Marcelo da Silva Carneiro Jesus, a Torá e os Nebîim, e o pleno cumprimento da justiça em Mt 5,17-20: uma análise exegético-teológica. Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Teologia. Orientador: Prof. Isidoro Mazzarolo Rio de Janeiro Janeiro de 2008 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. 2 Marcelo da Silva Carneiro Jesus, a Torá e os Nebîim, e o pleno cumprimento da justiça em Mt 5,17-20: uma análise exegético-teológica. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Teologia. Aprovada pela Comissão Examinadora aba Orientador: Prof. Isidoro Mazzarolo Rio de Janeiro Janeiro de 2008 3 Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e da universidade. Marcelo da Silva Carneiro Graduou-se em Teologia pelo Instituto Metodista Bennett em 1998. Fez Especialização em Teologia na mesma instituição, em 2002. Como pastor Metodista, trabalhou em vários projetos de Educação com crianças, adolescentes, jovens e adultos, preferindo o ensino na área bíblica. Iniciou sua pesquisa lecionando como professor substituto na Faculdade de Teologia Bennett. Efetivado, especializou-se na área do Novo Testamento. Atualmente é coordenador acadêmico do curso, além de professor. Ficha Catalográfica Carneiro, Marcelo da Silva Jesus, a Tora e os Nebîim, e o pleno cumprimento da justiça em Mt 5, 17-20: uma análise exegéticoteológica / Marcelo da Silva Carneiro ; orientador: Isidoro Mazzarolo. – 2008. 170 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Teologia)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. Inclui bibliografia 1. Teologia – Teses. 2. Jesus histórico. 3. Evangelho de Mateus. 4. Sermão do Monte. 5. Lei e profetas. 6. Justiça. 7. Escribas e fariseus. 8. Escatologia. I. Mazzarolo, Isidoro. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Título. 4 À Mírian, Luiza e Gabriel, meu porto seguro e fonte de motivação. 5 Agradecimentos Ao meu orientador, Dr. Isidoro Mazzarolo, pela paciente troca de idéias e estímulo, fundamentais para que esse trabalho se concretizasse. Ao CNPq e à Vice-Reitoria Acadêmica da PUC-Rio, pelos auxílios concedidos, imprescindíveis para viabilizar a realização dessa pesquisa. Aos professores e professoras do Departamento de Teologia da PUC-Rio, que me possibilitaram uma abertura de conhecimento e estimularam a sede pelo saber. Às secretárias do Departamento de Teologia da PUC-Rio, Denise e Jussara, que, com sua disponibilidade e simpatia, facilitaram o processo acadêmico. Aos colegas de complementação e disciplinas de pós-graduação, pela riqueza de compartilhar suas experiências pessoais e acadêmicas. Aos meus colegas da Teologia do Bennett, e da Coordenação Regional de Capacitação Missionária, pelo suporte e apoio no processo de estudos. Ao bispo Paulo Lockmann, por seus conselhos, apoio e generosidade nas trocas de idéias pastorais e acadêmicas. À Mírian, pois sem ela eu não me tornaria a pessoa que sou hoje, por seu amor incondicional, sua cumplicidade e sua lucidez. Aos meus filhos, Luiza e Gabriel, por me fazer desejar ser uma pessoa melhor e mais capaz. Aos meus pais, que acreditam e torcem por mim. Aos amigos, amigas e parentes que, de alguma forma, nas encruzilhadas da vida, me ajudaram a chegar até aqui. Muitas delas são responsáveis diretas pela concretização desse projeto. 6 Resumo Carneiro, Marcelo da Silva. Jesus, a Torá e os Nebîim, e o pleno cumprimento da justiça em Mt 5,17-20: uma análise exegético-teológica. Rio de Janeiro, 2008. 170p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Jesus foi um judeu piedoso de seu tempo, observante da Lei, preocupado em cumprir a vontade de Deus. Perceber a relação de Jesus com a Lei nos ajuda a entender a situação das comunidades seguidoras dele na Palestina, em constante confronto com outras propostas de fidelidade à Torá. Nessa dissertação propomos uma análise exegético-teológica de Mateus 5,17-20, para compreender essa relação de Jesus com a Lei, como ele a cumpriu, e que exigências fez a partir de sua própria prática. A afirmação de Jesus, de que veio “para cumprir”, já suscitou todo tipo de interpretação, e o fato de estar no centro do discurso conhecido como Sermão do Monte só aumenta o seu interesse. Com o auxílio do método históricocrítico, e ainda a criteriologia elaborada para a pesquisa do Jesus Histórico, é possível fazer uma aproximação do texto ao mesmo tempo científica e piedosa, legitimamente interessada nas afirmações daquele que é considerado o maior mestre de todos os tempos. Palavras-chave Jesus Histórico; Evangelho de Mateus; Sermão do Monte; Lei e Profetas; Justiça; Escribas e Fariseus; Escatologia. 7 Abstract Carneiro, Marcelo da Silva. Jesus, the Torah and the Nebîim, and the fulfillment of righteousness in Mt 5,17-20: an exegetical-theological analysis. Rio de Janeiro. 2008. 170p. MSc. Dissertation – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Jesus was a piety Jew in his time, a Law observer, worried about fulfilling the God’s will. Realizing the relationship between Jesus and the Law help us how to understand the situation of his followers communities on Palestine, in constant confrontation with other proposals of faithfulness to the Torah. This dissertation proposes an exegetical-theological analysis on Matthew 5,17-20 to understand this relationship between Jesus and the Law, the way he fulfilled it, and which demands he made from his own practice. The Jesus’ saying, that he came “to fulfill”, have already caused every kind of interpretation an the fact of being in the speech’s center known as Sermon on the Mount just increases the interest for it. With the historical-critical method and still the criteria elaborated to the Historical Jesus research, it is possible to do an approach of the text at same time scientific and piety, legitimately interested on the statements of whom is considered the greatest leader of all times. Keywords Historical Jesus; Matthews’ Gospel; Sermon on the Mount; Law and Prophets; Righteousness; Scribes e Pharisees; Eschatology. 8 Sumário 1. Introdução 10 2. O tema geral da pesquisa 14 2.1. A compreensão sobre Lei e Profecia no Judaísmo 14 2.2. O evangelho de Mateus em seu contexto 29 2.3. Mt 5,17-20 no horizonte do evangelho de Mateus 43 3. Análise de Mt 5,17-20 50 3.1. Crítica textual e tradução 50 3.2. Análise Literária 53 3.3. Análise Redacional 63 3.4. Status quaestiones do texto de Mt 5,17-20 69 3.5. Análise da Historicidade 78 4. Aspectos exegético-teológicos de Mt 5,17-20 4.1. Introdução 88 88 4.2. A Lei e os Profetas em Jesus: to.n no,mon h' tou.j profh,taj (v.17a) 88 4.3. Anular e cumprir: katalu/sai kai, plhrw/saiÅ (v.17b) 102 4.4. Até que passem o céu e a terra: e[wj a'n pare,lqh| o` ouvrano.j kai. h` gh/ (v.18) 120 4.5. O menor e o maior no reino dos Céus: evla,cistoj kai, me,gaj evn th/| basilei,a| tw/n ouvranw/n (v.19) 135 4.6. A justiça como plenitude da Lei: dikaiosu,nh plei/on (v.20) 141 5. Conclusão 153 6. Referências Bibliográficas 160 9 Nas instruções concretas de Jesus transparece aquilo que é mais propriamente “cristão”, mostra-se que o Jesus histórico tem perfeitamente algo a ver com o cristianismo, ou mesmo que o cristianismo é posto à prova. Em sua rigorosidade, essas instruções são o espinho na carne do indivíduo que leva a sério seu ser-cristão, mas também da Igreja. Joachim Gnilka, Jesus de Nazaré. 10 1. Introdução A presente dissertação trata da relação de Jesus com a Lei (Torá) e os Profetas (Nebîim), a partir de uma análise exegético-teológica de Mt 5,17-20. Considerando as pesquisas mais recentes a respeito do Jesus histórico, nota-se que alguns aspectos do ministério terreno de Jesus são mais verificáveis em termos históricos do que outros. O papel de Jesus como mestre se enquadra numa análise tanto histórica quanto teológica. Historicamente, é possível perceber aspectos de Jesus como mestre que confluem com o cenário judaico do século primeiro da era cristã. Teologicamente, o ensino de Jesus tem muito a ver com o princípio de seu ministério como aquele que veio anunciar o reino de Deus. É verdade que não podemos fragmentar o ministério de Jesus, com o risco de esvaziá-lo e perdermos a visão ampla do seu alcance. Entretanto, em nossa pesquisa desejamos verificar esse corte para perceber melhor qual seria a relação de Jesus com os elementos constitutivos da fé judaica. A pergunta subjacente é: o quanto Jesus estava vinculado à cultura e fé do povo judeu? Teria ele desejado realmente romper com ela, ou queria de fato fazer uma revisão da prática dessa fé? De forma mais concreta nosso trabalho vai abordar o tema a partir da relação de Jesus com a Lei (Torá) e os Profetas (Nebîim), procurando responder algumas questões básicas: - Que atitudes Jesus teve em relação à Lei e aos Profetas: ele alterou de forma significativa seus fundamentos, apesar de ter afirmado que veio para cumprir, e não para anular? Ou cumpriu com zelo conforme se esperava de um judeu piedoso? - O que Jesus ensinou aos seus seguidores em relação à Lei, e como a comunidade de Mateus recebeu essa tradição? Que objetivo esse dito teve na realidade vivencial (Sitz im Leben) da comunidade mateana? 11 Para realizar a pesquisa, destacamos a perícope de Mt 5,17-20 por entender que ela está estreitamente relacionada com o tema do cumprimento da Lei. Além disso, está inserida por Mateus num bloco literário (cap. 5-7) cujo tema principal é a vida prática da comunidade de discípulos, e como eles iriam praticar a justiça superior. Esse conceito de justiça superior, citada diversas vezes nesse bloco (5,6.10.20; 6,33) é central para entender a forma como Jesus cumpriu a Lei, mesmo reinterpretando alguns aspectos, evidenciado pelas antíteses de 5,21-48. A escolha do evangelho de Mateus para a pesquisa se dá por alguns motivos: Mateus é considerado o evangelho mais próximo da cultura judaica1, sendo que a perícope escolhida faz parte do extrato próprio do autor, denominado “proto-Mateus” ou “fonte M”. Em segundo lugar, o evangelho de Mateus foi organizado de um modo em que sua comparação com a Torá mosaica é inevitável: tem cinco blocos de discursos, alternados por narrativas de milagres e disputas com os religiosos de seu tempo. Por último, o evangelho de Mateus é considerado o “evangelho da Igreja”, ao mesmo tempo em que demonstra essa proximidade com a cultura judaica palestinense. Isso indica tanto uma aproximação apologética – Jesus como Messias – quanto dialogal – Jesus é judeu - em relação ao judaísmo contemporâneo ao Evangelho. Na pesquisa desejamos demonstrar como o evangelho de Mateus trabalhou a tradição a respeito de Jesus. Algumas hipóteses do que se deseja alcançar podem ser apontadas: - A possibilidade de esse dito ter origem no próprio Jesus, mesmo que a comunidade o tenha retrabalhado. Para tanto, na análise sinóptica e histórica iremos verificar até que ponto essa fala pode ter sido desprezada pelas demais comunidades por aproximar Jesus demais do judaísmo (mesmo que na prática ele tenha demonstrado isso). - Sendo a perícope exclusiva de Mt (ao menos os versos 17 e 20), apontar a possibilidade de que o texto tenha suas origens em categorias de pensamento judaico, até mesmo em aramaico. Ainda que haja um trabalho redacional nessa perícope, conforme muitos autores constatam, procuraremos identificar o quanto Mateus trabalhou com as tradições da forma como os rabinos faziam, sendo seu evangelho um tipo de midrash messiânico. 1 Cf. W.G.KÜMMEL, Introdução ao Novo Testamento, pp.136ss. 12 - Verificar como Mateus entendeu a mensagem de Jesus a respeito do reino dos Céus, e da vontade de Deus para as pessoas, considerando o tipo de Mestre que Jesus foi. Seria esse ensino uma advertência para uma prática dirigida por uma ética superior, a compreensão de que a vida de Jesus realizava em si as profecias e cumpria toda a Lei, ou ainda uma dimensão escatológica que fundamentasse o agir cotidiano? A abordagem metodológica que adotaremos para a pesquisa irá utilizar em grande parte o método histórico-crítico, além da metodologia da pesquisa do Jesus Histórico, para verificar a autenticidade do dito, e a análise semântica para uma compreensão maior do texto à luz de seu contexto no evangelho de Mateus. No primeiro capítulo vamos fazer um levantamento das informações sobre o tema em geral, iniciando pela compreensão a respeito da Lei e dos Profetas desde o Antigo Israel até o Pós-Exílio. Buscam-se aí aspectos históricos que tenham influenciado o conceito sobre a Lei e os Profetas no imaginário religioso popular da época, sem, no entanto, nos atermos ao processo de formação do texto escrito em si, posto que não é essa a proposta da presente pesquisa. Depois vamos analisar alguns aspectos gerais do evangelho de Mateus, e o lugar contextual da perícope de Mt 5,17-20 dentro do livro. Esse passo é importante para situar-nos no universo literário, mas também histórico da comunidade de Mateus, que se reporta ao ambiente judaico do primeiro século. No segundo capítulo, passaremos ao estudo efetivo da perícope de Mt 5,1720, analisando o texto grego crítico. Para tanto, será necessária fazer a crítica textual, que possibilitará uma proposta de tradução. Em seguida, será o momento da análise literária e redacional, através da qual faremos o levantamento das fontes, a comparação sinóptica com Lc 16,17, o único texto com o qual Mt tem relação direta. Essa análise é importante para perceber que Mateus agiu como redator consciente, utilizando suas fontes de maneira precisa, de acordo com seus objetivos. Ao analisar a perícope em termos literários levanta-se a questão da autenticidade, importante para o estudo teológico do texto. Por isso, passaremos ao estado da questão da perícope, mais precisamente com respeito à autenticidade do dito. Há duas posições bem claras: muitos autores aceitam o dito como autêntico, segundo critérios mais ou menos precisos. Por outro lado, um grupo de autores afirma o dito como uma construção da comunidade de Mateus, em função 13 do contexto histórico concreto vivido por ela. Para sermos mais precisos na conclusão a respeito da autenticidade, será utilizada a metodologia elaborada pela third quest, a qual nos auxiliará na análise da historicidade. No terceiro capítulo se procederá a uma análise mais aprofundada, a partir de cada versículo, em si e em conjunto com os demais. Instrumentos importantes para essa análise serão os aspectos semânticos dos principais termos do dito, além do estudo exegético, para perceber como Mt trata cada tema ou termo em sua obra, e qual o sentido teológico desses elementos dentro do conjunto da perícope. Nosso objetivo aqui será pensar na idéia corrente acerca da Lei e como Jesus se relacionou com ela, em contraposição a outros grupos contemporâneos, notadamente os escribas e fariseus. Além disso, percebe-se a necessidade de investigar o nível de escatologia presente na perícope, e como ela se relaciona com o todo do ensino de Jesus. Para que a pesquisa possa ser levada a efeito, será utilizado o texto crítico em grego, de acordo com a organização de Nestlé-Aland, 27ª ed., com tradução apoiada em dicionários, livros técnicos, além de autores que estejam mais diretamente ligados ao estudo do evangelho de Mateus, de preferência no bloco literário denominado sermão do monte. Alguns autores se destacam na pesquisa sobre o Jesus Histórico e particularmente na relação dele com a Lei, por isso não se pode afirmar um autor como referencial teórico isoladamente. Mas há uma tendência na pesquisa de se trabalhar com o princípio da contraposição. Em geral, para isso, começaremos com opiniões clássicas, oriundas da metade do século vinte, como as de R. Bultmann, J. Jeremias, L. Goppelt. G. Barth, G. Bornkamm, G. Kümmel, W. Trilling, dentre outros. Como contraponto, trabalharemos com autores com pesquisas mais recentes, muitos ligados à third quest, mas com nomes bastante respeitados no meio acadêmico com relação ao tema, como D. Flusser, G. Vermes, J. P. Meier. J. D. Crossan, G. Theissen, F. Vouga, D. Marguerat, e outros. Nossa pesquisa considera especialmente o ambiente histórico social no qual o respeito à Lei e aos Profetas se enquadrava no mundo palestino do primeiro século. Procuraremos verificar se a literatura judaica do primeiro século trazia algo semelhante ou diametralmente oposto ao que Jesus afirmou. Se vamos chegar ao Jesus Histórico ou não, a própria pesquisa tem deixado em aberto essa questão. 14 2 O tema geral da pesquisa 2.1. A compreensão sobre Lei e Profecia no Judaísmo A afirmação de Jesus a respeito da Lei e dos Profetas em Mateus está de acordo com uma compreensão geral que o judaísmo do primeiro século tinha a respeito do assunto. O texto de Mt 5,17-20 trata da questão de forma mais pontual, e mesmo que essa passagem seja mais da comunidade de Mateus, que do próprio Jesus, não tira do texto seu caráter contemporâneo ao judaísmo do primeiro século, no que tange à compreensão da Lei e dos Profetas. Para entender, então, como Jesus se posicionou, ou de que maneira a comunidade de Mateus respondeu à questão da Lei diante de um judaísmo em crise e reconstrução, é preciso analisar como a Lei e a Profecia eram compreendidas dentro do imaginário religioso comum do judaísmo do século primeiro. Faremos a seguir uma exposição panorâmica a respeito dessa compreensão sobre a Lei e a Profecia desde o Antigo Israel até o período da dominação romana. 2.1.1. A Compreensão sobre a Lei A compreensão de Israel sobre a Lei é vital para existência dele como povo. Parte de um conceito geral, que a coloca como a realização da vontade de Deus. Se Deus é um só, e Israel é expressão dessa grandeza, então toda a coletividade, e não apenas o indivíduo, é chamada a viver segundo a vontade Deus. Essa decisão atinge tanto a vida privada quanto a pública, e não se restringe ao culto.2 O vocabulário relativo à Lei é bastante extenso, como demonstra o Salmo 119, e mesmo as traduções apontam para essa pluralidade, em termos como: leis, ordenanças, mandamentos, estatutos, palavras, sentenças, preceitos, caminhos, etc. Nossa pesquisa não nos permite tratar de todos os termos, mas dois deles se 2 Cf. OTTO, E., “Lei”, In: BAUER, Dicionário Bíblico-Teológico, p.229. 15 destacam: (1) jP;v.mi – do verbo jpv, “julgar”, “decidir” – que tem o sentido estrito de sentença arbitral, arbítrio, decisão legal, e que no plural pode significar julgamento, juízes, consuetudinário.3 (2) direito e até justiça, principalmente no direito hr;)wOT – do verbo hry, cujo sentido mais usual é “instruir”, “ensinar”.4 No entanto, é o sentido da Lei que nos interessa. O termo se aplica “à instrução recebida de autoridade superior, servindo de regra de conduta em determinado caso particular.”5 Também pode indicar “toda espécie de determinações, não necessariamente jurídicas, dadas por Javé pela boca de sacerdotes ou profetas.”6 Depois passou a identificar o grupo de Lei relacionadas a Moisés (cf. Js 1,7; Ed 3,2; Ml 3,22), quando os rolos da Lei foram designados como Torá.7 Crüsemann define o conceito em linhas gerais: A palavra torah designa, em linguagem coloquial da época do Antigo Testamento, o ensinamento da mãe (Pr 1,8; 6,20; cf. 31,26) e do pai (4,12) para introduzir seus filhos nos caminhos da vida e adverti-los diante das ciladas da morte. Nisso, como em todos os demais usos, a palavra abrange informação e orientação, instrução e estabelecimento de normas, e, com isso, também promessa e desafio. Expressa igualmente o mandamento e a história da instrução, da qual emerge. A partir daí, o conceito Torá torna-se um termo técnico para a instrução dos sacerdotes aos leigos (Jr 18,18; Ez 7,26), mas designa também as palavras dos mestres da sabedoria (Pr 7,2; 13,14) ou do profeta (Is 8,16.20; 30,9) para os discípulos. No Deuteronômio, por fim, Torá transforma-se no conceito mais importante da vontade de Deus universal e literariamente fixada (p.ex. Dt 4,44s; 30,10; 31,9). Aqui Torá abrange tanto narrações (esp. Dt 1,5) quanto leis (cf. esp. Sl 78, 1.5.10). Mais tarde, esse conceito deuteronômico designa a lei de Esdras (p.ex. Ne 8,1), todo o Pentateuco, mas também a palavra profético-escatológica de Deus para os povos (Is 2,3 par. Mq 4,2; Is 42,4).8 Os diferentes aspectos apontados no conceito de Torá apontam para uma idéia que vai desde o estabelecimento de Israel como nação, passando pela grande mudança de mentalidade ocorrida no período do Exílio e a posterior elaboração do judaísmo tardio, que ficou conhecida como judaísmo rabínico. Nos tópicos a seguir vamos analisar de forma panorâmica essas fases. 3 Cf. V.V.A.A., Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português, p.146; 259. Idem, p.265; 94. Segundo o dicionário, no QAL o verbo hry tem o sentido de “lançar”, “atirar”; no Hifil “dar de beber” ou “instruir”. O sentido dependerá do contexto, mas é esse último que nos interessa estudar. Cf. VAUX, R. de, Instituições de Israel no Antigo Testamento, p.392 et.seq. Ele acrescenta que a função sacerdotal de dar orientação, como num oráculo, pode derivar do assírio tertu, que significa ‘oráculo’. 5 MICHAELI, F., “Lei”, Vocabulário Bíblico von Allmen, p.223 et.seq. 6 FRAINE, J. de, “Lei de Moisés”, Dicionário Enciclopédico da Bíblia, p.878. 7 WIGODER, G., Dicttionnaire Encyclopédique du Judáisme, p.1124. 8 CRÜSEMANN, F., A Torá, p.12. F. SCHMIDT distingui três grandes aspectos para a Torá: “a Lei como revelação, cujo depósito a tradição confia à grande Assembléia; a Torah como código legislativo; a lei escrita ou oral cujos intérpretes e guardiães (sic) são os sacerdotes e escribas.” O Pensamento do Templo de Jerusalém a Qumran, p.24. 4 16 2.1.1.1. A Lei no Antigo Israel a. Nas origens (séc. XXI-VIII a.C.) O período mais antigo da história de Israel traz dificuldades com relação ao entendimento sobre a Lei, considerando a conexão dessa história com o direito dos povos vizinhos à nação israelita. Enquanto Israel ainda não existia como nação, povos vizinhos já tinham coleções de leis, como o código Ur-Nammon e Lipit-Ishtar (do fim do terceiro milênio a.C.), o código de Hammurabi e o de Eshnuna, (da primeira metade do segundo milênio).9 Por outro lado, a própria consistência de Israel como nação até o século X é muito discutida pelos pesquisadores do Antigo Testamento.10 Nesse sentido, devese pensar que no Antigo Israel a Lei (Torá) devia ser concebida mais nos aspectos de uma orientação familiar, e de leis consuetudinárias, voltadas para o bem-estar do clã e da tribo, do que numa esfera nacional centralizada em determinado lugar (como se tornou Jerusalém posteriormente).11 Além disso, deve-se considerar a importância da Tradição Oral no processo de estabelecimento da Lei em Israel. A mesma tradição oral que passou as antigas histórias dos patriarcas, bem como as narrativas da história das origens (Gn 1-11), foi responsável pelo processo de transmissão de normas e leis de convivência, que acabaram por alcançar o status de Torá. A tradição rabínica posterior aponta para isso, como se pode ver no tratado Pirqe Abot (“Ética dos Pais”), da quarta ordem da Mishná: Moshê recebeu a Torá no Sinai, e a entregou para Yehoshua, e Yehoshua para os anciões, e os anciões para os profetas, e os profetas a entregaram para os homens da grande assembléia. Eles disseram três palavras: sede 9 Cf. OTTO, E., “Lei”, In: BAUER, Dicionário Bíblico-Teológico, p.229. O conceito de Confederação de Tribos vem sendo questionada desde a metade do século XX Pela maioria dos exegetas. Alguns, porém, mantiveram a concordância sobre o assunto, como Gunneweg, von Rad, Albright, e outros. O grande problema é a falta de evidências arqueológicas do período que confirmem a informação de que Israel tenha uma identidade nacional já no século XI a.C., antes da ascensão da dinastia davídica e da separação de Israel e Judá. 11 VAUX, R. de, Instituições de Israel no Antigo Testamento, p.23 passim. Para ele o vínculo entre as pessoas, antes de ser jurídico ou político, era, acima de tudo, de sangue, por se considerarem todos “irmãos” a partir de uma linhagem comum. É a vinculação própria das tribos nômades. P.23 Sobre Jerusalém como centro de culto nacional, p.347 et.seq. 10 17 ponderados no julgamento, levanteis muitos díscipulos e façais uma cerca em torno da Torá.12 b. A Lei nos reinos de Israel e Judá (séc. VIII a.C.) A partir do século VIII a.C. Israel e Judá, e posteriormente somente este, iniciarão um grande processo de juntar coleções de leis, normas e narrativas, as quais farão parte da Lei como unidade literária posterior. Reconstituir essa história, porém, é elemento de uma pesquisa a qual não teremos espaço para tratar aqui.13 A Lei no Israel Antigo era, antes de tudo, a instrução dos pais aos filhos, a partir de normas éticas e cultuais básicas, que na convivência entre as tribos mostrou-se ser capaz de integrar os grupos que agiam com as mesmas normas. As coleções de leis civis, rituais, e de ordem cúltica só se deram a partir do século VII a.C., por conta da organização de uma estrutura palaciana, tanto no norte quanto no sul, este último até o século VI, quando Jerusalém foi tomada e sua elite levada cativa para o exílio babilônico.14 2.1.1.2. A Lei no Exílio e Pós-Exílio a. A Lei no período exílico (586-538 a.C.) O Exílio representou uma grande mudança na mentalidade israelita. Dentre os muitos conceitos que foram revistos está o da Lei, que começa a representar um conjunto literário mais fechado. Segundo Zenger, “a formação da Torá acontece no processo da reconstrução da identidade judaica depois de desfeita sua condição de estado autônomo.”15 Já no exílio, o grupo deuteronomista lê a história passada como programa para um novo Israel, juntando diferentes tradições – também com o grupo sacerdotal – para pensar num grande projeto de nação.16 12 cf. MURRAY, M. Et.all. (Trad.) Mishná, essência do judaísmo talmúdico, p.9; COOLIN, M; LENHARDT, P., A Torah Oral dos Fariseus, p.14. 13 O próprio Crüsemann, em sua obra de larga análise, entende que “a pergunta pelo que significa entender a Torá de forma histórica logo nos leva ao problema básico da exegese atual e sobretudo da pesquisa do Pentateuco: a pergunta pelas fontes e pelo texto na sua forma final, a pergunta pela análise sincrônica e diacrônica.” A Torá, p.18. 14 Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá, p. 22ss.; ZENGER, E., Introdução ao Antigo Testamento, p.91ss. 15 ZENGER, E., op.cit., p.52. 16 Cf. OTTO, E., “Lei”, In: op.cit., p.230. 18 b. A Lei no período persa (538-333 a.C.) Com o fim do exílio, o grupo de judeus que retornou para a terra de Israel estabeleceu uma reorganização religiosa, cuja principal marca é a centralização da religião judaica em Jerusalém, em que “todas as prescrições da lei, cultuais ou não, eram determinadas pelos sacerdotes.”17 Como a administração era dirigida pelos persas, eram eles quem supervisionavam as reformas na legislação e no culto. Esdras e Neemias tiveram sua atividade delimitada nesse contexto (cf. Ed 1,1ss; 7,8-26; Ne 2,1ss). Paralelamente, o período pós-exílico testemunha o crescimento de uma Teologia da Sabedoria, que em uma de suas correntes, “considera a Torá de Israel como a maior e verdadeira dádiva divina da sabedoria.”18 Dt 4,4-6 prepara uma identificação entre a Torá e a Sabedoria, tema que será melhor trabalhado pelo Sirácida (Sr 24).19 c. A Lei no período helenístico (333 a 63 a.C.) O período helenístico não trouxe mudança no cenário político-religioso, conforme informa Koester: Durante a dominação de Jerusalém pelos Ptolomeus no século III e pelos Selêucidas no início do século II a.C., o sumo sacerdote em exercício estava sujeito à autoridade do rei e tinha de cumprir suas ordens. No âmbito da jurisdição do Estado-templo, porém, não havia autoridade política superior à do templo e à de sua hierarquia sacerdotal.20 As tradições sobre a arca da aliança, a conquista da cidade de Jerusalém por Davi, e Salomão, seu filho como construtor da casa de Deus são teológica e ideologicamente justificadas para sustentar a posição do templo como centro gravitacional da fé israelita, pelo menos de acordo com a proposta cronista.21 Fica exposto, por outro lado, que a Torá foi entregue por Moisés, e com ela agora apresentada por Esdras – talvez já o Pentateuco recém encerrado – torna-se o centro da vida do povo, como ideal dos judeus piedosos.22 A partir daí se dá um duplo fenômeno: por um lado, a Lei se torna mais concreta, tendo a vontade de YHWH explicitada para o povo, orientada pelos 17 KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento 1, p.230. Também cf. GRELOT, A esperança judaica no tempo de Jesus, p.32ss. 18 ZENGER, op.cit., p.287. 19 OTTO, E., “Lei”, in: op.cit., p.230; ZENGER, E., op.cit., p.287; LÍNDEZ, Sabedoria e sábios em Israel, p.54. 20 KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento 1, p.230. 21 Cf. ZENGER, E., Introdução ao Antigo Testamento, p.221. 22 Cf. o relato de Esd 7,12-26, que trás o conteúdo de uma carta enviada por Artaxerxes a Esdras, promulgando a “lei de Deus” como lei oficial dos judeus. Ibid., p.54. 19 sacerdotes23; por outro, a dinâmica da Torá oral permanece, como base para interpretação da Torá escrita. Lenhardt atribui à Torá oral um alcance que engloba a Torá escrita. Para ele, os problemas postos pela Escritura, a Torah escrita, são secundários em relação aos apresentados pela Tradição, a Torah oral. Esta, efetivamente, marcada pelas divisões que desfiguraram o judaísmo antes da destruição do Templo, foi enfraquecida, mutilada pelos massacres da guerra, pela morte de muitos mestres e discípulos, transmissores da Torah Oral.24 d. A Lei a partir da dominação romana (63 a.C.) Apesar da considerável mudança que representou a dominação romana na Palestina, desde 63 a.C., a religião judaica manteve sua independência, no tocante aos costumes e obrigações provenientes da Lei. A exceção ficou por conta das leis que previam pena de morte, pois esses casos só podiam ser decididos pelo próprio prefeito romano (o administrador da Judéia, desde a deposição de Arquelau em 6 d.C.). Além disso, foram instituídas onze toparquias, governadas cada uma por um sinédrio, sendo o mais importante o de Jerusalém. Todos tinham uma jurisdição sobre causas relativas à lei judaica, mas com os limites impostos pelos romanos. Era o sinédrio que, em última análise, tinha o papel de julgar questões que envolvessem supostos casos de violação da Lei.25 Para o povo simples, no entanto, a Lei não estava circunscrita a um tribunal. Um judeu do primeiro século considerava que a Lei representava o ideal de vida a ser seguido: junto com o templo formava “os dois centros do judaísmo na época do segundo templo.”26 A forma como a Lei era estudada fora do contexto do templo se dava, primordialmente, por meio das sinagogas. A origem das sinagogas está vinculada à diáspora judaica exílica e pós-exílica. Eram instituições de agregação dos judeus, para a realização de tarefas públicas, mas também para tarefas religiosas.27 Identificadas como associações no estilo grego, segundo Koester, como no caso de outros grupos étnicos ou religiosos emigrados, estas eram associações de estrangeiros residentes, que haviam recebido certos privilégios 23 De acordo com SCHMIDT, F., “entre o puro e o impuro, o sagrado e o profano, a função dos sacerdotes é “distinguir”, bâdal.” O pensamento do templo de Jerusalém a Qumran, p.77. 24 COLLIN, M; LENHARDT, P., A Torah oral dos fariseus, p.13. O termo tradição – tradução de para,dosij – aparece sete vezes nos sinóticos (Mateus e Marcos) e três nos demais escritos (Colossenses, 2 Tessalonicenses e 1 Pedro) do Novo Testamento. 25 KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento I, p.396; NELIS, J., “Sinédrio”, Dicionário Enciclopédico Bíblico, p.1443 et.seq. 26 MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus histórico, p.386. 27 Cf. HÄTTENMEISTER, “Synagoge”, in KOCH, Begegnungen zwischen Christentum und Judentum in Antike und Mitteralter, p.164. 20 pertinentes à incorporação e à prática do seu ofício ou profissão, ou associações de 28 culto, como as organizadas por seguidores de outros cultos nacionais. e. A Lei no cotidiano da Palestina Na Palestina, as sinagogas já existiam antes de 70 d.C., porém, em pequeno número. De acordo com Charlesworth, hoje há provas de pelo menos três sinagogas anteriores a 70 na Judéia e na Galiléia, a saber, Massada, o Herodium e Gamla (na Galiléia, a leste do lago de Genesaré).29 As duas primeiras “eram salões de reunião usados para muitos fins, inclusive a oração comum e a leitura da Escritura.”30 A sinagoga de Gamla demonstra que a Galiléia compartilhava dos mesmos ideais com relação à Lei. De acordo com Roloff, de fato “em torno da virada do século II para o I foi promovida a rejudaização sistemática mediante a imigração de judeus fiéis à Lei. O objetivo era recuperar o território original da terra de Israel para o povo de Israel.”31 Por outro lado, a família israelita – em toda a Palestina - dá destaque à Lei no seu dia-a-dia, pois “o cotidiano estava determinado de muitas maneiras pela Torá e seus regulamentos.” Por conta de todos os aspectos da Lei que ditavam a vida particular (questões relativas a casamento, alimentação, festas, separação do sábado, etc.), desde muito o judaísmo desenvolveu essa prática piedosa, que os Salmos atestam (especialmente 1,19,119).32 Mesmo com a pouca evidência arqueológica, além do fato de ser o Templo o centro gravitacional da fé judaica até 70 d.C., pode-se perceber uma dinâmica de descentralização da transmissão da Torá.33 Jesus, porém, viveu toda a intensidade da Lei de acordo com os princípios judaicos palestinenses, em especial dos habitantes da Galiléia. 2.1.2. A Compreensão sobre a Profecia 28 KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento 1, p.227. CHARLESWORTH, J.H., Jesus dentro do Judaísmo, p.118. 30 SALDARINI, A., Fariseus, Escribas e Saduceus, p.67. 31 ROLOFF, J. A Igreja no Novo Testamento, p.19. 32 STEGEMANN, E., G.,História social do protocristianismo, p.169s. 33 Essa descentralização foi ampliada após a destruição do templo e de Jerusalém pelo general Tito, em 70 d.C. Cf. OVERMAN, J.A., O Evangelho de Mateus e o Judaísmo Formativo, p.47 et.seq. 29 21 Ao falarmos da profecia, nos referimos aos profetas, feita por Jesus em Mt 5,17. O termo tem sua origem no hebraico ~yaybn, ou o singular aybn, traduzido pela LXX como profh,thj.34 Para o israelita, esse termo vincula um carisma e uma importante parte da produção literária que testemunhou esse carisma, especialmente no período da monarquia até o exílio. De um modo geral, a compreensão israelita a respeito da profecia está vinculada à forma como a Bíblia Hebraica foi organizada: após o Pentateuco/Torá, encontramos a grande seção dos profetas – anteriores e posteriores – que “continuam a pregação do profeta ideal, incomparável, que foi Moisés”.35 Isso demonstra a importância e o papel da profecia no imaginário de Israel. Considerando que os profetas anteriores são os livros que narram a história desde a conquista da terra (Js) até o exílio (2 Rs), e os profetas posteriores envolvem os escritos dos profetas desde o século VIII a V a.C., temos uma continuidade histórica desde a entrega da Lei a Israel até o pós-exílio, quando a nação assumiu uma prática de fé consistente, especialmente no aspecto do monoteísmo. Assim, a profecia é um elemento presente em toda a história de Israel, que vai ter importantes ressonâncias no período do judaísmo contemporâneo a Jesus.36 Por outro lado, o termo “os Profetas” passou a designar o segundo bloco considerado canônico – ou sagrado – pelos judeus já no início do século primeiro.37 A afirmação de Jesus em diversos momentos, em que afirma to.n no,mon h' tou.j profh,taj (a Lei e os Profetas) está situada nesse contexto, de um grupo literário que fazia parte da dinâmica da religião judaica. Mas, em que sentido esse grupo literário era importante? E por que Jesus se reporta a ele? Vamos analisar de forma panorâmica as principais fases concernentes à compreensão a respeito da profecia, pensando no seu entrelaçamento com a Lei. 2.1.2.1. A Profecia no Antigo Israel 34 BROWN, “Profeta”, in: Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.1879ss. FISCHER, “Profeta (AT)”. In: BAUER, op. cit., p.345. 36 MARTIN-ACHARD, “Profecia”, Vocabulário Bíblico, p.338 et.seq. 37 Cf. BILLERBECK I, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch I, p.240. 35 22 a. A profecia nas origens (séc. XI a VIII a.C.) O surgimento da profecia na vida do povo de Israel não é fenômeno único, como atestam vários estudos realizados a respeito da questão junto aos povos vizinhos.38 De acordo com a notícia de Oséias 12,14, havia no reino do norte, desde muito tempo, tradições que associavam a origem do profetismo a Moisés.39 Mas ela de fato aconteceu em Israel apenas a partir do século IX, especialmente com as figuras de Elias e Eliseu.40 Nesse primeiro momento, a profecia se caracteriza e confunde com elementos extáticos, presentes em alguns grupos e situações (cf. 1 Sm 10,5ss). Para esses grupos antigos utilizava-se o termo ~yaiybin> - do singular aybin: - que “usualmente é considerada uma palavra derivada do verbo acádico nabû, ‘chamar’, ‘proclamar’.”41 O termo utilizado tem um sentido passivo, situando o profeta como alguém que é chamado. Isso se confirma pelas narrativas de vocação de alguns dos profetas que tem registro literário (ex. Jr 1,1-10; Os 1,1-11; Is 6,113, etc.), bem como pela fórmula hy'h' rv<åa] hw"åhy>-rb;D> - palavra do Senhor que veio a - em vários textos (Mq 1,1; Sf 1,1; Ag 1,1; Ml 1,1). b. A profecia no séc. VIII a.C. O exercício do ministério do profeta, no entanto, não se restringia a apenas uma dimensão. Havia vários outros termos para designar um profeta, de acordo com a situação, além dos aspectos políticos e sociais que envolviam a atividade. Wilson aponta para esse problema: Até a leitura apressada das fontes revela que os escritores bíblicos tiveram visões divergentes e às vezes conflitivas sobre a profecia. Estas visões foram presumivelmente o produto de longo período de desenvolvimento, e agora é difícil determinar a medida de precisão com que refletem realidade histórica. Todavia, não existe nenhum motivo para suspeitar que as várias concepções bíblicas de profecia tenham sido simplesmente criadas de uma só peça inteira. Pelo contrário, elas devem ser tomadas como indicação de que os grupos portadores da tradição bíblica na verdade conheciam diferentes tipos de profecias.42 38 Podemos citar alguns que abordam a questão: FOHRER, Geschichte der israelitischen Religion; SCHMIDT, A Fé no Antigo Testamento; PEDERSON, The Role played by inspired persons among the Israelites and the Arabs; SICRE, Profetismo em Israel; WILSON, Profecia e Sociedade no Antigo Israel. 39 Cf. SICRE, J.L., Introdução ao Antigo Testamento, p.222. 40 De acordo com a concepção de von Rad, Teologia do Antigo Testamento, p.451ss. 41 BROWN, “Profeta”, in: Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.1879. Também GUNNEWEG, Teologia Bíblica do Antigo Testamento, p.239s. 42 WILSON, Profecia e Sociedade no Antigo Israel, p.20-21. 23 Nessa concepção Wilson delimita o movimento profético em pelo menos duas grandes tradições: a tradição efraimita do norte, mais coesa e registrada literariamente, e as tradições de Judá, no sul. Estas tendem a ser menos delimitadas, registradas e mais fragmentadas, daí inclusive a denominação de “tradições”, ao invés de tradição. Do ponto de vista da motivação ideológica dos profetas, pode-se afirmar que, mesmo não sendo uniformes em sua abordagem, os profetas tinham como foco o pecado da incredulidade de Israel, “ou seja, a não-confiança em Javé na situação concreta e, ao invés, confiar em si próprio.”43 De modo específico, os profetas atacam as diferentes manifestações dessa incredulidade, que são o orgulho, a idolatria, as estruturas monárquicas, assim como as sacerdotais. c. Tipologia da profecia no Israel Antigo (séc. VIII a.C.) Zenger descreve sumariamente uma tipologia no tocante à condição social do multifacetado profetismo do Israel Antigo: (a) Os profetas de congregações ou irmandades – denominados ~yaiybiN>h; ynEåB. [filhos de profetas/discípulos de profetas] (1Rs 20,35; 2Rs 2,3.5.7.15) –formam comunidades de profetas, que costumavam atender às demandas populares por orientação; (b) Os profetas do templo, cujas atividades incluem interceder e anunciar em nome de Deus no contexto do culto. Em Jerusalém são subordinados aos sacerdotes. A narrativa do chamado de Samuel, em 1Sm 3, transparece um pouco o processo para o surgimento de um profeta ligado ao templo; (c) Os profetas da corte, que servem ao rei e ao seu propósito, e anunciam a palavra de Deus no tocante às situações de guerras e catástrofes, bem como participam das celebrações de entronização, núpcias do príncipe herdeiro, e outras. Desses profetas era esperado o ~wOlv;44, conforme o texto paradigmático de 1Rs 22; (d) Os profetas independentes, que formam o grupo menor numericamente, e menos respeitado no período em que atuaram. No entanto exerceram um ministério de oposição, e por isso mesmo tornaram-se historicamente os mais importantes. A maioria dos profetas “escritores” faz parte desse grupo.45 43 GUNNEWEG, A.H.J., op.cit., p.249. Paz, não num sentido meramente metafísico ou existencial, mas com implicações sociais, políticas e que atinjam a coletividade. 45 ZENGER, E., Introdução ao Antigo Testamento, pp.370ss. O autor considera ainda que “nenhum ‘livro de profeta’ é da autoria do profeta, cujo nome lhe foi dado.” p.372, e afirma que os livros relacionados a esses profetas surgiram, de fato, das mãos de círculos de alunos e discípulos 44 24 Essa atividade profética se tornou fortalecida e respeitada a partir do exílio, quando os oráculos sobre a destruição de Judá se confirmaram. Como lembra Gunneweg, “nessa época da ruína chegam ao ápice a proclamação de Jeremias e o profetismo de Israel em geral.”46 2.1.2.2. A Profecia no Exílio e Pós-Exílio a. A nova compreensão sobre Profecia (séc. VI a.C.) O exílio representou uma mudança na forma de ser e de se compreender a profecia em Israel, da mesma forma como se deu com a Lei. Para aqueles que foram deportados para a Babilônia em 597 a.C., o passar do tempo no cativeiro formou no coração dos judeus um ódio que se aninhou (cf. Jr 51,34-35), “e junto com o ódio, os desejos de vingança, a saudade da terra prometida, as ânsias de libertação.”47 Com esses sentimentos, o povo teve sua fé e esperança abaladas. Mas é nesse momento que a palavra profética se levanta para consolar o povo (cf. Is 40ss), a ponto de dar um salto teológico em torno da figura do Servo sofredor.48 A partir daí a profecia ganhou um cunho cada vez mais escatológico e universal, em face do novo cenário que os profetas estão vivendo.49 Segundo von Rad, uma marca da profecia desse período é que “são individualidades religiosas e literárias.”50 Há um direcionamento maior para a pessoa, e sua decisão pessoal diante de Deus. “A novidade nesses profetas, do ponto de vista formal, é o alargamento da base da sua pregação, em comparação com os profetas mais antigos”.51 b. O surgimento do apocaliptismo (séc. IV a.C.) deles que coletaram e elaboraram essas obras. Mas não se pode pensar nisso sem grandes reservas. Ver também IMSCHOOT, “Profeta”, Dicionário Enciclopédico da Bíblia, p.1221. 46 GUNNEWEG, A.H.J., op.cit., p.278. 47 SICRE, J.L., Profetismo em Israel, p.311. 48 Essa controvertida figura, que tem suscitado amplo debate sobre seu significado histórico, foi adotada muito cedo pelos cristãos como uma representação de Cristo, o messias que sofre pelo povo. Cf. SICRE, J.L., op.cit., p.312s; GUNNEWEG, A.H.J., op.cit., p. 292s; von RAD, op.cit., p.672-681. 49 Essa idéia não tem consenso entre os autores. Para muitos, mesmo antes do exílio já existia profecia com cunho escatológico, enquanto outros defendem que a escatologia nasce realmente depois. Para uma discussão sobre o assunto, ver CORRÊA LIMA, M. de L., Salvação entre juízo, conversão e graça, pp. 15-63. 50 RAD, G. von, op.cit., p.683. 51 Ibid., p.683. Von Rad avalia que essa mudança se dá no estilo literário, principalmente, que se abre a diferentes formas, bem como na estruturação da proclamação. 