REABILITAÇÃO PROFISSIONAL E A LÓGICA REDUCIONISTA COMO EXPRESSÃO DA CONTRARREFORMA DA PREVIDENCIA SOCIAL Ana Amélia Dato Teixeira 1 Floriscena Maria Medeiros 2 RESUMO Este texto desenvolve reflexões acerca do Serviço de Reabilitação Profissional – SRP - do Instituto Nacional do Seguro Social a partir dos anos 1990. A adesão do Brasil às políticas neoliberais afetou diretamente a Previdência Social promovendo a desconstrução dos direitos conquistados através da CF/88 no conceito de Seguridade Social. As mudanças empreendidas no mundo do trabalho através do recurso à terceirização, precarização e desemprego em massa atingem toda a classe trabalhadora, tanto do setor público, quanto da iniciativa privada. Consequentemente ocorre uma maior demanda à proteção social no sentido inverso da contrarreforma previdenciária fenômeno que impõe uma ressignificação do SRP e redução do elenco de benefícios com relevantes prejuízos para o trabalhador. A diretriz institucional das medidas na lógica do seguro social é marcada pela ausência deliberada de investimentos nas políticas sociais e evidencia o interesse de privatização e financeirização da previdência social. Esse quadro impõe reflexões e defesa de um novo modelo de atenção à saúde do trabalhador. A partir de produções teóricas orientadas pelo pensamento crítico defende-se a perspectiva de um modelo contra-hegemônico de atenção em Reabilitação voltado para a prevenção da incapacidade para o trabalho. Palavras-chave: Seguridade Social, contrarreforma neoliberal, Reabilitação Profissional. 1 Assistente Social, Especialista em Ações Institucionais e Saúde Coletiva pela Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (FSS/UFJF). [email protected] 2 Assistente Social, Especialista em Teorias e Técnicas de Pesquisa Social pelo Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora (ICH/UFJF), Mestre em Serviço Social pela Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (FSS/UFJF) [email protected] INTRODUÇÃO O Serviço de Reabilitação Profissional – SRP - do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS - constitui o foco deste estudo, o qual tem como objetivo contribuir para instrumentalizar uma ação profissional consciente, ativa e transformadora. O pensamento crítico, a perspectiva da totalidade e o ponto de vista da classe trabalhadora compõem o fio condutor das reflexões, visando a tornar possível identificar incongruências e ultrapassar a aparência fenomênica de um modelo de proteção social brasileiro que vem sendo alardeado pelos discursos contrarreformistas 1. Para trilhar o caminho metodológico escolhido, reportou-se a autores cuja construção teórica sedimenta a radicalidade do pensamento crítico aos efeitos deletérios do modo de produção e reprodução das relações sociais capitalistas, abarcando temáticas relacionadas às transformações no mundo do trabalho, contrarreforma do Aparelho do Estado e da Previdência Social, avanços e recuos na área da saúde do trabalhador. O eixo fundante deste trabalho pauta-se nas análises sobre o processo de desconstrução neoliberal a partir dos anos 1990, e seus impactos na ressignificação das funções básicas atribuídas ao SRP. Busca-se compreender e explicar a Reabilitação Profissional no contexto das transformações impostas ao mundo do trabalho e suas particularidades no Brasil. São apontados os impactos do movimento de contrarreforma sobre o elenco de benefícios previdenciários, dentre eles a subordinação do SRP à lógica reducionista do modelo de seguro, em detrimento da concepção de seguridade social promulgada pela Constituição Federal – CF/1988, que aprofunda e amplia direitos sociais. Por fim, defende-se o enfoque contra-hegemônico que compreende o processo de reabilitação na perspectiva da prevenção da incapacidade para o trabalho e da transversalidade das políticas de Estado. 