a
medicina da alma, como vimos acima, não
deveria aliviar da vida, mas aliviar a vida,
no sentido de tornar agradável o viver, em
sua radical aceitação e afirmação – ao invés
de temê-la e negá-la.
Como resultado da sua tarefa como
“médico filosófico”, Nietzsche começa por
transformar o “homem” - ou o “humano” no tema (ou no problema) fisiopsicológico
5
Der Philosoph als Arzt der Cultur: expressão usada
desde os escritos de juventude, como atesta um fragmento
do Livro do Filósofo (publicação inacabada e póstuma),
presente em KSA 7, 23[15], de 1872-1873, p. 545). A
expressão seria contraposta ao filósofo como
“envenenador da cultura” (der Philosoph der Giftmischer
der Kultur). Ou seja, se Platão é o envenenador, pela
oposição dos instintos, Nietzsche busca o filósofo como o
médico, o que reintegra o sentido trágico-artístico à
existência.
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por excelência no segundo período de sua
produção, na qual a sua tarefa é desvelar a
“química
das
representações
dos
sentimentos” (HH I, 1) que fundam os
chamados fatos morais, já que as
representações são criadas a partir do
mundo,
como
“coisas
humanas”
interpretadas. Trata-se, pois, de uma análise
crítica implementada como estratégia
filosófica para esquadrinhamento das
“coisas humanas”, já que a dualidade corpo
e alma expressa uma má-compreensão do
humano e nisso se funda a criação de todos
os idealismos que, no caso moral, se
apresentam como patologia ou, além disso,
como patologizadores.
Ora, é a psicologia que serve de
instrumento para essa análise e passa a ser
definida como “a ciência que indaga a
origem e a história dos chamados
sentimentos morais e que, ao progredir, tem
de expor e resolver os emaranhados
problemas sociológicos” (HH I, 37). É isso,
precisamente, que Nietzsche entende e
pratica como psicologia e que, de resto, está
ligada à sua fisiologia6, já que se rompe,
6
Quanto à fisiologia, embora Nietzsche use o termo
somente a partir de 1872 (sua primeira aparição se dá no
parágrafo 4, de Sobre o Futuro dos nossos
estabelecimentos de ensino) o seu interesse pelo tema é
bem mais antigo, remetendo a 1866, quando ele tem
acesso à obra de Friedrich Albert Lange, Geschichte des
Materialismus. Além disso, segundo relata ANDLER
(1958, II, p. 328), Nietzsche lera, desde muito cedo, várias
obras sobre o assunto, entre as quais: Entstehung und
Begriff der Naturhistorichen Art, de Naegeli publicada em
1865 e Descendenzlehre und Darwinismus de Oskar
Schmidt, publicada em 1873. Entretanto, pode-se afirmar
que só a partir de Humano, Demasiado Humano o
conceito ganha importância, vindo a se apresentar com
frequência nas obras do último período de sua produção,
principalmente em fragmentos póstumos de 1888 e 1889.
A fisiologia é portanto, para Nietzsche, um tema
claramente transversal e presente desde seus primeiros
escritos, por exemplo, no que diz respeito aos impulsos
dionisíaco e apolíneo em torno do Nascimento da
Tragédia e da desordem de impulsos presente em
Sócrates, o primeiro décadent que levou à morte a tragédia
grega. Desde cedo, pois, o vocábulo deve ser
compreendido ligado àquilo que, no segundo período
Nietzsche chama e pratica como psicologia, e que está
embasado num rompimento do tradicional dualismo
“corpo” e “alma”.
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nessa visão do humano, o dualismo
corpo/espírito que até então também
separava as ciências do espírito das ciências
do corpo e essas das ciências da natureza.