25 Simultaneamente, o período pós-exílico viu surgir um movimento, a partir do período helenístico (séc IV a.C.), que teve sua origem na profecia, e marcou profundamente o imaginário popular judaico: o apocaliptismo, cujo único representante no Antigo Testamento é o livro de Daniel52. De acordo com Koester, Os inícios do pensamento apocalíptico são anteriores ao período helenístico: suas origens estão intimamente relacionadas com uma mudança fundamental no pensamento teológico de Israel, que aconteceu no tempo do exílio. A decadência do reino de Judá e a destruição de Jerusalém no início do século VI a.C. suscitaram dúvidas profundas sobre o conceito de teodicéia histórica.53 Toda essa situação provocou mudanças no enfoque da profecia, adquirindo elementos universalistas, até mesmo com “alusões mitológicas”.54 De acordo com Sicre, se uma parte da profecia trabalhou com a idéia da monarquia, e mesmo da aceitação do império após o exílio – nunca de forma acrítica, é verdade – no entanto, outra parte dela se colocou frontalmente contra o domínio imperial estrangeiro, sempre com um colorido nacionalista.55 Toda a transformação social que marcou a vida e a história do povo de Israel, não só mudou sua concepção da sua identidade, como da forma que Deus passou a falar com o povo. Agora a nação é uma realidade que não está vinculada somente a um espaço geográfico, mas a uma eleição e aliança, baseadas na Lei, que tem nos profetas os mensageiros que tornam essa esperança palpável, por meio de sua mensagem. Podemos afirmar que essa marca da profecia pós-exílica influenciou o imaginário popular, como realmente aconteceu na revolta macabaica e nos movimentos de dissidência56 que surgiram a partir do período helenístico. Jesus certamente respirou desses ares profético-apocalípticos. c. A canonização da profecia (séc. II a.C.) A profecia tinha vários desdobramentos nos primeiros anos do século I d.C., especialmente por conta da canonização dos textos proféticos da antiga tradição 52 De fato, no Antigo Testamento, o único exemplo literário que podemos afirmar como Apocalipse é Daniel. Alguns outros trechos apocalípticos são encontrados em Isaías (24-27; 33). Pequenos elementos pré-apocalípticos podem ser percebidos em outros profetas, mas que não configuram as mesmas características de Daniel. Ver discussão em ZENGER, Introdução ao Antigo Testamento, p.449s. 53 KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento 1, p.233. 54 Ibid., p.233. 55 SICRE, J.L. Profetismo em Israel, p.447s. 56 Especialmente o grupo dos hassidim, que deu origem aos fariseus, bem como a comunidade de Qumran e a reação samaritana ao governo judaico de Jerusalém. Cf. KOESTER, op.cit. p.235-248. 26 judaica, bem como pelo contato que a cultura judaica tivera com o helenismo desde o século IV a.C. Por outro lado, diversos movimentos proféticos se levantaram na Palestina nesse período, tanto antes como depois da destruição de Jerusalém, em 70 d.C. De forma sintética vamos analisar esses aspectos. A canonização dos livros proféticos se deu por volta do II século a.C. Antes disso não pode ter sido, pois os samaritanos realizaram o cisma nesse período e só aceitavam a Torá – Pentateuco. Além dessa época também não é provável, tendo em vista a “introdução grega da obra” de Jesus Ben Sirac, pelo ano de 132 a.C., que cita os Profetas ao lado da Lei (Pentateuco), bem como os demais escritos.57 Como literatura canônica, os profetas “são considerados comentários à Torá”. Por isso mesmo cedo foram separadas leituras de profetas que acompanhavam a cada sábado um trecho da leitura da Torá. A própria canonização da Lei deu aos livros proféticos o valor de cânon para a fé judaica, considerando sempre Moisés superior a todos eles, como nos lembra Crüsemann: Nesse contexto, a identificação de Moisés no fim do Pentateuco, em Dt 34, recebe uma importância que dificilmente pode receber atenção suficiente. Ao contrário, por exemplo, do Código Deuteronômico sobre os profetas com sua promessa de haver sempre um profeta como Moisés (Dt 18,15ss), nesta passagemchave, ele é exaltado para a compreensão de toda a obra sobre profecia. (...) Moisés e, com ele, também sua Torá, são fundamentalmente superiores a toda a profecia posterior.58 Como processo cultural, a profecia judaica foi matizada por seu contato com a profecia helenística, especialmente os oráculos sibilinos. Associados às Sibilas, figuras lendárias que exerciam sua atividade por meio de êxtases, esses oráculos podiam ser, inclusive, ex eventu, com forte cunho escatológico. Os judeus aproveitaram esses textos para divulgar suas crenças apocalípticas, tanto de desgraça quanto de esperança de um mundo melhor.59 d. Movimentos proféticos a partir do período romano (séc. I a.C.) No período romano há diversos relatos testemunhando pelo menos dois tipos de profetas populares: “o profeta oracular”, cuja função estava ligada ao juízo divino e à redenção promovida por Deus; e “o profeta de ação”, que inspirava e guiava um movimento popular para antecipar a redenção divina.60 57 Cf. ZENGER, E., op.cit., p.30s. CRÜSEMANN, F., op.cit., p.472. 59 KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento 1, p.175; PRADO, A.M. “Questionamentos acerca da Sibila Babilônica”, p.3. Segundo o autor, o texto do Pastor de Hermas indica que também os cristãos sofreram influência desse tipo de oráculo. 60 HORSLEY, R.A., Bandidos, Profetas e Messias, p.125. 58 27 Esses movimentos proféticos do século I d.C. mostram que o “profetismo estava muito vivo entre o povo judeu.” Horsley descreve ainda como se processava a adesão do povo: Numerosas pessoas, inspiradas e convencidas da iminência da ação de Deus, abandonavam seu trabalho, suas casas e aldeias para seguir seus líderes carismáticos no deserto. Elas sabiam pelas tradições sagradas que fora no deserto que Deus tinha manifestado sinais e prodígios de redenção em tempos antigos, e que o deserto era o lugar da purificação, preparação e renovação.61 i. Os profetas de ação Flavio Josefo desprezava o chamado “profeta de ação”, conforme relatou: “Impostores e demagogos, sob o pretexto de inspiração divina, provocaram ações revolucionárias e impeliam as massas a agir como loucos. Levavam-nas ao deserto onde Deus lhes mostraria sinais de iminente libertação.”62 Dos movimentos liderados por profetas de ação, Josefo narrou três que se destacaram dos demais, cujas características apocalípticas estavam muito claras: um primeiro movimento se deu entre os samaritanos, no período de Pôncio Pilatos. Segundo Josefo o líder anunciou ter descoberto vasos sagrados enterrados por Moisés no monte Garizim. Pilatos reprimiu violentamente o movimento, matando seus líderes.63 Outro movimento, agora na Judéia, foi liderado por Teúdas,64 cerca de 45 d.C. Ele afirmou que iria dividir o rio Jordão, como Josué. Fado, governador da Judéia na época, não permitiu e dizimou o grupo.65 Um terceiro movimento foi liderado por um judeu ligado ao Egito, na época de Félix (c. 56 d.C.). Esse defendia uma nova conquista da terra prometida, pretendendo invadir Jerusalém para se tornar governador. Mas foi igualmente destruído.66 Em todos esses casos houve franca participação dos camponeses, revoltados com a dominação romana e a conivência das autoridades judaicas. ii. Os profetas oraculares Outro grupo de profetas do qual se tenha conhecimento no primeiro século são os “profetas oraculares”. Horsley comenta o seguinte sobre eles: 61 HORSLEY, R.A., op.cit., p.146. JOSEFO, F. Guerras Judaicas, 2.259. 63 JOSEFO, F., op.cit., 18.85-87. 64 Citado pelo fariseu Gamaliel, no discurso presente na narrativa de Atos dos Apóstolos em 5,36. No relato de Atos parece que ele agiu antes de Judas Galileu (6 d.C.), mas isso é confusão do autor. 65 JOSEFO, F., Antiguidades Judaicas, 20.97-98. 66 Josefo cita o caso em dois textos: Antiguidades Judaicas, 20.169-171; Guerras Judaicas, II.26163. 62 28 Transmitiam oráculos, tanto de julgamento como de libertação, como o tinham feito os profetas oraculares clássicos, Amós ou Jeremias, séculos antes. Os profetas oraculares que anunciavam libertação iminente acham-se concentrados no período imediatamente antes e durante a grande revolta, quando as condições sociais e econômicas dos camponeses estavam-se deteriorando ao mesmo tempo que o comportamento oficial se tornava cada vez mais irregular e opressivo.67 Vários profetas desse tipo são citados por Josefo, inclusive João Batista,68 e esses profetas incomodaram as elites tanto quanto o outro tipo de profetas. Basta ver o destino de João Batista nas mãos de Herodes. Como conclusão dessa rápida análise, percebe-se que o início do século I testemunhou um florescer da profecia, nos moldes pré-exílicos, mas que carregava também um teor apocalíptico pós-exílico. Isso demonstra uma releitura das tradições por parte dos judeus palestinos que sofriam debaixo da opressão estrangeira e dos desmandos do poder local. De alguma forma, todo esse panorama influenciou a mentalidade popular acerca dos profetas. Nos escritos do Novo Testamento, se observa um afastamento desse tipo de movimento profético, tendo em vista que a pregação de Jesus não o levou para um confronto direto com o poder romano. Mas é bastante razoável pensar que os discípulos dele partilharam desse tipo de convicção e desejo de trazer o reino de Deus pela força.69 Ao mesmo tempo, essa profecia reafirmava o valor da Torá e dos Nebîim, pois afirmava a busca de fidelidade a um, enquanto se inspirava no ministério registrado no outro. Será nesse cenário que vamos encontrar Jesus e sua posição em relação às Escrituras Canônicas dos judeus do século I d.C., conforme veremos nos próximos capítulos. Por outro lado, a comunidade de Mateus esteve mais perto desse Jesus que as demais comunidades cristãs? Será que a afirmação de que ele veio para cumprir “a Lei e os Profetas” expressa um Jesus tão arraigado nas tradições judaicas, que as demais comunidades diluíram essa imagem? Ou será que na verdade ele não teve essa atitude, e foi a comunidade de Mateus que a formulou, numa tentativa de salvaguardar sua identidade judaica? Para tentarmos responder a essa pergunta, vamos antes traçar um quadro panorâmico do evangelho de Mateus e seu contexto de origem. 67 HORLEY, R.A., Bandidos, Profetas e Messias, p.163. JOSEFO, F., Antiguidades Judaicas, 18.116-119. 69 Cf. GRELOT, P., A Esperança judaica no tempo de Jesus, p.109 68 29 2.2. O evangelho de Mateus em seu contexto Na pesquisa a respeito do evangelho de Mateus há muitas convergências entre os pesquisadores, assim como muitas divergências. Antes de entrarmos no universo do texto escolhido para análise, vamos fazer uma análise geral sobre o Evangelho de Mateus em suas origens, a partir do seu Sitz im Leben. 2.2.1. Objetivo e estrutura geral da obra Mateus costuma ser identificado como o evangelho mais eclesiástico,70 ao mesmo tempo em que é o mais próximo da cultura judaica, ou seja, uma obra cristã num contexto judaico.71 Porém, ocorre uma diferença significativa quanto à intenção da obra. Em Mateus Jesus é o Messias Salvador, primeiro para o povo de Israel, mas também já apontando para uma universalidade. Ao mesmo tempo, em Mateus há um claro questionamento sobre a Lei, de como ela não tem mais valor diante da nova aliança iniciada em Cristo, mas que, ao mesmo tempo, continua a ter valor em sua essência. Isso é exemplificado largamente no Sermão do Monte. Como afirma Koester: O Sermão da Montanha não deixa dúvidas de que Jesus não veio revogar a lei, mas para dar-lhe pleno cumprimento, e essa lei impõe aos discípulos a obrigação de cumpri-la – embora a justiça deles deva ser superior à dos fariseus (5,17-19). Para explicar essa ‘justiça superior’, Mateus formulou as antíteses do Sermão da Montanha (5,21-48), que contrapõem ‘o que foi dito aos antigos’ com as palavras do próprio Jesus: ‘Eu, porém, vos digo’. O que está em jogo em cada caso é uma radicalização das exigências da lei.72 Para alguns, é o evangelho com maior conteúdo eclesiológico. Mateus teria menos cristologia e mais questões referentes à Igreja, que continuaria a atividade de Jesus, especialmente pelo discipulado. Pede-se aos seguidores, acima de tudo, “obediência incondicional em relação a tudo o que ele ordenou”.73 Mas Jesus está 70 Cf. SCHREINER; DAUTZENGERG, Forma e exigências do NT, pp.274-294; ROLOFF, J. A Igreja no Novo Testamento, p.159ss. 71 KÜMMEL aponta alguns aspectos que explicam a relação de Mt com o AT: “a) ele não explica os usos e costumes, os preceitos e as expressões judaicas (..); b)dispõe as narrativas orientado-as para uma formulação especificamente rabínica de uma questão (...); c) Traz toda uma série de ditos em apoio da validez incondicional da Lei (...); traz de preferência os ‘logia’ de Jesus que circunscrevem expressamente a atividade de Jesus a Israel (...); e) adapta a maneira de se exprimir de Jesus às expressões próprias dos judeus (...).” Introdução ao NT, pp.135-137. 72 KOESTER, H., Introdução ao NT 2, p.191s. 73 ROLOFF, J., A Igreja no NT, p.160. 30 presente para acompanhar a caminhada da Igreja, a partir da autoridade escatológica que lhe foi conferida. Por isso, a Igreja supera Israel como testemunha de Deus aos povos, indo ao encontro dos gentios. Essa compreensão situa Mateus numa heilsgeschischte onde a ekklesia é o novo povo de Deus.74 Carter coloca em maior evidência a situação da comunidade frente ao império romano, o que aproxima Mateus da tradição deuteronomista, a qual entende que os eventos históricos demonstram o juízo divino se concretizando. O império romano estaria nas mãos de Deus na destruição de Jerusalém, mas teria extrapolado seu papel, cuja oposição não poderia ser pela violência, e sim por uma visão da história na qual Deus puniria Roma também por seus pecados.75 A estrutura do evangelho tem por princípio diferenciar blocos narrativos e de discursos. As propostas clássicas para a estrutura de Mateus – Bacon, com a estrutura dos cinco livros alternados por narrativas76; o sistema concêntrico de Lohr, com seis narrativas e cinco discursos77, ou ainda na mesma linha a divisão em cinco partes (com narrativa e discurso em cada uma) de Rolland78 - apontam sempre para o mesmo processo, de se ter uma parte narrativa alternada por um bloco de discurso. Essa estrutura mostra uma intenção de colocar Jesus frente a Moisés e ao Pentateuco.79 Uma característica própria em Mateus é a de comentar as narrativas, no momento em que compara a situação com textos do Antigo Testamento. E Mateus vê nisso não obra do acaso, mas o fato de que todas as coisas acontecem por vontade de Deus, que já tinha estabelecido essa história, com conseqüências universais.80 Para Mateus, Jesus é – da mesma maneira como foi anunciado por Marcos – aquele que veio para pregar o reino de Deus e o mestre. Mas a ênfase 74 ROLOFF é um dos autores que defende essa interpretação. Cf. op.cit., pp.159-187. KOESTER concorda que o Sermão do Monte não está endereçado a indivíduos, mas a toda a Igreja. Por outro lado, destaca-se o fato de ser o único evangelho a utilizar a palavra “igreja” [evkklhsi,a], em Mt 16,18 e 18,17, sempre relacionando à comunidade de seguidores de Jesus. Cf. op.cit., p.192. 75 Cf. CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, pp.63-72. 76 BACON, “The Five Books of Matthew Against the Jews”, The Expositor VIII, 85, pp.56-66. 77 C.H. LOHR, “Oral Techniques in the Gospel of Matthew”, CBQ 23 (1961) 78 ROLLAND, “From the Genesis to the End of the World. The Plan of Matthew’s Gospel”, BT 2, p.156. 79 Outras estruturas, no entanto, podem ser identificadas, dependendo das referências com que se trabalhe. Kümmel e Garcia preferiram por não adotar esse sistema de estrutura quíntupla. Win J. C. Weren, que abordou a questão em artigo recente, aponta que os diversos estudos feitos a respeito mostram que não é simples declarar se há uma estrutura básica no evangelho. Cf. WEREN, “The Macrostructure of Matthew’s Gospel”, p.171-200. Em nossa pesquisa vamos considerar a estrutura clássica de narrativa-discurso. 80 Cf. BARBAGLIO, G., Os Evangelhos (I), p.50. 31 mateana recai sobre a idéia do mestre, como bem demonstra o Sermão do Monte.81 Por outro lado, Mateus enfatiza Jesus como “o Messias Salvador enviado por Deus, o rei de Israel.”82 Um terceiro aspecto importante no objetivo de Mateus, além da eclesiologia e da cristologia é a escatologia.83 Em Mateus, a vinda do reino de Deus, seu juízo sobre o mundo e a recompensa final para os fiéis não apenas aspectos do querigma, mas temas fundamentais, que perpassam toda a obra. Aparecem muito mais perícopes com esse motivo do que em Mc e Lc juntos.84 Esse texto, em que a comunidade é considerada parte do projeto de Deus para o mundo, Cristo é o Messias, e há uma mensagem escatológica perpassando a pregação, reflete seu Sitz im Leben. Uma comunidade que precisa de orientação para a vida, mas que é seguidora dos princípios de Jesus.85 2.2.2. Fundo histórico do texto Há um consenso bastante grande quanto ao tempo em que nasceu o evangelho de Mateus. Sendo ele dependente de Marcos, e tendo esse sido escrito entre os anos 64-70 d.C.86, Mateus não poderia ser anterior a 70. Por outro lado, a o fato de Inácio conhecê-lo também impede uma data posterior a 100. Além disso, não deve ter sido escrito próximo aos anos 70, por realizar uma revisão bastante 81 Ibid., p. 51. CAMACHO, F.; MATEOS, J., O Evangelho de Mateus, p.8. No entanto, do ponto de vista dos antagonistas Jesus é julgado por suas curas e milagres, “pelo poder do maioral dos demônios”, em 9,34, e como “enganador”, em 27,63s. Isso indica que o ministério de Jesus em Mateus não pode ser resumido a faceta de mestre, mesmo que haja uma ênfase nesse sentido. Cf. STANTON, G.N. A Gospel for a New people, p.171 passim. 83 De acordo com STANTON, G.N., “Matthew writes with several Christological, ecclesiological and eschatological concerns.” A Gospel for a New People, p.43. MARGUERAT, D., compôs sua pesquisa exatamente considerando o julgamento escatológico, como algo presente o tempo todo na obra de Mateus. Le jugement dans l’Évangile de Matthieu. KÄSEMANN realizou uma conferência em 1960 a respeito da relação de Mt com a mensagem apocalíptica cristã, transcrita no artigo “Os inícios da Teologia Cristã”, Apocalipsismo, pp.231-254. A repercussão dessa pesquisa foi tão grande que Bultmann respondeu a Käsemann através de um artigo, em 1964, na revista APOPHORETA, Festschrift für E. Haenchen. 84 MARGUERAT comenta que os textos de Mt que tem esse acento são 60 em 148 perícopes,e enquanto Mc são 10 em 92, e em Lc 28, em 146. Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.13. 85 Stanton analisa a possibilidade do evangelho de Mateus ter atendido, na verdade, a várias comunidades, e não somente a uma, como normalmente se pensa, tendo em vista que ele escreveu no gênero evangelho e não epístola. Cf. STANTON, G.N., A Gospel for a New People, p.45 et.seq. Mesmo concordando com essa possibilidade, vamos tratar aqui da comunidade (singular), como uma grandeza ideológica. 86 Cf. KÜMMEL, W.G., Introdução ao Novo Testamento, p.117. De fato ele defende o ano 70 como a data da composição. 82 32 considerável do texto de Marcos. Considerando esses aspectos, mesmo não sendo muito conclusivos, vários autores sugerem uma datação entre 80-90 d.C.87, a partir da qual vamos basear nossa pesquisa. Um aspecto importante para um trabalho que pense a autenticidade dos ditos de Jesus em Mateus e, por conseguinte, nos ajude a pensar a posição de Jesus frente à Torá, é a tradição a que o evangelista teve acesso. Koester comenta que há uma probabilidade do “Evangelho dos Ditos” (Q) já estar sob autoridade de Mateus mesmo antes da redação do evangelho, que teria reelaborado esse material, ao juntar o material de Marcos. E não só ele teria tido acesso a esse material, mas Tomé também. Assim, “Mateus e Tomé teriam sido então as duas autoridades apostólicas mais antigas para a transmissão dos ditos de Jesus.”88 A autoria de Mateus também é cercada de incertezas e questionamentos. Apesar dos manuscritos não trazerem no corpus a identidade do autor, já no século II foram agregados cabeçalhos que afirmavam euagglion katta Maqqaion89 ou mesmo apenas kata Maqqaion90. Isso se deve aos textos de Papías, que não foram preservados, mas chegaram até nós numa clássica citação de Eusébio de Cesaréia: “Referente a Mateus, diz o seguinte: ‘Mateus ordenou as sentenças em língua hebraica, mas cada um as traduzia como melhor podia.’91 O fato de Papías usar o nome de Mateus, relacionando com o apóstolo, não define realmente se ele seria o autor. Mateus passa a ser a identidade do “autor”, no sentido da comunidade de fé relacionada ao apóstolo Mateus.92 87 KÜMMEL, W.G., op.cit. p.145 et.seq.; MAZZAROLLO, I., Evangelho de São Mateus, p.3 et.seq.; CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.35 et.seq.; MATEOS e CAMACHO, O evangelho de Mateus, p.10 et.seq.; STEGEMANN, E., História social do protocristianismo, p.257 et.seq. 88 KOESTER, H., Introdução ao NT, p.188. Como confirmação dessa possibilidade, temos o estudo de KLOPPENBORG, J. S., The Formation of Q, a respeito da fonte Q, além da posição de STANTON, A Gospel for a New People., que afirma o uso de Q por Mateus como uma reelaboração de gênero, ou seja, o evangelista já teria encontrado a fonte Q pronta e adaptado para seu gênero próprio, junto com Marcos. 89 “Evangelho segundo Mateus” de acordo com as unciais W e D, as minúsculas da família 13, a versão boaírica, ou seja especialmente no texto Cesareense, além do texto Majoritário, que indica a presença dessa forma no texto Bizantino. Cf. WEGNER, U., Exegese do NT, pp.41-45. 90 “Segundo Mateus”, testemunhado pelas unciais a e B, nos melhores maiúsculos do Novo Testamento, segundo o texto Alexandrino. Cf. Ibid., pp 41-45. 91 FISCHER (Trad.), HE, III, 39, 16. Sobre a questão de Mateus ter sido escrito em grego, ver KOESTER, H., Introdução ao NT 2, p.188; KÜMMEL, Introdução ao NT, pp.146-148. 92 Cf. CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.33s. Quanto à afirmação de que Mateus não seria o autor citamos o próprio Koester, op.cit., p.187s, bem como Kümmel, que afirma que “o autor de Mateus, cujo nome nos é desconhecido, teria sido um cristão proveniente do judaísmo e de fala grega, que provavelmente seria possuidor de erudição rabínica”, op.cit., p.148. com quem concordam Mateos e Camacho, O Evangelho de Mateus, p. 11. 33 Quanto ao lugar de origem, as opiniões se dividem. Alguns autores reafirmam a posição tradicional da exegese moderna de situar Mateus na Síria, provavelmente em Antioquia.93 Outros, mais recentemente, o situam na Palestina, seja em Séforis ou Tiberíades.94 Para a atual pesquisa levou-se em conta uma proximidade do contexto palestino e Galileu, o que significa que concordamos com a segunda hipótese geográfica. De fato, o embate entre círculos cristãos e fariseus só pode ser plenamente compreendido a partir de uma análise da situação ocorrida na Palestina, após o ano 70 d.C. Mesmo que o texto final tenha sido escrito na Síria, transparece conflitos originários da Palestina. Ou seja, em sua formação, a comunidade associada ao evangelho de Mateus tem fortes ligações com o judaísmo.95 2.2.3. Características da comunidade a partir do movimento de Jesus O seguimento de Jesus em Israel se deu efetivamente na região da Galiléia, pelo que se constata em todos os evangelhos canônicos.96 Alguns identificam que o movimento dele tinha muito a ver com os movimentos populares contemporâneos, especialmente com reis populares e expectativas messiânicas.97 93 Cf. KÜMMEL, W.G., Introdução ao NT, p.145s; MATEOS e CAMACHO, O Evangelho de Mateus, p.10; MAZZAROLO, I., Evangelho de São Mateus, p.5s; CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p. 34s.; KOESTER, H., Introdução ao NT, p.188.; RICHARD, P., “A origem do cristianismo em Antioquia”, p40 et.seq. 94 Cf. OVERMAN, O evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.27-29, seguido por GARCIA, O Sábado do Senhor Teu Deus, e STEGEMANN, História, p.257. Outro que expressa essa opinião é SALDARINI, “The Gospel of Matthew and Jewish-Cristian Conflicts”, In: LEVINE, The Galilee in late Antiquity, pp.23-38. 95 CARTER, W. O Evangelho de Mateus, p.54 et.seq. 96 Sobre a questão do ministério de Jesus na Galiléia ver o estudo aprofundado de FREYNE, S. A Galiléia, Jesus e os Evangelhos. Um dos aspectos que ele aborda é o problema da descrição dos evangelhos como retratos não-históricos da situação. Ele chega mesmo a afirmar que entre as evidências históricas do contexto galileu e as narrativas evangélicas há tal discrepância que “é difícil ver como um ministério carismático/profético, tal como o que Jesus realizou, pôde desempenhar ali um papel significativo.” P.189. Contra essa posição, porém, HANSON, J.S., e HORSLEY, R.A., Bandidos, Profetas e Messias, que considera pertinente o que foi narrado por Josefo e outros a respeito de revoltas camponesas na Judéia, bem como na Galiléia. Ele cita, por exemplo, que “a cidade de Séforis, que foi incendiada e cujos habitantes foram vendidos como escravos no ano 4 a.C., estava situada apenas algumas milhas ao norte da aldeia Nazaré, a terra de Jesus.” p.111. MERZ, A. E THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.190 et,seq, também defende que havia tensões de diversos tipos (entre judeus e gentios, entre cidade e campo, ricos e pobres, governantes e governados, na Galiléia).; Também GARCIA, P.R., O Sábado do Senhor teu Deus, p.30 et.seq. 97 Cf. HANSON, J.S., e HORSLEY, R.A. op.cit. 89 passim; Também HORSLEY, R.A., Jesus e o Império, p.80 passim; CROSSAN, J.D., O Jesus Histórico, p.340 passim; GRELOT, P., A esperança judaica no tempo de Jesus, p.109 passim. 34 De fato, era um movimento popular, de massa, com ensino em parábolas, e demonstração da chegada do reino de Deus pela realização de curas e milagres.98 É possível fazer uma diferenciação entre três fases para um estudo do fenômeno do seguimento de Jesus: uma primeira fase do seguimento propriamente dito, com uma relação discípulo-mestre; uma segunda fase da “protocomunidade” de Jerusalém, surgida logo após a morte e ressurreição de Jesus; uma terceira fase, das “comunidades messiânicas”, a partir de 70 d.C., principalmente retratadas nos evangelhos de Mateus e João. Para um estudo a partir do evangelho de Mateus, por conseguinte, temos diante de nós essa última fase, o que está em concordância com a datação anteriormente trabalhada.99 Tendo por princípio que as comunidades palestinenses herdaram muito das características do seguimento original de Jesus – com algumas modificações institucionais necessárias –, é interessante levantar alguns dados que tem sua fonte ainda no próprio Jesus e seu movimento. Alguns aspectos que Stegemann aponta do seguimento de Jesus podem ter sido claramente continuados pela comunidade cristã de Mateus. Esses aspectos se apresentam especialmente na “desviância genuína, mas sem ruptura com o judaísmo”, e mantém a relação com as instituições religiosas do judaísmo, com os elementos básicos da fé judaica, e com a Torá.100 Aplicado ao movimento de Jesus, Stegemann sugere que “o caráter carismático do seguimento de Jesus implica certa desviância genuína e uma concepção pré-política”.101 A mensagem de Jesus, da irrupção do reino de Deus, 98 Cf. GNILKA, J, Jesus de Nazaré, p84 passim. THEISSEN, G. Sociologia do Cristianismo Primitivo, p.33 et.seq. Ele afirma que “já em seus inícios, o movimento de Jesus visava a integração.” 99 Cf. STEGEMANN, E.; W., História social do protocristianismo, p.217. 100 STEGEMANN, E.; W., História social do protocristianismo, pp.217 et. passim. Por desviância Stegemann define uma nova abordagem para o termo hairesis usado por Josefo para falar dos grupos judeus no primeiro século. Por ser um conceito de origem grega – “partido” – padece do fato do grupo ter uma escola que trata apenas dele mesmo. O que aconteceu na Palestina do primeiro século é que esses grupos pensaram a identidade do judaísmo como um todo. Por outro lado, o conceito utilizado por Weber de “seita” (na obra Wirtschaft und Gesellschaft: Grundriß der verstehenden Soziolage. 5.ed., 1976) , foi colocado em contraponto à igreja. Esse conceito, de fato, não ajudou a perceber “as diferenças específicas entre esses grupos”. THEISSEN chama essa desviância de “radicalismo itinerante”, a partir da transmissão das palavras de Jesus nos sinóticos, Sociologia da cristandade primitiva, p.36. 101 STEGEMANN, E.; W., op.cit. p.238. Com isso, Stegemann propõe uma nova abordagem, a partir da teoria da desviância, que “descreve o processo da formação de desviância em conexão com situações fundamentais de crises nas sociedades, bem como a formação de grupos como parte de uma ‘carreira de desviância’ em que a exclusão inicial como divergente é neutralizada”. P.179. Decisivo para que isso aconteça, de acordo com essa teoria, não é a reação ao grupo desviante, nem tampouco que essa desviância aconteça numa sociedade altamente estruturada em termos 35 bem como a aceitação dos excluídos da sociedade em seu movimento caracterizam bastante essa desviância, mesmo que Jesus apresentasse certa expectativa compartilhada com outros grupos e movimentos. Aí temos uma ruptura implícita com o judaísmo. Mas não se pode afirmar que a ruptura definitiva se deu já no movimento, pelo contrário, deve ter se dado a partir de uma intensificação no processo de desviância nas comunidades cristãs pós-70 d.C. Mas, “é evidente que essa autocompreensão escatológico-carismática do seguimento de Jesus marcou também sua relação com as instituições do judaísmo e especialmente com a Torá”.102 Em relação aos aspectos gerais da fé judaica, é possível ver em Jesus uma relação de prática fiel, como os diversos relatos em que o mostram em reuniões nas sinagogas aos sábados (Mc 1,21.39; 3,1; 6,2; Lc 4,15ss, etc.). Ali Jesus participa normalmente, questionando em alguns casos aos religiosos que freqüentam ao local, não o processo em si.103 Com relação ao Templo, apesar da atitude marcante de Jesus contra os cambistas, não há da parte dele uma posição prévia contrária ao Templo. Outros grupos, inclusive os fariseus, também faziam críticas à administração sacerdotal.104 Por fim, Jesus também não teve uma atitude contrária à família. Ainda que seu seguimento exigisse um afastamento da família terrena, ele foi a favor do sustento dos pais (Mc 7,10-13), do acolhimento de crianças órfãs (Mc 9,37) e contra o divórcio (Mc 10,1-12). Jesus seguiu os princípios básicos da fé judaica, como o monoteísmo e a teologia da aliança. Da mesma forma, sua relação com a Torá parte de um respeito e uma atitude positiva. ideológicos, mas as circunstâncias de crise que forçam uma nova tomada de posição e uma nova orientação. 102 STEGEMANN, E.; W., op.cit., p.238. Para G. THEISSEN, realmente foi uma separação paulatina. Como ele afirma: “após a morte de Jesus, seu movimento de renovação intrajudaico transformou-se numa seita judaica. (...) A partir do ano 70 d.C. a ‘seita’ se torna um cisma definitivo – condicionado pela destruição do templo e por desenvolvimentos internos do judaísmo e do cristianismo primitivo.” O Jesus Histórico, p.167. No entanto, ele já afirmou que Mateus, por exemplo, formula certas ordenanças “a partir de uma perspectiva intra-judaica”. Cf. Sociologia da cristandade primitiva, p.104. 103 VERMES, A religião de Jesus, o judeu, p.21 et.seq. Entretanto, o autor aponta o curioso fato de não haver nessas passagens clara alusão a uma participação de Jesus em atos de culto nas sinagogas, com exceção da leitura do rolo em Lc 4,16-21. 104 THEISSEN lembra que a Galiléia como um todo tinha “uma marcada devoção ao templo por parte dos galileus e uma forte ligação dos habitantes da periferia com o centro do culto judeu e com as instituições afiliadas a ele”, conforme demonstram as fontes. MERZ, A. E THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.198. 36 Esses aspectos básicos parecem se expressar também na comunidade de Mateus, caso se tenha a Palestina como lugar de origem.105 Pelos aspectos levantados acima, entende-se que a comunidade de Mateus teria uma prática semelhante à de Jesus, sem a intenção de criar uma religião ou fechar-se ao judaísmo. No entanto, o texto do evangelho e as pesquisas realizadas demonstram que, internamente, a comunidade vivia sob tensão.106 O principal motivo dessa tensão interna é a questão a respeito da Lei e sua observância. Enquanto um grupo defendia a Lei e sua validade (cf. 5,17-20; 10,5-6; 23,1-3), outro fazia uma releitura dela ou pelo menos da observância judaica (5,17-48; 23,1-36).107 A comunidade de Mateus seria, então, formada por um grupo misto, “composta por um setor judeu-cristão de rígidos observantes e de um estrato de cristãos mais abertos”.108 Mateus não trabalha com diferentes níveis de crentes (a multidão e os perfeitos), mas com a idéia de “discípulos”, seguidores que devem buscar a perfeição, ou o ser perfeitos [te,leioj].109 Assim, o evangelho de Mateus expressaria uma oposição contra os antinomianos da comunidade (Mt cita aqueles que não praticam a Lei - avnomi,an - três vezes: 7,23; 13,41; 24,12), os quais relativizavam as exigências da perfeição. Para eles, o Antigo Testamento foi válido até Jesus, mas agora não tinha mais sentido para a Igreja.110 Ao mesmo tempo, a comunidade de Mateus não era uniforme do ponto de vista social, e expressava um pouco da sociedade à qual estava ligada.111 105 Cf. FLUSSER, Jesus, p.37 et.passim; Cf. CARTER, W. O Evangelho de São Mateus, p.54-63. Mesmo considerando que ele tome Antioquia como lugar de origem do evangelho de Mateus, os conflitos aos quais se refere são válidos para uma análise tendo por base a Palestina. Em ambos a polêmica tem como foco o grupo dos judeus seguidores de Cristo contra os judeus não-seguidores, que têm o poder da sinagoga. 107 Cf. BROWN, R., An Introduction to the New Testament, p.213. 108 Cf. BARBAGLIO, G. Os Evangelhos 1, p.39 et.seq. 109 BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.96 et.seq. 110 Ibid., p.159. Alguns conjeturaram se esse grupo seria paulino, mas de fato deve se tratar de cristãos gentílicos que começam a pressionar os cristãos judeus por uma atitude mais aberta em relação à Lei, conforme se verifica nas discussões em Atos 15, e nas epístolas de Paulo e de Tiago. Para Stanton, no entanto, não é possível, de forma sumária, identificar que sejam esses oponentes internos. Ele afirma: “Hypotheses based on a possible interpretation of one verse, or even of a cluster of verses, are likely to be insecure. The only opponents who are in view from the beginning to the end of Matthew’s gospel (form 2.1 to 28.15) are the Jewish leaders.” STANTON, G.N., A Gospel for a New People, p.49. 111 Cf. CARTER, W. O Evangelho de São Mateus, p.48 et.seq. Partindo do pressuposto que o evangelho teria nascido em Antioquia, o autor analisou o estrato social daquela cidade. Ele aponta que em Mateus o grupo se identificar como “pequeno”, seja numericamente, seja na condição social. Segundo ele, “dado a experiência comum de endividamento, perda de terras e perda de status e relações de parentesco conforme o povo rural se mobilizava para a cidade procurando 106 37 Além dos problemas internos (ou que estivessem ligados a outros grupos crentes em Cristo), a comunidade de Mateus igualmente esteve sob forte pressão externa, que levou o grupo a uma ruptura completa com o judaísmo de sua época. O estudo dos grupos antagônicos é fundamental para entender esse quadro. 2.2.4. Os grupos antagônicos A destruição do Templo, como resultado de Guerra Judaica de 66-70 d.C. trouxe uma série de mudanças significativas para os piedosos palestinenses, sejam eles judeus ou cristãos. Acabaram o culto sacrifical e muitos atos e deveres religiosos ligados ao templo (...). As funções dos sacerdotes no templo tornaram-se obsoletas, assim como o cargo do sumo sacerdote. Terminaram as tarefas tradicionais do Sinédrio, que tinha 112 sua sede no templo. Essa quebra exigiu novas respostas, que culminaram na formação de um judaísmo mais voltado para observância da Lei como princípio de vida, e menos dependente de preceitos rituais ligados ao templo. Importante para isso foi o papel dos sábios e dos mestres da lei, grupo que passou a se destacar a partir daí. Esse período é conhecido como o nascedouro do “judaísmo rabínico” ou “judaísmo clássico”. Ou no dizer de Overman, o “judaísmo formativo”.113 O grupo de Mateus vai ter sérias controvérsias com esse grupo, mesmo que cada um estivesse estabelecendo seu próprio projeto.114 É possível que o conflito de fato fosse bem mais amplo e até mais fragmentado, mas as narrativas que chegaram a nós, em especial no evangelho de Mateus, mostram uma pequena parte dele.115 Seja como algum meio para sobreviver, é provável que parte dessas pessoas fizesse parte da audiência de Mateus.” P.50. Então deveriam haver ricos, pobres, livres, escravos, comerciantes, etc. participando da comunidade. 112 STEGEMANN, História social do protocristianismo, p.254. 113 OVERMAN, O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.14s. Ele chega a afirmar que há uma substancial diferença entre dois: “a evolução do judaísmo formativo para o rabínico foi um processo histórico prolongado e complexo que ocorreu ao longo de um período de várias centenas de anos.” 114 Cf. o comentário de P. R. GARCIA: “os essênios e os cristãos abandonaram o Templo e estabeleceram seus próprios ritos de piedade e serviço religioso; os fariseus ficaram numa posição intermediária”, O Sábado do Senhor teu Deus, p.45. Também MAZZAROLO, I., Evangelho de Mateus, p.5. Ele afirma: “Os que aderiram ao cristianismo eram hostilizados pelos que os rejeitavam a e as perseguições eram constantes.” 115 Como afirma J.A. OVERMAN: “No conflito entre o judaísmo formativo e o judaísmo de Mateus, somos expostos a uma fatia bastante pequena do processo global de definição e consolidação judaica do período pós-70.” O Evangelho de Mateus e o Judaísmo formativo, p.15. 38 for, há uma tensão crescente entre esses diferentes grupos, diante do vácuo de referência para a fé judaica. Bonneau indica essa tensão: O Evangelho de Mateus dá conta de diversos conflitos que permitem uma reconstrução plausível da situação dos seus destinatários. (...) Mateus luta contra os adversários externos, judeus, fariseus com toda a evidência, do meio dos quais sua comunidade e ele mesmo saíram e aos quais ele opõe uma nova compreensão da fé judaica, à luz do acontecimento Jesus. Uma profunda rivalidade se estabelece entre os dois grupos e conduz a uma violenta polêmica, até mesmo a uma perseguição.116 O Evangelho de Mateus cita vários oponentes a Jesus – fariseus, escribas, chefes de sinagoga, saduceus, sacerdotes, governantes judeus e romanos -. Alguns de fato não existiam ou pelo menos não tinham mais a mesma força nos anos pós70, como o saduceus117. Outros se fortaleceram nos processo de descentralização da religião e busca de renovação da identidade, como os fariseus e os escribas, grupos centrais para o estudo em questão. 2.2.4.1. Os fariseus O grupo dos fariseus é um dos mais citados em Mateus como antagonista.118 J. de Fraine descreve os fariseus como “um partido religioso, no judaísmo, que se aplicava a estudar profundamente a lei mosaica e as tradições dos antepassados, e propugnava a mais rigorosa observância da sua interpretação da lei.”119 Além disso, são caracterizados como um movimento leigo originado da resistência contra o esvaziamento dos ideais religiosos tradicionais do judaísmo por parte da realeza sacerdotal secularizada (os saduceus).120 Entretanto, dependendo da fonte 116 BONNEAU, Profetismo e Instituição no Cristianismo Primitivo, p.181. Overman trabalha a questão. Igreja e comunidade em crise – o Evangelho segundo Mateus, esp. p.18. 117 Os saduceus surgiram de círculos sacerdotais favoráveis ao governo hasmoneu, e também tinham o templo como centro da religião israelita. Como se consideravam sucessores do sumo sacerdote Sadoc, do tempo do rei Davi, entendiam que o sistema do Templo lhes assegurava poder e estabilidade. Aliás, O Templo foi o principal motivo de sua rivalidade com os fariseus e porque não dizer dos essênios. Era um grupo conservador e ortodoxo em suas crenças e posturas. Acreditavam acima de tudo na unidade de culto, nação, terra e história. Sua doutrina baseava-se na crença de que o ser humano faz o seu destino; a negação do além, bem como da ressurreição dos mortos e prêmio após morte; atentavam apenas para a Torah escrita, rejeitando toda a Torah Oral. Estavam ligados às classe superiores. No entanto, a maior parte das informações que temos a seu respeito é de fonte indireta, o que pode carregar certas distorções movidas por preconceito. Sobre eles ver SALDARINI, Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense, pp.307-316; Em STEGEMANN, uma abordagem social em termos de movimento de desviância, História social do protocristianismo, pp. 176-185; ROLOFF, A igreja no Novo Testamento, p.22s. 118 Mt 3,7; 5,20; 9,11.14.34; 12,2.14.24.38; 15,1.12; 16,1.6.11.12; 19,3; 21,45; 22,15.34.41; de forma especial as imprecações do cap.23, onde inclui os escribas; 27, 41.62. 119 FRAINE, J de, “Fariseus”, Dicionário Enciclopédico da Bíblia, p.557. 120 Ibid., p.558. Também conforme a pesquisa de KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento 1, p.240s; ROLOFF, J., A igreja no Novo Testamento, p.20. 39 a qual consultamos, a configuração do grupo dos fariseus pode ter diferentes características. Flávio Josefo os designa como grupo de interesse político, que teria surgido como tal por volta do final do século 2 a.C., na época de João Hircano.121 Na literatura rabínica que surgiu a partir do século 3 d.C. os fariseus são indicados como mestres, a partir das escolas de Hillel e Shammai, dois fariseus notáveis do primeiro século, o que dificulta a interpretação das descrições. De um modo geral, no entanto, há evidências de que os fariseus compunham associações, ou grupo de comensais, que desejava ter influência sobre Israel, mas não alcançou essa proeminência.122 A composição social desse movimento, segundo a pesquisa feita por Stegemann a partir das fontes, indica uma pertença aos estratos superiores, tanto da elite quanto do séqüito.123 Já Saldarini, em sua pesquisa, enxerga uma mescla maior nos estratos sociais. De fato ele coloca a questão de modo abrangente: Uma questão importante, não respondida pelas fontes, diz respeito às atividades diárias dos fariseus e a origem dos meios de vida. A teoria antiga de que eles eram artesãos urbanos é muito improvável, porque os artesãos eram pobres, sem instrução e sem prestígio. A teoria mais comum de que os fariseus eram um movimento escribal leigo, um grupo de estudiosos e intelectuais religiosos que substituíram os líderes tradicionais e obtiverem grande autoridade sobre a comunidade é igualmente muito implausível. Embora alguns fariseus fizessem parte da classe governante, a maioria eram funcionários subordinados, burocratas, juízes e educadores. Eles são mais bem compreendidos como conservadores que eram servos letrados da classe governante e tinham uma proposta para a sociedade judaica e influência junto ao povo e junto aos seus patronos.124 O nome do grupo deve derivar do hebraico perushîm (~yviWrp.), da raiz hebraica prs (vrp), que pode significar “os que estão separados”, ou “separatistas”.125 Essa designação é pouco freqüente na literatura rabínica, sendo muitas vezes usada pelos seus adversários de forma pejorativa, significando, em sentido negativo, “sectários” ou mesmo “hereges”, afastados dos outros de modo 121 Cf. descrito em A. Saldarini, op.cit., p.99 et.seq. Ele aponta que “grupos como os fariseus, que existiram por dois séculos, mudam com o tempo, às vezes significativamente”. P.290 122 Cf. SALDARINI, A., op.cit., p.223-229. Também STEGEMANN cita a questão, op.cit., p.183s. 123 STEGEMANN, História social do protocristianismo, p.185-188. O quadro da p.216 mostra a condição dos principais grupos na pirâmide social da terra de Israel, no primeiro século. 124 SALDARINI, Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense, p.294. (Destaques meus). De fato Saldarini se aproxima da posição de Stegemann, quando este aproxima os fariseus do grupo do séqüito, que estaria a serviço da elite, cf. nota anterior. Sobre o sistema de classes de um modo geral ver o próprio Saldarini, pp.53-59, e Stegemann, op.cit., pp.71-118. 