1 O CONFISCO DO DIREITO À PROTEÇÃO SOCIAL: IMPACTOS DAS CONTRARREFORMAS NO ELENCO DE BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS Nos anos 1990, em que pese a resistência popular, a adesão do Brasil às políticas neoliberais tornou-se irreversível (SILVA, 2012). Em um contexto de contrarreformas 2 conduzido pelo ideário neoliberal que toma de assalto as conquistas da classe trabalhadora e dos movimentos sociais, vislumbra-se um horizonte adverso, na medida em que o capital cria as condições favoráveis para que o mercado possa avançar de forma contundente na ampliação de seu poder regulador. A contrarreforma da Previdência Social, iniciada, no governo FHC (1995-2002), foi consolidada no governo Lula (2003-2010), uma vez que o elenco de medidas adotadas representou, entre outras expectativas populares frustradas, o abandono da “[...] recuperação da res pública contra a secular privatização do estado cartorial brasileiro” (ANTUNES, 2005, p. 01). Permanece em curso, como clara regressão de direitos da classe trabalhadora, tendo em vista que a orientação do governo Dilma (2011 até os dias atuais) continua voltada para o aprofundamento de cortes nas áreas estratégicas da administração pública federal, com a redução de verbas orçamentárias nas rubricas sociais e nos investimentos. Prevalece o antigo objetivo financista que é a privatização do sistema previdenciário brasileiro. Os trabalhadores da função pública, particularmente aqueles que trabalham na máquina administrativa da Previdência Social, são requisitados a operar, sob “inovadores” modos de gestão, as medidas regulamentares restritivas de direitos. Ao mesmo tempo, destina-se ao funcionalismo público destaque entre as causas da chamada crise do Estado. As mutações na dinâmica da sociedade burguesa vinculam-se às transformações operadas nas esferas econômica, ideopolítica e do trabalho, as quais relacionam-se estreitamente entre si, acarretando efeitos nefastos: eliminação de postos de trabalho, fragmentação, flexibilização e precarização das relações de trabalho, e o consequente enfraquecimento dos organismos de representação da classe trabalhadora. Para Iamamoto: A “velha questão social” metamorfoseia-se, assumindo novas roupagens. Ela evidencia hoje a imensa fratura entre o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social e as relações sociais que o impulsionam. Fratura esta que vem se traduzindo na banalização da vida humana, na violência escondida no fetiche do dinheiro e da mistificação do capital ao impregnar todos os espaços e esferas da vida social. Violência que tem no aparato repressivo do Estado, capturado pelas finanças e colocado a serviço da propriedade e poder dos que dominam o seu escudo de proteção e de disseminação. O alvo principal são aqueles que dispõem apenas de sua força de trabalho para sobreviver: além do segmento masculino adulto de trabalhadores urbanos e rurais, penalizam-se os velhos trabalhadores, as mulheres e as novas gerações de filhos da classe trabalhadora, jovens e crianças, em especial 2 negros e mestiços. Crescem os níveis de exploração e as desigualdades, assim como, no seu reverso, as insatisfações e resistências presentes nas lutas do dia-a-dia, ainda carentes de maior organicidade e densidade política (IAMAMOTO, 2007, p. 144; 145) Importa sublinhar que o modo de produção e gestão do processo de trabalho conduzido pelo binômio fordista/taylorista e seu sucessor, o regime de acumulação flexível, evoluíram pari passu com o desenvolvimento dos modos de gerir a coisa pública: a herança patrimonialista, as formas de administração burocrática e a “nova gerência”, imbricadas no corpo estatal e sustentadas pelos pactos de dominação, definidores do limite estrutural, que se interpuseram ao aprofundamento e universalização de direitos. A produção capitalista reduzia seus quadros, terceirizava e precarizava as relações de trabalho produzindo uma nova classe trabalhadora (ANTUNES, 2000) e o desemprego em massa, ampliando a demanda por proteção social. Segundo Silva (2012), as alterações no mercado de trabalho que conduziram ao desemprego maciço e prolongado e ao trabalho precarizado (terceirizados, temporários, subempregados), correspondem a um quadro complexo relacionado à organização do trabalho, impondo importantes desafios ao avanço da universalização da previdência social. No que se refere ao trabalhador da função pública, a introdução de mudanças no processo de trabalho ocorreu atrelada à reforma do sistema previdenciário do servidor público. A retórica focada na agilidade, eficiência, eficácia e efetividade, acompanhada da defesa da flexibilização da burocracia ocultou o