É necessário lembrar que Nietzsche
anuncia a psicologia, em Humano,
Demasiado Humano, como instrumento de
dissecação dos idealismos e que mais tarde,
apresentará o seu Zaratustra como um
psicólogo, ao tempo em que, na esteira da
influência dos Essays de Paul Bourget e sua
conexão entre psicologia e moralidade,
Nietzsche estabelece os “mestres franceses”
como bons psicólogos. Psicologia, nesse
sentido, seria uma arte da interpretação
esboçada como análise e avaliação das
“coisas humanas”. Para tanto, como “estudo
da alma” (HH I, 36) a psicologia disseca a
origem dos idealismos (presentes na
metafísica, na religião e na arte) como erros
e preconceitos, levando não à negação da
existência, mas à sua afirmação. A
psicologia, assim, se torna o procedimento
mesmo da filosofia nietzscheana: “nos
meus livros fala um psicólogo, que não tem
igual, eis porventura a primeira constatação
a que chega um bom leitor, tal como eu o
mereço (...)” (EH, Porque escrevo tão bons,
5).
Como médico da cultura, Nietzsche
reúne num mesmo conceito a psicologia e a
fisiologia. Enquanto ciência médica, a
psicologia está embasada num programa de
destruição dos fundamentos metafísicos da
moralidade, tais como a noção de
consciência como unidade subjetiva e seu
primado em relação ao corpo e àquilo que
poderia ser chamado de inconsciente. É o
que Nietzsche expressa no parágrafo 23 de
Além de Bem e Mal, com as seguintes
palavras: “Toda psicologia, até o momento,
tem estado presa a preconceitos e temores
morais: não ousou descer às profundezas.
Compreendê-la como morfologia e teoria
da evolução da vontade de poder, tal como
faço – isto é algo que ninguém tocou sequer
em pensamento” (BM, 23). Nietzsche
pretende, justamente,
estudar essas
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“profundezas” que se encontram por baixo
das avaliações morais que se cristalizam
como preconceitos – e nisso ele se anuncia
como primeiro, pelo inédito instrumento
que nessa passagem ganha os contornos da
vontade de poder. Esse mesmo olhar para o
“mais profundo”, aparece já em Humano,
Demasiado Humano: “Enquanto livro para
‘espíritos livres’, fala nele algo da frieza
quase serena e curiosa do psicólogo (...)”,
escreve Nietzsche no prólogo do segundo
volume dessa obra (Opiniões e Sentenças
Diversas, Prólogo, 1), escrito em 1886.
Nessa época o filósofo reconhece a obra
como uma psicologia que desvela o que há
“por debaixo” e “por trás” da moralidade e
do “autotratamento antiromântico” (OS,
Prólogo, 2) que Nietzsche pretende
perpetrar como parte do rompimento com a
primeira fase de seu pensamento.
Pretendendo “prosseguir sozinho” (Prólogo,
3), a partir de uma “primeira suspeita contra
a música romântica”, Nietzsche confessa ter
feito nessa obra um “combate contra a anticientífica tendência fundamental de todo
pessimismo romântico a exagerar, a
interpretar experiências pessoais singulares
como juízos universais” (Prólogo, 5). Para
isso foi preciso “inverter” seu olhar, alterar
seu ponto de vista contra o “pessimismo
romântico” (OS, Prólogo 7), ou seja, contra
a filosofia de Schopenhauer e a música de
Wagner.
Para essa tarefa, portanto, faz-se
necessário um uso interdisciplinar que junte
não apenas a psicologia com a morfologia e
com a fisiologia, mas também com a
história, a cultura, a linguística, a literatura,
a medicina e várias outras áreas do
conhecimento,
tal
como
Nietzsche
reiteradamente
faz
uso.