125 Cf. FRAINE, J de, “Fariseus”, Dicionário Enciclopédico da Bíblia, p.557. 40 ilegítimo.126 O significado dessa separação, em sentido positivo, pode ser de “pessoas que se retraíram da sociedade judaica normal ou da sociedade gentia, a fim de observar a lei judaica (pureza, dízimo) mais rigorosamente”. É possível entender o sentido de prs como “intérpretes”, o que estaria de acordo com a abordagem do Novo Testamento sobre o grupo, no qual demonstra que os fariseus tinham sua própria interpretação da Lei.127 Pelo contato com a cultura helenista, desenvolveram aspectos inovadores no judaísmo. Formaram importantes escolas, como as de Hillel e de Shammai, de onde surgiu o movimento do rabinismo, que existe até hoje.128 Também enfatizaram a possibilidade do indivíduo cumprir a vontade divina, contra o conceito tradicional da salvação coletiva. Em termos de doutrinas, acreditavam numa sinergia entre Deus e os homens; na ressurreição dos justos e na punição dos maus; acrescentavam Tradição Oral (Haggadah e Hallakah) à Torah mosaica; estavam próximos do povo simples (!)129, e tem seu respeito; honravam os antigos e buscavam ter comunhão entre si.130 Uma das práticas mais importantes dos fariseus foi a observância da Torá Oral, ou nos termos de Josefo, das tradições (paradosis): O que eu gostaria agora de explicar é isto, que os fariseus entregaram ao povo muitas observâncias segundo a tradição de seus Pais, que não estão escritas na Lei de Moisés; e, por esta razão, os saduceus rejeitaram-nas e dizem que devemos honrar as observâncias que estão em nossa palavra escrita, e não observar aquelas que são derivadas da tradição de nossos antepassados. Quanto a essas coisas, grandes disputas e diferenças surgiram entre eles.131 Essas tradições defendidas pelos fariseus se chocaram com a interpretação de Jesus e consequentemente com a comunidade de Mateus, conforme se percebe em várias passagens (Mt 12,1ss; 15,1ss; etc.). Isso por que “tanto o judaísmo formativo como a comunidade de Mateus estavam preocupados em legitimar suas 126 Cf. MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.250; D. FLUSSER comenta que “na literatura rabínica, os sábios nunca designam a si mesmos de fariseus. Conhecemos, porém, dois homens que assim o faziam: Flavio Josefo e Paulo.” Jesus, p.46. 127 Cf. OVERMAN, J.A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.75. Ele cita Josefo que descreve os fariseus como “os intérpretes mais acurados da Lei”. P.75. Também SALDARINI, A., Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense, p.232. 128 Cf. KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento 1, p.241, onde ele comenta: “a ‘escola’ e as tradições de interpretação transmitidas de mestre a discípulo tornaram-se a instituição religiosa principal do judaísmo farisaico, análoga à função da escola nos meios filosóficos da antiguidade.” 129 No entanto, E. STEGEMANN fala de uma relação distanciada com o “am há áretz” da Galiléia. Cf. História social do protocristianismo, p.183. 130 Cf. SALDARINI, A. op.cit, pp.123-126, onde compara o grupo com os saduceus; KOESTER, H., op.cit., p.238 passim. Sobre isso ver OVERMAN, op.cit., pp.70-75. 131 Antologias Judaicas, 13.10.6 – 297. 41 crenças e comportamento.”132 Em termos práticos, se trata de interpretar a Lei e defender uma paradosis adequada à existência de cada grupo, que acabava entrando em choque com a visão do outro grupo, visto como adversário. Curiosamente, todos têm em mãos o mesmo instrumento (a Lei e os Profetas como escritura reguladora) e o mesmo propósito (realizar a vontade de Deus).133 Entretanto, não eram apenas os cristãos que tinham conflito com os fariseus. Eles tinham clara oposição por parte dos saduceus, que os consideravam hipócritas e rejeitavam sua paradosis. Flusser relata a respeito que “em seu leito de morte o rei saduceu Alexandre Janeu advertiu sua esposa não contra os verdadeiros fariseus mas contra os ‘pintados’.”134 Os essênios chamavam os fariseus de “caiados”, referência que encontramos em Jesus (cf. Mt 23,27s).135 2.2.4.2. Os escribas Ao lado dos fariseus encontramos diversas citações sobre os escribas136, como um grupo que tem sua própria estrutura e ideologia. Mas quem eram os escribas? Como podemos identificá-los historicamente? A palavra “escriba” vem do grego [grammateu,j] e descreve um funcionário que trabalha para a elite, compilando documentos, ou mesmo que realiza essa tarefa no povoado.137 No contexto judaico isso também aconteceu, porém a origem hebraica está na palavra sôfer (rpewOs), da raiz spr (rps), que indica a 132 OVERMAN, J.A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.71. O autor aponta para a questão do desenvolvimento de tradições como parte da construção social de um grupo que produz um novo movimento numa sociedade. É preciso dar autoridade normativa à maneira como o grupo se organiza, para que as gerações seguintes se guiem pelos mesmos valores. Nas palavras de Overman, “para que o movimento sobreviva, as pessoas precisam esquecer gradualmente que essa ordem social foi estabelecida por pessoas e continua a dependente do consentimento de pessoas. Essas construções sociais do movimento precisam passar a ser identificadas com uma autoridade maior, mais estabelecida e tradicional.” P. 70 et.seq. 133 MINCATO, R. “Os fariseus e Jesus: uma releitura”, p.53 et.seq. MERZ, A. e THEISSEN, A. O Jesus Histórico, p.252. O autor comenta que a relação de Jesus com os fariseus é apresentada nas fontes de forma “ambivalente”. O mesmo princípio pode ser aplicado à relação da comunidade cristã com os grupos judeus contemporâneos. 134 FLUSSER, D. Jesus, p.46. 135 Cf. Documento de Damasco (CD) 8:12, 19:25, apud Ibid., p.46. Na verdade os essênios detestavam os fariseus, mas também rejeitavam sua doutrina, ao contrário das comunidades cristãs, que tinham bastante correlação doutrinal com os fariseus. Flusser afirma que, do ponto de vista de modo de doutrina, Jesus pode ser comparado a um fariseu, num “sentido mais amplo”. P.48 136 Muitas vezes citados junto com os fariseus, a seguir os textos em que aparecem exclusivamente: Mt 2,4; 7,29; 9,3; 16,21; 17,10; 20,18; 21,15; 26,3.57. 137 MERZ, A. E THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.248. 42 escrita, e no caso o substantivo “escriba, escrevedor, escrivão, secretário.”138 Mas escribas como um grupo organizado só encontramos registro nos evangelhos sinóticos, em conexão com os fariseus e com os sumos sacerdotes, sempre como antagonistas de Jesus.139 J.Jeremias aponta que havia uma corporação de escribas em Jerusalém, desde a classe sacerdotal mais alta, passando pelos sacerdotes de menor peso, bem como os levitas, chegando até mesmo às demais classes populares, das quais um dos mais famosos, sem dúvida, foi Hillel, um operário.140 Ele demonstra ainda que o saber é o único e exclusivo fator do poder dos escribas. Quem desejasse agregarse à corporação dos escribas por ordenação, seguia um ciclo regular de estudo de alguns anos. O jovem israelita, desejoso de consagrar sua vida à sábia atividade de 141 escriba começava o ciclo de sua formação como discípulo (talmîd). Saldarini procura mostrar, a partir das diferentes fontes, que também a concepção a respeito dos escribas podia mudar, e consideravelmente. De um modo geral, desde a Antiguidade os textos mostram o escriba como secretário, e mesmo como alto oficial do gabinete real. Em Esdras o escriba tem uma função importante junto aos repatriados. Já na comunidade judaica após o exílio, os escribas estavam vinculados aos sacerdotes e todas as funções de dirigentes. Provavelmente tiveram influência na redação final do Deuteronômio, dado o seu caráter sapiencial. 142 Nesse período do pós-exílio os escribas tiveram um papel central na elaboração do texto final dos diferentes livros que compuseram a Lei, os Profetas, e bem assim, os Escritos. Com isso, também puderam ter o papel de intérpretes da Lei, como transmissores da tradição bíblica. E nesse caso os escribas nem mesmo seriam parte de um único grupo, mas estariam em grupos que traduzissem as diferentes tradições de Israel.143 Na literatura judaica dos séculos anteriores a Cristo há extensa presença dos escribas. Diversos elementos presentes em Henoc, 138 Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português, p.170. Saldarini comenta, inclusive, que secretário seria o termo idiomático adequado para sofer. Op.cit., p.251. 139 Cf. MERZ, A. E THEISSEN, G., op.cit., p.248. 140 Cf. JEREMIAS, J., Jerusalém no tempo de Jesus, pp.317-320. 141 Ibid., p.320. 142 Cf. SALDARINI, A. Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense, pp.252-281. 143 VAUX, R. de. Instituições de Israel no Antigo Testamento, p.393; Para SCHMIDT, com a Lei ganhando força na sociedade judaica, “a visão da comunidade judaica seria muito exclusivamente a dos escribas.” O Pensamento do Templo de Jerusalém a Qumran, p24. 43 Qoélet, Daniel, Ben Sira, além de outros textos do período atestam esse grupo presente no processo de construção do saber judaico.144 Flávio Josefo citou os escribas em diferentes contextos: como oficiais de todos os níveis, não exatamente como grupo organizado. Em sua obra Antiguidades Judaicas ele promoveu a presença dos escribas em vários pontos da história, onde o texto bíblico não apresenta.145 Josefo fez isso em vários outros textos, sempre repetindo a função escribal como apoio aos grupos atuantes em diferentes áreas. Sintetizando, Saldarini faz essa observação: Josefo menciona escribas em determinado número de passagens porque eles são comuns e aceitos em seu meio social. As funções, o status social e o poder dos escribas variam de altos oficiais a humildes funcionários dos povoados. A capacidade de ler e escrever era crucial para o lugar e função deles na sociedade, mas o status exato deles dependia do monarca ou da classe governante. Josefo não apresenta os escribas como um grupo específico, distinto, com seus próprios ensinamentos, como os fariseus, saduceus e essênios. Ao contrário, os escribas eram um tipo de indivíduo social bem conhecido e aceito, que podia desempenhar diversos papéis e a quem se atribuíam diferentes status sociais.146 A grande oposição entre a comunidade de Mateus e os escribas tem a ver com a autoridade deles como intérpretes da Lei contraposta à autoridade de Jesus, o que é equacionado na forma como o evangelista encerra o Sermão do Monte (7,29). Mas sempre está diante dos dois grupos a forma como devem interpretar a tradição judaica.147 2.3. Mt 5,17-20 no horizonte do evangelho de Mateus 144 Cf. SALDARINI, A., op.cit., pp. 263-270. Ele comenta que o período helênico viu surgir um movimento escribal não obrigatoriamente vinculado ao sistema sacerdotal. Talvez isso se deva ao fato do escriba grego ser mais “secularizado” que o judeu. Mesmo assim, há escribas do templo citados por carta de Antíoco, no século II a.C., bem como há registros de escribas – citados como “pessoas piedosas” – no texto de 1 Macabeus (1 Mc 7,12-14). Aqui eles foram ligados aos macabeus na grande revolta macabaica. Mesmo assim não está claro qual seria essa relação. Quanto a essa questão Saldarini afirma o seguinte: “A natureza e o status dos assideus são bastante incertos também. Os assideus têm sido tratados, na maioria das vezes, como uma seita bem definida ou como um grupo coeso que mais tarde deu origem aos fariseus, essênios, escribas e talvez outros grupos judaicos do segundo século, mas nada da redação de 1 Macabeus sugere isto. A palavra para ‘companhia’ é ‘sinagoga’, uma palavra grega com amplo leque de significados. Sabemos apenas que estes judeus piedosos eram hábeis guerreiros em lutas corporais, que voluntariamente se ofereciam para lutar. É bem mais provável que pietistas seja uma designação descritiva de um amplo espectro de judeus que resistiam ativamente à helenização e defendiam a piedade, ou seja, a forma de vida deles, contra o ataque de Antíoco, e não o nome de um grupo bem definido.” P. 262. 145 Ex: Comp. 1 Sm 14,31-35 com Ant 6.6.4; 1 Cr 23,1-6 com Ant 7.14.7; etc. 146 SALDARINI, A., op.cit., p.273. 147 Cf. MERZ, A. e THEISSEN, G. O Jesus Histórico, p.249. No capítulo 3, faremos uma análise literária em Mateus a respeito da polêmica entre Jesus, os escribas e os fariseus. 44 A compreensão geral a respeito do evangelho de Mateus nos leva necessariamente à contextualização da perícope em estudo dentro do conjunto da obra. Conforme já foi apontado anteriormente, a perícope não é um material isolado, mas tem estreita relação com o conjunto da obra mateana. Vamos ver a seguir o seu contexto temático, e o contexto integral dentro do evangelho de Mateus, vinculada às orientações de Jesus sobre certos aspectos da Lei. 2.3.1. O contexto temático: o Sermão do Monte Podemos considerar que a perícope de Mateus 5,17-20 está no coração do Sermão do Monte, como esquema programático para o reino de Deus.148 A leitura do Sermão do Monte tem sido alvo das pesquisas desde o início do século vinte, após a abordagem liberal a respeito da interpretação das palavras ditas por Jesus. O bloco, no qual a perícope está inserida, que compreende os capítulo 5 a 7, é o primeiro bloco de discursos de Mateus, e é denominado “Sermão do Monte”, desde que Santo Agostinho deu esse título ao seu comentário a Mt 5-7.149 Segundo J.Jeremias, no Sermão do Monte encontra-se o ensino catequético para os novos discípulos, advindos do judaísmo farisaico, ou que antes eram adeptos dos escribas.150 Por se tratar de uma Didaquê, compreende o conteúdo do querigma, e todos os elementos fundamentais para a conduta e fé cristã. Sendo assim, nesses capítulos temos um programa de vida em termos de discipulado. O discípulo que conseguir viver segundo a proposta ali apresentada será considerado o maior, um discípulo perfeito.151 Na visão judaica, o Sermão do Monte tem sido lido como uma derashá; “que contém uma exposição de versículos extraídos do Pentateuco, sobretudo da segunda parte do decálogo.”152 148 Considerando que faz parte da continuação do primeiro bloco da atividade de Jesus, anunciando o reino de Deus. Cf. KÜMMEL, Introdução ao NT, p.123; CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.175s; MAZZAROLO, Evangelho de São Mateus, p.72; LADD, Teologia do NT, p.119, dentre outros. 149 De Sermone Domini in Monte. 150 Jeremias entende que há dois grupos específicos aqui, um dos escribas, que seriam teólogos da Torá, outros dos fariseus, leigos piedosos, com teólogos apenas na liderança. Estudos no Novo Testamento, p.99. 151 MARCONCINI, Os Evangelhos Sinóticos, p.133s. 152 FLUSSER, “Um paralelo rabínico ao Sermão da Montanha”. O Judaísmo e as Origens do Cristianismo, p.32. 45 Esse discurso, da forma como está construído, jamais deve ter sido proferido por Jesus.153 Há algumas representações importantes de Jesus como o novo Moisés, ao subir no monte para anunciar a vontade de Deus, expressa na Lei (Torá). Há uma reafirmação dessa Lei, com reformulações necessárias para que a comunidade seja ainda mais fiel ao propósito de Deus do que os outros grupos foram.154 A estrutura do Sermão do Monte é apontada como uma sucessão de temas superpostos. De um modo geral a estrutura é relativamente fácil de ser identificada. De acordo com Stanton155, as Bem-aventuranças (5,3-12) são uma introdução ao sermão como um todo; os ditos sobre o “sal” e a “luz” (5,13-16) seriam uma segunda introdução. 5,17-7,12 formam uma seção central, que abre e fecha com o dito que trata da Lei e dos Profetas, em 5,17-20 e 7,12. Depois disso há um epílogo, em 7,13-27, que fecha com coerência a proposta do sermão. Quanto à estrutura interna da seção central, é relativamente fácil identificar as partes de 5,17-6,18, como sua primeira grande parte. O dito sobre a Lei e os Profetas de 5,17-20 é explanado e exemplificado nas seis antíteses de 5,21-47. O verso 48 (“Portanto, sede perfeitos como perfeito é o vosso Pai que está nos céus”) pode ser uma conclusão de toda a parte. Já 6,1 inicia outra parte da seção central, em que Jesus trata da prática da religião de forma autêntica em contraste com uma forma hipócrita, que no texto não são claramente identificados, e com a forma gentílica de orar (6,2-18), com estruturas similares para falar da esmola (6,2-4), da oração – com o ensino do Pai-nosso (6,5-15) e do jejum (6,16-18). Já a segunda grande parte dessa seção (6,19-7,11) oferece maior dificuldade na definição de sua subestrutura. A princípio parece um quebra-cabeças, pois há ditos que tratam do dia a dia, com relação ao acúmulo de bens (6,19-23), com a ansiedade do pão cotidiano (6,24-34), além da proibição do juízo e do estímulo a uma confiança no Pai que está nos céus (7,1-11). De novo, há uma conclusão do conjunto de ditos que já foi associada a um dito de Hillel (“Portanto, tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei vós também a eles; porque esta é a 153 Cf. vimos anteriormente, na questão da autenticidade. Aceitamos, nesse sentido, que o fato dos ditos serem autênticos não inviabiliza uma construção redacional pelo autor. Pelo contrário, uma simples comparação de Mateus com Lucas deixa entrever que ambos se propuseram a essa tarefa. 154 Cf. BARBAGLIO, Os Evangelhos (1), p.104ss; SCHREINER, Forma e exigências do Novo Testamento, p.289-293; MATEOS, CAMACHO, O Evangelho de Mateus, p.55ss; 155 STANTON, A gospel for a New people, p.297s. 46 Lei e os profetas.”). Esse dito, na verdade, encerra a segunda parte da seção central, e prepara para o epílogo. A interpretação da Igreja a respeito do Sermão do Monte foi, desde muito cedo, entendido como um padrão para a vida cristã. A possibilidade de viver o sermão, de fato, caiu na esfera moral, como um padrão a ser buscado, em face das tentações e do pecado que assedia a alma humana. Mesmo Agostinho, no entanto, reviu sua interpretação do Sermão do Monte diversas vezes. Da mesma forma, Martinho Lutero, séculos depois, em sua interpretação, entendeu que havia um ideal para a vida cristã no sermão, mas que, diante da dificuldade de colocar em prática as premissas sobre a violência, em especial, entendeu que se trata no caso de “dois reinos”, um espiritual e outro terreno, dentro dos quais o cristão convive.156 Ainda para Lutero a vivência da chamada “Lei de Cristo” só pode se dar pela graça, pela qual Cristo nos aceita, mesmo sem sermos capazes de obedecer completamente seus mandamentos. Assim a Lei é também Evangelho, e não contradiz o espírito da nova aliança, tão cara à teologia protestante. Foi dessa forma que J.Jeremias compreendeu o sermão, como evangelho, como ele mesmo afirma: O Sermão da Montanha – esta é a nossa conclusão – não é lei, mas sim Evangelho. Pois, efetivamente, esta é a diferença entre lei e Evangelho: a lei deixa o homem entregue às suas próprias forças e o desafia a empregá-las ao máximo; o Evangelho, porém, coloca o homem diante do dom de Deus e lhe pede que faça deste dom inefável o verdadeiro fundamento de sua vida. São dois mundos diferentes. Para frisar bem a diferença, seria conveniente, na teologia do Novo Testamento, evitar as expressões “ética cristã”, “moralidade ou moral cristã”: este vocabulário profano é inadequado e pode dar margem a confusão. Seria melhor falar de “fé vivencial”: assim claramente se exprimiria que o dom de Deus precedeu suas exigências.157 Nos séculos XVIII e XIX, vários pesquisadores da vida de Jesus trabalharam com a idéia da mensagem do Sermão do Monte como continuação do judaísmo (Reimarus)158, como ética de pura moralidade (Baur)159, ou ainda uma verdade moral eterna, desprovida de limitações históricas e totalmente livre (Holtzmann).160 156 Cf. a exposição de STANTON, A Gospel for a New People¸ p.289-292. JEREMIAS, Estudos no Novo Testamento, p.112. 158 REIMARUS, Apologie oder Schutzchrift für die vernünftigen Verehrer Gottes. I. 99ss. 159 BAUR, Kritische Untersuchungen über die kanonischen Evangelien, ihr Verhältnis zueinader, ihren Charakter und Ursprung, Tübingen, 1847, p.585. 160 HOLTZMANN, Die synoptischen Evangelien, Leipisz, 1863, p.188. 157 47 Mas foi no século vinte que a interpretação escatológica do Sermão do Monte, ganhou corpo, especialmente a partir de A. Schweitzer. Influenciado pelas interpretações do final do século dezenove, entendeu que a pregação ética de Jesus era motivada pela expectativa do julgamento divino, tornando-se assim uma preparação para ele (ética do ínterim). Ou seja, não seria um sermão para as gerações seguintes, senão para aquela que estava vivendo naquele momento. Isso é demonstrado, segundo ele, em outras partes do evangelho de Mateus. Com essa interpretação abriu-se um campo de discussão em torno da relação entre o ensino ético de Jesus e a proclamação da vinda do reino de Deus. Mesmo assim, há tendências recentes que interpretam o sermão à luz da proclamação geral de Jesus nos sinóticos, a qual não seria escatológica futura, mas realizada. Crossan afirma mesmo que a pregação de Jesus tinha uma teologia da presença de Deus, uma escatologia participativa.161 Mais recentemente a pesquisa tem pensado na importância da crítica redacional para analisar o Sermão do Monte. Com isso identificou-se partes nos blocos de discursos que claramente apontam para a capacidade de Mateus como redator/autor, não somente como compilador de ditos. Isso leva a algumas questões sobre as quais os pesquisadores têm se debruçado: O Jesus de Mateus é só intérprete ou quer esclarecer o sentido da Lei de Moisés? A quem o sermão é endereçado, a todos ou só aos discípulos? Jesus é o novo Moisés, que sobe no novo monte Sinai, com a nova Lei? Que partes do sermão devem ser entendidas literalmente, e quais devem ser interpretadas como metáforas ou hipérboles? Afinal, o sermão é dominado por um senso escatológico (ética de ínterim) ou por uma prática diária saudável da fé? As questões acima estão no centro do debate e devem ser respondidas por parte, dito a dito, separando aquilo que vem de Jesus e o que deve ser acréscimo de Mateus a partir de sua necessidade em relação à sua comunidade. Nossa exegese deve passar, sem dúvida, por essas questões. 2.3.2. Mt 5,17-20 no contexto integral do evangelho 161 Cf. sua conferência “A vida de Jesus”, proferida no I Seminário Internacional do Jesus Histórico, no Rio de Janeiro, em 2007. 48 Mateus elaborou seu material, separando em blocos: narrativos e discursivos. Nas narrações encontramos ditos, que na verdade apontam para uma disputa.162 Nesses relatos, em geral, ele acompanha Mc e Lc. Nos discursos, no entanto, é que Mt expôs sua singularidade literária. “Os cinco discursos são composições de Mateus, que aproveitou materiais tradicionais que em geral já estavam reunidos em unidades menores de ditos.”163 Essa reunião se deu por meio de elementos temáticos comuns. Ao ler os capítulos 5 a 7, percebe-se claramente a intenção do autor em realizar todo um bloco centrado no tema da Lei, como sendo o primeiro grande discurso de Jesus. Ao qual Mateus dá seqüência com um bloco de narrativas de milagres. “Com isso ele quer mostrar que Jesus é o Messias da Palavra e o Messias da Ação. Palavra e ação: uma coisa não existe sem a outra.”164 Essa afirmação é menos problemática do que aquela que diz que os cinco discursos apontam Jesus como o novo Moisés, pois há outras estruturas numéricas que são mais evidentes e importantes para Mateus (o número 14 das gerações, o indicativo duplo em várias passagens: dois cegos, dois endemoninhados, etc..). Mateus contem um certo número de passagens que tratam da questão a respeito da Lei (Mt 5,18ss; 23,2ss.23s.25s; 22,34-40). A questão é saber de que forma realmente ele desejava relacionar a Lei com a sua comunidade. Por isso, em geral, os relatos apontam ou uma revisão do sentido da Lei (como nas advertências contra os escribas e fariseus no capítulo 23) ou uma síntese ética (a centralidade do amor no cumprimento da Lei, no capítulo 22).165 Também é perceptível que Mateus utilizou a expressão Mh. nomi,shte também em Mt10,34, que por sua vez tem paralelo com Lucas 12,51. Quando se trata da Lei, e da posição de Jesus a respeito disso, Mateus trabalha mais com a fonte Q do que com Marcos. Mesmo assim, não se pode ignorar que o tema percorre de alguma forma o evangelho de Marcos, pois aparece a discussão sobre a cura em dia de sábado (Mc 2,23-3,6) e a problemática da pureza ritual na alimentação (Mc 7,1-23, utilizado apenas por Mateus), como questões pontuais. Mas o evangelho de Marcos não registra o termo Lei (no,moj e suas variantes) em 162 Bultmann e Dibelius desenvolveram esse conceito, pelo nome de apoftegmata, ou seja, pequenas unidades narrativas cujo centro está numa palavra pontual de Jesus. 163 KOESTER, H., Introdução ao NT, p.189. 164 JEREMIAS, Estudos no NT, 92. 165 Cf. BARTH, “Matthew´s understanding of the Law”, p.62-78. 49 nenhum momento, pois está sempre mais ocupado com a ortopráxis do que com o discurso, diferente de Mateus, o qual associa ambas as atitudes. Mas uma questão importante é saber se o dito vem de Jesus ou de Mateus. É uma expressão do mestre, imitado pela comunidade em meio ao panorama da reconstrução do judaísmo, ou uma projeção desta para o problema da legitimidade de sua pregação, diante de outros modelos que “competiam” no cenário pós-70? Para podermos perceber isso precisaremos fazer uma análise da historicidade, a qual, apesar de não ser o cerne de nossa pesquisa, vai influenciar diretamente nas respostas a que estamos buscando. No próximo capítulo iremos fazer essa análise, precedida pelo estudo do texto em si, e seus aspectos literários e redacionais. 50 3 Análise de Mt 5,17-20 3.1. Crítica textual e tradução 3.1.1. O texto grego de Mt 5,17-20 17 Mh. nomi,shte o[ti h=lqon katalu/sai to.n no,mon h' tou.j profh,taj\ ouvk h=lqon katalu/sai avlla. plhrw/saiÅ 18 avmh.n ga.r le,gw u`mi/n\ e[wj a'n pare,lqh| o` ouvrano.j kai. h` gh/( ivw/ta e]n h' mi,a kerai,a ouv mh. pare,lqh| avpo. tou/ no,mou ( e[wj a'n 19 pa,nta ge,nhtaiÅ o]j eva.n ou=n lu,sh| mi,an tw/n evntolw/n tou,twn tw/n evlaci,stwn kai. dida,xh| ou[twj tou.j avnqrw,pouj( evla,cistoj klhqh,setai evn th/| basilei,a| tw/n ouvranw/n\ o]j dV a'n poih,sh| kai. dida,xh|( ou-toj me,gaj klhqh,setai evn th/| basilei,a| tw/n ouvranw/nÅ 20 le,gw ga.r u`mi/n o[ti eva.n mh. perisseu,sh| u`mw/n h` dikaiosu,nh plei/on tw/n grammate,wn kai. Farisai,wn( ouv mh. eivse,lqhte eivj th.n basilei,an tw/n ouvranw/nÅ 3.1.2. Crítica textual166 O verso 17 não apresenta variantes. A transmissão desse versículo foi imune a alterações, omissões ou acréscimos. Talvez se possa relacionar essa postura com o fato de tratar-se de uma afirmação cristológica, e por isso, considerada mais digna de atenção que uma narração comum. Dois termos têm bastante peso na tradução desse versículo: katalu/sai e plhrw/sai. O versículo 18 apresenta três variantes que devem ser comentadas. Na primeira, o acréscimo de “e os Profetas” no genitivo (kai twn profhtwn)167. Há nela uma tentativa de harmonização com o verso 17, que traz a mesma forma de articular Lei e Profetas (porém no acusativo). 166 De acordo com o texto NESTLÉ-ALAND, 27ª. edição. De acordo com Θ, f 13, o manuscrito 565, e outros manuscritos que divergem do texto majoritário, além da citação de Irineu167, todos do tipo cesareense. 167 51 Uma segunda variante no mesmo versículo omite a palavra an, que é uma partícula verbal que completa a frase (que), e tem “significado dubitativo ou condicional ou eventual em geral,”.168 É uma variante originada no texto do tipo alexandrino, mas com pouquíssimas testemunhas. Outro acréscimo constatado aparece no códice latino “c”169, que afirma caelum et terra transibunt, verba autem mea non praeteribunt, citando Mt 24,35: “o céu e a terra passarão, mas minhas palavras não irão passar” (o` ouvrano.j kai. h` gh/ pareleu,setai( oi` de. lo,goi mou ouv mh. pare,lqwsin)) Parece ser uma inserção a partir de um comentário litúrgico, talvez uma nota de margem, para referência de relação entre os dois textos, que depois foi incorporada como parte integrante. Sem valor para dar autoridade ao acréscimo, no entanto, essa relação nos ajuda a perceber como a perícope foi trabalhada em diferentes momentos da história.170 Avaliação das variantes do v.18 pelo critério externo: a primeira variante sofre diante dos seguintes problemas: é bastante atestada, mas em apenas um tipo de texto, o cesareense, que é considerado intermediário entre o tipo alexandrino (mais puro) e o ocidental (mais livre). As variantes atestadas por ampla expansão geográfica são preferíveis àquelas que constam apenas de um pólo. Também são manuscritos recentes, e a regra entende que manuscritos mais antigos devem ser preferidos. Na verdade, são melhores testemunhas para Marcos do que para Mateus.171 A segunda variante ainda tem a seu favor o testemunho de textos antigos do tipo alexandrino, mas a ausência dessa variante no sinaítico depõe contra os demais manuscritos. Pelo contrário, esse importante Uncial apresenta a omissão do termo. Acontece a mesma situação da variante anterior, pois não é constatada numa esfera geográfica maior. Dificuldade maior ainda encontra última variante, pois é atestada apenas em um códice, o que confere pouco peso a ela. Avaliação pelos critérios internos: em duas variantes há uma intencionalidade, no sentido de ser feita uma harmonização do texto. Na primeira, 168 RUSCONI, “a'n”. In: Dicionário Grego do Novo Testamento, p.38. Essa diferença aparece na maiúscula B*, l 2211, além de alguns outros poucos manuscritos (B* (séc. IV), o lecionário 2211 (séc. X), além de alguns outros). 169 Códice latino “c” (séc.XII/XIII). Esse códice é dos séc. XII/XIII, mas segue rigorosamente as mesmas porções de textos do códice “e”, que se originou no séc. V. 170 Cf. O texto de Nestlé-Aland se apóia nos demais manuscritos que atestam esse trecho de Mateus, e que contém as melhores testemunhas dele. NESTLÉ-ALAND, p.58 da introdução. 171 Cf. WEGNER, Exegese do NT, pp.44-47. 52 harmoniza-se com o verso 17, onde a Lei e os Profetas figuram juntos. Na última, há uma aproximação com o texto paralelo, presente no sermão do monte. Pelo critério de se preferir a leitura mais breve, além do critério que prefere textos não harmonizados com paralelos, essas variantes devem ser desconsideradas como o texto mais original. A segunda variante poderia entrar, considerando que torna a leitura mais difícil e breve (preferível). Conclusão: não há motivos para preferir qualquer uma das variantes, com exceção, talvez, da segunda. Por isso vamos acatar o texto de acordo com NestléAland. Alguns aspectos do texto devem ser ressaltados, para fins de tradução: avmh.n, a expressão ivw/ta e]n h' mi,a kerai,a e pa,nta ge,nhtai. O versículo 19 apresenta apenas uma variante, na verdade, uma omissão do trecho “aquele que observar e ensinar, será chamado o maior no reino dos céus”.172 Avaliação da variante: pelos critérios externos, os manuscritos que demonstram essa variante são de boa qualidade, e bastante antigos. Também expressam mais do que uma única área geográfica, pois têm representantes do texto alexandrino e do ocidental.173 O problema é que nem os melhores papiros, nem o Códice Vaticano (B) atestam essa forma. O mesmo acontece com as testemunhas do texto Ocidental, em que os papiros não atestam essa forma. Não há, assim, condições de avaliar pelo critério externo. Pelo critério interno, pode-se presumir que essa variante tenha mais peso do que os demais, pois o texto mais breve deve ser preferível, e nesse caso simplifica o versículo. Por outro lado, precisamos verificar se, teologicamente, esse trecho se coaduna com o restante do sermão do monte, onde a exaltação está nas pequenas coisas. O cumprir a Lei não é motivo para auto-justificação, pois esse é um dos motivos da crítica de Jesus aos Fariseus. Ao mesmo tempo, no entanto, faz parte do estilo de ensinamento de Jesus a antítese, e o paralelismo de membros. Considerando, então o critério externo e interno, tanto poderíamos deixar o v. 19 sem o trecho como mantê-lo. Como as muitas traduções do texto inserem esse trecho, vamos colocá-lo entre chaves [], para distinguir do restante do 172 De acordo com o códice ( *אnum texto original diferente das correções existentes), D (séc. V), W (séc. V) e um manuscrito da versão copta boaírica (talvez séc. IV). O texto adotado por NestléAland utiliza os demais manuscritos que testemunham esse trecho do Evangelho de Mateus. 173 O Códice Sinaítico ( )אé um dos mais antigos e melhores textos do NT, caracterizado, sobretudo, por sua brevidade e linguagem mais rude. 53 versículo, e posteriormente analisarmos sua funcionalidade no pensamento geral da perícope. O versículo 20 tem uma variante só: não consta do uncial D. Considerando o critério externo, pois no caso o critério interno não nos ajudaria, devemos desconsiderar essa variante, pois um único manuscrito não deve ser referência para a leitura encontrada em todos os demais. O texto de Nestlé-Aland, também nesse caso, se baseia em todas as testemunhas do Evangelho de Mateus, o que em si já desautoriza essa variante. Vamos manter o versículo e adotar o texto corrente. Considerados os fatores textuais apresentamos a seguir nossa tradução do texto. 3.1.3. Tradução de Mt 5,17-20 17 Não considereis que eu vim para anular a Lei e os Profetas174; não vim para anular, mas para cumprir. 18 Em verdade vos digo: até que passem o céu e a terra, nem um iota (yod) ou um pequeno sinal (qots)175 da Lei passará, sem que tudo aconteça. 19 Portanto, qualquer um que violar o menor dos mandamentos, mesmo que insignificante, e assim ensinar às pessoas, será chamado o menor no reino dos céus; [aquele que observar e ensinar, será chamado o maior no reino dos céus.] 20 Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus. 3.2. Análise Literária A análise literária de Mateus já descreveu que, de uma forma geral, a obra foi elaborada em blocos que alternam discurso e ação, conforme já apontado no capítulo anterior. A seguir, faremos a análise específica do evangelho, em relação à perícope de Mt 5,17-20 174 to.n no,mon h' tou.j profh,taj. Considerando o ambiente aramaico da religião de Jesus, é mais coerente considerar que a expressão já está traduzida do hebraico “Torá ve Nebîim” (~yaiybin>w> hr;wOt). Na tradução e em diferentes partes do trabalho adotaremos o termo “Lei e Profetas”, levando em consideração esse aspecto do texto. 175 A expressão ivw/ta e]n h' mi,a kerai,a (um iota ou um pequeno sinal) deve ser concebida dentro do universo lingüístico semita, e por isso pode ser traduzido por “um yod ou um qots”. O yod é a menor letra do alfabeto hebraico, que não têm vogais, enquanto o qots (pequeno sinal) era uma pequena marca utilizada para adornar o texto da Torá. BROWN, R.E., e FITZMEYER, J., Comentário Bíblico “San Jerônimo”, p.185. 54 3.2.1. Delimitação e estrutura da perícope A perícope de Mt 5,17-20 está inserida no grande bloco de discurso conhecido como “Sermão do Monte” ou “Sermão da Montanha”. Falar dessa perícope sem falar do bloco literário onde está inserida é quase impossível, pois seria ignorar o papel dessa fala dentro do programa de ensino de Jesus quanto ao reino de Deus (dos Céus). A delimitação da perícope é aparentemente simples. Trata-se de um material cuja redação é claramente perceptível quando se observa o conjunto de textos do sermão do monte em contraste com os demais evangelhos.176 A análise redacional perceberá essa questão, mas desde já podemos apontar os aspectos literários presentes no texto. Apesar da redação de Mateus juntar diversos ensinamentos nesse bloco (cap.5-7), é possível delimitar as pequenas unidades presentes no discurso, mesmo diante do trabalho redacional. No entanto, a aparente clareza para delimitar o trecho recai numa questão: 5,17-20 serve de sumário esquemático introdutório para o conjunto de interpretações de Jesus com respeito à Lei em 5,21-48? Ou é uma afirmação contraditória, que é posicionada ali para mostrar aos ouvintes como o tema da Lei é complexo e impreciso? Vamos analisar melhor esse aspecto mais à frente na pesquisa. O trecho que antecede (5,13-16) é a continuação da grande introdução do sermão do monte. Nela Jesus afirma os discípulos como sal da terra e luz do mundo. Parece encerrar o assunto com a expressão “assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus”. O trecho posterior inicia uma longa seção que trata de diferentes posicionamentos de Jesus no tocante à Lei Mosaica, em geral alterando a maneira como se deve agir. A fórmula típica desse trecho é “Ouvistes o que foi dito pelos Antigos; eu porém, vos digo” [VHkou,sate o[ti evrre,qh toi/j avrcai,oij], 176 De fato, a maioria dos autores trabalha essa perícope com esses limites, mas relacionada com o restante do “Sermão da Montanha”, cf. MAZZAROLO, I., O Evangelho de São Mateus, p.83s; CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.189s; BARBAGLIO, G., Os Evangelhos 1, p.117s; LAGRANGE, M., Évangile selon Saint Matthieu, p.78; MARGUERAT, D., Le jugement das l’Évangile de Matthieu; BONNARD, P., Évangile selon Saint Matthieu, p.60; TRILLING, W., El verdadeiro Israel, p.239ss; BANKS, R., “Matthew´s understanding of the Law”, p.226. 55 que sintetiza a idéia jurídica e teológica presente no conjunto de sentenças, num sistema antitético177. Assim colocada, a perícope de 5,17-20 tem função de introdução da série de antíteses legais do sermão do monte (5,21-48). Como função de introdução, o texto tem muito a ver com a análise global do evangelho de Mateus a respeito da verdadeira essência da Lei e da obediência a ela. Uma estrutura possível do trecho é a seguinte: 17: Não considereis que eu vim para anular a Lei e os Profetas; não vim para anular, mas para dar pleno sentido. 18: Em verdade vos digo: até que passem o céu e a terra, nem um iota (yod) ou um pequeno sinal (qots) da Lei passará, sem que tudo aconteça. 19: Portanto, qualquer um que violar o menor dos mandamentos, mesmo que insignificante, e assim ensinar às pessoas, será chamado o menor no reino dos céus; aquele que observar e ensinar, será chamado o maior no reino dos céus. 20: Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, de modo nenhum vocês entrarão no reino dos céus. Nessa estrutura percebe-se um paralelismo permeando o texto, característica do ensino de Jesus.178 No v.17 encontramos a idéia inicial de afirmar que não veio para destruir sendo encerrada com a repetição de katalu/sai, para em seguida apresentar a idéia de dar pleno cumprimento com o verbo plhrw/sai. No v.18 verifica-se duas repetições nas três afirmações que seguem a avmh.n ga.r le,gw u`mi/n\ A primeira afirmação é espelho para as duas seguintes. Primeiro 177 Essa expressão é encontrada em diversos autores, desde que J. Jeremias analisou o estilo dos ditos de Jesus a partir das estruturas semíticas, das quais o paralelismo é a mais presente no Novo Testamento. Ele mesmo considera que tanto Mt 5,17 quanto o trecho de 5,21-48 devem ser tratados como paralelismo antitético. Teologia do Novo Testamento, p.45 et.seq. W. Carter utiliza a expressão “seis ‘por exemplo’” para essa unidade que vai de 5,21-48. Evangelho de Mateus, p.194 et.seq. 178 Cf. WEGNER, U., Exegese do Novo Testamento, p.90s. 56 repete que nada passará - pare,lqh| - na segunda afirmação, comparando o fato de que nem as menores partes da Lei perderiam a validade antes que chegasse o fim do céu e da terra. Depois repete a fórmula e[wj a'n, como abertura da idéia de que tudo acontecerá antes que o céu e a terra deixem de existir. O v.19 tem paralelismo em duas partes do texto. Primeiro, ligando a idéia de que aquele que violar o menor - evlaci,stwn – dos mandamentos será o menor evla,cistoj – no reino dos céus. O segundo paralelismo está na repetição da expressão klhqh,setai evn th/| basilei,a| tw/n ouvranw/nÅ Como cada um será considerado no reino dos céus vai depender de sua atitude diante da Lei. Joachim Jeremias analisou o paralelismo antitético nos ensinos de Jesus, e percebe nessa perícope a ocorrência em 17 (a//b), 19 (a//c)179, conforme esquema a seguir: 17: Não considereis que eu vim para anular a Lei e os Profetas; não vim para anular, mas para dar pleno sentido. 19: Portanto, qualquer um que violar o menor dos mandamentos, mesmo que insignificante, e assim ensinar às pessoas, será chamado o menor no reino dos céus; aquele que observar e ensinar, será chamado o maior no reino dos céus.180 Nesse tipo de ensino aparenta o semitismo subjacente ao ensino de Jesus. Para Jeremias, o paralelismo antitético nos aproxima das ipsissima verba de Jesus, acima de qualquer outro estilo de pregação.181 Jeremias também pesquisou o ritmo na fala de Jesus (no aramaico), para verificar uma tendência de estilo oral. Dentre os diversos tipos (quatro, na verdade)182 analisados, ele apontou o v.17 como exemplo de métrica “quinária”.183 179 JEREMIAS, J., Teologia do NT, p.47. Segundo C.F. Burney o paralelismo antitético “caracteriza o ensino de Nosso Senhor em todas as fontes dos evangelhos”. The Poetry of Our Lord, p.83. 180 Colocamos em itálico os termos antitéticos, e em negrito os termos repetidos, mas em oposição. 181 JEREMIAS, J., op.cit., p.46. 182 Ritmos de quatro acentos, três acentos, dois acentos e a métrica quinária, cf. Ibid., p.53. 183 Segundo Jeremias, “o ritmo especial é o da métrica ‘quinária’, que se apresenta assim: 3+2, com variação ocasional de 2+2 e 4+2. Originariamente era usada na lamentação dos mortos (qina), na qual a carpideira que dirigia o canto fúnebre entoava um lamento mais longo (ritmo de três acentos), ao qual as outras carpideiras respondiam com uma entonação mais breve (ritmo de dois acentos”. Ibid., p.63. 57 Segundo Jeremias, no verso 18 há uma hipérbole, um estilo de linguagem muito comum em Jesus, usado para chamar a atenção dos ouvintes.184 Além disso, chama a atenção o uso do Amém, “para o qual não existe paralelo em toda a literatura do judaísmo antigo nem do resto do Novo Testamento”.185 Mateus é quem mais faz uso dessa expressão, mas ela é comum aos demais evangelhos, inclusive o joanino. O uso da expressão avmh.n ga.r le,gw u`mi/n\ no evangelho de Mateus, exatamente assim ou sem a palavra ga.r ocorre 30 vezes além dessa de 5,18186, enquanto ocorre 14 vezes no evangelho de Marcos, 8 vezes em Lucas e 25 vezes em João, o evangelista que utiliza o amém repetido na fórmula, para dar maior ênfase. Sem dúvida, é digna de análise a importância que Mateus dá a essa expressão. Para uma análise das fontes utilizadas por Mateus nessa perícope, vamos colocar o quadro sinótico da perícope de Mt 5,17-20 de acordo com Aland:187 Mateus 5,17-20 17 Lucas 16,16-17 Mh. nomi,shte o[ti h=lqon katalu/sai to.n no,mon h' tou.j profh,taj\ ouvk h=lqon katalu/sai 16 ~O no,moj kai. oi` profh/tai me,cri VIwa,nnou\ avpo. to,te h` basilei,a tou/ qeou/ euvaggeli,zetai avlla. plhrw/saiÅ kai. pa/j eivj auvth.n bia,zetaiÅ 18 17 avmh.n ga.r le,gw u`mi/n\ e[wj a'n pare,lqh| o` Euvkopw,teron de, evstin to.n ouvrano.n kai. th.n ouvrano.j kai. h` gh/( ivw/ta e]n h' mi,a kerai,a ouv mh. gh/n parelqei/n h' tou/ no,mou mi,an kerai,an Pare,lqh| avpo. tou/ no,mou( pesei/nÅ e[wj a'n pa,nta ge,nhtaiÅ 19 o]j eva.n ou=n lu,sh| mi,an tw/n evntolw/n tou,twn tw/n evlaci,stwn avnqrw,pouj( kai. evla,cistoj dida,xh| ou[twj klhqh,setai evn tou.j th/| basilei,a| tw/n ouvranw/n\ o]j dV a'n poih,sh| kai. dida,xh| ou-toj me,gaj klhqh,setai evn th/| basilei,a| tw/n ouvranw/nÅ 20 le,gw ga.r u`mi/n o[ti eva.n mh. perisseu,sh| u`mw/n h` dikaiosu,nh plei/on tw/n grammate,wn kai. Farisai,wn( ouv mh. eivse,lqhte eivj th.n basilei,an tw/n ouvranw/nÅ 184 Cf. Ibid., p.68. JEREMIAS, J., Teologia do NT, p.77. 186 Mt 5,26; 6,2.5.16; 8,10; 10,15; 10,23; 10,42; 11,11; 13,17; 16,28; 17,20; 18,3.13.18.19.23.28; 21,21.31; 23,36; 24,2.34.37; 25,12.40.45; 26,13.21.34. 187 NESTLÉ-ALAND, Synopsis of the Four Gospels, p.52. 