pesado fardo da precarização, da terceirização e do sobretrabalho para o funcionalismo público (ANTUNES, 2005). De forma imbricada, a precarização abarca o setor público e a iniciativa privada, de tal maneira que nenhum segmento assalariado da força de trabalho mantém-se imune à desumanizante dureza do desemprego e da precarização. Não se trata mais, apenas, de segmentos socialmente desfavorecidos, mas de todos os trabalhadores, sejam eles qualificados, ou não. Refere-se à força de trabalho total da sociedade (MÉSZÁROS, 2008). Um dos palcos privilegiados de luta entre a classe trabalhadora e a burguesia, a Previdência Social no Brasil é marcada por uma problemática gestão pública, reflexo da relação historicamente estabelecida entre as várias dimensões do fenômeno estatal, entre tais dimensões e a sociedade. São protagonistas nesse cenário o Estado nacional, os trabalhadores assalariados e o empresariado industrial, portadores de distintos projetos em permanente e desigual disputa, subordinados às diretrizes do mercado mundial. Essas foram (e permanecem) as condições determinantes para os avanços, mas também para os retrocessos impeditivos da adoção de políticas sociais capazes de efetivar a 3 instituição de um Estado Social no Brasil. É propósito do grande capital suprimir os direitos dos trabalhadores, e, nessa direção, desqualificar suas demandas para imprimir-lhes uma natureza genérica e indiferenciada. O corte de direitos e benefícios representava redução nas despesas com políticas sociais e, com isso, a liberação dos recursos do Tesouro para pagamento dos juros da dívida externa. Estava em jogo, muito mais do que as alterações isoladas no campo das aposentadorias e pensões, o interesse dos grandes grupos econômicos, principalmente os do setor de seguro, em assumir o controle dos volumosos recursos financeiros pagos pela sociedade para manter a Previdência Social (TEIXEIRA, 2006). Os métodos e técnicas da análise econômica são estendidos à política com objetivo de imprimir a direção a ser dada à administração pública, em que devem prevalecer os mesmos preceitos de mercado: preços, restrições, maximização. Tais preceitos incorporados ao setor público são traduzidos em metas, prêmios por produtividade, programas de gestão de atendimento, qualidade total, monitoramento, polivalência, concorrência, individualismo, etc. Em março de 1995, foi editado por FHC o conjunto das propostas que compunham a reforma da Previdência 3. O intuito era reduzir a oferta de prestações do sistema previdenciário público, conforme já estabelecido no Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado PDRAE, no qual já eram delineadas as alterações no sistema de proteção social aos trabalhadores dos Regimes Próprios de Previdência Social - RPPS e do Regime Geral de Previdência Social - RGPS. Um elenco ampliado de direitos consubstanciava os frutos das lutas dos trabalhadores, expressão da correlação de forças estabelecida ao longo do processo de redemocratização do País. Essas conquistas foram erodidas a partir da Emenda Constitucional nº 20 de 1998, à qual se seguiram outras medidas e ajustes que marcaram a ofensiva neoliberal voltada para assegurar ao mercado o papel de regulador societário. Um dos alvos escolhido pelos defensores da contrarreforma foi a idade para aposentadoria, considerada por esses uma distorção a ser corrigida (MEDEIROS, 2012). As regras ditadas inicialmente pela EC nº 20/98 eram extremamente duras para com os trabalhadores que ingressaram precocemente no mercado de trabalho. Os contrarreformistas alcançaram seu objetivo com a instituição do fator previdenciário pela Lei nº 9.876/1999, o qual passou a reduzir drasticamente o valor do benefício e incentivar, dessa forma, a postergação da aposentadoria dos trabalhadores da iniciativa privada. Nos anos 1990, muitos servidores se precipitaram em decidir por aposentadorias precoces, ainda no vigor de sua capacidade laborativa, ante o prenúncio de novas perdas que 4 se acumularam, e atingiram o ápice com a fragmentação das categorias profissionais 4. As medidas instituídas de caráter restritivo para os trabalhadores do RGPS afetaram sensivelmente o processo de trabalho do funcionalismo público em exercício na Previdência Social, e