Ao
se
autoproclamar o primeiro psicólogo da
história7, portanto, Nietzsche evoca essa
7
“Quem, antes de mim, foi entre os filósofos psicólogo, e
não antes o oposto, um ‘charlatão superior’, um
‘idealista’? Antes de mim, ainda não havia psicologia
alguma. – ser aqui o primeiro pode constituir um anátema,
é em todo o caso um destino: pois também se despreza
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“originalidade” no uso do termo psicologia,
desvencilhando-o
dos
fundamentos
metafísicos para usá-lo – ao contrário como crítica da metafísica, mormente a
separação entre alma e corpo e a dissolução
da crença na unidade consciente da alma e
do “eu”. É dessa forma que a metáfora
médica ganha expressão filosófica no
segundo período da produção do filósofo
alemão.
Se
Nietzsche
efetiva
uma
transfiguração naquilo que se entende como
psicologia, esse procedimento também
impacta sobre a sua compreensão de
fisiologia: o corpo não é entendido pelo
filósofo a partir da visão empírico-radical
do sensível tal como postulada pelo
materialismo
ou
como
campo
pretensamente neutro proclamado pelos
lógicos e físicos modernos. Para Nietzsche
esse materialismo seria mais um efeito das
crenças e preconceitos metafísicos por estar
alicerçado em ancestrais artigos de fé que
tornam os corpos nada mais do que
composições de moléculas e átomos,
representações de partículas elementares
que formariam a matéria. Essa perspectiva
seria uma mera continuação das doutrinas
cristãs, do platonismo, do cartesianismo e,
no limite, de toda a prática filosófica e
científica ocidental que vê no conjunto da
realidade a permanência de um fundamento
unitário elementar que explicaria os
fenômenos da realidade através da
inteligibilidade de um sujeito-eu-alma. A
física e a fisiologia apegadas a essa
tendência seriam, para Nietzsche, reféns
ainda da metafísica, já que não haveria uma
“realidade em si” disponível para o
conhecimento.
Sendo assim, tanto no caso da
psicologia quanto da fisiologia, Nietzsche
as utiliza, por um lado, como instrumentos
de análise da moralidade, na medida em
que servem de denúncia dos erros e dos
preconceitos dos idealismos que levaram à
como o primeiro... O nojo do homem, eis o meu perigo...”
(EH, Porque sou um destino, 6)
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degeneração moral como processo de
decomposição que se iniciou a partir das
implicações fisiológicas. Por outro lado,
elas são instrumentos que podem concorrer
para a elevação do humano e o
fortalecimento da vida. Com os dois
termos, chega-se a dois processos: um de
denúncia da moralidade que encurta a vida
e outro de apontamentos das possibilidades
de seu fortalecimento. Ambos os artifícios,
entretanto, efetivam-se de forma articulada,
concretizando o caráter médico dessa
filosofia fisio-psicológica e que, no fim,
resgatam as duas acepções com as quais o
nome de Epicuro ganha ambivalência na
filosofia nietzschiana.
Esse procedimento, aliás, o qual mais
tarde será batizado de “genealógico”,
apresenta-se
nesses
escritos
como
“apontamentos” e “indícios”. Não à toa, o
título do segundo capítulo de Humano,
Demasiado
Humano
é
justamente
Contribuição à história dos sentimentos
morais e o primeiro parágrafo (§ 35)
anuncia as Vantagens da observação
psicológica, destacando que, para a história
desses sentimentos, é preciso levar em
conta os subsídios fornecidos pela
psicologia. No terceiro capítulo o alvo
dessa observação é a vida religiosa, em
seguida a arte, a cultura, as relações
interpessoais, o Estado e, enfim, o
indivíduo consigo mesmo: todo o livro deve
ser entendido como um projeto de
observação psicológica das várias facetas
da vida humana. E é isso, pois, o que
caracteriza o procedimento psicológico
praticado por Nietzsche nesse período.
A fisio-psicologia é para Nietzsche
um
instrumento
de
“dissecação
psicológica” que, através de suas “pinças e
bisturis”, marca o fazer científico por cujo
artifício se realiza a observação dos
fenômenos morais e que, no limite, dá
contornos mais claros à sua tarefa de
“médico da cultura” e da filosofia como
“medicina da alma”. Ela é a “ciência que
indaga a origem e a história dos chamados
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sentimentos morais e que, ao progredir, tem
de expor e resolver os emaranhados
problemas sociológicos” (HH I, 37).