185 58 Há uma unidade básica na perícope, mas que demonstra rupturas e ligações ligadas redacionalmente. O v.17 é uma afirmativa fechada em si mesma, que pode inclusive ser analisada em separado do restante da perícope. O v.18 está relacionado ao assunto no sentido geral, mas é proveniente de Q (Cf. abaixo) e é um logia independente. O v. 19 conecta-se melhor com o 17, continuando o raciocínio de cumprir ou não cumprir a lei. Apenas para ilustrar o que afirmamos antes, o v. 20 também desloca o raciocínio do cumprimento da Lei para a prática da justiça dos escribas e fariseus (o que em essência é a mesma coisa, com terminologia diferente). Há um pequeno ponto de contato entre ambos na expressão de que não passarão nem céu nem terra antes que a menor partícula da Lei se cumpra. Aparentemente, então, o v.18 de Mateus seria proveniente de Q, usado também por Lucas (16,17), mas de maneira totalmente diferente. A perícope lucana está inserida no tema a respeito de João Batista e de como se deve ter acesso ao reino de Deus.188 Quanto aos versículos 17, 19 e 20, são material exclusivo de Mateus. Por isso mesmo pode-se falar numa coesão maior entre os v. 17 e 19, com o v.18 sendo um arranjo redacional. O que fica nesse caso é o seguinte: será que Mateus usou esse dito no centro da perícope para dar maior autoridade ao restante? Considerando que Q é uma fonte conhecida também em outras comunidades, a inserção dessa logia é bastante justificada. 188 Curiosamente, esse dito de Q presente em Mateus e Lucas não está no mesmo bloco literário, ou seja, enquanto Mateus colocou-o numa perícope do Sermão do Monte, Lucas trabalhou esse dito fora do contexto do sermão da planície, que é o correlato lucano para o Sermão do Monte. Como indicou J. JEREMIAS: “O Sermão da Montanha tem seu correlato em Lucas, a saber, o Discurso da Planície (Lc 6,20-29). (...) Todavia, o Discurso da Planície é mais curto que o Sermão da Montanha. Disso se deve concluir que temos no Discurso de Lucas uma forma mais antiga do sermão”. Estudos no Novo Testamento, p.92. 59 Por outro lado, Boismard apresenta a seguinte análise sinóptica:189 Mt Mc Lc 24 34a En verité je vous dis que ne passera pas cette génération... 13 30a En vérité je vous dis que ne passera pas cette génération... 21 32a En Vérité je vous dis que ne passera pás cette génération... 35 31 33 Mt Lc 17 5 N'allez pas croire que je sois venu abolir la Loi ou les Prophètes : je ne suis pas venu abolir, mais accomplir. 18 Car verité je vous (le) dis : avant que passent le ciel et la tierra Le ciel et la terre passeront, mais mes paroles Le ciel et la terre passeront, mais mes paroles Le ciel et la terre passeront, mais mes paroles un seul iota ou un seul trait ne passeront pas. ne passera pas, de la Loi, avant que tout soit arrivé. 19 20 ne passeront pas. ne passeront pas. 16 17 Mais il est plus facile que le ciel et la terra passent, qu’un seul trait de la Loi ne tombe. 34b ...avant que tout 30b...avant que tout 32b...avant que tout cela soit arrivé. cela soit arrivé. cela soit arrivé. Celui donc.... Car je vous... A sinopse de Boismard indica outra proposta, essa com um dito registrado no próprio Mt, Mc e Lc: “Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que tudo isto aconteça. Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras não passarão” [avmh.n le,gw u`mi/n o[ti ouv mh. pare,lqh| h` genea. au[th e[wj a'n pa,nta tau/ta ge,nhtai]. Nos três evangelistas, esse dito está inserido no chamado “sermão profético”, na verdade um texto de cunho escatológico, com certa abordagem apocalíptica.190 Goppelt trabalha com a idéia de que Mateus introduziu a última parte da paralela de 24,34b (“sem que tudo isto aconteça” [[wj a'n pa,nta tau/ta 189 BENOIT, P., BOISMARD, M. F., Synopse des quatre evangiles, p.46. Cf. CARTER, W., O Evangelho de Mateus, p. 580ss. A. Schweitzer foi quem lançou a idéia de Jesus como um pregador apocalíptico, o que foi muito criticado pela academia. Käsemann trabalha a questão, tentando resgatar o sentido de uma mensagem escatológica em Mateus como forma de alertar contra a anomia. Essa mensagem teria em mente um juízo escatológico. “Os inícios da Teologia Cristã”, in: Apocalipsismo, pp.231-254. K. BERGER admite que Mt 5-7 apresenta uma “motivação claramente escatológica”. Formas Literárias do NT¸ p.120. 190 60 ge,nhtaiÅ]), “para ligar esse dito com o versículo precedente, o v.17.”191 O paralelo em Lucas (16,17) não tem essa última expressão, como se pode verificar na análise de Aland, acima. Isso nos levará, inevitavelmente, a uma questão: até onde se pode pensar o dito em termos escatológicos? Sabendo que Jesus pregava e pensava em categorias escatológicas, não é de se admirar a similaridade de termos e idéias entre esses textos. Por outro lado, a fonte Q tem sido caracterizada por uma abordagem escatológica, pelo menos em parte do material.192 Assim, o dito de Mt 5,17-20 teria por trás de si uma orientação escatológica, que vamos analisar mais profundamente no capítulo 3. 3.2.2. Forma e Gênero Literário Do ponto de vista de gênero e forma, certamente estamos diante de material discursivo, mas vamos nos aprofundar a fim de perceber de qual tipo de discurso estamos tratando, para situar melhor o Sitz im Leben193 de Mt 5,17-20. Os evangelhos foram bastante pesquisados nesse campo, e há algumas posições a respeito da forma. De um modo geral, Bultmann qualifica a perícope como um dito do gênero profético,194 proveniente de material de Q, e retrabalhado na tradição mateana. Ao considerar esses ditos isoladamente, percebe-se que todos estão no subgênero de ditos proféticos, de acordo com a classificação de U. Wegner:195 · no v. 17 um dito iniciado com h=lqon (“eu vim”) · no v.18 um dito introduzido por avmh.n (“em verdade”). 191 GOPPELT, L., Teologia do NT, p.132. MACK, B.L., O Evangelho Perdido, pp.145-157. 193 Termo bastante utilizado por Dibelius e Bultmann e sua Formgeschichte. Wegner traduz por lugar vivencial, e explica: “é uma expressão que procura reproduzir as palavras alemãs ‘Sitz im Leben’. Sitz significa ‘lugar/assento’ e im Leben quer dizer ‘na vida’. Literalmente ‘Sitz im Leben’ significa, pois, ‘lugar na vida’ = ‘lugar vivencial’. Alguns autores preferem outras traduções, como ‘lugar de origem’, ‘situação geratriz’, ‘ambiente vital’ ou ‘contexto histórico’.” Exegese do NT, p.171. Em nossa pesquisa vamos nos manter o termo no alemão, por se tratar de termo largamente utilizado pela exegese. 194 BULTMANN, R. L’histoire de la Tradition Synoptique, p.519. 195 De acordo com a exposição de WEGNER sobre as conclusões de Bultmann, Exegese do NT, p.201. De fato, nesse trecho de sua pesquisa, Bultmann só trabalhou com o material sinóptico – atestado em Mt, Mc e Lc – mas por analogia, acreditamos que essas formas possam ser aplicadas ao texto em questão. BULTMANN, op.cit., p.519. 192 61 · nos v. 19 e 20 ditos de correlação escatológica (19: “aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus”; 20: “se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus.”); Segundo essa classificação, o Sitz im Leben dessa perícope seria o discurso parenético na comunidade. Através das palavras de Jesus a comunidade receberia instruções, conselhos e mandamentos. Teriam também a função de auxiliar na comunidade uma descrição a respeito da natureza da pessoa de Jesus.196 Jeremias trabalha em outra direção, pois ao analisar o Sermão do Monte como um todo ele enxerga ali uma Didaquê, ou seja, o texto nasceu no ambiente da catequese dos novos discípulos da comunidade. Ele afirma também que o v.17 é um dito sobre a própria pessoa de Jesus, bem como enquadra o v.18 na mesma categoria.197 Seguindo essa lógica, os v. 19 e 20 estariam direcionadas para a polêmica com os fariseus e escribas, e seria uma introdução para a exposição a respeito no trecho de 5,21-48. Esse dito de Jesus apresenta-se de tal maneira em Mateus – inserida no grande conjunto do Sermão do Monte - que ganha ares de halaká cristã.198 Flusser, no entanto, compara o Sermão da Montanha como uma derashá, e o método exegético de Jesus, comparável a um midrashim rabínico.199 No extenso estudo de K. Berger sobre as formas literárias do Novo Testamento, que atualizou a pesquisa de Bultmann, há diversos aspectos a serem apontados. De forma abragente, ele apontou o Sermão do Monte como um gênero de discurso, “composto de material variado.”200 Para Berger, aliás, o trecho 5,1720 faz parte de um todo bem delimitado, uma grande perícope que envolve 5,2-48. O material variado a que Berger se refere faz parte do tipo de texto simbulêutico e epidíctico. 201 Ambos os gêneros permeiam a perícope, que parece ter nascido na 196 Cf. WEGNER, U., Exegese do NT, p.199. Cf. JEREMIAS, J., Estudos no NT, p.98. A análise do Amém como expressão exclusiva de Jesus foi deixada para o momento da Análise da Historicidade do texto, cf. infra. 198 Cf. SCHREINER e DAUTZENGERG, Formas e Exigências do NT, p.289. 199 FLUSSER, D., “Um paralelo rabínico ao Sermão da Montanha”, p.32. 200 BERGER, K., Formas literárias do NT, p.67. J.M.Robinson enxergou nos textos de Q ainda outro gênero, próximo daqueles estudados por Bultmann e Berger. Ele percebeu que na literatura antiga os conjuntos de ditos eram em geral atribuídos a sábios, como os antigos conjuntos sapienciais egípcios ou israelitas. Por isso batizou-os de logoi sofôn (ditos dos sábios). Assim, se o v.18 realmente pertencer a Q, e tudo indica que seja, então também compartilha esse gênero. 201 BERGER conceitua assim os textos simbulêuticos: “pretendem mover o ouvinte a agir ou a omitir uma ação. O nome vem do grego symbouléomai = aconselhar. Frequentemente dirige-se à segunda pessoa. A forma mais simples é a admoestação; a mais complexa, a argumentação simbulêutica.” Já os textos epidíctico são definidos como aqueles que “tencionam impressionar o 197 62 forma oral, para depois ter sido registrada por escrito. Como unidade própria, Mt 5,17-20 é identificada como um discurso normativo, que é um ensino antropológico-ético. Ali se trabalha a validação da Lei. Analisando as partes da perícope, podemos perceber no v.19 o gênero simbulêutico, um dito com cunho parenético. Sua forma seria de uma admonição no esquema “ato-efeito”, uma promessa condicional de salvação ao lado de anúncios condicionais de desgraça: uma conclusão bipartida. Há também um anúncio condicional de perdição, numa fórmula de canonização, à qual o v.18 é incluído. Ainda no esquema “ato-efeito”, o v.20 aponta para um dito sobre o “entrar” no reino de Deus e sobre “herdar” e “ver”, sendo uma frase condicional. Há, no entanto, uma possibilidade de ver na perícope o gênero epidíctico, na forma de um dito que contenha o “eu” do enviado, especialmente na expressão “Eu vim...”, presente no verso 17.202 A característica geral do gênero simbulêutico está expressa em seu uso de parênese, que Dibelius definiu como uma série de admonições de conteúdo ético.203 Para compreender adequadamente seu sentido, especialmente no caso do Sermão do Monte, é preciso analisar a forma como se dá a parênese no contexto jurídico judaico. O sistema legal judaico pouco tinha a ver com o direito romano, e os discursos de Jesus que tratam dessa matéria não podem ser interpretados à luz deste. Em geral, no tempo de Jesus, o direito se fundamentava nas grandes autoridades que interpretavam a Lei. Aqui temos um dado que nos ajudará a aprofundar a nossa compreensão sobre a relação entre Jesus e a Torá, e sua exigência de justiça. Trilling204, por sua vez, analisa cada versículo da perícope como tendo uma forma própria: o v.17 como uma sentença teológica na forma do EU; o v.18 uma palavra profética; o v.19 como uma sentença legal; e o v.20 também como palavra profética, mas que adiciona uma regra de piedade. Com isso cada verso teria um Sitz im Leben próprio. O panorama geral da perícope, enfim, nos leva a um Sitz im Leben cuja principal função é parenética, pois pretende orientar a vida da comunidade à luz leitor, para fazê-lo sentir admiração ou repulsa; sua sensibilidade para valores é abordada na esfera pré-moral”. Op.cit., p.21. 202 BERGER, K. op.cit., p.111 passim. 203 Cf. DIBELIUS, Der Brief des Jacobs, p.16s. 204 TRILLING, W., El verdadeiro Israel, p.265. 63 do modelo que Jesus representa para ela, que pode ser num nível de catequese, como propõe J. Jeremias. 3.3. Análise redacional No capítulo anterior pudemos ver, de forma panorâmica, o objetivo de Mateus em sua redação, e na estrutura que moldou para atender a esse objetivo. Aqui desejamos discutir a redação específica de 5,17-20, à luz de seu contexto imediato205. Antes porém, analisaremos a atividade redacional mateana, em relação às fontes utilizadas. 3.3.1. Aspectos redacionais do evangelho de Mateus O evangelho de Mateus apresenta sinais de atividade redacional pela forma como ele utilizou os materiais que tinha à disposição. Ele os modificou e agrupou segundo um determinado objetivo que transparece durante a obra. Os discursos formam blocos temáticos, e cada um é encerrado com a fórmula “e aconteceu que, concluindo Jesus este discurso” [Kai. evge,neto o[te evte,lesen o` VIhsou/j tou.j lo,gouj tou,touj(], ou semelhantes (em 7,28; 11,1; 13,53; 19,1; 26,1). Uma análise sinóptica percebe material comum entre Mateus, Marcos e Lucas, o que conferiu aos três a denominação de evangelhos sinóticos.206 No entanto, dois aspectos há muito têm sido trabalhados: há partes em cada um dos três (inclusive Mc) que não foram utilizadas pelos outros dois; e mesmo o material comum muitas vezes apresenta diferenças e alterações. Isso deixou claro que os evangelistas tinham, cada um, objetivo teológico e literário próprio, e que não eram meros compiladores, mas redatores com plena capacidade de interferência no texto, ou na tradição.207 205 A análise da perícope à luz do contexto temático e integral foi feita no capítulo anterior, p.4349. 206 Esse termo foi atribuído aos escritos dos três primeiros evangelhos pelo pesquisador alemão J.J. Griesbach, em sua obra Synopsis evangeliorum [sinopse dos evangelhos], publicada em 1776. 207 Sobre a questão sinótica ver: A clássica obra de BULTMANN, R. L’historie de la Tradition Synoptique. Uma obra que trás vasta bibliografia para aprofundamento é KÜMMEL, W.G. Introdução ao NT, pp.36-93. Duas obras introdutórias em português que dão uma visão panorâmica: DAUTZENGERG, SCHREINER, Formas e Exigências do Novo Testamento, p.256273; MARCONCINI, B., Os Evangelhos Sinóticos, p.69-84. 64 Com relação à dependência literária, a pesquisa atual tem aceitado de forma bastante ampla a tese de que Mateus utilizou material de Mc e Q – a teoria das duas fontes208. A grande questão está em torno do material próprio – a fonte M, ou tradição M. Para alguns ela pode ser na verdade parte do material de Q numa versão ampliada, que Lucas não aproveitou.209 Outros defendem que a fonte M teria sido uma terceira fonte escrita, por se tratar de vasto material.210 Uma terceira posição, no entanto, defende que o material exclusivo de Mateus seja proveniente da tradição oral.211 A dificuldade está em como comprovar essa fonte. Alguns autores pensam que a correlação estaria na forma como Mateus cita o AT, em trechos exclusivos (ex: 1,23; 2,15.18s.23; 4,15s; 8,17; 12,18-21; etc.). Todas elas são iniciadas pelas fórmula de cumprimento “para que se cumprisse o que foi dito da parte do Senhor pelo profeta” [i[na plhrwqh/| to. r`hqe.n u`po. kuri,ou dia. tou/ profh,tou le,gontoj(], ou semelhantes a essa. Mas mesmo aí há um problema. A análise desse material demonstrou que, na verdade, foi Mateus quem compôs essas fórmulas, e não as teria colocado a partir de alguma fonte212. Seria assim o trabalho redacional próprio do evangelista. 3.3.2. Atividade redacional em Mt 5,17-20 Na perícope de 5,17-20 temos uma pequena unidade redacional que, conforme vimos na análise literária (2.2.1) tem, como fonte, material comum a Lc 16,17, provavelmente advindo de Q, mas que também guarda semelhanças com outra perícope (Mt 24, 34-35), paralela a Mc 13,30-31 e Lc 21,32-33. Os v.17, 19 e 20 pertencem ao material próprio de Mateus, e mesmo podendo ser de diferentes momentos, foram reunidos em torno da temática do cumprimento da Lei. Mas como se pode analisar a redação dessa perícope? Redacionalmente, Bonnard considera que os quatro versos de 5,17-20 não são coerentes entre eles, nem na forma nem no conteúdo, o que transparece um 208 Desenvolvida pelo filólogo C. Lachmann no século XIX, e muito aceita hoje em dia pelos exegetas, mesmo considerando alguns problemas e questões não resolvidas, como o material exclusivo de Lc (quase do tamanho do evangelho de Mc) e a citação de Papias a respeito de um texto de Mateus em aramaico, nunca encontrado. 209 Cf. as teses de Bacon, J.P.Brown e Strecker. 210 Cf. MANSON, T.W., The Sayings of Jesus; e as teses de Johnson, Henshaw, Kilpatrick, et all. 211 Kümmel defende essa tese, Introdução ao NT, bem como Albertz, Guthrie, Heard, Dahl. 212 Cf. Grundmann, Lohmeyer, Bacon, Strecker. 65 arranjo redacional de diversos elementos da tradição prémateana.213 Marguerat considera essa perícope uma das mais difíceis do ponto de vista literário e redacional, pois com exceção do v.18, que pode ser comparado diretamente com Lc 16,17, não há clareza no restante do material quanto ao uso de fontes e arranjo redacional. Os indícios de trabalho redacional se dão por conta da cadeia de conjunções que articula o pensamento geral da perícope ( “ga,r” 18, “oun” 19a, “de,” 19b, “ga,r” 20).214 Seguindo a análise de Trilling, na seção sobre a forma do texto (3.2.2), há indícios de atividade redacionais, pois Mateus junta num pequeno conjunto de sentenças expressões que, a despeito da aproximação temática, são oriundas de ambientes específicos, e respondem a questões diferentes, quando analisadas isoladamente. Se as sentenças, isoladamente, vêm de Jesus, foram trabalhadas em conjunto pelo evangelista para tratar da questão mais ampla a respeito da Lei.215 Barth216, por outro lado, entende que os vv.18 e 19 formam uma unidade, pois o salto entre o v.19 e o 20 é grande demais para ser uma redação mateana, ou seja, Mateus já os teria encontrado da forma como estão. Já o v.17 parece uma construção de Mt, ao mesmo tempo em que permite uma interpretação para o v.18. Ambos são parte de uma costura redacional. Seja como for, de acordo com Barth, o núcleo central 18 e 19 seria mais antigo, com complementos posteriores, os v. 17 e 20. Bultmann já havia diagnosticado que o v.20 é uma construção do evangelista, elaborada para introduzir a série de antíteses de 5,21-48.217 Já Pregeant aborda a questão redacional levando em conta todo o conjunto ao qual 5,17-20 está ligado: as antíteses (5,21-48) e também as orientações de Jesus para a comunidade (6,1-18). Ele considera que a melhor hipótese para a redação está na relação v.17 ligado às antíteses (como se deve interpretar as escrituras hebraicas), e o v.20 relacionado às orientações (como praticar a justiça superior a dos escribas e fariseus). E entende que os v.18 e 19 são uma inserção de 213 BONNARD afirma: “D’ailleurs, les quatre versets de Mat., tant pour la forme que pour le fond, ne sont pás absolument cohérents entre eux; il s’agit sans doute d’un arragement réunissant divers éléments de la tradition prémathéenne; em conséquence, il serait faux d’y chercher um développement selon les normes d’une logique occidentale.” L’Évangile selon Saint Matthieu, p.60s. 214 MARGUERAT, D., Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p. 112. 215 TRILLING, W., op.cit., p.265. 216 BARTH, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.65s. Como também M. LAGRANGE, que chega a afirmar que “la suite serait limpide, si l’on passait du v.17 au v.20. Le v.18 semble être là comme une transition entre le v.17 et le v.19.” Évangile selon Saint Matthieu, p.95. 217 BULTMANN, R., L’historie de la tradition synoptique, p.176. 66 Q, e assim a perícope deve ser lida como vv.18-19 à luz de 17-20 e não o contrário.218 Realmente, o v. 17 apresenta características de uma atividade redacional. De acordo com Marguerat, Mt repete a fórmula “to.n no,mon h' tou.j profh,taj”, originária da fonte Q, em 5,17, 7,22 e 22,40, como recurso redacional. O verbo “plhroun” faz parte da terminologia própria de Mateus.219 Além disso, Banks entende que as palavras de abertura (Mh. nomi,shte) são um artifício retórico para reforçar o aspecto positivo das sentenças seguintes.220 O v. 18, em comparação com Lc 16,17 apresenta alguns aspectos peculiares, segundo o quadro comparativo entre os dois textos: Mateus 18 avmh.n ga.r le,gw u`mi/n\ e[wj a'n pare,lqh| o` Lucas 17 Euvkopw,teron de, evstin to.n ouvrano.n kai. th.n ouvrano.j kai. h` gh/( ivw/ta e]n h' mi,a kerai,a ouv mh. gh/n parelqei/n h' tou/ no,mou mi,an kerai,an Pare,lqh| avpo. tou/ no,mou( e[wj a'n pa,nta ge,nhtaiÅ pesei/nÅ Apesar da construção um pouco diferente, ambos se baseiam nos mesmos vocábulos, especialmente o termo “pare,lqh”, subjuntivo do verbo pare,rcomai, e quer dizer “passar, passar além”. Em 5,18 pode ser entendido no sentido metafísico, como algo que vai passar, ter fim, perecer.221 Esse verbo aparece em Lc seis vezes, quase sempre com conotação escatológica.222 Em Mateus aparece um pouco mais, oito vezes, em contextos diferentes, nem sempre escatológicos: além das duas vezes de 5,18, em 8, 28, referindo-se aos endemoninhados que impediam a passagem de um caminho (pare,lqein), no capítulo 24, em alguns momentos, como no v.34 (pare,lqh) e 35 (pareleu,setai e pare,lqwsin), e na oração de Jesus ao Pai, a respeito de passar o cálice, em 26, 39 (parelqa,tw) e 42 (parelqein). Em Mateus, portanto, o verbo é utilizado com mais sentidos do que em Lc. Por isso, o sentido escatológico de 5,18 só persiste numa análise sinóptica com os textos paralelos. Considerando que o v.18 vem da tradição comum de Q, mas que Lucas utilizou de maneira totalmente diferente, vemos aqui a maestria de Mateus em 218 PREGEANT, R., Christology beyond dogma, p.63 et.seq. MARGUERAT, D., op.cit., p. 112 et seq. 220 BANKS, R., op.cit., p.226. 221 Cf. RUSCONI,C., Dicionário do grego do NT¸ p.357. 222 Em Lc 16,17 (pare,lqein), 21,23 (pare,lqh), 21,33 – duas vezes (pareleu,sontai), 12,37 e 17,7 (pare,lqwn). Apenas esse último pode ser entendido num sentido não escatológico. 219 67 colocar duas tradições diferentes em uma unidade de dito, como se Jesus o tivesse afirmado num momento histórico definido, da maneira como está escrito.223 No tocante à estrutura redacional, temos então uma certeza: há trabalho redacional em Mt 5,17-20. As hipóteses em torno desse trabalho, no entanto, não são conclusivas, mesmo considerando o fato do v.18 (e talvez o 19) ter sua origem na fonte Q. Mesmo assim seguiremos a proposta da moldura de 17 e 20 complementando a idéia de 18 e 19, cuja fonte seria diversa das demais partes. A partir da afirmação escatológica do verso 18, Mateus teria associado o dito sobre a permanência da Lei e dos Profetas na pessoa dele, no verso 17. E, a partir da declaração do maior e menor no reino em relação à Lei (também escatológica) no verso 19, ele associou a advertência sobre o cumprimento da justiça dos discípulos na atual realidade, no verso 20. Um esquema redacional nos daria: v.18: a eternidade da Lei = v.17: a permanência da Lei em Jesus v.19: o maior e o menor no reino = v.20: a exigência do cumprimento da justiça na comunidade. A conexão das duas partes é o reino dos céus, conforme analisaremos mais profundamente no próximo capítulo. Seja como for, também é certo afirmar que a perícope não está de forma alguma isolada no evangelho, mas faz parte do contexto imediato ao qual está ligada. Vejamos que contexto é esse. 3.3.3. O contexto imediato de Mt 5,17-20 A perícope de 5,17-20 serve de sumário esquemático introdutório para o conjunto de interpretações de Jesus com respeito à Lei em 5,21-48? Ou é uma afirmação contraditória, que é posicionada ali para mostrar aos ouvintes como o tema da Lei é complexo e impreciso? Vamos tentar identificar o objetivo da perícope no contexto imediato onde está posta. Segundo Barbaglio224, percebe-se na composição que o autor pretendeu resolver a questão a respeito da vontade de Deus. Estava claro que todos deveriam obedecer a esta vontade, mas a questão era: qual vontade? Aquela da Lei e dos 223 Mesmos assim, muitos apontam que o dito de Lucas deve ter a forma original, pelo fato de ser mais curto. Cf. BANKS, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.234; VERMES, G., A religião de Jesus, o Judeu, p.26 et.seq. 224 BARBAGLIO, G., Os Evangelhos (1), pp.118ss. 68 Profetas? Ou haveria outra nova, que seria desenvolvida a partir de Jesus? Havia na verdade uma contenda interna na comunidade, pois alguns “proclamavam que Jesus viera como libertador para anular a lei de Moisés; outros sustentavam que sua tarefa fora a de subscrever, até nos mínimos particulares, tudo aquilo que aí está escrito”.225 Assim, a perícope é uma tentativa de solucionar o problema, em tese, e as antíteses posteriores seriam aplicações práticas dessa máxima de cumprir e não anular. Esse pensamento é compartilhado por Filson226, que entende que não é uma resposta fácil. Afinal, teria Mateus construído essa perícope apenas para questionar aqueles que rejeitavam o valor da Lei (como os de Paulo, segundo o pensamento corrente). M.Lagrange227 entende que mesmo sendo uma composição de dois pensamentos expressos em momentos diferentes por Jesus (o v.18 em relação aos demais), demonstram uma unidade de intenção: mostrar Jesus como reformador religioso. Assim, a perícope seria uma introdução ao tema, exposto em 5,21-48. Da mesma forma, S.Parisi228 vê como o anúncio do tema da justiça superior exigida por uma fé expressiva. Trilling concorda com a abordagem de uma introdução, mas considera que mais especificamente o v.20 teria essa função.229 De um modo geral percebe-se a conexão de 17-20 com 21-48, com a ordenação de Jesus a respeito da atitude dos discípulos em relação à Lei. Sendo uma introdução, a perícope prenuncia a abordagem de Jesus nesse caso. O que fica patente é a tendência de Jesus (ou Mateus) reinterpretar a Lei, para dar-lhe o pleno sentido. Quanto a essa última observação é necessário aprofundar nossa análise. Para nossa exegese é relevante perceber se a perícope é uma construção da comunidade de Mateus, a partir de sua situação histórica, conforme apontado no capítulo 1, ou se de fato o dito veio de Jesus, mesmo considerando os aspectos redacionais indicados acima. Para tanto, propomos a seguir o estado da questão acerca da autenticidade do dito de Mt 5,17-20. 225 Ibid., p.118. FILSON, F.V., A commentary on the Gospel according to St. Matthew, p.83s. 227 LAGRANGE, M., Evangile selon Saint Mathhieu, pp.92s. 228 PARISI, S., “Mt 5, 17-48: giustizia superiore e fede ‘estroversa’. La morale sociale da ‘un punto de vista’ della Scrittura”. Vivarium 2, p.45ss. 229 TRILLING, W., El verdadeiro Israel, p.267. Bem assim comentam TASKER, Matthew: an Introduction and Commentary, pp.64ss; BORNKAMM, G. Tradition and Interpretation in Matthew, p.24ss, bem como F. VOUGA, Jésus et la Loi selon la tradition synoptique, p. 191ss. 226 69 3.4. Status quaestiones do texto de Mateus 5,17-20 Considerando a questão a respeito da autenticidade do dito, podemos afirmar de antemão que pelo menos até o século dezenove a opinião corrente era a favor dela. Um dos pontos a discutir em nossa abordagem é: depois de tantas pesquisas a respeito dos ditos de Jesus, e do substrato histórico por trás dos textos, é possível afirmar que Mateus 5,17-20 é um dito autêntico de Jesus? A pesquisa bíblica anterior ao método histórico-crítico não levantou nenhuma objeção quanto ao fato das palavras terem sido ditas pelo próprio Jesus. A partir do século vinte é que se pode falar de duas posições claramente diferenciadas. 3.4.1. Mt 5,17-20 como posição da comunidade de Mateus A posição que tem influenciado ainda hoje a pesquisa é a de R. Bultmann (1948).230 Em sua pesquisa sobre o Novo Testamento foi o primeiro a colocar, de forma clara, a idéia de que os evangelhos refletem muito mais a posição da Igreja e suas necessidades de organização, do que as aspirações e projetos de Jesus. Analisando a exigência de Deus para com os discípulos, Bultmann afirma que há uma relação entre Jesus e o AT, mesmo que não seja direta, pois “Jesus não negou polemicamente a autoridade do AT: este é um fato que se comprova pela atitude posterior de sua comunidade, que permaneceu fiel à lei do AT e com a qual Paulo entrou em conflito por causa dessa atitude.” Assim, a comunidade se posicionou diante dos grupos helênicos, colocando na boca de Jesus as palavras constantes na perícope. Por isso, para Bultmann essa “palavra que, em vista de outros ditos de Jesus e em vista de seu efetivo comportamento, de modo algum pode ser um dito autêntico, sendo antes uma formulação da comunidade no período de conflito posterior”.231 Isso não quer dizer que esse comportamento foi imaginado pela comunidade, pois realmente Jesus deve ter tido uma reconhecida autoridade de mestre. Da mesma forma não houve em Jesus um oposição frontal aos costumes judaicos (esmola, oração, jejum), mas uma tomada de posição sobre a motivação adequada para essa prática. 230 231 BULTMANN, R. Teologia do Novo Testamento, pp.48-60; Id., Jesus, pp.71-84, 128-138. Idid., p.54. 70 R. Bultmann analisa a importância de Jesus para a fé da comunidade primitiva, e interpreta a perícope mostrando Jesus como Messias. Nessa compreensão, está implícita a possibilidade de interpretação da Torá, pois o Messias é o mestre. A coleção de ditos, nesse sentido, é mais do que mera transmissão de dados, mas herança do Rei da comunidade, cujas palavras contém sabedoria e uma dimensão escatológica própria do Messias. “Dessa convicção nascem novos ditos do Senhor, ditos que se destinam a decidir casos de controvérsia, como: ‘Não penseis que vim para revogar a lei os profetas! Não vim para revogar e sim para cumprir...’ (Mt 5.17-19).”232 Além disso, R. Bultmann refletiu sobre as conseqüências do fato da comunidade primitiva ter consciência escatológica para sua vida prática cotidiana; seria a Lei válida para ela? Nesse sentido, é assim que ele percebe Mt 5,17-19, como resposta da comunidade com intensa raiz judaica, principalmente pela influência de Tiago, que vê na postura aberta de Paulo e dos helenistas um perigo para a fé da comunidade. O dito de Mt 5, 17 teria nascido nesse contexto. A posição bultmanniana fez escola, e outros se posicionaram na mesma direção, como G. Bornkamm (1956),233 que admite o papel autêntico de Jesus como um escriba, não no sentido técnico do termo, mas como intérprete da Torá. Fazendo um paralelo com a sabedoria judaica contemporânea a Jesus, ele constata que a aproximação de Jesus com o judaísmo não é circunstancial, mas deve “despertar compreensão para o fato de que o judaísmo moderno está amplamente empenhado em reclamar para si o Jesus histórico como um de seus grandes mestres.”234 Entretanto, G. Bornkamm confirma a posição de R. Bultmann, de demonstrar que o dito surgiu no ambiente de conflito, e que foi “posta na boca de Jesus”.235 Por outro lado, compara a posição de Jesus diante da Lei na tradição de Marcos, que é similar à posição de Mateus. Ou seja, de um modo geral Jesus teria realmente tido um papel escribal de intérprete, mas o dito de Mt 5,17-20 seria uma construção da comunidade diante de um contexto posterior de conflito com os grupos antagônicos que exigiu uma palavra mais clara do mestre. 232 Ibid., p.54 passim. BORNKAMM, G., Jesus de Nazaré, 163-174. 234 Ibid., p.166. 235 Ibid., p.167. 233 71 Afinado com essa posição, encontramos G. Barth (1960),236 que cita o próprio R. Bultmann e entende que a perícope expressa um embate entre o grupo conservador na congregação que tinha uma compreensão própria da Lei. Diante da questão se a Lei teria sido abolida ou não, Mt 5,18 surge para sanar a questão: mesmo o elemento mínimo da Lei nunca desaparecerá. G. Barth entende então que o dito de 5,17 é posterior a 18 e 19, e foi costurado para tornar-se uma unidade.237 G. Barth interpreta o dito dentro do contexto da polêmica sobre a posição de Jesus frente à Lei, que seus contemporâneos tiveram. Tudo indica uma correção nessa posição, como se Jesus quisesse abolir a Lei e fundar algo novo, ou ainda pior, que tivesse tendências antinomianas. Assim, 5,17-20 deve ser interpretado à luz de 21-48, onde são apontadas as diretrizes práticas do seguimento da Lei na nova aliança. É desse modo que o termo plhro,w deve ser compreendido. Na década de 1970, G. Barbaglio teceu um comentário a respeito do evangelho no qual não deu um veredicto simplista sobre o assunto, onde também traça a costura redacional. Ali, ele vaticina a princípio que os v.17 e 20 são composição mateana, enquanto o v.18 provém de Q, mesmo que reflita de fato um ambiente de igreja judaico-cristã. Já o v.19 ele considera certamente como expressão dessa igreja. O sentido desse dito, então, está vinculado ao contexto da polêmica, de um lado contra setores identificados como “cristãos libertários de cultura grega”, contra os que pretendiam simplesmente se ater ao escrito da lei antiga, segundo a tradição farisaica. Em suma, para Barbaglio, Mt 5,17-20 demonstra que “Jesus encontra-se entre o passado do AT, que também tinha registrado a revelação da palavra do Senhor, a manifestação da sua vontade, e o futuro do Reino anunciado por ele”.238 De certa forma, é a mesma posição de A. Overman (1990) que chega, inclusive a afirmar: “interpretações dessa passagem têm se perdido com freqüência em questões referentes à autenticidade de certos versículos e ao grau de revisão empregado por Mateus”.239 Ele critica uma tendência de estudar a perícope isoladamente, sem analisar todo o contexto no restante do livro, que 236 BARTH, G. “Matthew’s Understanding of the Law”, pp.64-73. Efetivamente concordamos com essa costura redacional, como veremos no capítulo 2, mas isso em si não prova nada quanto à autenticidade. 238 BARBAGLIO, G., Os Evangelhos 1, p.118s. 239 OVERMAN, A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.92s. 237 72 mostra a compreensão de Mateus a respeito da Lei. De qualquer modo, a tese central de Overman, que hoje é defendida por muitas pessoas, é que a análise redacional e literária de Mateus nos leva a um estudo do cristianismo primitivo e não do Jesus Histórico. Com isso conclui-se que, a despeito de não tomar posição, há uma clara definição da inautenticidade dos ditos como um todo, que seriam reflexo da comunidade.240 Quase no mesmo período, dois expoentes da pesquisa a respeito do Jesus Histórico mantiveram a posição iniciada por Bultmann. J. D. Crossan, em sua análise do assunto (1991),241 que não chega a analisar em separado a autenticidade dos ditos de Jesus, especialmente de Mateus 5,17-20. Há duas evidências de sua concordância com Bultmann na pesquisa: ele lista os ditos que Jesus teria realmente proferido242, e deixa de fora a perícope de Mateus, citando o dito paralelo de Lc 16,16-17. A segunda evidência ele apresenta no apêndice a respeito dos estratos das tradições que compuseram os evangelhos, através de um inventário.243 A partir dessa catalogação Crossan propõe o seguinte quadro para a formação da perícope de 5,17-20: os versos 17, 19 e 20 seriam “testemunho único do Terceiro Estrato”, da tradição M. Ou seja, material elaborado dentro da própria comunidade de Mateus. O versículo 18 seria proveniente de 1 ou 2 Q, um “testemunho independente duplo do Primeiro Estrato”. Seria apenas esse dito que poderia ser considerado autêntico. O outro forte pesquisador que indica a perícope como construção da comunidade mateana é J. Gnilka (1993), que afirma textualmente: “Não possuímos uma palavra básica de Jesus em relação à lei. Isto torna mais difícil esclarecer a questão, como também explica as idéias disparatadas que se manifestam na pesquisa.”244 Gnilka entende que o dito de Mt 5,17-20 nasceu sob o peso da disputa entre diferentes grupos a respeito da Torá, e aceita a atribuição dada à comunidade de Mateus a respeito do dito. Num artigo contemporâneo à pesquisa de J. Gnilka, I. Broer (1993) escreveu a respeito das antíteses do Sermão do Monte. Nesse artigo é demonstrado que a leitura de Mt 5,17-20 junto com 21-48 ajuda a entender o 240 Talvez considerando como autênticos apenas os ditos testemunhados em Q e Marcos, e ainda assim com ressalvas. 241 CROSSAN, J.D. O Jesus Histórico. 242 Ibid., pp.13-25. 243 Ibid., pp.472-486. 244 GNILKA, J., Jesus de Nazaré, p.197. 73 conflito sobre a Torá entre os seguidores de Jesus e a comunidade materna judaica. A radicalização da Torá no texto não era entendida como ab-rogação da Lei do AT.245 Concluindo, essa corrente afirma categoricamente que o dito de 5.17-19 seria um dito desenvolvido pela comunidade de Mateus, e não do próprio Jesus, e que respeita a tradição em que Jesus não se coloca claramente contrário à lei, mas a reinterpreta. O problema na posição de Bultmann e dos demais, quando confrontada com a nova abordagem na pesquisa de Jesus, é a contradição entre a posição de Jesus perante a Lei, que ele reconheceu como legítima, e a palavra em si, que ele não aceita como autêntica. Um grupo social, originado de uma grande liderança, que tem na palavra o cerne de sua atividade, e considera tal palavra como Torá viva, dificilmente se sentiria à vontade para construir um repertório para esse mestre.246 3.4.2. Mt 5,17-20 como dito autêntico de Jesus Numa posição inversa, mas utilizando recursos científicos para abalizar suas conclusões, encontramos J. Jeremias (1970), já no decurso da Nova Pergunta pelo Jesus Histórico. Sua posição, definida especialmente quando desenvolveu sua Teologia do Novo Testamento, é resultado de um extenso trabalho filológico, iniciado décadas antes. Jeremias considera o dito como parte de um grupo de sentenças que Marcos não teve acesso, e por isso mesmo seria autêntico, a partir da análise da base aramaica dos ditos de Jesus. Ele afirma que Mt 5.17b vem de uma tradição rabínica, no Talmude Babilônico, Shabbat 116 b247 (p.33). Para Jeremias, Mt 5.17 é a “expressão mais aguda dessa consciência de plenipotência” de Jesus em relação à sua missão.248 Ele afirma alguns aspectos importantes: 245 BROER, I. “Die Antithesen der Bergspredigt Ihre Bedeutung und Funktion für dier Gemeinde des Matthäus.” pp.128-133. 246 Essa discussão aponta para o problema que hoje se discute em termos de autoria dos evangelhos, quanto ao papel da comunidade na construção dos textos. Além disso, o papel da tradição oral no Sitz im Leben de cada uma. Eis aí um ponto que precisa ser melhor refletido, sobre as fontes, o contexto vital e a herança que cada comunidade teve como pano de fundo em sua formação. Sobre o assunto, ver OVERMAN, A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, pp.79-148; MARCONCINI, B., Os evangelhos sinóticos, pp.122-126; 247 JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento, p. 33. 248 Ibid., p.142. 74 Contra a antigüidade do dito alegou-se que h=lqon [vim] refere-se em retrospectiva à atividade de Jesus como já acabada. Todavia, como mostra Mt 11.19, essa afirmação não condiz nem sequer com o texto grego, quanto mais com o tytea] [’atet] aramaico subjacente, que pode significar simplesmente ‘eu estou aqui’, ‘eu quero’, ‘é minha tarefa’. Por outro lado, fala em favor da antigüidade da palavra o fato de ela ser uma das pouquíssimas palavras de Jesus que nos foram transmitidas em aramaico.249 Quanto a essa última parte veremos se Jeremias prova sua tese, comparando com o Talmude (ver na análise semântica, cap.2). Para ele, os títulos cristológicos são interpretação posterior da comunidade, a partir das imagens que o próprio Jesus deve ter destacado dele mesmo. Ainda mais claramente do que nas imagens emprestadas à linguagem simbólica, a consciência que Jesus tinha acerca da sua soberania expressa-se na profusão incomum do ’egw, enfático nos seus ditos, em igual grau tanto no material sinótico como no joanino. Encontra-se não só em afirmações que Jesus faz sobre sua missão como em Mt 5.17, mas perpassa toda a sua pregação.250 Conclusão: J.Jeremias trabalha com a hipótese de que o dito seria de Jesus, mesmo que a Igreja tenha dado a ela um tom mais cristológico. Essa posição também influenciou um grande grupo de exegetas, que têm defendido essa hipótese. Um pouco antes (1960), G.W. Kümmel, já trabalhara sua própria Síntese Teológica do Novo Testamento,251 a partir de um pressuposto: “não existe a mínima razão para que se concorde com a opinião de que a probidade histórica de um trecho da tradição possa ser somente uma exceção”.252 Ele considerou que, mesmo não sendo possível reconstituir a biografia completa e a trajetória histórica cronologicamente, a partir dos evangelhos, não se pode descartar que por trás deles há uma sólida tradição a respeito de Jesus, que tem especialmente nos ditos sua mentalidade e pregação. Para Kümmel, na verdade, é a inautenticidade que precisa ser provada, e não o contrário. Dito isto, Mt 5,17-20 se torna autêntico no conjunto dos demais ditos de Jesus. 249 Ibid., p.142. Jeremias atribui ao texto grego um traço semítico, que denuncia uma tradução. Em suas palavras, ele afirma: “Deve-se dizer ainda mais precisamente que a língua materna de Jesus é o dialeto galileu do aramaico ocidental. Pois as analogias lingüísticas mais aproximadas das palavras de Jesus se acham nos textos populares aramaicos do Talmude e dos midrashim originários da Galiléia. A fixação por escrito desses textos só se deu entre os séculos 4 e 6 depois de Cristo, mas há muita probabilidade de que já no tempo de Jesus o aramaico usado no dia-a-dia na Galiléia se distinguia do aramaico (judaico) do sul da Palestina por sua pronúncia, por suas variações lexicais, por sua imprecisões gramaticais e por um menor influxo por parte da linguagem da escola rabínica. Em Mt 16.73 pressupõe-se que em Jerusalém se podia reconhecer um galileu pelo seu dialeto.” P.33. 250 Ibid., p.362. 251 Lançado em 1968. 252 KÜMMEL, W.G., Síntese Teológica do Novo Testamento, p.44. 75 A questão da autenticidade foi tratada por alguns exegetas como assunto definido. É o caso de R. Banks (1974), que tenta superar a discussão sobre a autenticidade, colocando a compreensão de Jesus sobre a Lei como sendo também a discussão de Mateus e sua comunidade. Com isso Banks aponta para uma decisão: considerar como já discutida a questão, em função das conclusões a que se chegou através do método histórico-crítico, especialmente na História das Formas e da Crítica Redacional. Para ele, importante é discutir a compreensão que Mateus e sua comunidade tiveram do próprio Jesus e de sua mensagem relativa à Lei. 253 O que o dito passa em termos dessa compreensão é o fato de que a comunidade de Mateus estava vivendo a problemática da disputa de espaço com outros grupos, especialmente com a tradição farisaica. Jesus teria afirmado sua posição sobre a Lei numa alusão crítica a essa tradição, que os discípulos deveriam superar, com um novo senso de justiça. Essa nova justiça se cumpriu integralmente em Jesus, que enfatizou o caráter profético e provisório da Lei frente à vontade de Deus e seu Reino, que superaria completamente a letra e a tradição (paradosis) dos fariseus. O centro da questão, de fato, não está no mero cumprimento das normas, mas a obediência a partir de um relacionamento vivo com o próprio Jesus.254 B.L. Martin (1983), em um breve artigo,255 analisa o posicionamento de vários pesquisadores a respeito da posição de Mateus na questão de Jesus e a Lei, a partir da perícope de 5,17-20. Comentando o sentido do texto, Martin entende que as palavras de Jesus devem ser tomadas como “instrução”, dentro do contexto ético do amor a Deus e ao próximo. Seria nessa linha que Jesus teria afirmado sua posição em relação à Lei, cumprindo-a no critério do amor. Anos mais tarde, a pesquisa que levou em consideração a autenticidade – ou que decidiu não tratar do assunto – continuou a evocar sentidos para o dito de 5,17-20. Como exemplo, podemos ver o comentário de F. Mateos e F. Camacho sobre Mateus (1993), que trata do assunto em questão como sendo uma busca de 253 BANKS, R., “Matthew's Understanding of the Law: Authenticity and Interpretation in Matthew 5:17-20”, pp. 226-242. 254 Como afirma BANKS: “For Matthew, then, it is not the question of Jesus’ relation to the Law that is in doubt but rather its relation to him! AS this analysis hás sought to show, however, such a way of posing the issue stems from the authentic words of Jesus which Matthew’s account enshrines.” P.242. 255 MARTIN, B.L. “Matthew on Christ and the Law”, pp.53-70. 