particularmente no INSS. As alterações ora destacadas, e que comprovam a regressão de direitos dos trabalhadores, não esgotam no escopo deste estudo o amplo leque de restrições impostas ao conjunto dos benefícios previdenciários. As alterações estruturais restringiram a finalidade do INSS à promoção e ao reconhecimento pela Previdência Social de direito ao recebimento de benefícios por ela administrados, promovendo o enxugamento no texto da lei, onde já não se fazem presentes a execução de atividades e os programas relacionados com emprego, apoio ao trabalhador desempregado, identificação profissional, segurança e saúde do trabalhador. Tal enxugamento conduz à precarização do SRP. REABILITAÇÃO PROFISSIONAL - RP - SOB A LÓGICA REDUCIONISTA Ao contrário das décadas de 1970 e 1980, período de expansão e consolidação dos serviços de RP no Brasil, a contrarreforma de orientação neoliberal promoveu, a partir dos anos 1990, a subtração destes serviços. A estrutura original dos Centros de Reabilitação Profissional – CRPs foi concebida como órgão com autonomia administrativa, orçamentária e financeira, um modelo afinado com a tendência hospitalocêntrica da assistência médica prevalecente na época, que congregava todos os recursos requeridos para o desenvolvimento da reabilitação física, psicossocial e profissional: estrutura física, equipamentos, equipe especializada e multidisciplinar. Os Núcleos - NRPs eram unidades menores que deveriam referenciar para os CRPs os casos de maior complexidade (TAKAHASHI & IGUTI, 2008). O Assistente Social era o fio condutor de todo o programa socioprofissional com suporte técnico da equipe multiprofissional. Eram atendidos os trabalhadores formais, em sua maioria vítimas de acidentes típicos do trabalho com graves sequelas. O processo reabilitatório envolvia a prescrição, concessão e adaptação de órteses e próteses necessárias ao resgate da capacidade laborativa e a concessão de recursos materiais imprescindíveis ao desenvolvimento do programa profissional. 5 A Reabilitação Profissional, assegurada como direito constitucional ao trabalhador, estabelecida em caráter obrigatório pela lei 8.213/1991, e regulamentada pelo Decreto 3048/1999, teve seus custos questionados e seu modelo avaliado como ultrapassado, centralizado e inadequado às demandas emergentes, principalmente as doenças relacionadas à reestruturação e automação (TAKAHASHI & CANESQUI, 2003). O que estava em questão, por outro lado, não era a simples avaliação de métodos de trabalho, mas a própria redefinição do papel do Estado, por meio do desmonte neoliberal das políticas sociais. A partir de meados dos anos 1990, são implementadas as diretrizes do PDRAE que irão orientar o Plano de Modernização da Reabilitação Profissional do INSS. Tais diretrizes, associadas às alterações promovidas pelas ECs, irão assegurar a hegemonia de um modelo reducionista em oposição ao que preconiza a Lei 8213/1991. Verificou-se a falta deliberada de investimentos por parte do governo que conduziu ao sucateamento das instalações dos Centros e Núcleos de RP, promoveu brutal carência de recursos humanos, com adesão dos profissionais aos planos de aposentadoria proporcional e incentivos do governo à demissão voluntária, com prejuízo dos índices de resolutividade e cobertura. (TAKAHASHI & IGUTI, 2008). A indisponibilidade imediata, nos âmbitos estatal e municipal de serviços de reabilitação psicofísica deixa significativa parcela da população sem acesso ao tratamento, agora (e paradoxalmente) de caráter universal. Esse segmento passa a engrossar as longas filas de espera pela concessão do auxílio doença e por atendimento no SRP. Foram adotadas medidas de pulverização do quadro de servidores nas Agências da Previdência Social (APSs) e a transformação da RP no Programa Reabilita, subprograma das perícias médicas. Sem alcançar o desrepresamento das filas de espera 5, a redução do tempo e dos custos, em muitas Gerências o recuo de medidas descentralizadoras foi inevitável, ampliando o descrédito da população em relação ao serviço. A crítica ao antigo modelo centralizado e elitista, mas também à distorção produzida pelas mudanças reducionistas promovidas pela contrarreforma, foi compartilhada por servidores, segurados e sindicatos, pessoas com deficiência - PcD e suas associações, setores responsáveis pela fiscalização do trabalho e pela Saúde do Trabalhador. Tal crítica inspirou, em parte, a elaboração da Carta de São Paulo. Esse documento foi elaborado em 2003, por ocasião do Fórum Nacional de RP, evento precedido por fóruns locais e regionais, que deveriam mobilizar a participação popular (MEDEIROS, 2012). Entretanto, a ausência de participação da sociedade no Fórum Nacional, imprimiu aos debates o caráter tecnicista e contribuiu para que as deliberações preservassem os traços conservadores e privatistas. 