Nietzsche é claro a respeito da novidade
desse filosofar histórico que é também um
filosofar fisio-psicológico, já que, segundo
ele, “a velha filosofia não conhece em
absoluto estes últimos, e com precárias
evasivas sempre escapou à investigação
sobre a origem e a história dos sentimentos
morais”.
A filosofia praticada por Nietzsche
pretende assim, “livrar paulatinamente” o
humano desse “sentimento fastidioso” de
“remorso e tormentos da consciência depois
do ato, pois todo ato era completamente
inevitável. A atitude filosófica é um
fatalismo frio com respeito a todo o
passado” (KSA 8, 19 [39], de 1876, p. 339).
Ou seja, é ela que possibilita aliviar a vida
afirmando-a em todas as suas características
e condições e que se revela, tardiamente,
pela noção de amor fati: “que não se quer
nada de outro modo, nem para adiante, nem
para trás, em toda a eternidade” (EH,
Porque sou tão esperto, 10). É bom lembrar
que Nietzsche, na curiosa lista dos 10
mandamentos do espírito livre, apresentado
em KSA 8, 19 [77] (de 1878, p. 348), já
expressa essa noção na seguinte assertiva:
“Não te arrependerás de um delito, mas, em
compensação, farás uma obra boa a mais”.
Ou seja, a sua moral é uma moral
afirmativa, de libertação do indivíduo (e do
mundo), para que ele não permaneça
submetido à culpa e ao remorso, mas crie,
afirme, faça algo bom – algo que favoreça a
vida.
Na conjuntura de sua análise médica
dos sentimentos morais, Nietzsche faz ver
que a moralidade (em sentido tradicional),
ao contrário, invés de valorizar esse
indivíduo criativo em sua inteireza,
implementou um processo de divisão do
indivíduo, por negar-lhe a possibilidade de
pensar em si mesmo, para fazê-lo agir
sempre em função do próximo: “Não está
claro que em todos esses casos o homem
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tem mais amor a algo de si, um
pensamento, um anseio, um produto, do que
a algo diferente de si, e que ele então divide
seu ser, sacrificando uma parte à outra?”
(HH I, 57). A psicologia de Nietzsche
critica na ética da compaixão o seu
empenho no sacrifício de si em função do
outro.
Moral versus vida
Ainda que, sob pontos de vista no
geral
bastante
divergentes,
essa
compreensão da tarefa filosófica leva tanto
Epicuro quanto Nietzsche às mesmas
questões: a recuperação da simplicidade, da
liberdade, da coragem e da alegria como
virtudes morais dignas de serem entendidas
como tais. Tais “valores”, entretanto, só
podem ser compreendidos como tentativas
de diagnosticar o fenômeno da decadência
(associadas à experiência da dor, do
sofrimento, da doença, das paixões etc.) e
que revela como cansaço frente à vida e
como medo da existência (substituição do
heroísmo pela prudência, da afirmação
intensa do acaso pela cautela e covardia)
que se revelam como motivos psicofisiológicos. Em outras palavras: na
ambivalência da relação entre os dois
autores, encontra-se uma questão central:
deve a vida ser submetida pela moral ou a
moral ser circunspecta pela vida? Na busca
de uma nova visão de virtude, Nietzsche
leva em conta que ela deve ser resultado do
jogo de forças no seio do devir, estando
ligada ao pathos e não ao ethos da prática
moralizante. Como não há distinção entre
um agente e a sua ação, não há também
qualquer possibilidade de se falar, em
termos nietzscheanos, em eficácia ou
aptidão para agir, por parte do ser humano
ou mesmo em realização de sua natureza
excelente, o que implicaria a retomada da
versão grega que entendeu a areté como
desabrochar das faculdades racionais em
função da realização do bem moral e do
melhoramento do indivíduo, tendo como
critério a vida gregária. Não é esse o
Vol. 5, (2010) - Edição Especial
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sentido dado por Nietzsche à noção de
virtude: nem há nela qualquer noção de
realização de alguma natureza humana, nem
ela objetiva alguma noção pré-estabelecida
de bem (em distinção do mal) e muito
menos se poderia pensar numa busca da
perfeição ou excelência do “homem”
através do bom uso da razão. Nietzsche não
pensa a virtude como guia da ação ou
ordenamento do pathos pela via do ethos
(algo que, aliás, ele ainda identifica em
Epicuro), muito menos na tradicional
questão da sua aquisição e melhoramento.