76 sentido para a situação do povo oprimido, para quem a mensagem de que ele veio para cumprir a Lei, seria também a mensagem do cumprimento das promessas. Nesse sentido, “Jesus quer desfazer um mal-entendido e uma decepção. Os que conhecem a grandeza das promessas do At, que se traduziram na expectativa messiânica, podem sentir-se defraudados diante do horizonte que Jesus apresenta.”256 G.E. Ladd (1990) também considera a autenticidade dos ditos de Jesus, e interpreta a perícope, a partir do Sermão do Monte como uma ruptura tanto da Tradição farisaica quanto da Mishnah. Para ele, o que diferencia o ensino de Jesus ali é a ética da vida interior, em que a justiça perfeita se realiza a partir do coração. Além disso, por ter realizado plenamente o verdadeiro propósito da Lei, ele pode declarar o que é válido e o que não é.257 Um dos expoentes da Third Quest que concorda com essa abordagem é G. Vermes. Em sua pesquisa a respeito da relação de Jesus com a religião judaica, a partir das fontes sinóticas, Vermes faz importantes afirmações sobre o assunto. Tratando a respeito da relação específica entre Jesus e a Lei (1993),258 Vermes entende que a pesquisa com relação à autenticidade tem uma tendência pessimista, e por isso mesmo abordem mais a teologia ou a perspectiva de um evangelista, do que o cerne da mensagem de Jesus. Vermes pretende caminhar nessa direção, e no tocante à autenticidade, ele pensa no princípio cui bono: quem ganha e quem perde com determinado ensinamento? Assim, ele conclui: Um pronunciamento que serve aos interesses da cristandade gentílica em seus primórdios e não se harmoniza com a perspectiva geral de Jesus é provavelmente produto da igreja primitiva. Em contraste, se nos defrontamos com uma doutrina contrária e de impossível conciliação com as necessidades eclesiásticas, pode-se presumir sua autenticidade histórica.259 Tratando do material exclusivo de Mateus, com coloração mais judaica, Vermes propõe uma leitura a partir do material de Marcos e Lucas que reforçam o fato de que Jesus não aboliu de forma absoluta a validade da Lei. Tal abordagem confirma um fato: Jesus não se opôs à Lei. Por isso o material exclusivo de Mateus não tem que ser, necessariamente, fruto do pensamento da comunidade, sem relação com a posição de Jesus. Em seu sistema de classificação dos ditos de 256 CAMACHO, F. e MATEUS, F., O evangelho de Mateus, p. 64s. LADD, G.E., Teologia do Novo Testamento, pp.117-122. 258 VERMES, G., A religião de Jesus, o judeu, pp.19-48. 259 VERMES, op.cit., p.24. 257 77 Jesus, Vermes identifica Mt 5,17-20 como um dito autêntico, que sofreu edições posteriormente para enfraquecer o peso da afirmação acerca da permanência da Torá. Na verdade, “um exame rigoroso das passagens relevantes atinentes à validade permanente da Torá revela que o dito básico vem de Jesus.”260 As mudanças ou omissões em outras tradições refletem as exigências de uma “igreja não-judaica, cujos membros já não se consideravam sujeitos às pesadas regras da religião judaica”261. Semelhante posição tem G.N. Stanton (1993), que realizou estudos no evangelho de Mateus privilegiando a comunidade receptora da mensagem. Para ele, com relação ao material exclusivo M, presente no dito de 5,17-20, não se pode falar de uma criação de Mateus, mas de uma exegese dele em torno de ditos autênticos do mestre. Na verdade Mateus teria a postura de um escriba que guarda um tesouro: os ditos do próprio Jesus, mas que adaptaria esses ditos ao contexto, da mesma forma como fez com os textos da tradição marcana e da fonte Q.262 Em relação ao sentido da perícope, ele entende que diante do questionamento dos opositores quanto à atitude de Jesus perante à Lei, os discípulos são convocados a prática urgente da vontade de Deus, num grau ainda maior que os Escribas e Fariseus.263 Outro exemplo de posição imparcial no tocante à autenticidade é a de Theissen que, em seu manual (1996), trata da aparente contradição sobre o uso da expressão “Antes que passem o céu e a terra, não passarão da lei um i nem um ponto do i, sem que tudo haja sido cumprido” (Mt 5,18/Lc16,17)264 por Mateus e Lucas em contextos literários totalmente diferentes. Quanto a isso ele afirma: Independentemente da questão sobre a autenticidade, ambos os ditos poderiam ser atribuídos a Jesus em virtude de seu conteúdo, pois sua posição perante a Torá era, de fato, ambivalente. A combinação de intensificação e abrandamento das normas é característica da relação de Jesus com a Torá.265 Mais recentemente, numa nova abordagem a respeito dos evangelhos, com a preocupação de uma hermenêutica política por trás do texto, encontramos W. Carter, que em 2000 realizou um “comentário sociopolítico e religioso a partir das margens” do evangelho de Mateus. Em sua análise da perícope, ele trata da 260 Id., O autêntico evangelho de Jesus, p.402. Ibid., p.402. 262 STANTON, G.N. A Gospel for a New People, pp.340-345. 263 Ibid., p.300s. 264 Citado conforme tradução do texto de Theissen, O Jesus Histórico, p.387. 265 MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.388. 261 78 temática do império de Deus em contraponto ao império romano, que de certa forma, assombrava o imaginário dos povos oprimidos, sempre lembrando que eles não eram livres em absoluto para decidirem sua forma de viver. Assim sendo, a afirmação de Jesus, além do sentido direto de uma conformação à vontade do Senhor, ganha um colorido de resistência aos poderes romanos e ao colaboracionismo por parte das elites judaicas, que pretensamente são justas.266 Concluindo, o debate acerca da autenticidade de Mt 5,17-20 se dá principalmente por ser material quase totalmente exclusivo de Mateus. O contexto judaico e a relação conflituosa da comunidade mateana com os demais grupos judaicos fizeram com que esse dito tivesse importância capital. Mas isso quereria dizer que o dito foi criado pela comunidade? E se um dito tão marcadamente judaico de Jesus tivesse de fato sido “esquecido” pelas demais comunidades, simplesmente porque não as ajudava em sua caminhada, cada vez mais distante do mundo do judaísmo, e mais próximo da realidade helênica? A análise a favor da autenticidade poderá nos conduzir na exegese do texto, a fim de verificar a validade dessa hipótese. 3.5. Análise da historicidade Não dúvida de que Jesus teria ensinado aos seus discípulos, e que esses ensinos foram preservados pelas comunidades receptoras de sua mensagem. Seu ensino teve muito a ver com a ética do judaísmo corrente, e de fato deve ser encontrada ali sua raiz. Vários autores compararam o posicionamento de Jesus frente à Torá com a exegese rabínica corrente.267 No sistema da interpretação judaica a respeito da Torá, compendiada na Mishnah a partir dos anos 80 do século 1 da era cristã, há uma força muito grande na Tradição Oral, da qual certamente Jesus participou e a partir da qual desenvolveu sua própria “Mishnah”. Como diz o Talmud de Jerusalém Peah II, 6 17a: O Rabbi Haggai em nome do Rabbi Shemuel bar Nahman: ‘Foram ditas palavras oralmente e outras foram ditas por escrito. Não saberíamos quais são preferíveis se 266 CARTER, W., O Evangelho segundo São Mateus, p.189ss. Em especial G. VERMES escreveu um artigo, a partir de uma palestra ministrada em Oxford, no ano de 1982, “Literatura judaica e exegese do Novo Testamento: reflexões metodológicas”, onde analisa a similaridade entre os ensinos de Jesus presentes no Novo Testamento e os escritos judaicos contemporâneos a ele. Segundo ele, a maior probabilidade a ser trabalhada é a de que o “Novo Testamento e a doutrina rabínica derivam de uma fonte comum, por exemplo, o ensinamento tradicional judaico”. Jesus o mundo do Judaísmo, p.106. 267 79 não estivesse escrito (Ex 34,27): Porque foi em virtude destas palavras que fiz aliança contigo e com Israel. Assim se entende que as palavras orais são preferíveis.’268 Tendo em vista essa idéia judaica, podemos apontar a historicidade dos ditos de Jesus tendo como matriz vivencial o ensino dos sábios judeus. Essa é uma realidade que também podia ser vinculada a Jesus. Na verdade não havia, no judaísmo tardio, uma escola formal para mestres, no sentido dos intitulados rabis. O fato de Jesus ter sido chamado assim não contradiz sua origem camponesa humilde, pois o estudo realizado a partir de registros literários, sejam cristãos, sejam rabínicos, ou mesmo oriundos do movimento epigráfico, demonstram que não haviam ritos ou formas fixas que determinavam o rabinato naquele período. De fato, “um escriba se tornava ‘Rabi’ tão logo outros, e especialmente alunos, o tratassem como tal e lhe pedissem conselho.”269 Sem dúvida, essa era a situação de Jesus. Cabe agora avaliar esse ensino exposto no dito de Mt 5,17-20 a partir dos critérios de historicidade.270 A avaliação da historicidade dos evangelhos passa por critérios que “são apenas mais ou menos prováveis; raramente se chega a uma certeza”.271 Em nossa análise, que não é o centro da pesquisa, mas que fundamenta boa parte dela, queremos verificar até que ponto o dito de Mt 5,17-20 vem de Jesus, e até que ponto é uma elaboração de Mateus frente a uma necessidade específica de sua comunidade de fé. Vamos analisar a perícope de acordo com os critérios de historicidade divulgados pela pesquisa, a partir do Critério da Múltipla Atestação, da Plausibilidade Histórica, do Constrangimento, Critério da Rejeição e da Execução e do Critério do Estilo de Jesus. 3.5.1. 268 Cf. citado por LENHARDT, A Torah Oral dos Fariseus, p.20. MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.381. 270 Esses critérios foram elaborados no bojo da Third Quest, como aceitáveis academicamente para determinar até que medida podemos declarar um dito de Jesus como histórico ou não. Hoje também já se aplica essa criteriologia às narrativas de milagres. Mas não há um consenso exato sobre quantos e quais devem ser aplicados ao estudo do texto. Theissen, por exemplo, propõe que os critérios de diferença e coerência sejam substituídos pelo da plausibilidade histórica. Ele é seguido por Wegner nessa posição. Marconcini propõe cinco critérios, baseado em Latourelle. Meier propõe um sistema um pouco mais complexo: ele dividiu os critérios em primários (constrangimento, descontinuidade, múltipla confirmação, coerência, rejeição e execução) e secundários ou dúbios (traços de aramaico, ambientação palestina, vividez da narração, tendências do desenvolvimento da tradição sinóptica e suposição histórica). Em nossa abordagem vamos nos ater aos critérios que são mais aceitos e tem maior objetividade de análise. 271 MEIER, J.P., Um judeu marginal, p.169. 269 80 Critério da Múltipla Atestação Também chamado de critério da múltipla “confirmação” (Meier) ou “depoimento múltiplo” (Marconcini), trata da existência de um dito de Jesus “em mais de uma fonte literária independente (p. ex., Marcos, Q, Paulo, João) e/ou em mais de um gênero ou forma de literatura (p.ex., parábola, história de debates, história de milagres, profecia, aforismo).272 Meier e Theissen destacam a importância da fonte ser independente.273 Casos em que Mt e Lc simplesmente repetem ditos presentes em Mc não representam em si um exemplo de múltipla atestação. Ao aplicar esse critério à perícope em questão, vamos seguir a classificação de Crossan. Nela, o versículo 18 tem sua origem em 1 ou 2 Q, e seria um testemunho independente duplo do Primeiro Estrato. Já os versos 17, 19 e 20 são da tradição de M, e por isso devem ser testemunho único do Terceiro Estrato, a partir da Tradição M.274 Isso não quer dizer, a priori, que o dito não foi afirmado antes, mas que só foi registrado por escrito numa terceira fase redacional do texto. A questão é: a perícope fica prejudicada em sua análise de historicidade, pelo fato de ser material exclusivo, na forma como foi redigida no evangelho de Mateus? Vejamos se há correlação no dito com outras fontes independentes: o v.17 tem semelhança com Mt 10,34, que por sua vez é paralelo de Lc 12,51, conforme podemos verificar na estrutura: Mateus 5,17 17 Mh. nomi,shte o[ti h=lqon katalu/sai to.n no,mon Mateus 10,34 34 Mh. nomi,shte o[ti h=lqon balei/n eivrh,nhn evpi. h' tou.j profh,taj\ ouvk h=lqon katalu/sai avlla. th.n gh/n\ ouvk h=lqon balei/n eivrh,nhn avlla. plhrw/saiÅ ma,cairanÅ [Não considereis que eu vim para anular a Lei e [Não considereis que eu vim para trazer paz à os Profetas; não vim para anular, mas para dar terra; não vim para trazer paz, mas espada] pleno sentido ] Há uma evidente correlação estrutural entre os dois ditos. Nos dois casos o uso de h=lqon [eu vim], segundo Banks, reforçam um significado cristológico particular que Mateus pretende expressar.275 O v.18 apresenta uma clara relação com Lc 16,17, como visto acima, enquanto os demais versículos não apresentam 272 Ibid., p.177. Cf. Ibid., p.177; MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.137. 274 CROSSAN, J.D., O Jesus Histórico, pp.472-485. 275 BANKS, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.227. 273 81 correlatos diretos. Entretanto, em outras formas literárias encontramos Jesus assumindo essa postura diante da Lei. Em Marcos 2,23-3,6 ele coloca em prática sua interpretação a respeito da Torá, não necessariamente numa oposição a ela, mas numa perspectiva adequada, inclusive com uma citação dos Nebîim276. Por esse critério, no entanto, o dito de Mt 5,17-20 não pode ser considerado autêntico, pois tem um testemunho fraco fora do evangelho de Mateus. 3.5.2. Critério da Plausibilidade Histórica Theissen propõe o Critério da Plausibilidade Histórica em substituição ao de Diferença e Coerência. Ambos são critérios adotados por Meier (Descontinuidade e Coerência) e Marconcini (Descontinuidade e Conformidade). O critério de Descontinuidade é um dos mais consensuais entre os pesquisadores, e tem como foco “as palavras e atos de Jesus que não podem ser originários nem do judaísmo de seu tempo, nem da Igreja primitiva depois dele”.277 O problema apontado por Theissen e que Meier concorda é que o caráter singular do ministério de Jesus é avaliado como uma realidade, sem que se tenha absoluta certeza de como era o judaísmo da época dele e a igreja logo após ele. Mesmo levando em conta a idéia de que Jesus foi único em seu tempo, não se pode ignorar o fato de que ele foi um judeu do século I, e como tal se posicionou em relação às tradições que recebeu, ou seja, muito do que fez tinha essas tradições como base, seja para dar continuidade, seja para romper. Por outro lado, o critério da Coerência ou Conformidade afirma que “é material autêntico de Jesus o que concorda em conteúdo com as tradições conquistadas na base do critério de diferença (mesmo que caibam no pensamento judeu ou do cristianismo primitivo).”278 Tanto Theissen quanto Meier entendem que esse critério pressupõe a infalibilidade do critério de Descontinuidade, o que acaba por ser um argumento frágil para a validade de ambos. Não se pode afirmar que a Igreja tenha inventado toda a tradição a princípio estranha a Jesus, pelo simples fato de divergir dele. Corre-se o riso de declarar como inautênticos ditos apenas pelo fato de não terem consistência com o que foi aceito pelo critério 276 1 Sm 21,1ss. O Sacerdote citado no texto seria Aimeleque. Abiatar foi o filho dele, que se juntou a Davi depois que Saul massacrou os sacerdotes por causa do apoio dado ao fugitivo. 277 MEIER, J.P., Um judeu marginal, p.174. 278 MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.135. 82 anterior. De fato, é como se o ensino de alguém não pudesse evoluir em termos de compreensão e aplicação. Por isso Theissen sugere o Critério da Plausibilidade Histórica, ou seja, elementos que apontam para uma vinculação de Jesus com o judaísmo, ao mesmo tempo em que mostram a influência dele sobre a Igreja posterior. Assim, “nas fontes é histórico o que ajuda a explicar a influência de Jesus e pode, ao mesmo tempo, surgir apenas num contexto judeu.”279 Aplicado à perícope, a idéia de Jesus defendendo a Torá não será em hipótese alguma estranha ou artificial. Pelo contrário, pensar que Jesus teria uma postura antinomiana, próxima de um crítico da cultura judaica, isso sim, é questionável. Jesus teria, no dizer de Geza Vermes, uma preocupação abrangente com o propósito final da Lei que ele percebia, de forma primária, como essencial e positiva, não como uma realidade jurídica mas como uma realidade ético-religiosa, revelando o que pensava ser o comportamento justo e divinamente ordenado para com os homens e para com Deus.280 Por um lado, a defesa da Torá era uma atitude própria para um judeu do século I da era cristã. Era um dos fundamentos da religião praticada pelos judeus da Galiléia, e tudo indica que a atitude de Jesus de ir a sinagogas aos sábados reflete uma piedade própria de um judeu de seu tempo.281 Por outro lado, o teor escatológico presente no verso 18, típico da fonte Q, se repete no verso 19, pois ali fala do maior e do menor no reino dos Céus, termo mateano que normalmente reflete a expectativa messiânica da comunidade. Além disso, há no texto uma exortação para que a comunidade expresse uma justiça superior, que supere ao tipo de espiritualidade presente no projeto dos escribas e fariseus. Essa continuidade da expectativa do pleno cumprimento da Lei e da Profecia vigorou na comunidade, e é atestada até mesmo nas cartas paulinas. Hoje, a idéia de que Jesus tenha tido uma pregação escatológica é bastante aceita.282 Assim, por esse critério o dito de Mt 5,17-20 pode ser autêntico. 3.5.3. Critério do Constrangimento 279 Ibid., p.136. VERMES, G., A religião de Jesus, o Judeu, p.48. 281 Cf. MERZ, A. e THEISSEN, G., op.cit., p.198 et,. seq; VERMES, op.cit., p.19 et. seq. 282 Cf. GNILKA, J. Jesus de Nazaré, p.146 et. seq; Theissen faz longa análise do tema, O Jesus Histórico, p.276-298. 280 83 Esse critério, conquanto seja muito semelhante ao Critério de Descontinuidade, na verdade procura expor como a tradição dos evangelhos lidou com certas passagens a respeito de Jesus que tivessem causado dificuldade. É o caso do batismo de Jesus, por exemplo, que em Mc não é explicado, e que após receber as explicações teológicas e históricas de Mt e Lc, simplesmente é suprimido da narrativa de Jo.283 No tocante ao dito de 5,17-20, é possível perceber esse constrangimento no todo da tradição. Marcos levantou a questão mostrando Jesus interpelando a Tradição dos Pais, no relato de 7,1-23, onde responde ao questionamento sobre os ritos de pureza. Da mesma forma, Marcos apresenta a postura desafiadora de Jesus frente ao Sábado, chegando a afirmar que “O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado” (Mc 2,27). Mateus reafirmou todo esse problema, explicitando teologicamente a motivação de Jesus quanto à Lei (Mt 5,17-20), enquanto Lucas diluiu essa postura (Lc e João nem mesmo evoca qualquer discussão a respeito da Lei, a não ser o fato de também ali Jesus curar no sábado e ser inquirido a esse respeito (Jo 5,9ss; 9,14ss).284 Em outra ocasião, a posição das comunidades gentílicas, da resolução do “concílio” de Jerusalém, e principalmente, de Paulo diante da Torá, demonstra um outro caminho quando comparados a Jesus (At 15) . Em Mt 5,17-20 vamos considerar que Jesus teria se colocado como intérprete, e não promulgador da Torá. Numa perspectiva ouvinte-praticante, essa postura de completar e cumprir pode fazer parte da categoria de pensamento de Jesus. Nesse sentido ele seria o intérprete definitivo da Torá, que teria cumprido fiel e cabalmente até mesmo o menor traço do texto, bem como cada yod presente nela285. É exatamente o que se sucede nas perícopes posteriores, onde ele aplica essa idéia de completar, dando o sentido máximo a alguns aspectos específicos da Lei, como o trato com o inimigo, com o irmão, a questão do adultério e até mesmo dos juramentos. Esse critério também aponta para o dito como autêntico? A solução só pode se dar na medida em que percebemos um amplo campo de discussão sobre a 283 Cf. exposição de MEIER, J.P. Um judeu marginal, p.10 et.seq, Entretanto, é curioso que haja mais citações à Lei em Lucas e João do que no próprio evangelho de Mateus, mesmo que João a cite como sendo a Lei dos judeus (Jo 10,34). 285 Geza Vermes coloca numa nota uma explicação a respeito, a partir do texto do Exodus Rabbah, texto rabínico, onde o yod e qots aparecem lado a lado. Ver A Religião de Jesus, o judeu, p.26, nota 11. 284 84 observância da Lei entre as diferentes vertentes cristãs na primeira metade do século um, conforme se nota ao ler a epístola aos Gálatas. Percebe-se a problemática entre os cristãos provenientes do judaísmo - cristão-judeus - e os cristãos provenientes do helenismo – cristão-gentios.286 Dentro do contexto de polêmica, considerando que Mateus escreveu para afirmar a observância à Lei como princípio de vida a partir do próprio Jesus, não podemos afirmar categoricamente a autenticidade do dito. 3.5.4. Critério da Rejeição e da Execução Sob o crivo do critério da rejeição e da execução, encontramos algo que deve nos fazer pensar. Esse critério é vinculado ao fato de que o Jesus histórico disse e fez coisas que incomodaram setores de poder do seu tempo, e que por isso mesmo foi morto nas mãos das autoridades, em execução pública. De acordo com o que temos no texto, a afirmação de Jesus pode muito bem ter provocado as autoridades por, pelo menos, dois motivos: (1) como em outras vezes, Jesus dimensionou o papel e a conseqüência pessoal de quem agisse de acordo com os seus ensinos, no tocante ao reino dos céus. Para muitos líderes, o fato de Jesus estabelecer critérios para o cumprimento da Torá – como fazer o bem aos sábados, dar menor importância às rígidas normas de pureza ritual, ou ainda se associar a setores discriminados da sociedade (pecadores e publicanos em especial) era motivo de acusação por blasfêmia e heresia. E ele chegou a ser chamado de blasfemo (Mt 26,65). (2) Jesus coloca a justiça (dikaiosyne) dos escribas e fariseus como algo artificial e que deveria ser superado pelos seus próprios discípulos. O termo justiça aqui está ligado ao sentido de retidão e equidade, como algo a ser mostrado e distribuído, e que está vinculado à própria justiça divina. Essa atitude certamente 286 Koester considera a expressão cristianismo judaico problemática, tendo em vista que “os apóstolos e missionários da nova mensagem de Jesus vieram de Israel, embora não necessariamente daqueles círculos da Palestina que emergiram como ‘judaísmo rabínico’ depois da destruição do Templo”. Afinal, ele completa, muitos vieram da diáspora da língua grega. Esses seriam os cristão-judeus helênicos, que tiveram polêmica com os cristão-judeus palestinenses. KOESTER, Introdução ao Novo Testamento 2, p.216. Sobre esse assunto ver o apêndice 1: “On the Problem of Jewish Christianity”, de G. Strecker, a partir do artigo de W. Bauer, “Orthodoxy and Heresy in Earliest Christianity”, na versão eletrônica de R. A. Kraft, de 1993. http://ccat.sas.upenn.edu/humm/Resources/Bauer/bauer_a1.htm#FN1#FN1. Também GOPPELT, op.cit. p, 281 et.seq. 85 mexeu com os mais conservadores, piedosos até, o que explicaria seu ódio por Jesus. Entretanto, não há provas suficientes (mesmo considerando alguns relatos dos evangelhos) de que os fariseus e os escribas se envolveram diretamente na condenação e morte de Jesus. 287 Por isso, esse critério não auxilia objetivamente na conclusão pela autenticidade do dito. Mesmo assim, é fato que a maneira como Jesus lidou com o templo e o sistema sacerdotal pode ter causado sua prisão. 3.5.5. Critério da Análise do Estilo de Jesus Esse critério, considerado dúbio por Meier, é tratado com importância por Marconcini.288 Ele parte da idéia de que Jesus tenha ensinado em aramaico e que mesmo o texto grego dos evangelhos pressupõe uma tradição oral de raiz aramaica.289 Sendo assim, se um dito tiver uma correspondência formal com a forma aramaica, em termos de ritmo, sintaxe, etc. então teria grandes chances de ser autêntico. Em contrapartida, um dito que tivesse dificuldade de ser traduzido do grego para o aramaico dificilmente seria de Jesus. Essa pesquisa foi exaustivamente trabalhada por J. Jeremias, que analisou as características da ipsissima vox. Segundo ele são “características da dicção de Jesus que não possuem nenhuma analogia na literatura da época e que, por isso, podem ser consideradas como marcas da ipsissima vox de Jesus.”290 A crítica de Meier a esse critério é que se as comunidades de fala grega puderam criar ditos relacionados à pessoa de Jesus, também as comunidades palestinenses, de língua aramaica, o poderiam fazer. Além disso, esse critério já pressupõe que determinado conjunto de ditos é autêntico, e isso pode ser metodologicamente equivocado.291 Assim, Meier entende que o critério da análise 287 Cf. CROSSAN, J.D. Quem matou Jesus?, obra na qual o autor defende que todos os textos a respeito da prisão, julgamento e execução de Jesus sofrem interferência das lutas “intra-judaicas”, ou seja, os autores culpavam aqueles que de alguma forma interferiam na comunidade, ou que na memória dela tiveram atitudes negativas. Especialmente p.43-55. 288 MARCONCINI, B. Os Evangelhos Sinóticos. 2004, p.52 et.seq. 289 Cf. THEISSEN, op.cit., apesar dele deixar essa hipótese em aberto, p.190 et.seq. 290 JEREMIAS, J., Teologia do NT¸ pp.69-79; Id., Estudos no Novo Testamento, pp.137-147. Jeremias estudou essa característica nas parábolas, nos ditos enigmáticos, do reino de Deus, no uso da palavra Abba e da palavra Amen. 291 MEIER, J.P., Um judeu marginal, p.180. 86 do estilo de Jesus só é válido depois que o dito tiver passado pelos demais critérios. Em nosso caso, então, se torna válido complementar os dados até aqui levantados, agregando-se à análise o resultado da pesquisa relacionada ao estilo de ensino de Jesus, conforme registrado nos sinóticos. No caso do uso de Jesus da palavra avmh.n, Jeremias entende que é uma exclusividade dele, sem paralelos, seja na literatura do judaísmo antigo, seja no Novo Testamento. O termo vem do aramaico !mEïa', que significa “certamente”, de acordo com Baumgartner292. Pode ser entendido como uma fórmula solene; em Deuteronômio aparece como aceitação do povo às maldições proferidas contra a desobediência a diversos mandamentos (Dt 27,15-26). Em Neemias é a resposta do povo em momentos solenes de culto (Ne 5,13; 8,6). No Novo Testamento encontramos expressão similar nos escritos de Paulo, relacionado ao culto público (1 Co 14,16) e no Apocalipse que, em geral, reproduz fórmulas oriundas do ambiente litúrgico (Ap 5,14; 7,12; 19,4; 22,20). A diferença nos evangelhos é que o termo é usado para sublinhar as palavras próprias de Jesus, e nunca aparece na boca de outros, o que aponta para o uso dessa expressão como elemento introdutório solene em diversos textos dos três evangelistas. O comentário de Jeremias a esse respeito é que a tradição dos ditos demonstrou respeito por esse termo estrangeiro. Na verdade, poderia ser uma associação com a expressão dos profetas “assim diz o Senhor”, que apontavam a fonte de suas palavras, cuja origem seria divina. De modo correspondente, ao usar o termo Jesus demonstra sua plenipotência. No dizer de Jeremias, “a novidade desse uso lingüístico, sua estrita restrição às palavras de Jesus e o testemunho unânime de todas as camadas da tradição evidenciam que nos deparamos com uma inovação lingüística nos lábios de Jesus.”293 Considerando esse critério, podemos considerar o dito de Mt 5,17-20 uma fala autêntica de Jesus, preservada pela comunidade e utilizada como fundamento para a identidade dela. 3.5.6. Síntese e conclusão da análise da historicidade 292 BAUMGARTNER, Hebräisches und aramäisches Lexicon zum Alten Testament, Lieferung I, 3ª.ed. Leiden, 1967, p.62b. 293 JEREMIAS, J., Teologia do NT¸ p.78. 87 Mesmo considerando que os critérios da historicidade não são absolutos nas suas conclusões, por vários motivos podemos considerar esse dito autêntico: a) Ele reflete tanto o contexto judaico de Jesus como aponta para a influência dele sobre a Igreja posterior, mesmo sendo atestado por poucas fontes independentes; b) O tema do dito foi sendo retrabalhado pela tradição cristã, a ponto da Lei deixar de ser do grupo dos cristãos para ser apenas dos judeus. O constrangimento que ele causou foi sendo minimizado nas comunidades com menos expressão judaica. c) A postura de Jesus frente à Lei foi um dos motivos de sua crucificação, mesmo ele não tendo sido condenado pelos grupos citados em Mt 5,17-20 (escribas e fariseus); d) No dito o estilo de Jesus é claro, com elementos aramaicos característicos de sua fala. Evidentemente que as explicações acima podem muito bem ser apenas uma projeção, já que a comunidade de Mateus estaria sendo severamente perseguida pelos fariseus. No entanto, como nota dissonante, temos o próprio Paulo que, sendo fariseu, se declarou “perseguidor (diôkô) da Igreja” (Fp 3,6), ou seja, numa época anterior ao evangelho de Mateus. Certamente uma das motivações para essa perseguição seria não apenas a mensagem positiva do Evangelho, como também certas insinuações com respeito à espiritualidade praticada pelos fariseus. Com relação à comunidade de Mateus, podemos entender que, ao ser questionada quanto à sua autenticidade, frente aos demais projetos pós-70 em Israel, ela busca em Jesus uma palavra que estabeleça nele, e não nela mesma, a autoridade para revisar a Torá e se declarar o novo Israel. Um Israel que segue a Torá cuja síntese é: amar a Deus e ao próximo. Concluindo, diante da pergunta sobre a autenticidade do dito (com exceção do v.18) ou se ele seria uma projeção da comunidade de Mateus, referindo-se aos projetos judaicos concorrentes pós-70, preferimos pensar que a comunidade teria recuperado tradições antigas a respeito da relação de Jesus e a Torá que a Igreja num todo foi perdendo, por ter outros interesses em vista. 88 4 Aspectos exegético-teológicos de Mt 5,17-20 4.1. Introdução É possível saber ao certo a relação entre Jesus de Nazaré e a Torá? Que indicativos temos de sua compreensão a respeito da Lei? Conseqüentemente, da vontade de Deus e de sua prática piedosa como judeu Galileu, a partir do dito de Mt 5,17-20, considerando-o como dito autêntico? Esse dito teria um sentido meramente pragmático, comum à piedade farisaica, ou Jesus também pensou em termos escatológicos a respeito do cumprimento da Lei e dos Profetas? Essas são as principais perguntas que desejamos responder, a partir de uma análise exegético-teológica, que passa pela análise semântica do dito e sua relação com o todo do ministério de Jesus, segundo exposto no livro de Mateus. Além disso, queremos evidenciar a teologia do texto, o que afirma para a fé da comunidade a respeito do próprio Jesus e de seu ministério. 4.2. A Lei e os Profetas em Jesus: to.n no,mon h' tou.j profh,taj (v.17a) Vamos retomar aqui alguns aspectos dos capítulos anteriores, no sentido de entender ao que Jesus se referia quando trata da Lei e dos Profetas. Mais ainda, desejamos perceber qual era a relação de Jesus com essa categoria de pensamento, tão importante no imaginário judeu. 17a Não considereis que eu vim para anular a Lei e os Profetas; 4.2.1. O sentido da Lei e dos Profetas para Jesus Considerando o uso desse termo associado – Lei e Profetas – tudo indica que Jesus se refere ao grupo de textos reconhecido pelos judeus como inspirados 89 por Deus, referência para sua prática de fé.294 Os judeus residentes na Galiléia exercitavam a mesma fé dos judeus da Judéia, especialmente no que tange à Torá.295 Pensando em Jesus como um “judeu observante”, no dizer de Vermes, segundo a imagem que emerge dos evangelhos: De início, Jesus é regularmente associado com sinagogas, centros de culto e de ensino. Encontramos referências gerais à sua presença nestes centros da Galiléia, por vezes especificamente no Shabat. Duas dessas sinagogas, uma em Cafarnaum (Mc 1,21; Lc 4,31) e a outra em Nazaré (Lc 4,15), são especificamente designadas.296 Dentre as atividades comuns de um judeu piedoso estava a prática de ir à sinagoga para a leitura da Lei e dos Profetas.297 A configuração de uma sinagoga na diáspora não deveria ser muito diferente daquelas localizadas em Israel. Assim, podemos identificar Jesus como um judeu praticante, ouvinte (ou talvez até mesmo leitor) da Torá e dos Nebîim.298 Alguém que observa os mandamentos, para cumpri-los.299 Mateus é quem mais registra essa terminologia; em três outras ocasiões (7,12; 11,13; 22,40) ele cita o Cânon judaico, que ainda não tinha sido dividido em três partes. Essa maneira de dividir o Antigo Testamento só foi reconhecida a 294 Cf. BILLERBECK, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch, I, p.240. Segundo FREYNE, S., “um dos estereótipos dos estudos sobre a Galiléia é a afirmação de que os galileus não eram observantes quanto à Torah.” A Galiléia, Jesus e os evangelhos, p.173. 296 VERMES, G., A religião de Jesus, o judeu, p.21. 297 Cf. GNILKA, J., Jesus de Nazaré, p.197. A sinagoga também servia como centro de hospedagem e lugar de reunião para questões jurídicas dos judeus, além do propósito de ser um centro de devoção. Cf. MERZ, A. e THEISSEN,G., O Jesus Histórico, p.149; E. STEGEMANN comenta que antes do ano 70 d.C. o número de sinagogas na Palestina deve ter sido pequeno. História social do protocristianismo, p.168s. Em At 13,14-15 há uma referência que ilustra esse ponto. Ao entrar numa sinagoga, no dia de sábado, Paulo e Barnabé, esperaram até que terminasse “a leitura da Lei e dos Profetas” [th.n avna,gnwsin tou/ no,mou kai. tw/n profhtw/n.], para também poderem falar. 298 A discussão acerca da alfabetização de Jesus tem sido razoável e inconclusa. De acordo com THEISSEN, O Jesus Histórico, p.382 et.seq., há evidências de que Jesus tinha capacidade de ler, como o ensino em sinagogas, a existência de uma sinagoga em Nazaré, etc. J.P. MEIER, Um judeu marginal, p.347, aponta que “na cultura popular oral e quem ele se criou e mais tarde passou a ensinar, a alfabetização não era uma necessidade absoluta para as pessoas comuns.” Mesmo assim ele considera possível que Jesus tenha sabido ler. 299 Ibid., p.384 et.seq. aponta o modo como Jesus utilizava as Escrituras, nas vezes em que ela as cita: a consciência de cumprimento (próximo do sentido de Mt 5,17), onde Jesus demonstra “conhecimento da ação escatológica de Deus”; conduta provocativa, o uso polêmico da Escritura com o fim de provocar seus ouvintes; argumentação polêmica, quando faz o uso correto da Escritura para justificar uma atitude polêmica; fundamento ético (também próximo de Mt 5,17), quando Jesus demonstra concordar com o fato de que a Lei expressa a vontade de Deus e não deve ser menosprezada, mas interpretada adequadamente. Também cf. D. FLUSSER, O Judaísmo e as origens do Cristianismo, p.32. 295 90 partir do fim do século um, quando são encontradas referências no Talmude Babilônico e na Midrash dos Salmos300. Uma das referências de Jesus ao cânon bipartido está também no Sermão do Monte, quando estabelece a sua Regra de Ouro: “Portanto, tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós, porque esta é a lei e os profetas” [Pa,nta ou=n o[sa eva.n qe,lhte i[na poiw/sin u`mi/n oi` a;nqrwpoi( ou[twj kai. u`mei/j poiei/te auvtoi/j\ ou-toj ga,r evstin o` no,moj kai. oi` profh/taiÅ] (Mt 7,12)301; em outra ocasião, quando discutiu a respeito do papel de João Batista: “Em verdade vos digo que, entre os que de mulher têm nascido, não apareceu alguém maior do que João o Batista; mas aquele que é o menor no reino dos céus é maior do que ele.” [avmh.n le,gw u`mi/n\ ouvk evgh,gertai evn gennhtoi/j gunaikw/n mei,zwn VIwa,nnou tou/ baptistou/\ o` de. mikro,teroj evn th/| basilei,a| tw/n ouvranw/n mei,zwn auvtou/ evstin] (11,13); e numa terceira ocasião, em diálogo com um “doutor da Lei” a respeito de qual seria o maior mandamento: “Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas.” [evn tau,taij tai/j dusi.n evntolai/j o[loj o` no,moj kre,matai kai. oi` profh/taiÅ] (22,40). Mas que grupo de textos inspirados seria esse? Seria em sentido estrito? Parece que não. Barth entende que se deve pensar que, ao utilizar a referência de Lei e Profetas, Mateus esteja, de fato, tratando do Antigo Testamento como um todo, como deve ter sido com Jesus em seu tempo.302 O uso dos Salmos no texto de Mateus confirma isso (Mt 5,5, com paralelo em Sl 22,26 e 25,9; Mt 7,23, com paralelo em Sl 5,5 e 6,8; Mt 13,35, com paralelo em Sl 49,4; Mt 21,16, com paralelo em Sl 8,2; e Mt 27,43, com vários paralelos messiânicos: Sl 3,2; 14,6; 22,8; 42,10; 71,11). Filson afirma que, se Jesus pensa no Antigo Testamento todo, então ele aceita a Escritura como uma revelação e ao mesmo tempo exigência de Deus para o ser humano.303 300 Cf. BILLERBECK, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch I, p.240. Há citação desse cânon juntamente com os Ketubîm no TB 11,23 e na Midr Ps 90 §4s. BARTH comenta a respeito: “There is reflected in this formula the fact that the Hagiographa were canonized only towards the end of the first century”. “Matthew’s understanding of the Law”, p.92. 301 Importante aqui é a inversão da lógica sapiencial judaica, cf. registrada em Tb 4,15, bem como presente no ensino de Hillel. Nesses textos se afirma de forma negativa: “o que não quereis que vos façam, não fazeis a ninguém”. Jesus inverte ao colocar de forma positiva, insistindo que o fazer o bem é mais importante do que apenas deixar de fazer o mal. Cf. MAZZAROLO, I. Evangelho de Mateus, p.120. Ver abaixo, na § 3.3.2, outras opiniões a respeito. 302 BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.93. 303 FILSON, F.V., A Commentary on the Gospel according to St. Matthew, p.83. 91 O que aponta no texto a aceitação desse corpus canonicus é a expressão “não penseis” [Mh. nomi,shte], uma declaração aberta de que a intenção de Jesus não era de invalidar a vontade de Deus expressa nas Escrituras. Na verdade, se Jesus pensasse ou agisse assim, seria como um herege, ou blasfemo diante de sua religião.304 Por outro lado, segundo a posição de Bultmann, essa expressão indica recurso redacional de Mateus. Sendo o dito elaborado pela comunidade palestinense, foi uma tentativa de refutar a posição antinomiana da comunidade helenística, que seria a grande polêmica entre os dois grupos: a correta compreensão a respeito do valor da Lei.305 Concorda com ele Charles, para quem Mateus usou a expressão Mh. nomi,shte como um recurso estilístico de oratória de Jesus para dar peso ao seu argumento.306 Ao mesmo tempo, entretanto, pode-se pensar em termos da autoridade de Jesus apontada no dito, acima daquela demonstrada pelos escribas, perante a Lei.307 A comunidade de Mateus de fato deve ter seguido Jesus em sua concepção das Escrituras. Desse modo, também para ela a Lei e os Profetas designavam a revelação da vontade de Deus. A menção dos profetas nessa fórmula, segundo Marguerat, não deve ser vista nem pelas promessas antigas, nem como portadores do curso da história da salvação, mas como proclamadores da Torá.308 Cabe aí, então, uma interpretação ética a respeito da fórmula “Lei e Profetas”, em que nem devemos pensar numa mera alusão ao corpus literário, considerado sagrado, nem a uma regra, como o código legal a ser obedecido. A compreensão adequada da fórmula pode ser a de que se trata da exigência ética transmitida por Deus ao seu povo, a partir da tradição vétero-testamentária. Nessa 304 Cf. expressa Charles: “To a Jew, the setting aside or abrogating of the law constituted the mark of a heretic”. CHARLES, J.D., “The Ethic of the Sermon of the Mount Reconsidered”, p.52. 305 BULTMANN, L’historie de la tradition synoptique, p.176. Cf. também BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.67, GNILKA, J., Jesus de Nazaré, p.197. 306 CHARLES, J.D., op.cit., p.52. Uma declaração paulina que deve ter provocado boa parte dessa discussão está em Rm 10,4: “Porque o fim da lei é Cristo para justiça de todo aquele que crê.” [te,loj ga.r no,mou Cristo.j eivj dikaiosu,nhn panti. tw/| pisteu,onti]. 307 O evangelho de Marcos, na primeira cura que Jesus realiza (na verdade, um exorcismo, em Mc 1,23-28), mostra o questionamento dos escribas, perguntando se essa seria uma nova doutrina [didach. kainh.]. A autoridade de Jesus fica evidenciada de tal maneira que provoca surpresa. Mateus não tem essa narrativa em seu evangelho. Cf. MAZZAROLO, I., Evangelho de Marcos, p.70. 308 MARGUERAT, Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.125. 92 exigência ética vamos encontrar Jesus e seu posicionamento a respeito da Lei e dos Profetas, bem como a transmissão dessa idéia a seus seguidores.309 Entretanto, o v.18, que pode ser considerado o eixo central da perícope, mostra que Jesus na verdade não trata da ética a partir de considerações genéricas apenas, mas de seu registro escrito e transmitido pela tradição, inclusive com os acentos e ornamentos próprios que os copistas elaboraram no decorrer da transmissão dos manuscritos. 310 Podemos pensar que havia um senso comum entre os judeus de que a Lei e os Profetas não podiam ser mexidos, nem nos menores detalhes, pois isso certamente iria alterar o sentido das ordenanças. Nesse caso aceitamos a idéia de que Jesus compartilhou desse pensamento, e foi acompanhado pelas comunidades palestinenses, em sua maioria composta de judeu-cristãos. Trilling, percebe três sentidos para a Lei, em sua análise da perícope: no verso 17, como base para o cumprimento de Jesus; no verso 18, a Lei como norma irrevogável; no verso 19 como resumo de todos os preceitos que apontam para o reino de Deus. Mas para entender o sentido que predomina em Mateus como um todo, é preciso analisar todo o material que trata da Lei.311 A plena compreensão desse sentido para Jesus se dará a partir da análise do restante do dito e das implicações éticas referentes a ele. 4.2.2. Jesus e as ordenanças da Lei Até aqui pudemos supor que Jesus – e da mesma maneira a comunidade de Mateus – entendia a Lei e os Profetas como sendo a revelação divina para seu povo, através da Tradição escrita transmitida e registrada no Antigo Testamento, e que contém exigências éticas para a vida. Mas o que significa isso num sentido mais estrito? Que exigências eram levadas em consideração, que ordenanças da Lei mais influenciam as decisões do indivíduo e da comunidade? 309 Ibid., p.125. Há uma história rabínica do Exodus Rabbah, presente na Midrash, que trata da questão do yod e do qots. Nela, Salomão tenta manipular a vontade divina, alterando o verbo hbr (multiplicar) da terceira pessoa para a primeira pessoa na proibição do rei aumentar o número de mulheres (cf. Dt 17,17). O yod se levanta e questiona a Deus, dizendo que de letra em letra toda a Torá será destruída. Deus então responde que todos podem tentar, mas que ele não permitiria que a Torá fosse destruída. Cf.VERMES, G., A religião de Jesus, o judeu, p.26. 311 TRILLING, W., El verdadeiro Israel, p.266. 310 93 As pesquisas recentes sobre o Jesus Histórico têm equilibrado entre uma interpretação de clara oposição de Jesus frente à Lei, e uma plena equivalência da posição dele com o judaísmo contemporâneo. Por um lado há uma compreensão de que Jesus não teria uma oposição ferrenha contra o judaísmo, e por outro, a clareza de que ele tinha uma grande liberdade em analisar a Lei e estabelecer o seu valor, e isso teria causado escândalo.312 Em sua pesquisa sobre o assunto, Bultmann trabalhou com a idéia de que a posição de Jesus em relação às ordenanças está diretamente ligada à sua proclamação escatológica a respeito do reino de Deus, e conseqüentemente seria uma abordagem mais profunda das exigências de Deus. Por isso, Bultmann afirma que a pregação de Jesus explica a exigência de Deus como sendo protesto contra o legalismo judaico, na linha dos grandes profetas.313 Ao mesmo tempo, no entanto, Bultmann reconhece que Jesus não negou a validade do AT. O que ele combateu foi a “maneira de compreender e aplicar o AT.”314 Jesus também não combateu os costumes piedosos, apenas questionou a maneira como eram praticados. Assim, Jesus teria “uma atitude naturalmente soberana em relação ao AT, uma atitude que discerne criticamente entre importante e não importante, entre essencial e indiferente.”315 Kümmel concorda que Jesus tinha em mente uma concepção escatológica em sua posição frente à Lei. No entanto, como expressão de sua autoridade, que demonstrava o fato de que a salvação escatológica tinha sido iniciada no próprio Jesus.316 Segundo ele, isso se deu pela própria maneira como os judeus lidaram com a tradição, pois a Lei não tratava de questões triviais do cotidiano, nas situações particulares. Jesus conviveu com a interpretação da Lei a partir da tradição oral, e foi capaz de até mesmo desconsiderar algumas exigências que considerava erroneamente interpretadas, como no caso do sábado (Mt 12,1ss – os discípulos colhendo espigas para comer e depois a realização de uma cura).317 312 Cf. BROER, I., “Lei (NT)”, DBT, p.231. BULTMANN, R., Teologia do Novo Testamento, p.49 et. seq. 314 BULTMANN, op.cit., p.54 315 Ibid., p.54. Considerando o uso do AT por Mateus, G.N. STANTON afirma: “The OT is woven into the warp and a woof of this gospel; the evangelist uses Scripture to underline some of his most prominent and distinctive theological concerns”. A Gospel for a New People, p.346. 