6 Constata-se a distância entre o exíguo quadro conceitual no campo da vigilância e promoção da saúde e as exigências dos modos de gestão e organização do trabalho e seus efeitos deletérios sobre a saúde (MAENO & VILELA, 2010). Sob a lógica da seguridade social, a RP requer um conjunto de ações articuladas que incidam sobre as diversas esferas da vida dos sujeitos que dela não podem prescindir Esta lógica considera o acesso à reabilitação como parte integrante de uma política mais abrangente ancorada no princípio da transversalidade das políticas de prevenção, recuperação, qualificação e reinserção. Implica a superação de qualquer modelo construído na perspectiva do insulamento do programa de RP. Contrapõe-se ao modelo médico funcionalista afinado com um projeto de sociedade sustentada em uma democracia restrita, que reduz direitos sociais e políticos. Funções básicas do processo de habilitação e reabilitação profissional Todo o arcabouço legal 6 que regulamenta, normatiza e orienta a RP estabelece que o processo reabilitatório do beneficiário seja desenvolvido por meio de quatro funções básicas: a avaliação do potencial laborativo, a orientação e acompanhamento do programa profissional, a articulação com a comunidade para parcerias, convênios e outros e a pesquisa da fixação desses segurados no mercado de trabalho. A combinação entre práticas gerencialistas e modelo biomédico pautado no referencial técnico instrumental das biociências desconsidera o fato de que a incapacidade constitui um problema socialmente criado, e ignora a subjetividade daqueles que vivenciam a deficiência e a incapacidade. Ao desprezar a condição de sujeito do processo reabilitatório, o programa subordina a reabilitação do trabalhador a metas e prazos definidos no âmbito restrito dos interesses atuariais e na visão contábil, em detrimento da superação de limites e desvantagens gerados pelo adoecimento e pelos seus determinantes. Os métodos e técnicas de cariz gerencialista vêm se mostrando ineficazes conforme evidencia o fato de que o Projeto Reabilita – Proposta para um Novo Modelo de Reabilitação Profissional 7, inscrito no processo de modernização do INSS, na prática, nunca chegou a se efetivar plenamente. A avaliação do potencial laborativo realizada pela equipe constituída por médico perito e analista previdenciário comprova a ineficácia ao restringir a identificação das potencialidades de forma isolada e descontextualizada. O prognóstico favorável de retorno ao mercado de trabalho não pode prescindir de uma análise das condições adoecedoras decorrentes da precarização do trabalho. Esta se 7 expressa desde o maquinário, móveis inadequados à preservação da saúde até a exacerbação da competitividade motivadora de relações interpessoais conflituosas, com repercussão na saúde mental dos trabalhadores. As formas de organização do trabalho e o seu gerenciamento violam os limites físicos e psíquicos dos trabalhadores, anulando sua subjetividade para que a produção não seja comprometida e as metas estabelecidas sejam atingidas (SELIGMANNSILVA, 2010). Ao desconsiderar tais aspectos no processo de avaliação do potencial laborativo, incorre-se no risco de uma análise permeada por distorções, e de se estabelecer uma relação hostil entre o trabalhador e a equipe responsável pela avaliação, no subaproveitamento do potencial criativo, e no comprometimento do processo reabilitatório. Em contraposição à visão parcelar orientada pelo modelo biomédico e pautada na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde CID10, a Organização Mundial de Saúde – OMS referencia a Classificação Internacional da Funcionalidade, Incapacidade