Para o filósofo alemão, esse tipo de
compreensão da moralidade não passa de
uma inversão de perspectiva por parte dos
décadents, aqueles que travestiram a sua
fraqueza com a pomposa noção de virtude.
Porque não souberam lidar com as forças
antagônicas e ilógicas da natureza e de si
mesmo, os arautos da moral da compaixão
passaram a representar de forma absoluta e
universal a ideia de bem - e também o seu
contrário, a ideia de mal, derivada a partir
da noção de vício.
Para Nietzsche, a noção de liberdade
de espírito, requisitada reiteradamente nos
escritos de seu segundo período, estaria
ligada a essa perspectiva de retirada do peso
que foi colocado sobre a vida, algo que
seria alcançado perante uma redefinição da
noção de virtude, agora associada ao
“espírito livre” - aquele que seria possuidor
de quatro virtudes: a coragem (para o
grande desprendimento), a simplicidade
(que possibita o nomadismo do andarilho,
personagem do segundo volume de
Humano, demasiado humano), a resistência
(para o enfrentamento do “peso” da vida,
que se tornaria relativo para aqueles que
obtém, pela moral, força para carregá-la) e
a alegria (condição de afirmação da vida
em sua plenitude). Todas essas virtudes
estão ligadas, não à toa, à importância dada
por Nietzsche nesse período, à noção de
amizade (Mitfreu[n]de), mote de crítica à
compaixão (Mitleid). A efetividade dessa
temática encontra n’A Gaia Ciência sua
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expressão sintetizada no anúncio de quatro
virtudes que reúnem as características
necessárias ao “humano” como espírito
livre, aquele que “quer ajudar” sem
“perder-se do próprio caminho e acudir ao
próximo”:
Você também quererá ajudar: mas
apenas aqueles cuja necessidade8
compreende inteiramente, pois têm
com você uma dor e uma esperança
comum – os seus amigos: e apenas do
modo como você ajuda a si mesmo: eu quero fazê-los mais corajosos, mais
resistentes, mais simples, mais alegres
[muthiger, aushaltender, einfacher,
fröhlicher]! Eu quero ensinar-lhes o
que agora tão poucos entendem, e os
pregadores da compaixão menos que
todos: - a partilha da alegria [die
Mitfreude]! (GC, 338).
Nota-se como essa partilha depende
da afirmação de si mesmo (ou, na língua
epicurista, da autarquia individual), mas
que remete ao outro a quem se dirige
desejando que ele se torne capaz de
suportar o peso da existência: essas virtudes
contribuem para o fortalecimento da vida
pelo incremento das forças vitais. Se a
moral da compaixão (principalmente com
vezo schopenhauriano) se estabelece a
partir dos idealismos que justamente
tornaram a vida pesada demais e, nesse
sentido, oferecem remédios para uma
doença que eles mesmos criaram, a noção
de amizade embasaria uma partilha da
alegria (Mitfreude) e não mais da dor.