316 KÜMMEL, W.G., Síntese Teológica do Novo Testamento, p.76 et.seq. 317 Ibid., p.76. Para Goppelt, por exemplo, só podemos entender a posição de Jesus frente à Lei, quando olhamos concretamente sua posição frente à Halaká, ou seja, a Tradição Oral. GOPPELT, L., Teologia do Novo Testamento, p.118 et.seq. 313 94 Jeremias também entende que a postura de Jesus se deva ao fato de ter sido criado no ambiente judaico, em que o Antigo Testamento ganha proeminência para as questões da vida. Na verdade, Jeremias afirma que “não se pode entender de forma alguma as suas palavras sem o conhecimento do Antigo Testamento.”318 Há, na postura de Jesus uma lealdade para com a Lei, e o desejo dele de que seus seguidores também sejam leais a ela. Longe de ser um rebelde contra a religião judaica, Jesus teve nas Escrituras judaicas o suporte para sua mensagem e ministério.319 Theissen explica esse processo como uma ambivalência da parte de Jesus na sua relação com a Lei: Jesus intensificava as normas éticas (sobretudo, o mandamento do amor) em que é nítida uma tendência a um ethos universal. E relativizava as normas rituais (sobretudo os mandamentos sobre a pureza) pelos quais se separa o judaísmo do helenismo – sem eliminar tais normas completamente.320 Theissen ainda aponta que outros grupos faziam exegese da Lei em linhas semelhantes. Quanto à perícope em questão, ele afirma que as antíteses que se seguem são uma tomada de posição de Jesus frente à Lei.321 A respeito dessa questão, Tasker trabalha com a idéia de que o ensino de Jesus sobre a Lei não contradiz aquilo que Moisés ensinou, mas é uma oposição às interpretações correntes desse ensino. Caso não se entenda assim, mesmo considerando que o dito de 5,17-19 coloca Jesus no mesmo nível da Lei, as antíteses tornam-se contraditórias em relação ao dito que as introduz.322 Gnilka completa, afirmando que “a posição de Jesus em relação à Lei está voltada para a salvação do homem. As concepções da lei que estão em contradição com isto são por ele rejeitadas como não correspondendo à dignidade do homem.”323 Para Vermes, no entanto, de forma prática, a questão está na tendência, presente também nos rabinos do primeiro século, de “pesquisar os princípios centrais da Torá, e mesmo sua essência”.324 Flusser confirma essa perspectiva, pois segundo ele, “para Jesus havia, naturalmente, o problema peculiar de sua relação com a Lei e seus preceitos, mas o mesmo ocorre com todo judeu crente 318 JEREMIAS, J., Teologia do Novo Testamento, p.303s. FILSON, F.V., A Commentary on the Gospel according to St. Matthew, p.83. 320 MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.388. 321 Ibid., p.389. 322 TASKER, R.V.G., Matthew: An Introduction and Commentary, p.64 et.seq. 323 GNILKA, J., Jesus de Nazaré, p.207. 324 VERMES, G., A religião de Jesus, o judeu, p.42. 319 95 que leva a sério seu judaísmo”.325 Com isso, tem-se que pensar em dois fatores, já apontados: a relação de Jesus com a tradição oral, talvez o principal motivo de questionamento; e a busca dele pelo essencial que, praticado, cumpriria toda a justiça. De acordo com Overman, a comunidade de Mateus aprendeu de Jesus essa prática, de interpretar adequadamente a Lei, pois é totalmente cabível que uma pessoa seja zelosa cumpridora da Lei e, ao mesmo tempo, não cumpri-la rigorosamente. É o que ocorre nas histórias de controvérsia entre Jesus e membros de grupos judeus com respeito a aspectos da Lei, como na questão do sábado (Mt 12,1-14), e de certas normas rituais de pureza determinados pela Tradição dos Anciãos (Mt 15,1-20) que é a tradição Oral.326 E qual foi a posição de Jesus frente a essa tradição? Essa é, talvez, a questão chave para entender a diferença na posição de Jesus e seus adversários quanto à Lei. 4.2.3. Jesus e a Tradição Oral Ao tratar da Tradição oral, nos referimos acerca do aparato que Jesus lidou para interpretar e até interferir nos mandamentos, como ocorre nas antíteses do Sermão do Monte (5,21-48). Essas questões estão relacionadas ao outro aspecto da Torá: a Torá Oral, que interpreta a Torá Escrita e estabelece parâmetros para sua prática. De acordo com a definição judaica a respeito da Torá oral, a Lei de Moisés escrita – chamado por alguns grupos do judaísmo de Chumash [vmwx]– necessita da explicação e do detalhamento que auxilie na observância dos mandamentos registrados por Moisés. Mas essa explicação, segundo a Tradição, foi também dada por Moisés, o qual recebeu de Deus.327 Por isso têm a mesma autoridade que 325 FLUSSER, D., Jesus, p.37. Entretanto, Maldonado aponta que o dito de Jesus sobre João, em Mt 11,13: “porque todos os Profetas e a Lei profetizaram até João”, deve ser entendido como uma declaração do fim da validade da Lei do Antigo Testamento. MALDONADO, J., Comentario a los quatro evangelios, p. 437. Essa interpretação implicaria numa contradição com o dito de Mt 5,1720. 326 OVERMAN, A., O evangelho de Mateus, p.92 et.seq. 327 Cf. o tratado Pirqe Abot, analisado no Cap 1. 96 a Lei escrita. Essa interpretação é chamada de Halaká, que é “o quê, quando, onde e como de uma vida judaica.”328 As grandes escolas de interpretação do tempo de Jesus, segundo a Mishná, eram a de Hillel e a de Shammai. Conforme Vermes informa: “Hillel e Shammai, os líderes das mais influentes escolas farisaicas, possivelmente ainda estavam vivos e, no curso da vida de Jesus, Gamaliel, o Velho, tornou-se sucessor de Hillel”.329 Segundo Flusser, um dos aspectos que diferenciava as duas escolas estava na tolerância para a entrada dos gentios na fé judaica. Enquanto Hillel era mais tolerante, Shammai tinha maior dificuldade em aceitar essas conversões.330 Considerando essa postura, Flusser afirma que Jesus estaria mais próximo de Shammai do que de Hillel. Em algumas passagens do Sermão do Monte, transparece realmente uma má opinião de Jesus para com os não-judeus: a preocupação com as coisas materiais (Mt 6,32-34), as repetições consideradas vãs (Mt 6,7) e o desconhecimento do mandamento do amor (Mt 5,47). Soma-se a isso o fato de Jesus, em sua prática comum, não curar não-judeus, mas ater-se às “ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15,24).331 Isso, no entanto, contraria outra abordagem, na qual Jesus e Hillel teriam muito em comum, especialmente considerando a regra de ouro.332 Pode-se presumir, dessa forma, que Jesus não esteve atrelado a nenhuma escola específica, mas que esteve em diálogo com algumas tendências do judaísmo de seu tempo. Mas qual foi a atitude concreta de Jesus frente à Halaká? De acordo com boa parte dos autores, a posição de Jesus foi de rejeição.333 Segundo Goppelt, a rejeição total da Halaká faz com que Jesus não discuta diretamente com seu ambiente a respeito da interpretação da Lei, nem mesmo sistematize uma interpretação própria, contrariando a dos fariseus. Ele complementa: “A visão 328 R. Shlita “A eternidade da Halachá”. http://www.admatai.org/iniciantes/mensagem_42.htm, acessado em dezembro de 2007. Halaká é um termo hebraico, hk;)l;)h,] e quer dizer “modo de vida”, “direção”. Vem de $lh = “ir”, “andar”, e “designa uma doutrina fixa, lei ou princípio que é uma norma para a prática religiosa.” MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.389. 329 VERMES, G., Jesus e o mundo do judaísmo, p.13. No entanto, a Mishná apresenta aspectos anedóticos de ambos, dando preferência clara a Hillel, como se encontra no Talmude Babilônico, Shabbat 30b-31a: “Nossos mestres ensinaram: ‘um homem deveria sempre ser humilde e afável como Hillel e nunca ser intransigente e impaciente como Shammai...’.” Cf. COLLIN, M. e LENHARDT, P., A Torah Oral dos Fariseus, p.23. 330 FLUSSER, D., Jesus, p.51. 331 cf. Ibid., p.51 et.seq. 332 Cf. BORNKAM, G.,Jesus de Nazaré, p.166, COLLIN, M. e LENHARDT, P., op.cit., p. 26. 333 Cf. JEREMIAS, Teologia do Novo Testamento, p.306 et.seq.; GOPPELT, L., Teologia do Novo Testamento, p. 119 et.seq.; MARTIN, “Matthew on Christ and the Law”, p.59; 97 judaica da lei leva necessariamente à casuística: a visão de Jesus a exclui.”334 Entretanto, Flusser aponta para outra direção. O dito de Jesus que trata da cátedra de Moisés,335 cf Mt 23,2-3, demonstra que os ensinos dos fariseus e escribas eram aceitos por Jesus. O que ele criticava eram as atitudes deles, que não praticavam o que ensinavam.336 Mais uma vez transparece, em Jesus, uma atitude de releitura e interpretação, própria de um legislador e intérprete da Lei, e não de um radical pregador de anomia religiosa. E com uma abordagem que o assemelha a um profeta, pois eles também não desconsideravam a lei. Por isso, é importante considerar a idéia de Jesus como profeta e intérprete da Lei. 4.2.4. Jesus, profeta e intérprete da Lei Seguindo um pouco o raciocínio de Bultmann, de que Jesus teria adotado uma posição de crítica ao legalismo judaico,337 na linha dos grandes profetas, podemos pensar que ele agiu em defesa da Lei como também o fizeram os profetas antes dele. Jesus não chamou a si mesmo de profeta, e esse aspecto não está tão claro em Mateus como está em outros evangelhos.338 O que Mateus reforça muito é o grande número de referências de cumprimento de profecias, cuja fórmula é “para que se cumprisse o que fora dito por meio do profeta” [i[na plhrwqh/ to. rhqen dia. tou/ profh,tou le,gontoj].339 Segundo Brown, “essas citações enfatizam que toda a vida de Jesus, até o mínimo detalhe, situava-se no 334 GOPPELT, L., op.cit., p.121. Que ficava em Corazim, lugar ao qual Jesus dirigiu palavras de alerta, cf. Mt 11,21. Crüsemann observa que a existência de tal elemento é antecipada por uma idéia de um ofício mosaico de interpretação da Lei de Moisés. CRÜSEMANN, F., A Torá, p.153. 336 FLUSSER, D., Jesus, p.48. Ele demonstra ainda que essa crítica não foi exclusiva de Jesus, pois tanto os saduceus quanto aos essênios tinham severas críticas aos fariseus (Documento de Damasco 8:12). Por outro lado, os textos rabínicos antigos criticam fariseus não observantes, exaltando o fariseu fiel à Tora, cf. o Tratado Sotá, 22b, no Talmude Babilônico. BARTH concorda com essa posição: “In the original meaning of the saying therefore the word ‘everything’ included the Rabbinic tradition.” BARTH, “Matthew’s understanding of the Law”, p.86. 337 BULTMANN, R., Teologia do NT, p.49 et. seq. 338 Lucas aponta muito mais para a figura de Jesus como profeta. Isso ocorre já no início de seu ministério, quando leu o rolo de Isaías na sinagoga (Lc 4,14-30) e ainda se insere na perspectiva de Elias e Eliseu. Além disso, os discípulos do caminho de Emaús viram nele um profeta “poderoso em palavras e obras, diante de Deus” (Lc 24,19). E a obra de Atos, continuação de Lucas, reafirma em alguns momentos essa perspectiva (At 3,11-26; At 7,1-53). Mesmo assim, Mateus associa Jesus aos profetas, especialmente tomando sua vida como cumprimento das profecias. Cf. DILLMANN, “Profeta (NT)”, DBT, p.347. Ver também a expectativa popular em torno dos profetas em GRELOT, P., A Esperança judaica no tempo de Jesus, p.120-125. 339 Essa fórmula aparece em Mt 1,22s; 2,15; 2,17-18; 2,23; 4,14-16; 8,17; 12,17-21; 13,35; 21,4-5; 27,9. 335 98 plano predeterminado por Deus.”340 Mateus cria assim uma relação da história de Jesus e da vivência de sua comunidade, com as tradições que fundamentam o judaísmo corrente, especialmente em relação às profecias, em torno das quais havia grandes expectativas.341 Considerando o que já levantamos na pesquisa, em que a profecia tinha ganhado uma dimensão escatológica além da busca pela fidelidade à Lei, faz sentido a idéia de que a pregação de Jesus tinha forte cunho escatológico.342 Da mesma forma, percebe-se na pregação de Jesus a preocupação dos profetas de levar o povo de volta à Lei de Deus, e não abandoná-la. Assim, Mt 5,17-20 pode ser considerada uma palavra profética de Jesus, tanto para levar o povo até Deus, quanto para declarar a validade da Lei para o povo. Em outras palavras, é possível afirmar uma expectativa na comunidade de que o mestre seja também o “Filho do Homem” escatológico, e isso se tornou ainda mais evidente à luz da fé pascal.343 De acordo com a pesquisa de Cullmann, sobre a cristologia do Novo Testamento, a idéia de Jesus como profeta está bem próxima da idéia dele como Messias. Segundo sua exposição, isso se dá por causa do conceito de Filho do Homem, que é não apenas uma designação associada aos profetas, como também se tornou depois interligado com a idéia de um profeta do fim dos tempos, o qual configura-se como o Messias. Para Cullmann, “a noção de ‘profeta’ explica, pois, perfeitamente a atividade de Jesus como pregador, assim como também a autoridade com a qual atua e fala.”344 Mas isso não está muito claro em Mateus, pois como aponta Bonneau, apesar de Jesus ser chamado como um profeta em algumas ocasiões, inclusive a si mesmo, citando um provérbio popular (Mt 13,57), “Mateus não situa Jesus na categoria dos profetas”.345 340 BROWN, R.E., O Nascimento do Messias, p.96-97. Cf. OVERMAN, A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.82 et.seq.; 342 BULTMANN, R., Teologia do Novo Testamento, p. 90. Cf. mais recentemente MEIER, J.P., Um judeu marginal vol 2, livro 2, p.78 et.seq. Ele até polemiza a respeito: “Em anos recentes, alguns estudiosos têm questionado o ponto de vista segundo o qual Jesus pregava a respeito de um reino escatológico que haveria de chegar em breve”. P.79. 343 Cf. BULTMANN, R., op.cit., p.90. J.GNILKA, no entanto, alerta para não limitar a figura de Jesus a um predicado messiânico, tendo em vista que muitos outros foram usados, e nenhum foi claramente definido. Cf. Jesus de Nazaré, p.235 et.seq. 344 CULLMANN, O., Cristologia do Novo Testamento, p. 67. Ele aborda o assunto nas p.31-74. 345 BONNEAU, Profetismo e Instituição no Cristianismo Primitivo, p.184 et.seq. A bem da verdade, o próprio Cullmann chegou a essa conclusão: “Os evangelhos sinópticos mostram, pois, que uma parte do povo considerava Jesus, durante sua vida, como o profeta esperado para o fim dos tempos. Este fato é tanto mais importante considerando-se que nem Mateus, nem Marcos, nem Lucas tenham se servido desse título para expressarem sua própria fé em Jesus.” CULMANN, op.cit., p.58. Ele de fato conclui que a idéia de Jesus como profeta abrange apenas um aspecto do 341 99 Da mesma forma, segundo a pesquisa de Gnilka, deve-se considerar Jesus como mais que um profeta, mesmo que ele tenha desenvolvido elementos cuja matriz estivesse presente no movimento profético, tais como: o anúncio do domínio/reino de Deus sobre todos os povos, como nova ordem de salvação; o chamado de discípulos, para seguirem-no de forma especial; e um certo apelo messiânico em sua definitividade, mesmo que faltando o traço político-nacional, aspecto fundamental para os seus contemporâneos.346 A pesquisa de Theissen aponta para uma abordagem do anúncio de Jesus como profeta escatológico, a partir do conceito de Kümmel, em que há, na pregação dele uma dupla dimensão: presente e futura.347 Assim define Theissen a respeito da pregação de Jesus: No que se refere ao conteúdo, Jesus representa uma variante da expectativa apocalíptica, mas no aspecto formal ela aparece como profecia – não na forma de um escrito esotérico secreto da pré-história remota, mas como uma proclamação (oral) ligada a sua pessoa. Sua pregação é uma revitalização da apocalíptica em forma profética.348 Mas, analisando o que já foi exposto acima, percebe-se que, mesmo que Jesus tenha lidado com a Lei da mesma forma que os profetas, de fato ele agiu mais como mestre, como intérprete da Lei. De fato, pode-se afirmar que “Mateus substitui a função profética de Jesus pela de mestre.”349 Ou seja, quando se trata da questão da Lei, evidencia-se em Jesus mais o papel de escriba e intérprete da Lei do que de profeta. Destaca-se aí o plano ético de sua pregação, vinculado à ética da Lei. A pesquisa sobre o papel de Jesus como mestre passou por diversas fases, e nos últimos anos leva em consideração sua condição histórico-social concreta, a partir do ethos judaico ao qual ele estava vinculado.350 Apesar das ministério terreno de Jesus, não podendo responder nem à questão escatológica e futura de seu ministério, nem à sua preexistência. 346 GNILKA, Jesus de Nazaré, p.238. Sobre o assunto ver também BRUEGGEMANN, A Imaginação Profética, especialmente as p.104-143. 347 Cf. MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.267 et.seq. 348 MERZ, A. e THEISSEN, G., op.cit., p.273. Kümmel, no entanto, considera que em Jesus o tempo profético se encerrou. Cf. KÜMMEL, G.W., Síntese Teológica do Novo Testamento, p.92. Cabe aqui pensar até que ponto o dito de Mt 5,17-20 tem elementos proféticos e apocalípticos, ou ainda, em que proporção tratam do presente ou do futuro. Ver § 3.3 infra. 349 BONNEAU, G., Profetismo e Instituição no Cristianismo Primitivo, p.185. 350 Theissen faz uma síntese dessa pesquisa, que coloca as diferentes fases, especialmente referindo-se ao séc. XVIII e XIX, onde pensou-se uma ética atemporal, e uma pregação de uma moral eterna, dissociada da história. Nas primeiras décadas do século vinte, a pesquisa começou a ter uma abordagem mais historicizada. O primeiro passo se deu por meio da ética escatológica, que chama o ser humano a uma resposta, mas que minimiza o papel das exigências concretas. Depois da descoberta dos manuscritos de Qumran, e mesmo antes, outros pesquisadores abordaram por meio da comparação com elementos contemporâneos a Jesus, como os escritos rabínicos, os textos 100 divergências de abordagem há um consenso: Jesus agia como mestre, e assim era considerado. Mas a partir de qual base? A tradição sinóptica (Mc 14,14 par. Mt 26,18, Lc 22,11), bem como a tradição de Q (Mt 8,19ss par. Lc 9,57ss) e a tradição M (Mt 23,8) apresentam a idéia de que Jesus é o Mestre por excelência. Mateus reuniu e reforçou bastante essa ênfase, conforme se pode ver no fim do Sermão do Monte: “porque os ensinava com autoridade, e não como os escribas” [h=n ga.r dida,skwn auvtou.j w`j evxousi,an e;cwn kai. ouvc w`j oi` grammatei/j auvtw/nÅ] (Mt 7,29). Peculiar em Mateus, no entanto, é o fato de Jesus ser chamado de Mestre apenas por não-judeus e por Judas (cf. 26,25.49). Os discípulos chamam Jesus apenas de Senhor (kurie). Segundo Müller, “Mt não quer apresentar Jesus como mestre judaico, e sim, programaticamente, como o novo legislador”.351 O dito de Mt 5,17-20 faz parte de um conjunto de ditos messiânicos, com cunho sapiencial.352 Vermes sugere a idéia de que Jesus foi um mestre influente. “Era uma figura antes popular que profissional, um mestre itinerante que não anunciava sua mensagem em local fixo tal como numa escola (bet midrash) ou numa sinagoga determinada”.353 No entanto, a despeito dessa imagem de mestre, há na figura de Jesus em Mateus mais um aspecto messiânico e salvífico do que meramente de intérprete. “Em Mateus, a função salvífica de Jesus está no nível de seu papel de legislador.”354 Em seu papel de mestre, Jesus utilizou com bastante propriedade as Escrituras Hebraicas, ao menos da maneira como os evangelhos descrevem. Considerando o cânon aceito comumente pelos judeus de seu tempo, é natural que de Qumran, e mesmo os valores presentes no judaísmo helenístico. Mas foi a partir da década de 1970 que a pesquisa – já vislumbrando a abordagem da Third Quest – trabalhou com o Sitz im Leben da pregação ética de Jesus, e sua conseqüente relação com a Lei, no papel de Mestre (Rabi). Cf. MERZ, A. e THEISSEN,G., op.cit., p.375-381. 351 MÜLLER, “Doutrina/Ensino”, Dicionário Bíblico Teológico, p.111 et.seq. 352 Bultmann já indicara esse fato, associando o papel de mestre ao de messias: “Quando se coleciona seus ditos, isso não é feito só por causa de seu conteúdo doutrinário, e sim porque são as palavras dele, do futuro rei. Segundo a concepção rabínica, o Messias, depois de aparecer, também se apresentará como mestre da Torá – a comunidade já possui a interpretação da lei por parte de Jesus e, no “Eu, porém, vos digo”, ela o ouve falar como o Messias. Em suas palavras já se possui a sabedoria e o conhecimento que, segundo a crença dos apocalípticos, o Messias proporcionará um dia.” BULTMANN, R., Teologia do NT, p.90. 353 VERMES, G., A religião de Jesus, o Judeu, p.49. Sobre isso Meier lembra que, mesmo discutindo de igual para igual com os chefes de sinagogas, Jesus não teria nenhuma relação de origem com o grupo levita ou mesmo sacerdotal: ele seria um camponês galileu leigo. Um judeu marginal, p.343 et.seq. 354 BONNEAU, G., op.cit., p.188. 101 Jesus tenha feito uso dos métodos de exegese e de utilização delas.355 Mas não se pode afirmar que ele mesmo tenha sistematizado seu ensino, pois era um pregador carismático, mais do que um mestre de escola.356 Aqui, é possível falar de uma aproximação entre Jesus e a figura de Moisés? Talvez se possa, mas não sem muitas reservas do ponto de vista hermenêutico, mesmo considerando o relato da transfiguração (que tem sua origem em Marcos).357 O que realmente importa é a tarefa efetiva que Jesus realizou, e que Mateus organizou em termos de um discurso com lugar, público e objetivos definidos. E aqui cabe a nós verificar o que ele quis dizer com sua expressão de não destruir, mas cumprir, e que aspectos da Lei Jesus cumpriu. 4.2.5. Síntese da análise sobre a Lei e os Profetas em Jesus Considerando o que foi abordado até aqui, podemos perceber que Jesus teve um respeito pelas Escrituras hebraicas como qualquer judeu contemporâneo a ele, mas manteve uma liberdade em relação às escolas de seu tempo, bem como em relação às práticas correntes. Na perspectiva mateana Jesus tinha um ministério de caráter profético, mas é apontado como um mestre sábio, capaz de avaliar o texto sagrado tendo em consideração fatores éticos mais profundos, nos quais a vida fosse o centro da decisão. Sua independência em relação à paradosis – a tradição dos Pais, ou à Torá Oral – se explica pelo fato dele não se vincular a nenhuma corrente em 355 Como afirma FLUSSER: “O método de exegese empregado por Jesus é o dos antigos midrashim rabínicos, e mesmo que as conclusões pessoais de Jesus sejam às vezes ousadas, todas elas permanecem bem dentro do contexto do pensamento e exame rabínicos e de modo nenhum contradizem métodos de interpretação das Escrituras judaicas.” Op.cit. p.32. 356 VERMES, G., op.cit., p.49-70, confirma essa idéia em sua análise de Jesus como Mestre. Na verdade, o que marcou o ensino de Jesus foi sua exousia – autoridade – que chocava e maravilhava sua audiência. Vermes comenta: “não seria razoável duvidar que Jesus tenha jamais recorrido a argumentos bíblicos, e entre estes, como foi sugerido, gozam das pretensões mais fortes de autenticidade a adoção da expressão bíblica, o emprego de precedentes escriturais e a interpretação enfática ou hiperbólica dos mandamentos com os quais todos os seus contemporâneos estavam familiarizados. Mas essas instâncias são poucas e isoladas e de modo nenhum formam um corpus bastante sólido para dotar a pregação de Jesus de poder excepcional.”, p.70. 357 Por ex. Crüsemann expõe que já no pós-exílio Moisés alçou à categoria de ‘carisma’, sendo identificado em Esdras, pelo seu papel de promulgador da Torá, com o Sinédrio e seu predecessor, o conselho dos anciãos do período helenista, por usa competência jurídica, e de uma forma especial, com os grupos que elaboraram os documentos geradores do Pentateuco, pois, apesar de suas divergências, tiveram em Moisés a figura agregadora, que permitiu a coexistência de projetos tão diferentes num mesmo documento. CRÜSEMANN, A Torá, p.154-158. Além disso, Cullmann admite que a crença popular do Moisés ressuscitado, advindo dos escritos apocalípticos judaicos, não se coaduna com os evangelhos, pois estes reforçam mais a figura de Elias. CULLMANN, Cristologia, p.35 et.seq. 102 especial. Mesmo assim seu ensino e posturas, conquanto apresentasse novidades, em muitos aspectos está próximo de outros mestres de seu tempo. A novidade de Jesus talvez estivesse numa proximidade com elementos da religiosidade popular, especialmente no que se refere a um senso escatológico de sua mensagem, coisa que vamos nos analisar amiúde em outro ponto. Em relação à Lei Jesus afirma categoricamente o cumprimento, não a anulação. Vamos analisar este aspecto para entender o pensamento do mestre judeu, chamado Jesus. 4.3. Anular e cumprir: katalu/sai kai, plhrw/saiÅ (v.17b) A afirmação de Jesus a respeito da Lei e dos Profetas, que já vimos se tratar das escrituras judaicas e especialmente da revelação da vontade de Deus para a vida das pessoas, assume uma postura aparentemente ortodoxa: não veio anular/destruir, mas cumprir. Um olhar mais atento, no entanto, vai nos levar ao profundo sentido das palavras de Jesus, e as implicações para seus ouvintes. Logo de início, nos deparamos com a declaração mais forte: “Eu (não) vim” [(ouvk) h=lqon], que J. Jeremias relaciona com o “Vegw,” enfático. Para ele, nos ditos autênticos de Jesus – pré-pascais – não há títulos messiânicos, pois ele não se refere a si mesmo com títulos, com exceção de “Filho do Homem”.358 A terminologia que indica uma autoconsciência messiânica está presente no uso do “Vegw,” enfático, que aparece em Mt 5,17 na expressão h=lqon, indicativo aoristo ativo, na 1ª pessoa singular do verbo e;rcomai, “vir” ou “ir”.359 Mateus reuniu esse dito, pois considerava que ele estava intimamente relacionado à sua comunidade. Vamos analisar um pouco o significado das expressões “anular” e “cumprir”, para assim podermos nos aproximar da hermenêutica geral do dito. 4.3.1. 358 JEREMIAS, J., Teologia do Novo Testamento, p.362. Cf. RUSCONI, C., “h=lqon” e “e;rcomai” Dicionário do Grego do Novo Testamento, p.218, 199. Esse dito tem um equivalente na literatura rabínica, no Shabbat 116a, que parece ser uma anedota em relação ao evangelho de Mateus. Cf. BILLERBECK I, p.241; JEREMIAS, J., op.cit., p.143 et.seq. Apesar de não acrescentar nada de novo, visto que o registro desse texto é do séc. 3 d.C., Jeremias destaca o fato dele ajudar a perceber o substrato aramaico. 359 103 Jesus não veio anular - katalu/sai A etimologia de katalu/sai junta a preposição kata, com o verbo lu,w, que “é usado em uma variedade de sentidos em conexão com as instituições do judaísmo.”360 No grego clássico, e de acordo com o uso no Novo Testamento, no ativo tanto pode ter o sentido de “lançar para baixo”, “destacar”, “destruir”, “demolir”, “desmanchar”, como pode indicar “acabar com”, “abolir”, “anular”, “tornar inválido”.361 Estes últimos sentidos estão mais próximos do contexto jurídico imediato do v.17, posto que este verbo é considerado um termo chave para discussões em torno da constituição e das leis de um povo na política grega.362 O termo “destruir” é mais apropriado para o sentido de terminar com alguma coisa concreta, como o templo em Mt 24,2.363 R. Banks aponta para a mesma interpretação, visto que em outras passagens o verbo katalu/w, além de ter o sentido de “destruir” (no caso do templo), está contrastando com o verbo oivkodomw/n, “edificar”.364 O mesmo sentido se dá em outros lugares, como At 5,38; Rm 14,20. Mas, em passagens pré-cristãs onde aparece explicitamente o termo Lei, o sentido para katalu/w é “abolir” ou “anular” (cf. 2 Mac 2,22; 4 Mac 5,33).365 Segundo P. Bonnard, o verbo não designa uma refutação teórica a respeito da Lei, mas uma atividade própria que liberta ou sustenta os homens para além de sua autoridade. Seria assim, uma polêmica contra o legalismo rabínico.366 Qual seria o sentido de “não vim para anular a Lei”? Maldonado aponta para algumas possibilidades: a sentença seria uma resposta aos judeus, que o acusavam de destruir a Lei, ou mesmo contrapor essa acusação, contra os escribas e intérpretes da Lei (cf. Mt 7,29; 15,9). Outra explicação seria o dito como uma 360 BROWN, “luw”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.1977. Cf. BROWN, “luw”, op.cit., p.1983. Também. RIENECKER, F. e ROGERS, C. Chave Lingüística do Novo Testamento, p.254. 362 Cf. BALCH, “Greek Political Topos peri no,mwn and Matthew 5:17,19 and 16:19”, p.68-76. 363 Cf. CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.190. Fitzmeyer, no entanto, entende que o significado é o de abater, “como uma tienda de campaña”. Comentario Bíblico “San Jerônimo”, Tomo III, NT I, p.185. 364 De acordo com Martin, a relação katalu/sai e plhrw/sai está no aspecto de mútua exclusão: se não veio para anular, é porque veio cumprir. Há outros ditos de Jesus em que há esse paralelismo (Mt 9,13; 20,28; 10,34b). MARTIN, B.L., “Matthew on Christ and the Law”, p.65. Trilling aponta que essa estrutura também está presente em Marcos (Mc 2,17b; 10,45). El verdadeiro Israel, p.250. 365 BANKS, “Matthew’s Understanding of the Law”, p.229. Martin também aponta esses textos, “Matthew on Christ and the Law” p.65. 366 BONNARD, L’Evangile selon Saint Matthieu, p.61. 361 104 transição para iniciar a parte do sermão que trata da interpretação mais adequada da Lei, e assim Jesus quis deixar bem claro que não estava destruindo a Lei, mas aperfeiçoando-a, ou seja, explicando-a de acordo com o pensamento do legislador. Assim, há uma interligação com a parte posterior que encabeça as antíteses: “ouvistes o que foi dito aos antigos; (...) eu porém, vos digo” [VHkou,sate o[ti evrre,qh toi/j avrcai,oij( (...) evgw. de. le,gw u`mi/n] .367 Como aponta I. Mazzarolo, nessa tensão “Jesus revela sua soberania e superioridade absoluta em relação ao que foi dito. Agora não é mais o tempo antigo, arcaico, mas o tempo próprio, novo.”368 De acordo com Stanton, na verdade esse dito tomou forma de uma resposta aos críticos da comunidade, que diziam ter abandonado a Lei, posto que estavam inseridos no contexto judaico mais forte. Seria assim, um texto panfletário: “Jesus não veio destruir a Lei e os Profetas”.369 É o que aponta Jeremias: “Jesus, pois, responde à insinuação (mh. nomi,shte [não penseis]) de que seria um antinomista, dizendo que sua tarefa não é a dissolução da Torá, mas o seu preenchimento.”370 Para a comunidade de Mateus isso teve um significado muito importante. A afirmação de Jesus tem, no evangelho, um sentido de advertência para os antinomianos. Segundo Overman, “Mateus acredita que tanto Jesus como sua comunidade, que age de acordo com os ensinamentos de Jesus, são seguidores e cumpridores da Lei.”371 Mas de que forma Jesus cumpriu a Lei? É o que veremos a partir do sentido de plhrw/sai, a seguir. 4.3.2. Jesus veio cumprir - plhrw/saiÅ 367 MALDONADO, J., Comentarios a los Cuatro Evangelios, p.247. W.Carter parafraseia da seguinte forma: “o mandamento é conhecido pela audiência (Ouvistes) como palavra de Deus (a forma passiva foi dito) confiada a gerações anteriores (aqueles de tempos antigos).” p.195. 368 MAZZAROLO, I., Evangelho de Mateus, p.88. 369 STANTON, G.N., A Gospel for a new people, p.300. BARBAGLIO, no entanto, afirma que na verdade seria “uma opinião difundida na Igreja”, ou seja, seria uma polêmica interna. Os Evangelhos I, p.119. 370 JEREMIAS, J., Teologia do NT, p.144. Cf Também Marguerat, M., Le jugement dans l’Evangile de Matthieu, p.125 et.seq.; LUZ, U., Matthäus, p.232. 371 OVERMAN, A., O Evangelho de Mateus e o Judaísmo Formativo, p.93. De acordo com Stanton, pode ser interpretado como ‘nem mesmo se sintam tentados a pensar...’. STANTON, G.N., op.cit.,p.48 et.seq. 105 Jesus não veio anular a Lei e os Profetas, mas cumprir. De que maneira? O termo plhrw/sai, cuja interpretação tem sido fruto de longo debate, deve ser bem analisado para a plena compreensão do dito de Mt 5,17-20. O uso de plhrhj e seus derivados aparecem na literatura grega desde Ésquilo, e seu significado está relacionado com a raiz comum, plh, que significa “cheio”, “plenitude”. Literalmente quer dizer “encher um vaso”, para que se chegue ao plhroma, ou o vaso cheio. Em termos metafóricos, ganha o sentido de “cumprir” um desejo, “atender” uma oração, “acalmar” a ira, “satisfazer” uma vontade, “cumprir” uma obrigação ou “realizar” um trabalho, além de outros sentidos, inclusive de tempo cumprido.372 No Novo Testamento o termo aparece 86 vezes, é um “termo técnico que se emprega em conexão com o cumprimento da Escritura e também como designação do cumprimento do tempo num sentido escatológico.”373 Quanto a essa dupla possibilidade teremos que investigar as interpretações que têm sido feitas a respeito, para ver qual sentido cabe melhor no dito de Mt 5,17. Em geral, Mateus trabalha muito na perspectiva do uso de plero/w como cumprimento das Escrituras do Antigo Testamento em diferentes ocasiões da vida de Jesus, desde a concepção e nascimento374, depois no começo do ministério na Galiléia375, e finalmente nos acontecimentos da paixão, como cumprimento de profecias376. Mas dois ditos (3,15 e 5,17), exclusivos de Mateus, não estão associados ao cumprimento de algum texto do Antigo Testamento específico, e sim com a messianidade de Jesus. De acordo com Obelinner, “nesses dois textos, Jesus liga sua convicção de ser o enviado de Deus aos conteúdos centrais da história da revelação a Israel”.377 O texto de 3,15 trata do batismo de Jesus por João, em que declarou ser necessário “cumprir toda a justiça” [plhrw/sai pa/san dikaiosu,nhn]. Não se trata de fazer a vontade de Deus, visto que Mateus utiliza outros verbos para esse 372 Cf. SCHIPPERS, “plhro,w”, Dicionário de Teologia do Novo Testamento, p.1671. Ibid., p.1673. Na verdade, a relação com as escrituras do AT e seu cumprimento é sistematizado no esquema “promessa-cumprimento”, especialmente em textos com valor cristológico. Cf. OBELINNER, “Cumprir/Encher/Plenitude”. Dicionário Bíblico Teológico, p.85. 374 Em 1,22s = 7,14; 2,6 = Mq 5,1-3; 2,15 = Os 11,1; 2,17s = Jr 31,15; 2,23 = Jz 13,5. 375 Em 4,14-16 = Is 8,23-9,1; 8,17 = Is 53,4; 13,35 = Sl 78,2; 12, 17-21 = Is 42, 1-4. 376 Em 21,5 = Is 62,11 e Zc 9,9; 27,9s = Zc 11,13 e Ex 9,12. 377 OBELINNER, op.cit., p.87. Cf. Também. a análise de G. BARTH, “Matthew’s understanding of the Law”, Tradition and Interpretation in Matthew, p.68; BANKS, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.229 et.seq.; MARGUERAT, D., Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.126. PARISI, S., “Giustizia superiore e fede ‘estroversa’”, p.52. 373 106 significado, como poiein, threin e fulassein, mas realizar a vontade salvífica de Deus, de acordo com sua proclamação do reino de Deus e suas ações.378 Essa afirmação sobre o cumprir a justiça é o motivo para Jesus se submeter ao batismo de João, mesmo não tendo real necessidade dele.379 A melhor maneira de entender o sentido de plerw/sai em 5,17 é buscar o seu correspondente aramaico, de acordo com as pesquisas realizadas a respeito, a partir de textos correlatos do Talmude.380 Mesmo esse texto sendo posterior ao tempo de Jesus (século III d.C.) ele ajuda a perceber que palavras podem ter sido usadas com sentido similar, tendo em consideração que ele também se reporta a tradições rabínicas mais antigas. Conforme o estudo de Jeremias, o Tb Shabbat 116b afirma: at;)yy>r;wOa !mi tx;p.mil. al;) an;)a] tytea] hvemD. at;)yy>r;wOa l[; ypes;)wOal. aL;)a381 , tytea] hvemD. Eu não vim para tirar algo da lei de Moisés Antes vim para acrescentar à lei de Moisés No caso desse texto katalu,sai (anular) corresponde ao aramaico (tirar fora), e plerw/sai (cumprir) corresponde ao aramaico ypes;)wOa tx;p.mi (aumentar, acrescentar, alargar). Assim, Jeremias afirma que a tradução de ´osape (“acrescentar”) com plerw/sai [tornar pleno] no grego expressa adequadamente que o propósito do “preenchimento” é atingir a medida 378 CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.142 et.seq.; BORNKAMM, G., Jesus de Nazaré, p.91 et.seq; LANGRANGE, M., Évangile selon Saint Matthieu, p.54. MARGUERAT, D., Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.126 et.seq; ZUMSTEIN, J., Mateus o Teólogo, p.52. 379 BARBAGLIO, G., Os Evangelhos 1, p93 et.seq. J. GNILKA comenta o seguinte a respeito: “Que Jesus recebeu o batismo de João não pode ser posto em dúvida seriamente. Este fato, manifestamente, trouxe dificuldades para a comunidade cristã. Mt 3,14s sabe relatar a respeito de uma conversa ocorrida durante o batismo, tendo como pano de fundo que o batismo não se coadunava com a condição de Jesus.” Jesus de Nazaré, p.78 380 Especialmente o Shabbat 116a, cf. BILLERBECK, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch I, p.241; JEREMIAS, J., (cita como Shabbat 116b), Teologia do Novo Testamento, p.142 et.seq.; BARTH, “Matthew’s Understanding of the Law”, p.92 et.seq.; MARTIN (também cita o Shabbat 116b), “Matthew on Christ and the Law”, p.65 et.seq. 381 Quanto a esse termo específico alguns manuscritos trazem aL;)w> em vez de aL;)a., Isso muda totalmente o sentido, pois o primeiro significa “nem”, ou seja, Jesus não teria vindo nem para tirar, nem para acrescentar nada à Lei. O segundo, conforme constatada na tradução, aponta para a mudança que Jesus veio trazer. Jeremias preferiu o segundo sentido, conforme consta no texto apoiado também num texto do cristianismo judaico, o Recognitiones Pseudoclementinas, e numa fonte judaico-cristã, que afirma pelo sentido de Jesus não veio “para diminuir, mas, pelo contrário, para completar”. Cf. JEREMIAS, op.cit., p.144. 107 plena. Temos aí a idéia da medida escatológica, que Jesus usa em outros lugares; plerw/sai é, portanto, um termo técnico escatológico.382 Jeremias, nesse sentido, considera que Mt 5,17 é a “expressão mais aguda” da consciência de plenipotência de Jesus. Para ele o ponto central do dito é o verbo plerw/sai.383 Outro que analisou profundamente o termo foi Barth, e em sua interpretação de plerw/sai, uma possibilidade é o sentido de “completar”, que combina com as idéias expostas em 5,21-48. Ou seja, assim interpreta-se plhrw/sai à luz de 21-48. Seguindo alguns que procuraram o substrato aramaico da palavra, Barth chegou ao termo ~Yeq384;, “tornar com efeito”, “confirmar”, e, em conexão com 21-48, “ensinar”. O problema, para Barth, é o critério para a interpretação de um termo que é especificamente mateano, para determinar, em primeiro lugar, em que medida ela concorda com o contexto, e em segundo, em que medida ela concorda com linguagem usual de Mateus em seu ambiente. Para isso, é preciso interpretar plhrw/sai à luz de outras passagens em Mateus.385 Assim, Barth considera que o sentido de plhrw/sai em 5,17 não é nem o simples “fazer”, como cumprimento mecânico da Lei, nem “determinar” o verdadeiro sentido dos mandamentos, mas “estabelecer” a Lei e os Profetas, como o próprio estabelecimento da vontade de Deus. Isso é marcado pelo fato da obra de Cristo ser precisamente a realização da vontade de Deus, de acordo com a cristologia de Mateus. Esse sentido se aproxima, da mesma maneira, do sentido de plhrw/sai em 3,15.386 De fato, o estabelecimento do juízo de Deus é o pano de fundo desse dito, bem como o de 3,15. Especialmente os versos 17 e 18c 382 Ibid., p.144. Ibid., p.142. 384 Também pensado por BILLERBECK, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch I, p.241, contra a lógica de Jeremias, exposta acima. G. VERMES também pensa nesse termo, e afirma: “Os antônimos ‘revogar/cumprir’ correspondem ao hebraico-aramaico lebbatellebattela/ leqqayem-leqqayema. Um bom paralelo é fornecido pela Mishná: ‘Aquele que cumpre a Torá na pobreza, a cumprirá mais tarde na riqueza; e aquele que revoga a Torá (quer dizer, não a observa como se ela estivesse nula e vazia) a revogará mais tarde na pobreza’ (mAb. 4,9).” A religião de Jesus, o judeu, p.27. 385 BARTH, “Matthew’s understanding of the Law”, p.68. Mateus frequentemente usa o passivo de plhro,w em conexão com trechos do Antigo Testamento, enquanto em 5,17 e 3,15 ele usa o ativo plhrw/sai. (Em geral a LXX traduz para plhrwth/nai,o verbo alm, como em 1 Rs 2,27: hw"hy> rb:åD>-ta, aLem;l. = plhrwqh/nai to. r`h/ma kuri,ou. Também em 1 Rs 8,15.24; 2 Cr 6,4.15; 36,21.22). 386 Ibid., p.69. Ele comenta: “This interpretation is further supported by the following fact: the establishing of the will of God as the work of Christ plays an important part in the Christology of Matthew.” 383 108 pertencem a esse contexto, que indica o fato de que o ensino de Jesus em plhrw/sai está vinculado com o estabelecimento da Lei, da vontade de Deus.387 Nesse sentido, então, G. Barth concorda com J. Jeremias, que plerw/sai aponta para um evento escatológico. A favor dessa interpretação encontramos L. Goppelt, que explica a frase de 5,17 não somente com uma intenção apologética, mas que positivamente também tem a intenção de “apresentar Jesus como aquele que traz a consumação.”388 Para Goppelt, só podemos interpretar plhrw/sai à luz do cumprimento escatológico das Escrituras. O fato de Mateus acrescentar ao dito de Q (v.18) a afirmação do sermão escatológico de Jesus (Mc 13,31 par Mt 24,35) só reforça essa idéia.389 B.L. Martin aponta seis diferentes possibilidades para plerw/sai: (a) “fazer” ou “realizar”; (b) “estabelecer”; (c) “dar o verdadeiro sentido”; (d) “manter intacto”; (e) “realizar o evento salvífico”; (f) “consumar escatologicamente”. Ele aceita como melhor sentido o último, em nível escatológico, a partir da análise de Jeremias.390 G. Barbaglio aceita que a intenção do dito é que a vinda de Jesus trás certa superação, mas por um processo de completar, tornar pleno. A escatologia fica por conta da aceitação de cada discípulo dessa plenitude da Lei, e do viver segundo sua revelação em Cristo, para que possam participar da salvação final.391 W.G. Kümmel, conhecido por sua visão de uma escatologia realizada, considera que Jesus está concretizando um evento escatológico, pois “reivindica que, com a sua pregação da vontade de Deus, irrompeu um novo e definitivo tempo da revelação da vontade de Deus. Conseqüentemente, Jesus entendeu ser sua tarefa de dar o sentido verdadeiro à revelação transmitida até então”.392 É nesse sentido que se contextualizaria o dito de 5,17. Contra essa idéia de cumprimento escatológico, porém, temos outros pesquisadores que interpretaram o dito de maneira diversa. M. Lagrange, para quem o sentido de plhrw/sai está ligado ao pleno cumprimento da Lei, tanto em termos de realização quanto de interpretação: Jesus veio aperfeiçoar a Lei.393 387 Ibid., p.147. GOPPELT, L., Teologia do Novo Testamento, p.455. 389 Ibid., p. 132; 456. 390 MARTIN, B.L., “Matthew on Christ and the Law”, p.64 et.seq. 391 BARBAGLIO, G., Os Evangelhos I, p.119. 392 KÜMMEL, G.W., Síntese Teológica do Novo Testamento, p.76. 393 LAGRANGE, M., Évangile selon Saint Matthieu, p.93 et.seq. 388 109 Também P. Bonnard não aponta para um sentido escatológico, mas considera que “Jesus interpreta a Lei dada aos Pais revelando o significado radical.”394 Outros pesquisadores tentaram não se ater a uma interpretação escatológica, mas voltada para a plenitude do cumprimento em Jesus. É o caso da análise de J. Maldonado; para ele no texto de 5,17 plero/w guarda certa relação de sentido com 3,15, pois se trata também ali da vontade salvífica de Deus, por meio da obediência de Jesus. E ele certamente veio cumprir a Lei. Primeiro, porque, enquanto vigorou a Lei, Jesus a cumpriu de forma diligente, como também os seus discípulos, inclusive na guarda de datas como a Páscoa. Em segundo lugar, ao interpretar a Lei, Jesus a aperfeiçoou. Na verdade, Jesus foi ainda mais severo do que a Lei, em questões como vingança, o matar o próximo, o adultério, etc. (elementos que ele trabalhou nas antíteses). Em terceiro lugar cumpriu a Lei por meio da graça divina. Em quarto lugar, tudo o que estava prometido, mas oculto na Lei, Jesus revelou à humanidade (cf. Lc 24,44). Se na Lei e nos Profetas se distinguem quatro partes: promessas e vaticínios, preceitos do Decálogo, cerimoniais e judiciais, Cristo cumpriu tudo. As promessas e os vaticínios, realizando o predito e prometido; os preceitos morais do Decálogo, aperfeiçoando-os; os cerimoniais, mostrando o que eles realmente significavam, por exemplo, na circuncisão da carne, depois recebendo o batismo e apontando para a circuncisão do coração; e os judiciais, substituindo os prêmios e os castigos corporais e temporais por outros espirituais e eternos. 