e Saúde - CIF como base conceitual para definição, mensuração e formulações de políticas para saúde e incapacidade (SIMONELLI et al., 2010). A avaliação do potencial laborativo constitui uma análise de dados que permite situar o trabalhador no seu contexto físico e psicossocial. A troca de uma função mais rudimentar por outra mais qualificada requer muitas vezes o investimento em elevação da escolaridade. O resultado da avaliação do nível real de escolaridade pode revelar para o trabalhador potencialidades, até então ignoradas, e constituir fator de motivação para uma nova experiência mais rica de significados do que aquela que causou sua precoce evasão escolar. Nesse sentido, se expressa o caráter pedagógico de uma RP assentada na reeducação para o trabalho, em uma perspectiva crítica e emancipatória. O retorno ao trabalho representa um grande desafio também para o conjunto de trabalhadores que comprovam elevado nível de graduação. Alves, ao analisar o novo e precário mundo do trabalho, expõe “a contradição entre a riqueza das possibilidades pressupostas com a ampliação da alta escolaridade e a miséria das perspectivas de realização profissional e desenvolvimento humano no século XXI” (ALVES, 2014, p.1). Assim, são diversos os elementos que interagem de forma dinâmica no processo reabilitatório. Sardá Jr. (2013) chama a atenção para os aspectos relacionados ao acesso e adesão dos trabalhadores aos tratamentos. Esses aspectos, associados aos indicadores socioeconômicos são também determinantes na identificação do potencial laborativo e na condução do programa profissional. O processo de reabilitação pode estar sujeito a elementos relacionados à própria doença e à natureza do tratamento em si, visto que, via de regra, ao 8 buscarem o tratamento, os trabalhadores já apresentam um histórico de manifestação dos sintomas de longa data. A avaliação do potencial laborativo requer a interseção das ações de reabilitação psicofísica e socioprofissional, exigindo uma avaliação contínua que pode oferecer elementos que venham corroborar uma decisão segura quanto à constatação de incapacidade que justifique a invalidez, se comprovada a ausência de respostas positivas que viabilizem a superação das limitações e de barreiras atitudinais e ambientais. Em caso de evolução positiva que aponte potencialidades que podem afiançar o retorno ao trabalho, cabe ao INSS, através do SRP, a função básica de orientar e acompanhar o programa profissional. Esta etapa, assim como a anterior pressupõe ações intersetoriais e interinstitucionais. O acolhimento do trabalhador pela empresa representa um facilitador de êxito do processo reabilitatório, tornando-se imprescindíveis a informação, orientação e apoio das chefias e dos colegas para reintegração à vida laboral. A preservação do vínculo empregatício deve ser uma conduta privilegiada nas mediações que devem envolver os atores públicos, privados e o controle social. Por um lado, a primazia do vínculo reflete a conquista da estabilidade temporária assegurada por lei para os trabalhadores acidentados/adoecidos em decorrência das condições adversas e da superexploração do trabalho. Por outro lado, há que se evitar o risco de atribuir valor absoluto à classe social em detrimento do indivíduo, do homem concreto. As mediações terão como foco a prevenção de adoecimento para o coletivo dos trabalhadores e serão orientadas com vistas à superação de análises fragmentárias que tendem a encobrir os elementos determinantes de adoecimento, não só relativos às atividades anteriormente exercidas, mas também em relação à organização como um todo. A adoção da CIF agrega importante contribuição para a mudança de foco do problema da natureza biológica individual para a interação entre a disfunção apresentada e o contexto ambiental onde o trabalhador está inserido (SIMONELLI et al., 2010). Tendo em vista que o desenvolvimento do programa de RP exige resposta e soluções operatórias para o retorno ao trabalho, é necessário que a equipe responsável pela condução desta etapa estabeleça metodologia que possibilite alcançar resolutividade, em conjunto com demais órgãos envolvidos. O domínio de conhecimentos no campo da ergonomia instrumentaliza e habilita os profissionais para