Quanto à primeira das virtudes
elencadas por Nietzsche, comecemos
lembrando que, retomando em sentido ético
as teses dos atomistas, Epicuro compreende
a própria filosofia como tarefa da
simplicidade: a sabedoria está em ser
simples como um átomo é simples. Já que o
humano é um átomo dotado de consciência
8
Traduzimos Noth por necessidade e não por miséria,
como propõe a tradução de Paulo César de Souza, aqui
utilizada.
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é por ela que ele deve se guiar para manterse saudável. O átomo é a expressão do
pleno e do completo, do idêntico a si e do
determinado. É o exemplo que o sábio deve
perseguir: fazer regredir a vida até o mais
simples, o que é próprio e fechado em si
mesmo, ou seja, que não se deixa
influenciar ou abater pelas forças externas,
que não se efetiva a não ser por si mesmo,
independente de todos os fatores exteriores.
Ele se esgota em si mesmo e em si encontra
a razão de seu viver, sem necessitar de nada
além de si.
Essa noção está ligada àquilo que
Epicuro chama de Autarcheia, ou seja,
autosuficiência (archeo significa afastar,
remetendo, portanto, ao afastamento dos
agentes externos desestabilizadores). A
autarquia do sábio, como fechamento
individual sobre si mesmo, é um produto da
filosofia e, enquanto experiência pessoal e
comunitária está ligada à absoluta liberdade
em relação ao mundo político grego da
época (baseado, principalmente, na
exploração da mão-de-obra escrava) e às
prisões que tornam o espírito humano
cativo. É a partir da afirmação de si mesmo
que o epicurismo estabelece as condições
para o enfrentamento das condições
adversas da vida. Aquilo que o átomo
representa em termos físicos é o que esse
átomo consciente que é o humano significa
em termos éticos: aquilo no qual nada entra
e nada sai, que não é causa e não é
consequência de nada e, principalmente,
que experimenta nessa sensação autárquica
o máximo gozo consigo, a plena felicidade.
Em outras palavras, como átomo consciente
de sua condição, o sábio obtém o prazer
mais puro que é o de ser si mesmo, de
bastar-se a si mesmo.
A autarquia, assim, conduz à
sabedoria
e,
consequentemente,
à
felicidade. É esse o prazer como estado, isto
é, de estar em repouso apenas em si mesmo,
em equilíbrio, em pleno gozo de si mesmo.
Mas a autarquia não pode ser apenas
segurança no sentido de pobreza ou de
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busca de proteção, como recusa ou fuga do
sofrimento (tal como pode ser expressa,
negativamente, a imagem do Jardim). Essa
autarquia não passaria de uma experiência
de indiferença frente à vida – e não de
heroísmo, tal como Nietzsche sugere ao
falar dos homens modernos como
cautelosos e desconfiados, idealistas
decepcionados, reservados e prevenidos,
controladores dos impulsos através de “um
quase epicúrio pendor ao conhecimento”
(GC, 375). Ao contrário, a noção de
autarquia deveria ser ligada à afirmação do
próprio ego “contra a apatia para com os
outros” (A, 131).
Essa afirmação não trata de uma
negação da condição humana, portanto, mas
do seu usufruto. Nessa experiência de
sabedoria, tudo o que perturba e desvia de
si – que é obstáculo para a sabedoria – deve
ser afastado. Ora, um dos principais
temores que afligem o humano, no que diz
respeito à sua condição, é a morte. É
preciso afastar, portanto, mais esse pseudotemor para alcançar a plenitude. É nisso que
o tema da morte se torna relevante na
filosofia epicurista, como uma tentativa de
afastá-la, já que representa um falso temor:
a morte não é nada que diga respeito ao
homem, já que não há absolutamente
nenhuma experiência da própria morte. A
morte é a total ausência de sensação e,
portanto, nada de revelante para uma
filosofia que se interessa pela dor e pelo
prazer como sensações fundantes da vida.