395 Ou seja, Jesus interpretou a essência e o espírito da Lei, contra as tradições e distorções realizadas pelos fariseus em sua interpretação casuística. Quem também interpretou nessa linha foi J. Fitzmeyer. Para ele a missão de Jesus é dar plenitude. O termo não se refere simplesmente a uma observância literal, pois as antíteses negam essa possibilidade. Jesus afirma a vigência permanente da Lei tal como ela é afirmada nos escritos rabínicos, mas não a Lei de Moisés com as doutrinas orais explicativas, e sim a Lei completa e perfeita.396 É a questão colocada por G.N. Stanton: da perspectiva de Mateus, Jesus estabeleceu a real intenção da Lei? Ou ele confirmou ou estabeleceu a Lei? Esse último sentido é mais apropriado considerando os argumentos lingüísticos 394 BONNARD, P.: “Jesus interprète la Loi donnée aux peres en révélant la signification radicale”. L’Evangile selon SAint Matthieu, p.61. 395 MALDONADO, J., Comentario a los cuatro evangelios, p.248 et.seq. 396 FITZMEYER, J., Comentario Bíblico Tomo III NT, I, p.185. 110 baseados no uso do aramaico que Jesus falava, ou mesmo pela ligação com os v.18 e 19, pois ambos confirmam a importância da Lei.397 R. Banks, ao contrário de Fitzmeyer, aponta para o cumprimento das Escrituras. O ponto central do sentido está na idéia da novidade e superioridade de Jesus diante da Lei, daí o cumprimento. As instruções de Jesus em 21-48 exemplificam essa superioridade. O sentido que se pode dar para o termo “cumprir” está profundamente vinculado ao seu objeto – a Lei e os Profetas – e inclui tanto elementos de descontinuidade (o que supera a Lei em seu objetivo) quanto elementos de continuidade (o cumprimento daquilo que a Lei aponta como vontade de Deus).398 W. Trilling, ao analisar a questão, levanta outra idéia, também não escatológica. Mateus diferencia entre pleroun [cumprir, completar] e telein [levar ao seu fim], em que o primeiro tem um sentido mais religioso, enquanto este último, um sentido mais profano. pleroun é um verbo que se utiliza conectado com o cumprimento das Escrituras. O sentido do verbo no dito pode ser interpretado como: a prática de Jesus a partir da Lei, considerada, juntamente com os Profetas, como a “vontade de Deus revelada e registrada na Escritura.”399 Também pode ser o cumprimento das profecias como um todo, na vida de Jesus. Nesse caso, plerw/sai em 5,17 pode ser pensado como a realização que Jesus provocou dos acontecimentos preditos na Escritura, considerando que a Lei e os Profetas têm a função profética, na perspectiva da história da salvação.400 Mas Trilling não consegue ver em nenhuma das interpretações acima – seja de cumprir no sentido de fazer, seja no sentido de realizar as profecias – uma solução satisfatória. Por isso aponta para uma terceira hipótese, em que a relação entre katalu,ein e plerou/n não deve ser entendida como contraditória, mas superlativa. O peso deve estar em cima da expressão positiva “cumprir”, portanto, é o cumprir de Jesus o eixo hermenêutico da passagem, e não o anular. Jesus veio trazer pleno cumprimento, por meio do seu ensinamento, da vontade de Deus, sem anular o que já foi revelado anteriormente, mas dando pleno efeito aos ensinamentos efetuados por ele em seu poder (cf. Mt 7,29). Assim, o Antigo Testamento 397 STANTON, G.N., A Gospel for a new People, p.300,320. BANKS, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.229 et.seq. 399 TRILLING, W., EL verdadeiro Israel, p.252. 400 Ibid., p.253. 398 111 mantém o seu valor como objeto material de estudo, e o seu caráter normativo é o objeto formal.401 Parisi pensa na mesma perspectiva: Jesus não veio para anular a validade do AT: o verbo deve ser entendido no sentido de dar à lei aquela finalidade que os fariseus criam poder dar. Esse significado é alinhado com o conteúdo do v.18: Mateus está propondo uma releitura da Lei e dos Profetas em perspectiva cristológica; dessa ótica emerge que a vontade de Deus tem um valor permanente mesmo em sua mínima expressão; isso é fundamental para Mateus.402 Há uma terceira linha de interpretação que, ao considerar o dito uma construção redacional de Mateus, tem por premissa a idéia de que 5,17 quer responder aos questionamentos feitos à comunidade, seja por outros cristãos, seja por outros setores do judaísmo. É como interpreta Bornkamm, pois segundo ele essa afirmação de Mateus é uma resposta contra uma posição que “proclamava como missão de Jesus a anulação da vontade de Deus atestada na Escritura e a instauração de uma nova era isenta de lei.”403 De acordo com Overman, para quem o evangelho é, em sua maior parte, uma construção do evangelista, essa pode ser considerada a passagem-chave para entender “a concepção de Mateus quanto à Lei”.404 Mt 5,17 aponta para o fato de que Mateus e sua comunidade “não violam a Lei, mas compreendem-na e cumprem-na completamente”405, considerando ainda afirmação do v.19. Isso tem a ver com uma interpretação adequada da Lei, e que muitas vezes contrariava outras, que tinham sentido oposto. Assim, o que Mateus faz na afirmação de que Jesus não veio anular a Lei, mas cumpri-la, é responder à acusação de que a comunidade não segue a Lei. Como a perícope identifica os escribas e fariseus como os oponentes nesse mister, isso representa que no contexto da comunidade eram eles que acusavam os seguidores de Cristo de anomia. Mas isso aponta também para o fato de que a defesa de Mateus e suas acusações contra os fariseus (especialmente no cap.23) fazem parte de um cenário de disputa ideológica, em que os diferentes grupos estão em conflito aberto.406 401 Ibid., p.250-257. PARISI, op.cit., p.52. É a linha de interpretação de Vermes; ele admite que 5,17 está vinculado à idéia de cumprimento de profecia. A religião de Jesus, o judeu, p.27. 403 BORNKAMM, G., Jesus de Nazaré, p.167. 404 OVERMAN, A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.92. 405 Ibid., p.93. 406 Ibid., p.94. 402 112 Alguns pesquisadores interpretaram plerw/sai para além da perícope de 5,17-20 em si, mesmo considerando tecnicamente o significado do termo. Dautzenberger afirma que, sob o aspecto teórico o “cumprimento da lei” é apresentado essencialmente em três sentidos: como retorno à vontade de Deus (19,1-9; 15,4), como concentração no mandamento do amor (23,39s) e como realização prática por meio da acentuação perfeita. O amplo conceito de “cumprimento” comporta esta aplicação múltipla. O elemento decisivo do “cumprimento” se acha na concentração no mandamento do amor.407 Nesse sentido Schippers chega a afirmar que o “cumprimento não deve ser entendido de modo formal.”408 O fundamento para o cumprir de Jesus é o amor, o qual Jesus demonstrou desde o início, quando declarou que estava cumprindo toda a justiça (3,15).409 Flusser, em sua visão desde a perspectiva judaica, aborda a questão não a partir da prática das normas de forma rigorosa, mas de sua essência, através da qual o cumprimento de certo preceito abrange os demais. Ademais, ele aponta para o fato de que Jesus não foi o único a desejar resumir a Lei numa busca por seu sentido ético mais amplo.410 Para ele, inclusive, é preciso simplificar o sentido do texto, pois, “seguindo a linguagem costumeira de sua época, ele evitou a acusação de que a exegese da Lei que se seguia ab-rogava o significado original 407 DAUTZENBERG e SCHREINER, Formas e exigências do Novo Testamento, p.292. SCHIPPERS, “cumprir”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.1676. 409 É o caso de D. FLUSSER, em seu artigo sobre o Sermão do Monte: “A última citação (“Amarás o teu próximo”, Lev 19:18; ver Mt 5:43) e sua explicação encerram todo este trecho, porque esse versículo foi considerado o ‘grande resumo da Torá’, não apenas de acordo com o ponto de vista rabínico, como também de acordo com o próprio Jesus (Mt 22:34-38 e paralelos). “Um paralelo rabínico ao Sermão da Montanha”, O Judaísmo e as Origens do Cristianismo, p.32. Na verdade não se pode excluir esse sentido na hermenêutica geral da perícope. 410 FLUSSER, D., Jesus. p.40. Ele cita comentários de escribas no Mekhilta sobre Êxodo 31,14: “O Sábado vos foi dado, não vós ao Sábado”, relacionando com Mc 2,27-28. Deve ser lembrado também o clássico paralelo entre a Regra de Ouro de Hillel (Também Shabbat 31a) e de Jesus em Mt 7,12, par Lc 6,31, ambos colocados em partes do sermão do monte ou planície. Quanto ao fato de Hillel tratar do tema no negativo (“não façais”, enquanto Jesus reforça o positivo (“façais”), os autores tendem a considerar que Jesus desejou reforçar mais o sentido positivo, como JEREMIAS, J., Teologia do NT, p.311 et.seq. Entretanto, VERMES compara com outros textos rabínicos que tanto podem tratar de forma negativa quanto positiva, A religião de Jesus, o judeu, p.43-46. FLUSSER vai mais longe e considera que, de fato, ambos defendem o mesmo ponto de vista: “Jesus e Hillel viam a Regra de Ouro como uma síntese da Lei de Moisés. Isso se torna inteligível quando consideramos o dito bíblico, “Amarás a teu próximo como a ti mesmo” (Lv 19:18) era tido por Jesus e pelos judeus, em geral, como o mandamento da Lei. 408 113 das palavras da Bíblia”.411 Desse modo, descarta-se na interpretação de Flusser qualquer senso escatológico no texto. Cabe agora uma breve análise do modo como Jesus cumpriu a Lei, para uma compreensão mais ampla do dito no contexto da comunidade de Mateus. 4.3.3. Como Jesus cumpriu a Lei Jesus foi circuncidado ao oitavo dia (cf. Lc 2,21412), o que em si já indica que o seu ambiente natural foi como judeu observante da Lei.413 Dentro da tradição transmitida pelos evangelistas – mesmo com as interferências redacionais em relação aos eventos – transparece em vários momentos esse respeito à Lei, ao mesmo tempo de uma aparente liberdade na interpretação de questões pontuais. 4.3.3.1. Jesus e aspectos relativos à observância em geral O relato da Paixão mostra-nos que, considerando a época em que aconteceu a derradeira ceia de Jesus com seus discípulos, eles estavam observando as datas festivas da tradição de Israel, segundo Ex 23,14ss.414 Outro aspecto peculiar que aponta para a observância regular da Lei são as vestes. De acordo com dois relatos de cura (Mt 9,20 e par; 14,36) as pessoas tocam na borda das vestes de Jesus, que tinham “franjas” – gr. kraspe,dou / heb. tciyci – em concordância com Nm 15,3840 (e sua tradução para a LXX). Além disso, uma narrativa pitoresca a respeito do 411 FLUSSER, D., Jesus, p.65. Também D. MARGUERAT trata do cumprimento relacionado com amor, Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.128, bem como CHARLES, “Do not suppose that I have come”, p.55. No entanto, W. CARTER afirma cabalmente que “alguns sugeriram que Jesus cumpre a lei e os profetas ensinando a realizar o amor (22,34-40). Mas enquanto Paulo faz esta argumentação (Rm 3,8-10; Gl 5,14), o verbo plhro,w (plêroô) está ausente no ensinamento de Jesus sobre o amor em Mt 22,33-40. O Evangelho de São Mateus, p.191. Como apontado acima, Carter compreende o cumprir como Jesus implementando a “vontade salvífica de Deus, previamente revelada, na sua proclamação do império de Deus e nas suas ações.” 412 Curiosamente, Mateus omite essa informação, talvez por considerá-la óbvia aos seus ouvintes. 413 De um modo geral podemos afirmar que “a representação geral de Jesus que emerge dos Evangelhos Sinóticos é a de um judeu que observa as principais práticas religiosas de sua nação.” VERMES, A religião de Jesus, o judeu, p.21. FLUSSER denomina Jesus de “judeu, fiel à Lei.” Jesus, p.37. THEISSEN analisa a postura de Jesus como uma ambivalência de postura, com a intensificação e abrandamento das normas da Lei. O Jesus Histórico, p.388-399. 414 Nesse sentido, o evangelho de João é ainda mais aberto, pois mostra Jesus indo com seus discípulos diversas vezes a Jerusalém, a fim de participar das festas. Se foi um artifício metafórico por parte dele, ao menos reflete a possibilidade de Jesus ter feito isso. No evangelho, tem a intenção de mostrar um Jesus mais dinâmico, missionário. Cf. MAZZAROLO, I, Nem aqui, nem em Jerusalém, p.39. 114 pagamento de imposto para o templo (Mt 17,24-27), que guarda um certo humor, coloca Jesus questionando, mas, por fim, obedecendo ao imposto.415 4.3.3.2. Jesus e as controvérsias sobre o Sábado e pureza levítica Entretanto, encontramos muitos relatos em que Jesus assume uma posição de questionamento, não à Lei, mas às interpretações dadas por outros grupos religiosos. Mas esses questionamentos estão presentes na vida de “todo judeu crente que leva a sério seu Judaísmo.”416 Em geral esses questionamentos aparecem em relatos de controvérsia, amparados por situações concretas, em geral, de cura ou de comportamento. Destacam-se dentre eles a polêmica sobre o sábado e as normas de pureza levítica.417 A respeito do sábado, de um modo geral Jesus não fez nada que o quebrasse, com exceção de cura de pessoas em sinagoga e permissão para os discípulos pegarem espigas no campo. A posição dele em ambos os casos contem uma dupla demonstração, (1) de que ele é o Senhor do sábado418: “Porque o Filho do homem até do sábado é Senhor.” (Mt 12,8), e (2) de que o sábado é dia de praticar a misericórdia: “Pois, quanto mais vale um homem do que uma ovelha? É, por conseqüência, lícito fazer bem nos sábados.”(Mt 12,12419). Na verdade, não 415 VERMES, op.cit., p.23 et.seq. Contra esse último exemplo, no entanto, L. F. RIBEIRO defende que o v.27 é um arranjo redacional posterior, indicando, com isso, que Jesus teria se recusado a pagar o imposto do Templo, assim como muitos camponeses e grupos antagônicos à estrutura templária o fizeram. RIBEIRO, L.F. “‘Livres são os Filhos’ (Mt 17,24-27) O Jesus Histórico não pagava o imposto do Templo.” p.1-14. 416 FLUSSER, D., Jesus, p.37 passim. Na verdade, nos casos de cura, os preceitos rabínicos proibiam não cura em si, mas o uso de elementos mecânicos; Jesus não usou nenhum instrumento, senão sua palavra, para realizar a cura no sábado. Cf. Também. VERMES, G., A religião de Jesus, o Judeu, p.28-30. 417 Sobre o sábado Mateus registra narrativas de controvérsia no capítulo 12, 1-14; paralelo de Marcos, que também indica diversos acontecimentos no sábado (1,21-28; 2,23-3,6); sobre as questões de pureza levítica em Mt 15,1-20. Além disso, nas admoestações contra os fariseus (cap 23) há vários exemplos da prática farisaica que Jesus faz avaliação. Sobre a controvérsia com os fariseus, ver infra em 3.5. 418 Cf. GARCIA, P.R., O Sábado do Senhor teu Deus, p.109. 419 A paralela de Mc 3,4 é ainda mais clara: “E perguntou-lhes: É lícito no sábado fazer bem, ou fazer mal? salvar a vida, ou matar? E eles calaram-se.” Marcos também é o único a registrar o seguinte dito: “E disse-lhes: O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado.” Há um paralelo rabínico muito similar, que diz: “O Sábado foi dado a vós, e não vós ao Sábado.” Mekhilta sobre Ex 31,14, cf. FLUSSER, D., op.cit, p.40; VERMES, op.cit., p.30. Segundo Vermes, isso não quer dizer que o dito rabínico tenha tido Mc como fonte, literariamente anterior a ele, mas que essa era concepção geral entre os judeus piedosos do tempo de Jesus. BORNKAMM, no entanto, prefere interpretar que o dito de Jesus seria blasfemo em relação à ortodoxia, pois para ele o dito rabínico apenas aponta para a necessidade de consagrar o Sábado a 115 há nenhuma prescrição da Lei ou da Torá Oral que proíba o fazer o bem no sábado; pelo contrário, em caso de risco de vida é lícito fazê-lo. Por isso, o questionamento dos fariseus não se refere realmente à Lei420, mas a prescrições seguidas por eles. A misericórdia no caso da cura – mesmo não havendo risco imediato para a vida do doente – é clara, mas e no caso das espigas de milho? Se seguirmos certas interpretações rabínicas, também ali se aplica o princípio da misericórdia: saciar a fome é mais importante que guardar o sábado. Além disso, quando alguém colhe as espigas apenas com as mãos, sem instrumentos mecânicos, não há quebra formal da Lei. Percebe-se de fato um exagero por parte dos fariseus que interpelavam a Jesus e seus discípulos.421 Em outro momento, Jesus critica de fato a tradição dos anciãos [para,dosin tw/n presbute,rwn],422 no episódio do lavar as mãos antes da refeição (Mt 15,1-20). De novo aponta para um questionamento dirigido diretamente aos fariseus. Na verdade, também nesse mister não há na Mishná nenhum relato exigindo o lavar as mãos, apenas aconselhando a fazê-lo.423 O dito de Jesus sobre o que entra e o que sai da boca, e o que contamina ou não em 15,11, e explicado aos discípulos nos v. 17-20, pode dar a entender que ele não se preocupou com as normas de alimento da Lei (cf. Lv 11; Dt 14). Mas considerando o fato de que o problema Deus, pois o rabino Simão ben Menasiá inicia o dito com a seguinte advertência: “Guardarás o Sábado, porque ele santo para ti”. Jesus de Nazaré, p.169. 420 As diversas prescrições sobre o sábado no AT (por ex: Ex 16,23 – o relato fundante -; 20,10; 31,14s; Lv 23,3; Dt 5,12) são muito genéricas, e a tradição Oral organizou os diferentes modos pelos quais uma pessoa pode transgredir o sábado – o Tratado Shabbat, que aparece na ordem segunda da Mishná. Cf. COLLIN, M. e LENHARDT, P., A Torah oral dos fariseus, p.46 et.seq. e 149. Ver Também a excelente exposição de GARCIA, P.R., O Sábado do Senhor teu Deus, p.5094, onde ele diferencia três concepções a respeito do sábado: (1) como normatização para a vida cotidiana; (2) em relação ao Cosmos, na concepção helenista; (3) como evento celestial, a partir de Qumran, mas não exclusivamente. A nossa abordagem nos interessa a primeira concepção. Também sobre a Mishná, Garcia dá alguns exemplos a respeito, p.168-172. 421 Cf. VERMES, A religião de Jesus, o Judeu, p.30. Cf. Também FLUSSER, Jesus, p.40. Contra eles, porém, P.R. GARCIA, op.cit., p.140 et.seq. Ele interpreta que a quebra só se justifica mediante a autoridade de Jesus, superior a de Davi, que também quebrou princípios da Lei, como Jesus salientou ao lembrar do relato bíblico. 422 Sobre o assunto a respeito dos grupos antagônicos, ver cap.1.2.5. 423 Cf. o Tosefta Berakhot 5,13: “Lavar as mãos antes de uma refeição é aconselhável, a ablução após a refeição é obrigatória”. Apud FLUSSER, D., Jesus, p.37. BORNKAMM,G., no entanto, considera que no Judaísmo tardio, a exemplo do contemporâneo, a vida do judeu piedoso “era regulada pela exigência da pureza ritual e pela proibição de entrar em contato com o que era cultualmente impuro.” Jesus de Nazaré, p.170. MAZZAROLO, por outro lado, aponta que lavar as mãos antes da refeição “tinha um sentido de purificação também das culpas”. Evangelho de São Mateus, p.233. 116 não estava no tipo de alimento comido, e sim na maneira de comê-lo, conclui-se que não há na fala de Jesus nada que contrarie diretamente a Lei.424 4.3.3.3. Jesus e as leis morais E quanto às denominadas leis morais? Sem dúvida, são delas que Jesus mais se ocupa, e às quais dá interpretações mais fortes. Tanto as antíteses (5,21-48) quanto outras orientações ou respostas de Jesus no tocante a aspectos da lei moral (a questão familiar em Mt 12,50; 10,37; 8,21-22; bem como o divórcio em 19,312) parecem direta ou indiretamente relacionar-se com o decálogo – os pronunciamentos associados a Moisés no monte Sinai.425 As antíteses tem, em sua maioria, essa ligação conforme quadro abaixo:426 Antítese Texto Tema Relação na Torá Primeira 5,21-26 Homicídio Ex 20,13 Segunda 5,27-30 Adultério Ex 20,14 Terceira 5,31-32 (19,3-12) Divórcio Dt 24,1.3 Quarta 5,33-37 Juramento Ex 20,7 / Lv 19,12 Quinta 5,38-42 Vingança Ex 21,24 / Lv 24,20 Sexta 5,43-48 O amor ao próximo Lv 19,18.34 Pelo quadro acima, percebe-se que, em três antíteses (1ª, 2ª e 4ª) Jesus analisou leis diretamente do Decálogo. As demais são citadas de partes diversas da Lei de Moisés, mas foram colocadas numa ordem que demonstra que o objetivo de Jesus na observância da Lei é, acima de tudo, o amor ao próximo, o qual deve reger o relacionamento entre as pessoas.427 Quanto às polêmicas sobre a lealdade familiar, está sempre em questão o mandamento do decálogo sobre os pais, em Ex 20,12. Não há uma discussão 424 Cf. CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p. 406 et.seq. FLUSSER, op.cit, p.38 et.seq. Na verdade ele aponta que “esse dito é compatível, na íntegra, com a postura legal judaica. O corpo de uma pessoa não se torna ritualmente impuro mesmo que ele tenha comido animais proibidos pela Lei de Moisés!” 425 Cf. VAUX, R.de., Instituições de Israel no Antigo Testamento, p.176. 426 Seguimos a divisão das antíteses de VOUGA, Jesus et la Loi, p.200-274. BARBAGLIO considera que todas são autênticas, com exceção da terceira, que tem relação com o dito de Q em Lc 16,18, de outro contexto. Os Evangelhos I, p.120 et.seq. Entretanto, THEISSEN considera que apenas a 1ª, a 2ª e 4ª devem ter vindo do Jesus histórico. O Jesus Histórico. 389 et.seq. 427 ZUMSTEIN, J. Mateus o Teólogo, p.49 et.seq. 117 formal sobre o assunto, mas encontramos algumas situações que podem transparecer um certo descaso para com a família. Quando um discípulo desejou seguir Jesus, mas pediu para aguardar a morte dos pais, ele respondeu: “Segueme, e deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos” (8,21-22). Em seu discurso de envio aos discípulos (cap. 10), ele adverte que o amor aos pais não pode sobrepor-se ao amor por ele: “Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim” (10,37). Em outra ocasião, quando ensinava aos seus discípulos e foi dito a ele que sua família o aguardava do lado de for da casa, ele disse: “Porque, qualquer que fizer a vontade de meu Pai que está nos céus, este é meu irmão, e irmã e mãe” (12,50). Como entender essa aparente distância e até mesmo certa negligência para com a família? Uma possibilidade pode ser a idéia apontada por Crossan, de que as famílias ficariam divididas por causa de Jesus, e ele sabia disso, porque ele “romperá a família hierárquica ou patriarcal pelo meio, ao longo do eixo de dominação e subordinação.”428 Ou seja, a exemplo do que Jesus apontou na questão do divórcio, não haverá mais relações de dominação entre pessoas, mesmo que na família.429 Entretanto, uma das severas críticas de Jesus aos fariseus foi exatamente sobre o descuido deles com os pais idosos, na controvérsia sobre descumprir mandamentos (Mt 15,3ss). Em sua argumentação contra os fariseus, Jesus analisa o fato dos fariseus se preocuparem deveras com esse tipo de ordenança legal, esquecendo-se, no entanto, de guardar preceitos morais fundamentais. No caso, exatamente de “honrar pai e mãe” (Ex 20,12) e a advertência de que “aquele que amaldiçoar pai ou mãe seja punido de morte” (Dt5,16). O que os fariseus faziam estava fundamentado no korban, uma oferta separada a Deus que não podia ser utilizada de modo comum. O problema é que eles separavam aquilo que seria destinado aos seus pais idosos; com isso, tornavam-se isentos de cumprir o 428 CROSSAN, O Jesus Histórico, p.337. Na verdade, não há como negar a tensa relação de Jesus com sua própria família, pois em algumas ocasiões transparece essa distância, como no texto de 12,50, e até mesmo hostilidade, como no episódio de Nazaré (Mc 6,1-5). Mas é correto afirmar também que Jesus tinha uma clareza da dificuldade de se manter laços familiares mediante o compromisso com sua vocação de anunciador do reino de Deus. Cf. FLUSSER, Jesus, p.15 et.seq. THEISSEN chega a admitir uma “ética a-familiar,” por conta do radicalismo itinerante. Sociologia da cristandade primitiva. P.39. STEGEMANN, no entanto, questiona essa posição, pois “não tem validade geral”, e implicaria a abandono apenas para o círculo mais chegado a Jesus. História social do protocristianismo, p.239. 429 118 mandamento. Mas Jesus desmascarou essa farsa e condenou-os por violar o mandamento moral.430 A conclusão a que se chega é que Jesus só colocava a família numa condição menor, quando se tratava de cumprir a missão confiada a ele, de proclamar o reino de Deus. Na verdade Jesus intensificou a lei do amor, ao ponto de renunciar a toda violência, mesmo permitida pela Lei, e apontando para necessidade de amar o inimigo, pois isso seria um sinal de uma justiça superior. Como afirma Stegemann: “precisamente no assim chamado mandamento do amor ao inimigo desdobram-se princípios contidos na Torá e que, de alguma forma, é possível falar de uma superação da mesma.”431 Essa foi uma idéia que as comunidades seguidoras de Jesus acolheram dele mesmo, não sendo jamais uma elaboração posterior.432 Tendo em vista uma interpretação apropriada da Lei, Jesus a resumiu em situações de debate e ensino. Os sumários representam a busca de uma síntese que facilite e englobe toda a Lei, considerada como vontade de Deus, num único grande mandamento. Isso também ocorria no Judaísmo, de acordo com famosa história relacionada a dois grandes mestres: um gentio foi procurar Shammai e pediu: “Faz de mim um prosélito, sob a condição de me ensinares toda a Torah enquanto me mantenho sobre uma perna só.” Shammai o expulsou com um bastão, e ele foi até Hillel, que o tornou prosélito, e o ensinou: “O que é odioso para ti, não faças a teu próximo; isto é toda a Torah e o resto não passa de comentário; vai e estuda.”433 Jesus fez resumo similar daquele de Hillel, quando declarou: “Portanto, tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-o também vós, porque esta é a Lei e os Profetas.” (Mt 7,12), que também faz parte do Sermão do Monte. Outra expressão que tem o mesmo objetivo está em Mt 22,34-40. Argüido sobre qual 430 Cf. MAZZAROLO, I., Evangelho de São Mateus, p.233 et.seq; CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.401 et.seq. 431 STEGEMANN, E., W.,História social do protocristianismo, p.242. 432 HORSLEY demonstra que essa idéia radical de amor ao inimigo já estava presente na tradição Q, bem como em Marcos. Também Paulo trata do assunto. Sem dúvida, trata-se de um ensino autêntico, ligado ao Jesus Histórico. A história apenas confirmou a veracidade desse ensino, especialmente nos exemplos de Mahatma Gandhi e Martin Luther King. Jesus e o império, p.119 passim. 433 T.B. Shabbat 30b-31a. Citado apud COLLIN, M. e LENHARDT, J., A Torah Oral dos fariseus, p.23. Também VERMES, G. A Religião de Jesus, o judeu, p.44. 119 seria o grande mandamento da Lei por um intérprete [nomiko.jÐ, Jesus respondeu com uma síntese: E Jesus disse-lhe: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas. (22,37-40) Nos dois casos fica claro que se trata de uma síntese, tendo em vista a conclusão, que cita a Lei e os Profetas. E qual é o sentido máximo da vontade de Deus, expressa na Lei e nos Profetas, para Jesus? O amor e a misericórdia, que de certa forma são indicados na perícope de 5,17-20, . 434 Assim, transparece na interpretação e atitudes de Jesus o desejo pela total observância da Lei, a partir de uma busca pelos mandamentos que irão definir toda a postura ética. Theissen aponta que essa ética está entre a Sabedoria e a Escatologia. De um lado Jesus tem motivos sapienciais, pois em diversos momentos utiliza elementos sapiências, “quando se refere à criação como passado primevo ou como natureza presente”.435 De outro, vemos em Jesus motivos escatológicos em sua ética, por causa do conceito – já trabalhado acima – de “recompensa e castigo no novo mundo ou do Reino vindouro de Deus. A escatologia propicia a motivação.”436 4.3.4. Síntese sobre a análise de plerw/sai O debate em torno do sentido de plerw/sai percorreu vários caminhos, seja pelo sentido intrínseco do termo, seja por sua relação com o pressuposto hebraico/aramaico, ou mesmo por uma interpretação aberta, ligada ao todo do escrito de Mateus. É inegável que o dito foi colocado, ideologicamente, como argumento para enfrentar os adversários da comunidade e suas acusações contra uma possível anomia, sejam eles externos ou internos. Mas o dito não se resume a essa esfera, pois tem dentro de si uma expressão cristológica que, considerada como autêntica, revela muito da relação do próprio Jesus com a Lei. Nesse sentido, tentar chegar ao substrato aramaico é relevante, mesmo não havendo 434 VERMES, G., A religião de Jesus, o judeu, p.35 passim;186. MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.401. 436 Ibid., p.403. Cf. infra as análises sobre a escatologia na proclamação de Jesus. 435 120 nenhuma certeza plena de que vocábulo ele tenha usado. Seja como for, dois aspectos se destacam para a compreensão de plerw/sai. Primeiro, o fato de Jesus se comportar como judeu piedoso, e como tal não ter uma atitude de rebeldia diante da Lei é muito claro. Seguindo esse raciocínio somos levados a pensar que o cumprir dele está vinculado realmente às Escrituras Hebraicas, especialmente a Lei e os Profetas, aos quais Jesus estava intimamente relacionado. Mas esse cumprir não era realmente no sentido habitual, repetitivo, que qualquer fariseu piedoso também seguiria. Em se tratando de Jesus, havia na sua prática uma expressão mais profunda, que irrompia com o reino de Deus em meio às pessoas, e assim anunciava o domínio pleno que a salvação de Deus traia a todos, com o amor como centro da prática relacional. Em segundo lugar, e interligado ao que afirmamos acima, não se pode pensar no domínio de Deus sem pensar em seu juízo completo, o qual desde os profetas manifestava a esperança de que os oprimidos alcançariam a misericórdia, enquanto os opressores seriam destruídos. Pois é justamente com essa introdução que começa o Sermão do Monte, quando Jesus afirma a herança do reino de Deus para os pobres e mansos. Assim, o cumprir trás também uma idéia escatológica, não somente no Jesus terreno, mas, sobretudo, no juízo que ainda se realizará. Ao examinarmos o v.18, e sua afirmação sobre a terra e o céu, verificaremos a exatidão dessa afirmação. 4.4. Até que passem o céu e a terra: e[wj a'n pare,lqh| o` ouvrano.j kai. h` gh/ (v.18) Até aqui a pesquisa nos tem levado a um entendimento de que Jesus foi um judeu piedoso, e mais do que isso, como mestre foi também legislador. Mas de igual modo percebemos que o dito de Mt 5,17-20 ganha uma dimensão escatológica a partir da afirmação que tem sido interpretada como messiânica: “Eu vim”. O versículo 18 demonstra ter a maior carga escatológica da perícope, e pode auxiliar na compreensão do todo. 18 Em verdade vos digo: até que passem o céu e a terra, nem um iota (yod) ou um pequeno sinal (qots) da Lei passará, sem que tudo aconteça. 4.4.1. 121 O sentido de avmh.n A tônica do v.18 é a expressão “até que passem o céu e a terra” [e[wj a'n pare,lqh| o` ouvrano.j kai. h` gh/], mas a frase se inicia com avmh.n [heb. !mea;]) . O termo vem da raiz !ma, e quer dizer “ser firme”, “seguro”, “válido”, e pode ser entendido como “ser autêntico, verdadeiro”. É traduzido na LXX como ge,noito, “assim seja”. Quando era proferida por Jesus, o “amém” no início da frase intensifica a afirmação seguinte. Como comenta Bauer: “em português, a palavra de Jesus soaria mais ou menos assim: ‘Digo-vos com toda a seriedade’, ou ‘Digovos de uma vez para sempre’.437 O uso do “Amém” dessa maneira não tem paralelo na literatura rabínica, nem mesmo na literatura cristã posterior, onde sempre tem o sentido responsorial. Para alguns evidencia as ipsissima vox Iesu, especialmente pelos textos preservarem a forma hebraica da expressão.438 Outros, inclusive, enxergam nessa expressão uma estreita relação com ditos de cunho escatológico, vinculadas à pregação do reino, 439 outros que Jesus empregará mais a fórmula em seu ensino para corrigir noções rabínicas que obscureceram a interpretação apropriada da Lei, como acontece em cada exemplo das antíteses.440 Dentro do contexto dos diferentes ditos de Jesus em que ele introduz a fórmula “Em verdade vos digo”, podemos concluir que o dito do v.18 é messiânico, e Jesus afirma toda sua autoridade perante a Lei e os Profetas. Se antes ele afirmou que tinha vindo para cumprir a Lei e os Profetas, agora ele admite a permanência e a validade das Escrituras por um tempo determinado, mas que ainda não se concretizou. O que é expresso de forma negativa no v.17, é expresso de forma positiva e ampliada no v.18 através da fórmula de autoridade “em verdade vos digo”. Tudo indica que o uso freqüente dessa fórmula em Mateus reflete o uso na sinagoga, no ambiente da comunidade.441 437 BAUER, “Amém”, Dicionário Bíblico-Teológico, p.10. Esse termo aparece, inclusive, em todos os quatro evangelhos, com maior freqüência em Mateus e João (onde sempre aparece duplicado, como fórmula litúrgica). Cf. Também RUSCONI, Dicionário do Grego do NT, p.47, que aponta essa expressão como uma afirmação solene, para apresentar sua autoridade. 438 JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento, p.77 et.seq. Por ser sempre seguida da expressão le,gw u`mi/n (Digo-vos, ou te), a única analogia possível em termos de conteúdo seria a “fórmula do oráculo”, expressa pelos profetas: “assim diz o SENHOR”, traduzido pela LXX como ou[twj le,gei ku,rioj a partir do heb. hw"±hy> rm:ôa'-hKo.) Também BAUER, “Amém”, DBT, p.10. 439 Cf. GNILKA, J., Jesus de Nazaré, p.238. 440 CHARLES, J.D., “Do not suppose that I have come”, p.58. 441 CHARLES, J.D., “Do not suppose that I have come”, p.58. Contra essa idéia, no entanto, JEREMIAS, J., Teologia do Novo Testamento, p.78 et.seq. Na verdade, todas as evidências apontam que tanto a sinagoga quanto a igreja cristã utilizavam o Amém de forma responsorial. 122 Seu uso evidencia a autoridade de Jesus frente à comunidade, como mestre verdadeiro, cujo ensinamento devia ser seguido de forma absoluta. Além disso, aponta o respeito por tradições de ditos que tivessem início com esse termo, mantendo a afirmação na língua original, apenas transliterando para o grego.442 De certa forma, deve-se pensar na dependência que Mateus deu a esse dito com o v.17, pois da forma como foi montado, considerando que os dois ditos são de fontes independentes (M e Q), o peso maior está na afirmação de que Jesus veio cumprir a Lei, para só então Jesus afirmar a permanência da Lei em si mesma. É Jesus interpretando-a e atualizando-a que a torna permanente, de fato.443 Na continuação do dito, no entanto, está a chave de leitura da perícope no tocante à questão escatológica. E uma questão que transparece no próprio dito: até quando se dará a permanência da Lei e dos Profetas? Até que passem o céu e a terra, ou até que tudo se cumpra? Caso ambos os termos tenham o mesmo sentido, cabe a mesma resposta, mas caso se trate de dois aspectos futuros diferentes, como se resolve essa equação escatológica? Para responder a esse ponto, vamos analisar a seguir a escatologia do texto. 4.4.2. A escatologia no dito: o sentido de e[wj a'n pare,lqh| o` ouvrano.j kai. h` gh/ A compreensão da dimensão escatológica no dito de Mt 5,17-20 depende, em primeiro lugar, de diferenciar escatologia e apocalíptica, depois ver o quanto a pregação de Jesus tinha sentido escatológico, para então analisar a escatologia no texto específico. 4.4.2.1. Diferenciando escatologia e apocalíptica O conceito de escatologia é bastante amplo, mas veio a ser posteriormente um elemento bastante marcante no pensamento religioso popular dos judeus contemporâneos a Jesus.444 O núcleo do conceito de escatologia, de acordo com a síntese de Corrêa Lima, M. de L. sobre as crenças do Antigo Testamento, é: a “referência a um 442 Cf. Ibid., p.78. Cf. BARBAGLIO, G., Os Evangelhos I, p.19. 444 Cf. MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.269-276; STEGEMANN, História Social do Protocristianismo, p.171-176; GRELOT, A esperança judaica no tempo de Jesus, p.120-125. 443 123 tempo futuro”, que iniciará uma situação completa e definitiva; a “pressuposição de uma mudança qualitativamente significativa, que implica uma descontinuidade histórica grande”, ou seja, algo tão novo e diferente do que existe agora que somente Deus pode levar a efeito; e a “centralidade de Israel”, como centro dos acontecimentos, mesmo quando outros povos ou o mundo criado são incluídos nas profecias.445 Ela ainda complementa a síntese indicando que na escatologia profética vétero-testamentária deve haver elementos de juízo – como ponto final da situação de pecado e punição dos injustos – e salvação – como um estado totalmente novo e não sujeito a mudanças ou perdas, com a consumação da relação salvífica entre Deus e o povo.446 No período pós-exílico, no entanto, o pensamento a respeito do reinado de Deus se torna de tal maneira absoluto que só pode ser compreendido a partir de uma ruptura total com a história presente. Isso está presente em alguns textos proféticos (Mq 4,1-4 par Is 2,2-4; Is 33,17-22; Is 25,6-8; Zc 14,9). Em torno dessa idéia está o termo Reino de Deus que “poderia, portanto, evocar expectativas de vitória sobre os gentios e o estabelecimento de um reino eterno de Israel”.447 A escatologia, que até o exílio era exclusividade de categorias proféticas, passa no pós-exílio a ser compartilhado pelo que é considerado por muitos como sucessor da profecia: a apocalíptica. Segundo a definição de Theissen, “apocalíptica é a expectativa de um mundo novo contida em escritos secretos de revelação”.448 Aspecto importante para nossa pesquisa é a relação com a Torá: enquanto os textos secretos preparam a comunidade para o tempo final, a obediência à Torá é que “confere o direito de pertencer a ele pela ressurreição dos mortos.”449 Assim, o período pós-exílico viu surgir uma corrente religiosa judaica com vasto material literário, o apocaliptismo judaico. Esse movimento influenciou a revolta macabaica, deu origem à comunidade dos essênios, e alimentou as revoltas da guerra Romano-Judaica e mais tarde a revolta de Bar Kochba. Foi de fato um fator decisivo em movimentos de “protesto, renovação e libertação em formas 445 CORRÊA LIMA, M. de L. Salvação entre juízo, conversão e graça, p.55. Os trechos em aspas são referências diretas do texto da autora. 446 Id. Ibid., p.60 et.seq. 447 Cf. MERZ, A. e THEISSEN, G., op.cit., p.271. 448 Id, Ibid., p.272. 449 Idem. 124 posteriores tanto do judaísmo como do cristianismo.”450 Ele fortaleceu antigos valores e inseriu novos, típicos do período posterior ao helenismo na Palestina. Os escritos apocalípticos não se definem meramente escatológicos. Antes, há neles uma presença próxima da esperança de mudanças. Enquanto a escatologia trata de um futuro incerto e muitas vezes distante, a apocalíptica trata da questão do juízo e salvação como algo prestes a acontecer. Aí está a diferença fundamental entre os dois pensamentos, que já é perceptível no livro de Daniel, único representante canônico do apocaliptismo. Há uma relação entre escatologia e apocalíptica, mas nem toda escatologia é apocalíptica. A escatologia é uma projeção de esperanças, que influenciam a forma de pensar a realidade, enquanto a apocalíptica se apresenta como forma de explicar a realidade tendo como base uma ação direta da parte de Deus. A apocalíptica também se tornou posteriormente uma categoria literária diferenciada de outras como a profética, sapiencial e outras.451 Conforme é possível perceber nos textos apocalípticos judaicos extracanônicos, a escatologia está presente na apocalíptica, indicada como um discurso concreto, onde o futuro vem para pôr fim a ordem presente, e, na história, iniciar o transcendente e definitivo.452 Considerando o pano de fundo do Antigo Testamento e dos escritos apocalípticos existentes nesse período, notamos que a mentalidade popular estava mergulhada numa predisposição para a escatologia. Isso se apresenta tanto na pregação de João Batista como de outros grupos estruturados na Palestina, especialmente na Galiléia.453 Horsley também afirma essa possibilidade, tratando dos movimentos populares e messiânicos do primeiro século: “todos esses vários tipos de movimentos ocorreram durante um período da história judaica em que 450 KOESTER, H. Introdução ao Novo Testamento 1, p.232. Cf. CROSSAN, J. D. Em busca de Jesus, p.118. Ele afirma textualmente: “O reino escatológico ou eutópico representa a sublime perfeição da aliança, e o apocalíptico realiza-se no iminente advento do reino escatológico”. 452 Cf. MERZ, A. e THEISSEN, G., op.cit., p.273. Como exemplo, ele cita o Testamento de Dã 10,10-13, em que Deus vence Belial; 1 QM VI, 6, que trata da vitória dos filhos da luz; Ascensão de Moisés 10,1ss, sobre uma vitória em cima dos perseguidores do povo de Deus; e Oráculos Sibilinos 3,767, que trata de uma concepção universalista do reinado de Deus. 453 Cf. STEGEMANN, E. W. e W. História social do protocristianismo, p.173 et.seq. Segundo os autores é possível situar o apocaliptismo dentro dos círculos assideus, que por sua vez, deram origem aos essênios e fariseus. 451 125 aparentemente estava bastante difundido o espírito apocalíptico, pelo menos em épocas de tensão e de conflito.”454 4.4.2.2. A escatologia em Jesus Até que ponto Jesus trabalhou com essas crenças? O ponto de partida para perceber isso não é o próprio Jesus, mas João Batista. Desde que os textos de Qumran foram divulgados ficou muito claro que João Batista pertenceu a esse universo apocalíptico.455 Sua mensagem anunciava o juízo iminente de Deus sobre Israel, e a necessidade deste se converter de seus maus caminhos.456 E seu ministério foi de tal forma contundente que perdurou para além de sua morte. Muitos de seus discípulos continuaram seu ministério; alguns se juntaram ao movimento de Jesus, mas outros se mantiveram separados (conforme podemos perceber em diversos textos: Mc 2,18-19; At 18,1-7; Jo 1,35-40; Mt 11,7-11).457 O fato de discípulos de João aderirem ao seguimento de Jesus é um indício de que a mensagem deste era, em muitos aspectos, similar à daquele. Apesar do forte helenismo presente na Palestina, Jesus tem uma pregação inspirada na apocalíptica, mas não influenciada pelo helenismo, assim como João.458 No entanto, é importante frisar que Jesus não repetiu acriticamente a mentalidade apocalíptica de seu tempo. Ele nem assumiu o papel de Profeta Escatológico, nem uma messianidade aberta. E quando foi perguntado acerca da vinda do reino de Deus, sobre o tempo em que se daria, respondeu: “O reino de Deus não vem com aparência exterior. Nem dirão: Ei-lo aqui, ou: Ei-lo ali; porque eis que o reino de Deus está entre vós.” (Lc 17,20-21). Sua evasiva desloca-o de um papel meramente futurista.459 454 HORSLEY, R. Bandidos, Profetas e Messias, p. 212. No entanto, ele afirma a dificuldade de termos acesso a evidência direta desse fenômeno junto a movimentos populares, porque as fontes que temos, em especial Josefo, evitam propagar as idéias correntes do judaísmo palestinense. CROSSAN também aponta para esse problema. Em busca de Jesus, p.152. 455 Cf. FLUSSER, Jesus, p.215 et.seq. 456 Cf. CROSSAN, J.D. op.cit. p.153. 457 Cf. KOESTER, Introdução ao Novo Testamento 2, p.84. 458 Cf. RICHARD. P., Apocalipse, reconstrução da esperança, p.41. 