uma análise que deve levar em conta o trabalhador em suas potencialidades. Há que se considerar o processo de recuperação e a funcionalidade do reabilitando, a ocupação anterior, os impactos cognitivos sobre o trabalhador decorrente da defasagem nos 9 processos de produção durante o tempo em que esteve afastado de suas atividades laborais, e os impactos psicológicos provocados pela gravidade da lesão. As funções básicas atribuídas à RP do INSS no que se refere à avaliação de potencial laborativo, orientação e acompanhamento do programa profissional e articulação com a comunidade, guardam entre si uma relação dialética, não se constituindo em etapas estanques. O conhecimento das potencialidades individuais, do ambiente de trabalho, das políticas de proteção social no campo da previdência, da assistência, da saúde pública e do trabalho constituem dados que se entrelaçam com vistas a alcançar resultados efetivos. Após a conclusão do programa de RP e retorno do trabalhador a uma função considerada compatível com suas limitações e potencialidades, é prevista a realização da pesquisa de fixação no mercado de trabalho. Entretanto, o caráter econométrico prevalente nos procedimentos de avaliação dos programas de RP (quando ocorrem) tem sido objeto de análise crítica em diversas áreas do conhecimento. De caráter obrigatório, a pesquisa de fixação objetiva a comprovação da efetividade do processo reabilitatório. O descompromisso institucional com uma orientação metodológica vem desqualificando-a e justificando o descaso dos diversos setores envolvidos, o baixo investimento em recursos para sua viabilização, e derivando na esterilidade dos procedimentos adotados. Não se verifica iniciativas oficiais que ultrapassem a lógica mercantil de seguro social, cuja intencionalidade é transferir para a massa de trabalhadores a responsabilidade pela ausência de resultados institucionais satisfatórios. A superação do mero caráter cadastral dessa pesquisa pode contribuir para a permanente revisão de critérios de encaminhamento, elegibilidade, condução do programa de RP, estabelecimento de parcerias e reinserção no mercado de trabalho. A produção coletiva dos resultados alcançados poderá garantir à pesquisa fundamentada teórica e metodologicamente e às ações propostas a necessária legitimidade. A administração pública constitui espaço onde ocorre demanda de pesquisa do tipo pesquisa-ação (THIOLLENT, 1997), cuja metodologia vem ao encontro dos momentos e dinâmica da RP na perspectiva da prevenção da incapacidade: avaliação, diagnóstico, planejamento da ação, execução da ação, avaliação das consequências da ação, aprendizagem específica e identificação dos conhecimentos da experiência. Tem por objetivo produzir novas informações, estruturar conhecimento e delinear ações, sem incorrer no equívoco de substituir o real processo histórico. Pressupõe abertura participativa, interrogativa e crítica e a possibilidade de questionamento coletivo dos interesses definidos pela instituição. Ou seja, potencializa o protagonismo do trabalhador em todas as fases de seu processo reabilitatório. 10 CONSIDERAÇÕES FINAIS O processo de desmonte do SRP, a problematização de seus determinantes e as estratégias de enfrentamento e superação de um modelo afinado com a lógica privatista e reducionista de proteção social constituíram o eixo temático das análises ora desenvolvidas. A Previdência Social destaca-se, hoje mais do que em qualquer época da sociedade burguesa, como um campo de batalha no escopo de uma guerra de dimensões muito mais amplas, submersa no jogo de interesses em favor da competitividade do capital financeiro, em detrimento das políticas sociais. Em tempos de avanços expressivos da técnica, da ciência e da riqueza, a desigualdade social, a pobreza e a miséria apresentam um crescimento proeminente. Esta realidade configura um cenário hostil ao segmento da classe trabalhadora adoecido pelas condições adversas em que se opera a exploração da sua força de trabalho, quando não, pelos rebatimentos indiretos em todas as esferas da vida social. O processo de RP não se encerra na esfera dos interesses e práticas de uma política de seguro social. Submetê-lo à lógica mercantil significa condená-lo à reconhecida