Isso não significa que Epicuro não
tenha reconhecido a morte como um
obstáculo à vida. Ao contrário, na trigésima
primeira Sentença Vaticana pode-se ler:
“Contra tudo o que vem de fora, é possível
obter segurança. Mas por causa da morte
nós homens habitamos todos uma cidade
sem muralhas”. Contra a morte nada pode a
filosofia, já que entre os agentes externos, o
único para o qual o humano não pode obter
nenhuma segurança é a sua finitude. O
humano está aberto a esse terrível agente
externo, mas não na medida em que ele
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ameace a própria vida: como dor excessiva,
a morte se diferencia das demais dores
justamente porque, ao anular a vida, anula
também a sensação. É nesse contexto que
se encontra a famosa assertiva de Epicuro:
“(...) A morte não é nada em relação a nós,
já que, quando somos, a morte não está
presente, e, quando a morte está presente,
não somos mais” (EPICURO, 2002, p. 29).
Como tal, malgrado o seu grande poder, a
morte não representa qualquer obstáculo à
sabedoria ou mesmo ao prazer, e como tal,
ela não é uma experiência dolorosa. Então,
por que se preocupar com ela? Trata-se de
um temor que é esvaziado de seu sentido
inicial pela via da reflexão filosófica. A
verdadeira sabedoria é aquela que
possibilita esse esvaziamento do sentido
temeroso doado à morte.
Trata-se de uma visão integral da
própria vida: o sábio é aquele que sabe que
o instante da sua existência não tem
nenhum privilégio em relação aos infinitos
momentos em que ele não existiu e os
momentos infinitos no futuro que não o
conterão. Ou seja, o universo não está
orientado para a minha existência, já que a
visão do Todo não se altera pela minha
morte e, ao contrário, revela um devir
inocente desvelado por uma sabedoria
trágica que vê a destruição já como uma
construção e vice-versa, pois, segundo a
teoria atômica, morte e vida não passam de
reorganização de átomos no espaço,
tornando o Todo sempre idêntico a si
mesmo. O que está em jogo é a afirmação
do
momento,
do
instante
exato
experimentado pelo sábio. Sua sabedoria é
a conquista desse equilíbrio do instante
revelado no famoso epitáfio (encontrado em
inúmeros túmulos epicuristas latinos): “Non
ero; fui; non sum; non curo” (“Não era; fui;
não sou mais; isto me é indiferente”). A 55ª
Sentença Vaticana deixa muito clara essa
compreensão:
“Devemos
curar
as
infelicidades pela lembrança reconhecida
daquilo que se perdeu, e pelo fato de saber
que não é possível fazer com que aquilo
Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, edição especial, vol. 5, 2010, p. 60-75.
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que aconteceu não tenha acontecido”. A
afirmação do instante se dá, portanto, de
forma a valorizar o passado tal como foi
sem que se deseje alterá-lo. O sábio olha
para o que foi com paz e tranquilidade a
partir do presente. Nesse instante exato, o
acaso e a necessidade não são mais pares
contrários, mas expressões de um mesmo
sentido: o que é, tem de ser e não pode não
ser.
O próprio Jardim não é mais do que a
expressão desse sentido: como lugar
distanciado ele funda uma ética do
distanciamento que é também uma ética do
presente, do que é circular e do que é livre.
Frente à crise de valores e à decadência da
cultura de seu tempo, o Jardim de Epicuro
torna-se, na expressão de Nietzsche, uma
“escola para educadores” (KSA 8, 23 [136],
de 1876-1877, p. 261) que pretendia aliviar
a dor provocada pela epidemia cultural que
prostrara a Antiguidade.
O Jardim é a expressão do
distanciamento da multidão moderna.