ineficiência, ineficácia e baixa resolutividade, que reforça inevitavelmente a alienação dos trabalhadores dos meios e frutos de seu trabalho, expurgando-os do mercado de trabalho, e lhes impõe a degradação psicofísica e social. Então é preciso avançar para além da subordinação dos procedimentos técnicos às diretrizes burocráticas/gerencialistas, bem como promover a busca de consenso entre os profissionais sobre a importância de se avaliar o serviço e reorganizar o processo instituído. É necessário operar a partir de uma conduta ética e de uma visão crítica promotora de iniciativas que tornem a equipe de pesquisadores capaz de elaborar um quadro de interpretações composto por conceitos derivados de diversas áreas de conhecimento que guardam relação com a temática, tendo como horizonte a totalidade social. Nessa perspectiva, o documento Proposta de diretrizes para uma política de Reabilitação Profissional elaborado por uma rede de especialistas vinculados ao SUS, MTE, INSS e Universidades, com mediação da Coordenação de Saúde do Trabalhador/Serviço de Medicina – CST/SM/FUNDACENTRO, apresenta uma análise crítica cujo objetivo é, a partir de discussões sobre a ‘prevenção – reabilitação da incapacidade prolongada para o trabalho’, contribuir para formulação de uma matriz que aponte o caminho teórico-metodológico para a 11 construção de um modelo capaz de contribuir para o resgate da concepção de seguridade social. A perspectiva de superação do ciclo perverso em que a empresa explora/acidenta/adoece e o Estado se mantém omisso, culminando na culpabilização do trabalhador, poderá ocorrer, em grande parte, através do protagonismo da classe trabalhadora, do fortalecimento do controle social capaz de criar condições favoráveis a impulsionar as lutas dos trabalhadores e de alterar a correlação de forças na perspectiva da afirmação dos princípios democráticos definidores da concepção de seguridade social, nos marcos do capitalismo. REFERÊNCIAS ALVES, G., A derrelição de Ícaro, Publicado em 02/06/2014. Disponível em http://blogdaboitempo.com.br/, Acesso em 13/06/2014. ANTUNES, R. Os Sentidos do Trabalho. São Paulo: Boitempo, 2000. ____________ O governo Lula e a desertificação neoliberal no Brasil. Disponível em http://resistir.info/brasil/r_antunes_jan05.html, 2005. Acesso em 09/05/2007. BRASIL. Constituição (1998). Constituição da República Federativa do Brasil. 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2000. 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São Paulo: Ática, 1997. 1 Este estudo resulta ainda de produções anteriores desenvolvidas pelas autoras a partir de seus estudos e pesquisas em saúde coletiva, pesquisa social, ergonomia, política social e gestão pública, experiência empírica no âmbito da Previdência Social. 2 “[...] pela primeira vez na história do capitalismo, a palavra reforma perdeu o seu sentido tradicional de conjunto de mudanças para ampliar direitos; a partir dos anos oitenta do século XX, sob o rótulo de reforma(s) o que vem sendo conduzido pelo grande capital é um gigantesco processo de contra-reforma(s), destinado à supressão ou redução de direitos e garantias sociais” (NETTO, 2008, p. 227). 3 PEC 33/1995, transformada na - EC nº 20 somente em dezembro/1998. 4 Lei nº 11.907, de 02 de fevereiro de 2009, que dispõe sobre a reestruturação da composição remuneratória das carreiras. 13 5 No limite, as filas de espera foram camufladas através dos processos de terceirização e informatização dos serviços com o direcionamento do atendimento das APS’s para os Canais Remotos (Internet e Central 135 - Call Center) implantados em 2006. 6 Sobre fundamentação legal cf. Lei 8.213/91, Decreto 3048/99, INSTRUÇÃO NORMATIVA INSS/PRES Nº 45/2010, Manual Técnico de Procedimentos da Área de Reabilitação Profissional, DD nº 2/DIRSAT/INSS de 24/11/2011. É importante destacar que o Manual de Perícia Médica da Previdência Social e o Manual Técnico do Serviço Social, DST/DIRSAT, março/2012, estabelecem procedimentos que perpassam ações interrelacionadas com as diferentes fases do processo reabilitatório. 7 PROJETO REABILITA – Proposta para um Novo Modelo de Reabilitação Profissional. Patrícia Souto Audi, Diretora de Benefício do INSS, MPAS, Brasília, 29 de janeiro de 2001. 14