Como pequeno “Estado experimental” (A,
453) no qual o indivíduo é rei apenas de si
mesmo, esse lugar idílico sonhado como
uma comunidade de espíritos raros e
distintos torna-se um projeto aspirado pelo
filósofo alemão no segundo período de sua
produção filosófica: “Quem deseja gastar
seu dinheiro como espírito livre deverá
fundar institutos sob o modelo de claustros,
para dar a possibilidade aos homens que
não querem mais nada com o mundo, de
viver amigavelmente em comum numa
grande comunidade” (KSA 9, 17 [50], de
1876, p. 305). A mesma ideia aparece em
carta a Erwin Rohde, de 16 de julho de
1870: “Nós precisamos dos claustros
novamente. E precisamos novamente nos
tornar os primeiros frades” (KSB 3, p. 131).
Em um cartão postal enviado ao seu amigo
Peter Gast, em 26 de março de 1879,
Nietzsche fala desde sua solidão no Hotel
Richemont, em Genebra, no final da década
de 70 e revela seu desejo de uma vida
comum com seus amigos. Ele quer fundar
Vol. 5, (2010) - Edição Especial
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um novo “jardim de Epicuro”: “Onde
reedificaremos o jardim de Epicuro?” (KSB
5, p. 399).
Esse “claustro moderno” (Moderne
Klöster, KSA 9, 16 [45], de 1876, p. 294) é
o lugar do cultivo experimental do espírito
livre por estar baseado na amizade e na
simplicidade, na arte e no exercício de
poder característicos do mundo grego
antigo, em contraposição à agitação da
cidade moderna. Para Nietzsche, a
concepção
de
um
claustro
para
experimentos dos “espíritos livres” consigo
mesmos é uma concepção que remonta à
experiência epicurista e se contrapõe
frontalmente à experiência moderna,
marcada pelo gregarismo e pela moral da
compaixão, que reprime a possibilidade de
cultivo de si mesmo. É nesse lugar que o
filósofo realizaria a sua tarefa terapêutica de
médico da cultura.
Considerações finais
O inventário das ideias de Epicuro
(muito longe de ter sido aqui esgotado,
obviamente),
em
alguma
medida
recenseadas por Nietzsche ao longo de sua
obra, comprova o ambivalente parentesco
entre os dois autores, já que ambos estão
empenhados em resistir à decadência da
cultura de seu tempo e a fazer da filosofia o
instrumento
de
diagnóstico
dessa
enfermidade cultural, bem como de
superação e transvaloração. No caso de
Epicuro, pela via da correta reflexão que
conduz à calma e à evacuação dos agentes
externos. No caso de Nietzsche, pela
destituição dos idealismos através do
aprofundamento da doença, a tal modo que
dela mesma surjam as possibilidades de
transvaloração. Com nuances diferentes e
divergentes, num jogo de justaposições e
distanciamentos,
paradoxos
e
ambivalências, a metáfora médica aproxima
os autores para dar expressão à tarefa
máxima da filosofia: aliviar a existência do
peso do remorso e da culpa – essas doenças
culturais que se propagaram como
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epidemias morais sobre o mundo ocidental.
Para isso, em Nietzsche como em
Epicuro, é preciso reconhecer a própria
filosofia como produção sintomática dos
equilíbrios e desequilíbrios ligados ao
corpo, ele mesmo reinterpretado sob o viés
dessa filosofia médica que não lida mais
como os dualismos matéria/espírito. Por
isso, ao tempo em que aparece como
sintoma, a filosofia é também uma
profilaxia e um pharmacon capaz de
conduzir à superação da doença. Nesse
caminho as duas filosofias se encontram
com os mesmos temas: busca de
serenidade, coragem frente à morte,
celebração da alegria vital, distanciamento,
congratulação e amizade entre os iguais
como transbordamento da autosuficiência e
da afirmação de si. Temas expressos na
metáfora forte do Jardim, recuperado
inúmeras vezes por Nietzsche: “não
esqueçam o jardim, o jardim com grades
douradas! E tenham pessoas à sua volta,
que sejam como um jardim, - ou como
música sobre as águas, à hora do
entardecer, quando o dia já se torna
lembrança (...)” (BM, 25).
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Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982 6613, Brasília, edição especial, vol. 5, 2010, p. 60-75.
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