459 Cf. GRELOT, A esperança judaica no tempo de Jesus, p.122 et.seq. 126 Mas, sem dúvida, a pregação de Jesus está vinculada a uma mensagem escatológica.460 Mesmo considerando a interpretação existencialista de Bultmann, podemos citar sua clássica exposição: O conceito predominante da pregação de Jesus é o do reinado de Deus (basilei,a tou/ qeou/). Jesus anuncia sua irrupção imediatamente iminente, que se manifesta já agora. O reinado de Deus é um conceito escatológico. Ele se refere ao governo de Deus que põe termo ao atual curso do mundo, que destrói tudo o que é contrário a Deus, tudo o que é satânico, tudo o que agora faz o mundo gemer, e, pondo desse modo um fim a todo sofrimento e dor, estabelece a salvação para o povo de Deus que espera pelo cumprimento das promessas proféticas. A vinda do reino de Deus é um evento maravilhoso, que se realiza sem contribuição humana, unicamente por iniciativa de Deus. Com essa pregação Jesus se encontra no contexto histórico da expectativa judaica do fim e do futuro.461 Com respeito à iminência da vinda do reino de Deus, Vermes entende que se havia em Jesus realmente essa expectativa, então essa convicção guiava todas as suas ações, ensino e a própria natureza de sua devoção religiosa. Jesus, como judeu piedoso, não tinha uma tranqüilidade escatológica – em que o futuro estivesse garantido para o grupo fiel – mas sim um entusiasmo escatológico – que exige ruptura total com o passado, colocando seu foco na ação do presente, e pensando não em termos de uma fidelidade do grupo, mas individual.462 Flusser considera ainda que Jesus definiu a escatologia – que ele identifica com a história da salvação - numa estrutura tripartida, em que aparecem a escatologia realizada e a futura: O primeiro período foi o “bíblico” que culminou com a carreira de João Batista. O segundo teve início com seu próprio ministério, no qual o reino do céu irrompia. O 460 Sobre os diferentes pontos de vista a respeito da escatologia, MERZ, A. E THEISSEN, G., op.cit., p.265-302; STAUDINGER, “Reino de Deus”, Dicionário Bíblico Teológico, p.364-368. Recentemente, vários autores retomaram a perspectiva de uma escatologia futura para a mensagem de Jesus, a partir da idéia da vinda do Messias e da relação escatologia-apocalíptica. Ver Também a discussão sobre a interpretação acerca da vinda do reino de Deus, ZABATIERO, “basilei,a”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.2036-2045. 461 BULTMANN, R., Teologia do Novo Testamento, p.41. Concordam com essa perspectiva JEREMIAS, J., Teologia do Novo Testamento, p.166; MEIER, Um judeu marginal, p.77 et.seq. Ele chega a afirmar: “há dez ou vinte anos não teria sido necessário repisar os ensinamentos de Jesus sobre um reino escatológico futuro. (...) Em anos recentes, alguns estudiosos têm questionado o ponto de vista segundo o qual Jesus pregava a respeito de um reino escatológico que haveria de chegar em breve.” P.79. Uma pesquisa que ignora essa perspectiva é a de CROSSAN, J.D., O Jesus Histórico, onde ele conceitua escatologia como “negação do mundo em geral, que pode incluir desde a escatologia apocalíptica (...), passando pelos seus modelos místicos e utópicos, até chegar às possibilidades ascéticas, libertárias ou anarquistas.” P.274. 462 VERMES, G., A religião de Jesus, o judeu, p.175. Ele explica a origem do termo entusiasmo escatológico: “a expressão é uma tradução livre do ‘entusiasmo da presença escatológica’ (Enthusiasmus eschatologischer Gegenwärtigkeit) de Martin Buber, cunhado em Zwei Glaubesweisen (1959) em Werke I (1962), 707.” p.174. J. ROLOFF aponta essa expectativa como uma marca de Mateus e sua comunidade. A Igreja no Novo Testamento, p.176 127 terceiro período será inaugurado com o advento do Filho do Homem e do Último Julgamento, num tempo futuro que é desconhecido por todos.463 Se considerarmos as exposições acima, chegaremos à conclusão que a pregação de Jesus não somente é escatológica, como também está alinhada aos valores judaicos relativos às profecias de salvação.464 Mas, até que ponto o dito de Mt 5,17-20, e especialmente a expressão “até que passem o céu e a terra” se coaduna com o conceito de escatologia que foram apontados? Até que ponto é um dito escatológico? 4.4.2.3. A escatologia no dito Para fazer essa análise a respeito da escatologia no dito, vamos nos ater temporariamente ao versículo 18 em si, desconectado da perícope, ou seja, perceber um pouco de seu sentido a partir de seu material original, a fonte Q. O pesquisador B. L. Mack analisou o material de Q numa perspectiva diferente das demais, tentando chegar a um grupo social e religioso definido: a “comunidade de Q”.465 O material de Q foi dividido pela pesquisa em três camadas: a mais antiga (Q1), a intermediária, que mostra uma mudança ideológica na comunidade (Q2), e a mais recente, que é feita de acréscimos nas demais, na mesma linha ideológica de Q2 (Q3). Para Mack, Mateus pode ter feito parte da comunidade de Q, e elaborou seu material a partir dos ensinos de Q em diálogo com o já conhecido evangelho de Marcos. Mas Mateus deu uma nova dinâmica na história de Jesus, também por meio de material exclusivo, e pelo qual ele projetou um Jesus mestre, conectado com as grandes tradições de Israel, e o mais importante, com ensinamentos que 463 FLUSSER, D. op.cit. p.218. Essa distinção também é indicada por KÜMMEL, Síntese Teológica do Novo Testamento, p.53-60; e MERZ, A. e THEISSEN, G. op.cit., p.298 et.seq. 464 Mesmo considerando que “as crenças populares não eram, à época, de forma alguma uniformes, em matéria de escatologia e messianismo”. GRELOT, P., A esperança judaica no tempo de Jesus, p.125. 465 MACK, O livro de Q, p.117 passim. A tese do autor, baseado na análise dos ditos de Q de Kloppenborg, parte da pressuposição que o material de Q hoje nos evangelhos de Mt e Lc era originariamente um documento que já continha elementos redacionais, e que pode ser dividido em três camadas, sendo a mais antiga Q1, e assim por diante. O estudo dessa camada mais antiga concluiu se tratar de uma comunidade de indigentes, que criticavam duramente a ordem social vigente, mas não tinham nenhuma pretensão escatológica, nem se articulavam em termos apocalípticos. As camadas mais recentes, no entanto, inseriram a figura de João, e elementos típicos da mentalidade popular em termos apocalípticos. Assim, tudo indica que passados alguns anos da experiência original, a comunidade mais primitiva de seguidores de Jesus se uniu a comunidades mais ortodoxas do ponto de vista de crenças e expectativas. Os evangelhos seriam reflexos dessa segunda experiência, e não da comunidade original seguidora de Jesus, apontado como filósofo cínico, segundo a análise do material de Q1. 128 “captavam as melhores intenções das normas éticas judaicas baseadas na Torá, e tornavam-nas acessíveis até para os gentios.”466 Em relação à perícope, Mack assume uma posição mais ortodoxa: Mateus teria inserido material de Q em blocos distintos, juntamente com material próprio. O Sermão do Monte foi um desses blocos, onde trabalhou a questão da Lei. Sobre isso Mack sintetiza: O ponto de comparação entre a lei e os ensinamentos de Jesus é que o ensinamento de Jesus atinge o cerne daquilo que a lei de Moisés pretendia. Para Mateus, a devoção apropriada era uma questão de atitude, perfeição de espírito e controle da vontade. Mateus tinha lido Q e desejava que seus leitores compreendessem as sentenças de Q como instruções sobre as intenções éticas da lei judaica. Ele achava que os ensinamentos de Jesus funcionavam de modo a resolver a confusão provocada pelo fim do segundo estado templário, validando a lei de Moisés como aquilo que permaneceu constante enquanto o resto desabava. Mateus dizia que Jesus “cumpria” as promessas e as previsões da épica de Israel.467 Contra essa visão de Mack encontramos Oporto, que também analisou Q e demonstrou que já na primeira metade do século XX a fonte Q começava a ser vista como um documento que, existindo ou não em forma literária, influenciou Mateus e Lucas em suas composições do Evangelho. Mas as diferenças entre Q de Mt e de Lc podem ser explicadas inclusive com a possibilidade de várias versões do documento.468 Passemos a análise do dito sobre o céu e a terra do v.18469, a partir do lugar onde Mack e Oporto o situaram no documento Q, para tentar chegar ao nosso objetivo de identificar ou não uma interpretação escatológica para o verso. Mack coloca o dito como “regras para a comunidade”470, e o insere na camada de Q3. Considerando que essa camada segue a mesma linha ideológica de Q2, na análise de Mack, e que essas duas camadas estão marcadas por pensamento apocalíptico 466 Ibid., p.176 et.seq. Pelo fato do evangelho de Mateus ter se destacado na Igreja Antiga, Mack considera que Mateus “sepultou Q na imagem fictícia de Jesus como sábio judeu.” P.179. 467 Ibid.,, p.178. A análise de Mack parte da premissa do texto como construção de Mateus, na linha de Overman e outros. Só esse aspecto já nos coloca em perspectivas diferentes em relação ao texto. 468 OPORTO, Ditos primitivos de Jesus, p.14 passim. Segundo ele, hoje se trabalha com a hipótese de que o documento Q tenha existido em forma escrita, sem se menosprezar o valor da tradição oral, que é anterior a ele. 469 Na verdade, ambos seguem mais a ordem lucana dos disto de Q. Isso foi feito pelo fato de se considerar que Lucas respeitou mais suas fontes – em termos de ordem do texto – do que Mt. É possível constatar isso comparando Mt, Mc e Lc, onde este é muito mais fiel à fonte de Mc que o primeiro. Assim, por dedução, acredita-se que Lc tenha respeitado a ordem do documento Q, se considerarmos também que existiu esse documento manuscrito. Ibid., p.26 et.seq. 470 Cf. MACK, O livro de Q, p.98. 129 misturado ao movimento da sabedoria, temos então um indício de um dito escatológico. Oporto insere na seção “o reino de Deus está dentro de vós (Q 16,1317,21)”471, e não diferencia camadas literárias entre os ditos. Para ele esse dito faz parte de um grupo cujo núcleo comum é voltado para os de dentro da comunidade. A partir de alguns critérios de análise do bloco,472 a conclusão de Oporto é que “destaca-se a radicalidade da opção por Deus, que exclui todo tipo de compromisso com este mundo e fundamenta um comportamento novo.”473 Podemos afirmar que essa interpretação é escatológica? Talvez sim, considerando que o não compromisso com esse mundo nos levaria a uma expectativa de outro, futuro. A conclusão até aqui é que, analisando a expressão “até que passem o céu e a terra” dentro da perspectiva do documento Q, ele tem um caráter escatológico sem, no entanto, deixar isso evidente. A escatologia nesse caso parece ser um pano de fundo, o cenário contextual – seja da pregação de Jesus, seja da comunidade de Mateus – como afirmado acima. Será que a exegese desse dito, feita à luz da perícope, nos ajuda a afirmar seu caráter escatológico? Vejamos a partir de uma análise literária, dentro do contexto do evangelho como um todo. O verbo ge,nhtai é usado com freqüência em Mateus, além de 5,18. Aparece com o sentido de “tornar-se” ou “tornar” em 10,25; 18,13; 23,15; 23,26; 24,32; “tiver” em 18,12; “nascer” em 21,19; “aconteça” ou “acontecer” em 24,20; 24,21; 24,34; “suceder” em 26,5. Considerando o conteúdo das passagens, o texto de 24,34 é o que mais tem relação com 5,18.474 Em ambos os textos aparece a expressão “até (sem) que tudo aconteça”.475 [e[wj a'n pa,nta (tau/ta) ge,nhtaiÅ]. O 471 CF. OPORTO, op.cit., p.43. OPORTO explica os critérios desse modo: “os estudos redacionais de Q descobriram uma série de recursos que serviram para agrupar e relacionar ditos ou composições originalmente independentes. Esses recursos podem ser formais, como a repetição do mesmo esquema, a colocação de certos elementos no início ou no final de uma seção etc.; ou de conteúdo, como a aparição recorrente de alguns temas (...).” Ibid., p.31. 473 Ibid., p.44. 474 Cf. apontado pela sinopse de BENOIT, P., BOISMARD, M. F., Synopse des quatre evangiles. Curioso é que o verbo ge,nhtai está sempre numa fala de Jesus, com exceção de 26,5, quando as autoridades usam esse verbo. 475 Que é a tradução para 5,18 também em nossa exegese, cf. vimos na análise textual e tradução. A dificuldade, na exegese, está no doublé de “até que”, cf. discussão em TRILLING, W., El verdadeiro Israel, p.241 et.seq. 472 130 fato de 24,34 estar inserido num discurso profético, com aspectos escatológicos, fortalece em grande parte a idéia da escatologia em 5,18.476 O verso seguinte também tem um conteúdo muito próximo de 5,18: é a afirmação de que “o céu e a terra passarão, mas a minha palavra não passará” [o` ouvrano.j kai. h` gh/ pareleu,setai( oi` de. lo,goi mou ouv mh. pare,lqwsinÅ]. Esse dito afirma a autoridade de Jesus e sua palavra, de forma que as palavras de Jesus são permanentes como a própria Lei, e tem correlação de termos com o v.18, no verbo [pare,lqh|], que pode ser traduzido por “passar por”, “vir”, “transcorrer”.477 Isso indica a garantia de que as profecias irão valer pelo tempo que for necessário.478 O dito sobre a validade da Lei e dos Profetas tem ainda uma correlação com outro texto de Mateus, em 11,13: “Porque todos os profetas e a lei profetizaram até João” [pa,ntej ga.r oi` profh/tai kai. o` no,moj e[wj VIwa,nnou evprofh,teusan\].479 Esse texto indica o fato da Lei e os Profetas terem sua validade até a chegada de João, seja pelo cumprimento, seja porque ele representa o fim do tempo profético.480 Para tanto é preciso que toda a Lei, e cada aspecto dela tenha valor. Mas, como conciliar o fato de que nem um pequeno “iota” vai perder seu valor, se o próprio Jesus faz uma revisão da Lei (de acordo com as antíteses de 476 Cf. BANKS, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.235 et.seq. A dificuldade está em torno da expressão “essa geração” [h` genea. au[th] que será testemunha dessas coisas. Se considerarmos a geração de Jesus, então o sermão profético nem mesmo deve ser encarado como escatológico, quando muito contendo elementos apocalípticos (cf. vv.27-31). A maneira de ver realmente como dito escatológico dependeria de uma interpretação dessa geração como a humanidade como um todo. A verdade é que no sermão presente (passado, na verdade, se pensarmos na destruição de Jerusalém ocorrida antes da redação do evangelho) e futuro estão em tensão nesse texto. Ver BARBAGLIO, G., Os Evangelhos I, p.347 passim, esp.358-359; No entanto, CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.596, interpreta como sendo a geração do tempo de Jesus, mesmo considerando que o sermão trate de passado, presente e futuro (p.581), como Também. MATEOS e CAMACHO, O evangelho de Mateus, p.274. Para eles a geração de Jesus viu a inauguração do reino de Deus, e a profecia tem o sentido de trazer esperança, não medo. Com isso ganha o caráter de texto apocalíptico, não escatológico. J. MALDONADO considera um hebraísmo que significa o gênero humano. Comentario a los cuatro Evangelios, p.439. 477 Cf. RUSCONI, C., Dicionário do Grego do NT, p.357. 478 VERMES, G., O Evangelho Autêntico de Jesus, p.342. Ele entende que a “admoestação sobre cronologias escatológicas e sinais premonitórios, também pertence ao núcleo da mensagem autêntica de Jesus.” Esse dito consta em todos os sinóticos, e nos remonta a Is 40,8: “Seca-se a erva, e cai a flor, porém a palavra de nosso Deus subsiste eternamente”. FLUSSER considera que essa afirmação em Mt 24,34-35 seria a original e a as expressões em 5,17 e 18 foram inseridas lá por Mateus, devido sua aparência “externa” com 24,34-35. Jesus, p.50. 479 Cf. VERMES, op.cit., p.401. Ele relaciona esse dito com o sermão profético Mt 24, “Minha palavras não passarão”, ou seja, Mt veria no ensino de Jesus a nova Torá, com duração permanente. Também verificar uma possível contradição, por conta da pressão da parte não judaica da comunidade, quando se compara com Mt 11,13: “Porque todos os profetas e a lei profetizaram até João”. 480 Cf. CARTER, W. O Evangelho de São Mateus, p.327. et.seq.; FLUSSER, Jesus, p.111 et.seq. 131 21-48)? Para entender bem o sentido do v.18, é preciso explicá-lo pelo seu precedente, e não pelo seguinte. O dito do v.17 não trata de acréscimos ou adições, mas de aperfeiçoamento, ou seja, um desenvolvimento.481 Mateus trabalha com a forma alterada de Lucas, o qual apontou para a permanência absoluta da Lei. Ao citar o iota e o til, fica claro que está pensando em termos de redação e conteúdo. Para ele a interpretação do v. 18 depende do sentido do v.17, por causa da partícula “porque” [ga,r].482 Banks prefere considerar o centro do dito na expressão “nem um yod nem um qots (til)”, que mostra a continuidade da validade da Lei nos menores detalhes.483 Essa validade, porém, está atrelada às duas cláusulas temporais que antecedem e seguem ao ponto central. Por isso o centro do versículo está na expressão “até que passem o céu e a terra”. Muitos consideram deve ser interpretada como uma expressão idiomática que na verdade significa “nunca”. Para outros, como uma expressão que indica que a Lei só vale durante a presente era. Mas nenhuma das duas interpretações sintetiza totalmente o sentido da expressão; como demonstra a análise feita a partir do paralelo de Lc 16,17, é uma figura de retórica que demonstra o quão difícil é que a Lei perca sua validade.484 Por isso, há quem afirme que se trata de uma escatologia “oculta” no sermão do monte, como Bornkamm: “as exigências de Jesus trazem em si mesmas ‘as coisas últimas’, sem que precisem obter sua validade e urgência da candência dos quadros apocalípticos. Elas próprias conduzem até os limites deste mundo, mas não descrevem seu fim.”485 Quem também trata da expressão como figura de linguagem é Charles, para quem as declarações de Jesus em 5,18-19 empregam a hipérbole. O uso de termos que apontam para detalhes atende a certas expectativas das escolas rabínicas, onde o estudo se dá pelas minúcias. Colocando em termos apocalípticos, a passagem dos céus e da terra (cf. Mt 24, onde ele se manifesta), Jesus afirma a natureza 481 LAGRANGE, Évangile selon Saint Matthieu, p. 95. Ela completa, comparando a Lei com uma semente. A Lei muda da mesma forma como uma semente muda, quando uma pequena molécula dela se modifica, e gera o fruto. Nenhum de seus elementos deve cair antes que a obra de Deus seja concluída. Não se trata de uma defesa dos mandamentos de forma exterior, seja o menor deles, mas é o princípio novo que regula o todo. Não há nada na Lei, que tenha um propósito de conclusão, e que deva permanecer até o fim do mundo. 482 TRILLING, W., El verdadeiro Israel, p.242 et.seq. 483 Cf. Também VERMES, A religião de Jesus, o Judeu, p.26; FITZMEYER, Comentário Bíblico “San Jerônimo”, p.185. 484 BANKS, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.233 et.seq. 485 BORNKAMM, G., Jesus de Nazaré, p.183. 132 duradoura do padrão ético. Além disso, os menores aspectos da obrigação ética permanecem, falando em termos apocalípticos, até que o novo céu e terra apareçam. Por que, aos olhos de Mateus, Jesus é tão duro quanto aos menores detalhes da Lei como permanentes? E por que essa preocupação assemelha-se a noções legais contemporâneas? O discurso hiperbólico utiliza exageros para causar efeito, e o efeito é para enfatizar durabilidade.486 Por isso, as duas partes do versículo que expressam uma possível escatologia não podem se referir ao mesmo assunto, pois se assim fosse seria uma redundância no texto. Não deve ser interpretado também como “até que tudo seja realizado”, seja pela realização das profecias, seja pela observância da Lei. Mesmo os pequenos traços devem responder à vontade de Deus, que tem a intenção da Lei como uma grande unidade.487 A interpretação pode estar vinculada ao princípio do “amor e mutualismo”, que tornam a Lei válida e permanente.488 A favor da escatologia no texto, pode-se pensar que mesmo a morte e a ressurreição não revogaram a Lei. O Sentido então é escatológico, pois aponta para uma consumação final, “até que a terra e o céu passem.”489 Entretanto, alguns apontam que há uma dificuldade no texto no tocante à repetição de expressões; e por isso não seria possível pensar como uma expressão escatológica, mas como o cumprimento de toda a vontade de Deus em Jesus Cristo.490 Contra ela, no entanto, Charles comenta que muitos interpretam as palavras “até que tudo aconteça” à luz do interesse escatológico de Mateus em outras partes, como se tratasse da morte e ressurreição, à Igreja, ou à Parousia. A linguagem apocalíptica nos obriga, no entanto, a entender “tudo” em termos da validade permanente e não escatológica da história da salvação.491 486 CHARLES, “Do not suppose that I have come”, p.58. LAGRANGE, M., Évangile selon Saint Matthieu, p.95. Quanto à segunda cláusula temporal, “até que tudo aconteça”, Banks aponta três formas de serem interpretadas: (a) como evento escatológico que põe fim a essa era; (b) a realização da Lei ou da vontade de Deus; (c) o cumprimento das Escrituras do AT na pessoa e obra de Cristo. 488 Cf. OVERMAN, A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.94. 489 Cf. MARGUERAT, D., Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.129. 490 BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.147; 70. Essa interpretação concorda com Sab de Salomão 18,4, Baruc 4,1.4; Esdras 9,37, que falam da força permanente da Lei, sem haver nos textos aspectos de escatologia. J. GNILKA lembra que “uma antiga determinação cristológica identifica Jesus com a Sabedoria divina”. Jesus de Nazaré, p.239. 491 CHARLES, J.D. “Do not suppose that I have come”, p. 58. 487 133 Para Kümmel, no entanto, a expressão “eu vim”, e o dito contextualizado no Sermão do Monte aponta para o fato de Jesus saber bem o significado de sua vinda e, em geral, perceber sua missão em termos escatológicos, no plano da salvação.492 Barth justifica sua posição, afirmando que Mateus adota a idéia do sacrifício de Cristo e o interpreta como a graça está na verdade estabelecendo o juízo, a justiça de Deus. Em sua vida e morte Jesus cumpriu obedientemente toda justiça, aqui para Mateus a Lei não pode ser abolida. Ele realiza isso também por meio de seu ensino, e sua atitude como o servo humilde, que cumpre toda justiça no lugar dos pecadores, ao mesmo tempo em que intenta estabelecer o juízo de Deus. Nesse caso vale também a premissa dualista juízo/salvação das profecias do Antigo Testamento.493 Numa linha intermediária, Vermes entende que, considerando a idéia de Jesus sobre a vinda do reino – de forma iminente – e como ele desprezava preocupações por tempos e épocas494, dando maior importância ao valor do tempo vivido hoje495, a observância da Lei é fundamental para manter a fidelidade a Deus. Nesse sentido, “o que ele se esforçou em enfatizar era a devoção interior para o devoto individual do Reino do céu. Em resumo, ele adotou, intensificou e tentou corajosamente injetar no judaísmo do povo comum o magnífico ensinamento profético da religião do coração.”496 Seria essa uma escatologia realizada, ou uma expectativa escatológica iluminando o presente? Do ponto de vista da comunidade, Barth entende que Mateus está preocupado em responder ao grupo conservador da comunidade em sua defesa da Lei. Assim, é uma luta que permanece, mesmo com as mudanças e dificuldades enfrentadas após os anos 70 d.C. Transparece então que o evangelista foi envolvido nessa luta contra os que desejavam abolir a Lei, em oposição com aqueles que achavam que ele devia enfatizar a validade da Lei. A pergunta pelo motivo da Lei existir cabe nesse contexto, e Mateus consegue fazê-la, numa perspectiva cristológica. O mesmo não se dá no judaísmo, pois ele pode perguntar por que o mundo foi criado e pode responder: por causa 492 KÜMMEL, W.G., Síntese teológica do Novo Testamento, p.77; 92. BARTH, G. op.cit., p.149. 494 Cf. Lc 17,20; Lc 12,16-21. 495 Cf. Mt 6,33ss; Lc 12,31. 496 VERMES, G., A religião de Jesus, o Judeu, p.177 et.seq. 493 134 da Lei; mas ele não pergunta por que a Lei existe. A resposta de Mateus é: ela é um instrumento da execução escatológica da vontade de Deus, que é a obra de Cristo. Isto é, apesar da Lei apontar para a vontade de Deus, ela não é o mesmo que a vontade de Deus, que é realizada através da obra de Cristo; a vontade de Deus é superior à Lei como objetivo, a Lei serve a ela. 497 Ao comentar a cláusula temporal do dito “até que tudo aconteça”, Vermes aponta que considerada separadamente, essa expressão pode indicar simplesmente a “natureza continuamente obrigatória da Torá”, e assim as necessidades da Igreja palestina estariam resolvidas. De outro lado, pensando na Igreja gentia, a interpretação dessa cláusula está interligada a Mt 11,13: “Porque todos os profetas e a lei profetizaram até João.” Assim também se deveria interpretar o v.17, como cumprimento das profecias. No entanto, contrariando uma ou outra possibilidade, o fato é que em Jesus a Lei tinha sentido duradouro, e o dito, sendo autêntico, retrata uma religiosidade fiel aos valores tradicionais israelita, em especial a Torá.498 4.4.3. Síntese conclusiva sobre a escatologia no dito Da forma como a perícope se apresenta em Mt 5,17-20, deve ser considerado escatológico? Em nossa opinião a perícope é mais do que figura de linguagem, e deve ser entendido no sentido escatológico sim, tomando por base alguns aspectos já apontados anteriormente: § O versículo 18, proveniente de Q, faz parte de uma camada mais elaborada, que tem o pensamento escatológico como base teológica. § O comportamento novo que se exige da comunidade tem como horizonte a entrada no reino dos Céus, que faz parte da escatologia futura da pregação de Jesus. § A idéia de afirmar a passagem dos céus e da terra está diretamente ligada à passagem do tempo presente, deste éon. Jesus tinha essa mentalidade escatológico-apocalíptica de dois éons, o agora e o futuro. 497 BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.148. Cf. Gênesis Rabba, § 1. “R. Bannaah said: the world and what it contains was created only for the sake of the law.” G.N. STANTON chega a se posicionar sobre o assunto, entendendo que, caso se leia “até que tudo se cumpra”, se referindo a Jesus, então o que não se pode deixar de cumprir são as palavras de Jesus e não a Lei. A Gospel for a new People, p.300. 498 VERMES, A religião de Jesus, o Judeu, p.26 et.seq. 135 § A validade da Lei no dito está vinculada a cláusulas temporais, que indicam na verdade sua eternidade. § Mateus também compartilha dessa idéia escatológica. Não dá a ela apenas uso metafórico, mas pensa em termos futuros, pois associa-a à vinda do Filho do Homem, que julgará a toda a humanidade (especialmente os capítulos 24 e 25). § Além disso, o cumprimento pessoal de Jesus de todos os aspectos da vontade divina e da Lei que a expressa não encerrou o tempo presente, a história atual, indicando uma reserva escatológica no texto. § Concluindo, a Igreja, comunidade de Cristo no mundo, continua a observância da vontade de Deus – a Lei – como antecipação e condição para a participação no reino dos Céus que cumprirá efetivamente a palavra de Jesus. 4.5. O menor e o maior no reino dos Céus: evla,cistoj kai, me,gaj evn th/| basilei,a| tw/n ouvranw/n (v.19) Depois de afirmar a escatologia no texto, que indica a validade permanente da Lei, temos um dito em que Jesus se dirige aos discípulos e seu compromisso com o ensino e prática da Lei. O v.19 – material exclusivo de M – continua a idéia central da perícope, e tanto pode ser analisado em relação direta com o v.18, por seu conteúdo, 499 quanto em relação ao v.17, por sua estrutura antitética.500 19 Portanto, qualquer um que violar o menor dos mandamentos, mesmo que insignificante, e assim ensinar às pessoas, será chamado o menor no reino dos céus; aquele que observar e ensinar, será chamado o maior no reino dos céus. A estrutura do dito é diferente dos demais. R. Bultmann já apontou que o dito faz parte do conjunto de palavras jurídicas e regras da comunidade, e o v. 19 demonstra claramente que o sentido de “anular” e “cumprir” do v.17 está diretamente relacionado à prática concreta da comunidade.501 Por outro lado, Bultmann considera que o v. 19 forma, junto com o v.10, uma grande introdução 499 Cf. BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.65s. LAGRANGE, M., Évangile selon Saint Matthieu, p.95. 500 JEREMIAS, J., Teologia do NT, p.47. A questão literária e redacional foi pontuada no cap. 2, por isso aqui trabalharemos somente com as conclusões, com o objetivo de interpretar o sentido do texto. 501 BULTMANN, L’historie de la tradition synoptique, p.176. 136 para as antíteses, a partir de fontes diversas. 502 W. Trilling considera que o v.19 forma uma unidade com o v.18, e assim se ente e explica melhor. Ou o v.19 foi escrito para comentar o v.18, ou o v.18, em sua forma atual, pode ser considerado uma unidade de tradição fechada.503 O dito tem uma estrutura jurídica bastante forte, e que encontram fundamento na tradição de Mateus, bem como em sua redação. Um exemplo é 12,32, um dito que combinou a tradição de Mc (Mc 3,29) com a fonte Q (Lc 12,10), e se tornou um refrão colocado harmonicamente. Da mesma forma as sentenças sobre o “atar” e “desatar” (16,19; 18,18), o que indica que a forma de pensamento que está por trás do dito é tipicamente judaicorabínica.504 A quem o dito foi dirigido, já que sua linguagem é bastante concreta e prática? Há várias maneiras de se interpretar a questão. O dito pode ter sido colocado visando os helenistas, talvez o próprio Paulo,505 ou ter sido criado no conflito entre a Igreja judeu-cristã e setores da Igreja que mostraram descaso com a Lei, em sua observância mais estrita. Seria uma posição mais conservadora da comunidade, que coloca em Jesus a normativa de prática.506 Outra possibilidade é dele fazer a distinção entre a comunidade de Mateus (que guarda e ensina os mandamentos) e a liderança judaica (que viola e ensina, cf. 23,3.23). A comunidade cumpre quando aplica os princípios de amor e misericórdia, ensinados e praticados por Jesus.507 Ou ser dirigida a setores que tiveram uma atitude mais liberal em relação à Lei de Moisés, e que foram entendidos como negligentes pela comunidade judeu-cristã da Palestina, à qual Mateus se reporta.508 502 Ibid., p.546. Esse material está unido a um grupo de palavras de natureza um tanto diversa. Trata-se das que não exprimem, de maneira alguma, uma tomada de posição em relação à Lei vétero-testamentária, mas que contém prescrições para a comunidade cristã, cf. op.cit. p.176. 503 TRILLING, W., El verdadeiro Israel, p.257 et.seq. No entanto, el aponta que os resultados da pesquisa realizada até hoje não falam a favor de nenhuma das duas interpretações. 504 Ibid., p.258. 505 BULTMANN, R. Teologia do Novo Testamento, p.98. 506 BARBAGLIO, G., Os Evangelhos I, p.119. Para que não se entenda de forma puramente legalista, o v.20 clareia o sentido dessa observância por parte dos discípulos. 507 OVERMAN, A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.94; ZUMSTEIN, J., Mateus o Teólogo, p.48. 508 LAGRANGE, M., Évangile selon Saint Matthieu, p.95 et.seq. Mas para isso v. 19 deve tratar de mandamentos específicos, e não da Lei como um todo. Como Também Trilling, que avalia que ordem de obedecer, e ensinar, a todos os mandamentos demonstra que há uma unidade em todos, e expressam a vontade de Deus. Assim, é uma resposta a uma doutrina mais liberal, que não considerava determinados preceitos da Lei obrigatórios. TRILLING, W., El verdadeiro Israel, p.258 et.seq. Também BORNKAMM, G., Jesus de Nazaré, p.167. 137 R. Banks, a favor da idéia de setores internos da comunidade, considera que o dito tem por alvo um determinado grupo “carismático” de judeu-cristãos para quem ele escreveu. Existe uma forte possibilidade, nesse caso, de que Mateus tenha interpretado e aplicado o dito de 5,19 de um modo similar. O melhor modo de entender o “menor dos mandamentos” é pensar nas orientações concretas de Jesus para a comunidade, a partir de sua própria prática. Assim, o contexto original do dito seria o próprio ministério de Jesus, o qual, com sua interpretação e atitude em relação à Lei, deixou o exemplo para os seus discípulos, que deveriam segui-lo completamente.509 P. Bonnard, por outro lado, considera que v.19 repete e intensifica o v.18, o qual tem relação com Lc 16,17. A dificuldade está em enquadrar o próprio Jesus nessa ordenança, pois é possível ver no evangelho o fato dele não observar as menores prescrições legais vétero-testamentárias de forma meticulosa, sobretudo aquelas referentes ao sábado e à pureza ritual. Por isso alguns supõem que o dito de fato se origine de setores judaizantes da comunidade (crentes fiéis à Lei de acordo com o ensino rabínico ou fariseu) que Mateus integrou no texto. Disso se compreende que é uma maneira de ver a Lei tipicamente rabínica, e sublinhar a sua permanente e absoluta autoridade, mas a partir da interpretação de Jesus, e que o dito do v.18 “até que tudo aconteça”, nem se refere à morte de Jesus na cruz, nem ao pleno cumprimento dos discípulos, mas ao fim do mundo.510 As diferentes análises demonstram que havia conflitos internos na comunidade, especialmente pela forma como deviam se relacionar com a Lei, considerada por muitos como ultrapassada, depois que Jesus se manifestou. O sentido do “menor mandamento” pode nos ajudar a perceber o grau de dificuldade experimentado pela comunidade. Sem dúvida demonstra um conflito entre observar e ensinar e fazer o oposto. Aqui são os mestres de ensino que são colocados em evidência. “A tarefa dos mestres é assegurar a realização das Escrituras como cumpridas por Jesus.”511 Ele considera o sentido de “violar” equivalente ao de “anular”, mas o acento aqui está em mandamentos específicos, como os das antíteses (5,21-48), bem como de outros demonstrados por Jesus – 509 BANKS, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.239 et.seq. BONNARD, P., L’Évangile selon Saint Matthieu, p.61 et.seq. 511 CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.192. 510 138 honrar aos pais (15,3-4) cumprir o decálogo (19,17-19) e o maior de todos, o mandamento do amor, a Deus e ao próximo (22,36-40).512 A contraposição entre grande-pequeno e a diferenciação entre preceitos “graves” e “leves” e também a correspondência de medida entre o cumprimento dos mandamentos e a hierarquia no reino dos céus indica que não pode haver crítica nem descuido em relação à Lei. A frase contem alusões a um sitz im Leben concreto, não muito claro no v.17. Para D. Marguerat, o significado de “menores mandamentos” [mi,an tw/n evntolw/n] tem a ver com uma distinção halákica que os rabinos faziam entre o menor e o maior mandamento, instituindo uma hierarquia entre eles. O que determina a diferença é o grau de esforço para cumprir o mandamento ou que tenha uma recompensa escatológica menor. Dessa forma, Marguerat considera que Mt retoma a questão do “iota ou um pequeno sinal”, que são os corolários da Lei.513 Os preceitos graves envolviam questões éticas, com isso preceitos “leves” ou “graves” eram diferenciados de acordo com a dificuldade do cumprimento.514 Caso o v.19 se refira realmente à Lei de forma estrita (sem um ponto de modificação), então ele deve ser visto como um dito muito conservador, um tanto deslocado do contexto de 17,18 e 20.515 G. Barth afirma que Mateus clarifica que a congregação é ordenada a fazer: em primeiro lugar, em sua interpretação da Lei e em segundo na exigência por imitação. Mas qual é a relação de uma com a outra? É o que indica 19,21: “Disselhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, e segue-me.”, bem como a conclusão das antíteses: “Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus.” (5,48). Há uma exigência de perfeição na prática individual, que será resultado da interpretação correta das Escrituras – a partir da interpretação dada por Jesus – e da prática correta – como imitação de Jesus. Nisso está o seguimento de Cristo, que é a mesma coisa que o radical cumprimento da Lei, e se dá especialmente por uma prática do amor e misericórdia na mesma medida que 512 Ibid., p.192 et.seq. MARGUERAT, M., Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.132 et.seq. Cf. a análise sobre o iota e o pequeno sinal no cap.2, na análise textual. 514 Cf. BILLERBECK, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch I, p.901ss; TRILLING, W., El verdadeiro Israel, p.260; FITZMEYER, J., Comentario Bíblico San Jerônimo, p.186; BANKS, R. “Matthew’s understanding of the Law”, p.239 , que também pensou no Decálogo como fonte da avaliação dos maiores e menores mandamentos. Porém o temo evlaci,stwn não permite pensar dessa forma. 515 Cf. STANTON, G.N. A gospel for a new people, p.300 et.seq. 513 139 Jesus ensinou e praticou.516 A comunidade é chamada a um agir justo que deve estar conectado ao ensinar, ao procedimento do discípulo, que é justo porque ensina a justiça, e que faz com que outras pessoas se tornem justas.517 D. Marguerat analisa ainda que a forma aponta para o direito sagrado, no sentido de deliberar sobre o lugar dos menores mandamentos da Lei, e revelara o juízo no reino dos Céus, para quem negligenciá-los. O verbo lu,ein significa “declarar não válido”, como uma autorização para a transgressão, enquanto dida,skein designa um ensinamento incitando os crentes a não mais considerar como normativos os mandamentos de menor importância. “Fazer e ensinar: também para ao judaísmo estas duas modalidades de observância da Lei constituem uma unidade indissolúvel.”518 J. Fitzmeyer entende que são os fariseus que praticam e ensinam a não observância da Lei. O fato de Jesus não ter observado as prescrições tradicionais acerca do sábado e das normas de pureza levítica foi sempre motivo de controvérsia. Jesus demonstra que não recomenda aos discípulos aquilo que ele mesmo não observa, por isso a ordenança está submetida à interpretação de Jesus, que revelou a lei perfeita e completa.519 Flusser dá um passo mais concreto na interpretação: o sentido do menor dos mandamentos não se refere às questões rituais, mas o que tange o relacionamento humano. Isso se harmoniza com a idéia do cumprir o grande mandamento – amar a Deus e ao próximo – como cumprimento de toda a Lei e os Profetas.520 Mas há uma grave advertência para quem anular qualquer desses mandamentos. E como entender essa advertência? As implicações de “perder”, “anular” ou “relaxar” um dos “menores” mandamentos – e ensinar aos outros – são consideráveis. Envolvem uma perda de “posição” no “reino dos céus” (5,19). Em outra parte do Evangelho de Mateus, Jesus emprega a noção de “posição” no reino dos céus, de acordo com o tema da retribuição divina (conf. Mt 18,4; 20,16; e especialmente, 23,2-12).521 516 BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.102 et.seq. Cf. BONNEAU, op.cit., p.212. Nesse sentido o autor relaciona a ação do justo com a do profeta. 518 MARGUERAT, D., Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.132 et.seq.. Mas, como aparece em Mt 23,3, Mateus dá primazia à ação sobre o ensinamento. 519 FITZMEYER, J., Comentario Bíblico”San Jerônimo”, I, p.186. 520 FLUSSER, Jesus, p.65. 521 CHARLES, “Do not suppose that I have come”, p.58 Em Mt 18 Mateus usa mikrw/n alternando com paidi,a - designa os cristãos, que precisam da graça divina e da salvação que é dada 517 140 Carter entende que o fato do castigo – ser chamado mínimo no reino dos Céus – estar na passiva do futuro aponta para o julgamento de Deus. É ele quem ai designar os grandes e os pequenos. Isso não indica exclusão, pois não diz que ficarão “de fora” (como em 13,41s.49s; 25,31-46), mas aponta para recompensas no reino futuro que podem ser dadas ou não a cada um. Na segunda parte, a premissa positiva é reforçada, pois aqueles que praticarem e ensinarem os mandamentos do modo como o foram por Jesus, serão grandes no reino.522 Contra essa posição, porém, Marguerat aponta a dificuldade do versículo, que está em entender a hierarquia do menor no reino dos Céus. Parece ser uma idéia dos círculos judeu-cristãos preocupados com a questão da Lei, engajados em promover a comunhão eclesial, ao mesmo tempo em que condenam os adversários. A infração provocaria apenas uma medida de desqualificação no reino e não sua total exclusão. Mas isso está em desacordo com o pensamento rabínico, e parece ser uma idéia estranha ao ambiente de Mateus.523 A partir do contexto dos v.18 e 20, outra interpretação se torna necessária: a ênfase não está na moderação do julgamento, mas nas terríveis conseqüências da negligência na observância dos mandamentos. Aqui se estabelece a correlação entre a prática e o juízo escatológico; a condenação estará sobre o transgressor, mesmo do menor dos mandamentos. Isso responde, de certo modo, aos rabinos judeus que ensinavam a considerar um mandamento maior ou menor que os demais, desconsiderando o todo da Lei.524 Da mesma forma, Bonnard entende que as expressões “menor” ou “maior” não exprimem a idéia de hierarquia no reino dos Céus, mas são expressões judaicas que designam a exclusão ou participação no Reino.525 Quanto a expressão utilizada por Mateus – “reino dos céus” [basilei,a tw/n ouvranw/n] - tem o mesmo sentido de “reino de Deus” em Mc e Lc, e se deve a por ele. Ou seja, de um modo geral, mikrw/n se refere positivamente ao grupo, pois para entrar no reino dos Céus é preciso ser como uma criança (18,3) e mais: o que for pequeno como uma criança será grande no reino (18,4), um paradoxo nos moldes de Jesus. Do mesmo modo, as bemaventuranças apontam positivamente para os pobres, os famintos, os mansos, os que choram. Cf. BARTH, “Matthew’s understanding of the Law”, p.122. 522 CARTER, O Evangelho de São Mateus, p.192 et.seq. Como Também LAGRANGE, Èvangile selon Saint Matthieu, p.95 et.seq. O juízo para a negligência não é ficar de fora totalmente, mas ser pequeno no reino dos Céus. 523 MARGUERAT, Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.134. Ele cita o Abot 2,1: “Sois aussi attentif à un commandement léger qu’à un commandement supérieur, parce que tu ne sais pas quelle recompense será donnée aux commandements.” 524 MARGUERAT, Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.135. 525 BONNARD, L’Évangile selon Saint Matthieu, p.62. 141 peculiaridades lingüísticas e teológicas. Esse termo está mais próximo do ambiente semita - o ambiente original de Mateus - do que do helênico – ambiente de Mc e Lc. Nos sinóticos “reino dos céus/de Deus” é um conceito escatológico, considerando não apenas o futuro, pois Jesus já se manifestou para realizar a vontade de Deus, e apontou para a consumação plena no futuro. É uma escatologia em vias de realização.526 A salvação na basilei,a estabelece uma nova ordem das coisas, e a cidadania é constituída pelos pecadores (Mt 9,13), que devem agora ter uma nova atitude misericordiosa (Mt 5,48; 7,12). Mas há também posição e hierarquia na basilei,a, e havia na comunidade de Mateus a recorrência no tema. Até entre os discípulos havia disputas sobre quem seria o maior, às quais Jesus didaticamente mostrava a nova lógica do reino (cf. Mt 10, 20-28).527 A comunidade vivia também sob essa expectativa.528 4.6. A justiça como plenitude da Lei: dikaiosu,nh plei/on (v.20) O versículo que encerra a perícope é considerado por muitos como uma introdução às antíteses529, mas de qualquer modo, complementa o conteúdo de 1720, e contém elementos comuns a todo o Sermão do Monte, bem como ao evangelho de Mateus em geral. Um dos elementos de ligação se trata dos grupos antagonistas à comunidade de Mateus, que refletem os adversários de Jesus em seu próprio ministério. Por outro lado, há um reforço na idéia de cumprir a justiça, acima dos escribas e fariseus, para que possam entrar no reino dos Céus. 20 Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus. 526 ZABATIERO, “basilei,a”, Dicionário Internacional de Teologia do NT, p.2035; 2045. O relato paralelo de Mc 10, 33-45, mostra que foram Tiago e João quem pediram a Jesus para se assentarem a sua direita e esquerda no reino. Mateus pode ter colocado a pergunta na boca da mãe deles para minimizar o fato, tendo em vista a importância de ambos para as igrejas cristãs palestinenses, o que só vem fortalecer a historicidade do relato. Cf. análise de FABRIS, Os Evangelhos I, p.309. 528 Cf. MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.295. Ele comenta: “Os desejos de posição, respeito e status entram nos sonhos escatológicos dos homens. Por isso é digno de nota que Jesus tenha dado apenas um conteúdo concreto ao Reino de Deus: ele apresenta a salvação escatológica como uma grande ceia.” 529 BULTMANN, L’historie de la tradition synoptique, p.176; BANKS, “Matthew’s understanding of the Law”, p.242; Alguns pensam na perícope toda com esta função: FITZMEYER, Comentario Bíblico Tomo III NT, I, p.187; PARISI, “Giustizia superiore e fede ‘estroversa’. La morale sociale da ‘un punto de vista’ della Scrittura”, p.51 527 142 4.6.1. A controvérsia com os escribas e fariseus O dito abre com a expressão “porque vos digo que” [le,gw ga.r u`mi/n o[ti], que tem certa correlação com a expressão “em verdade vos digo” do v.18.530 A conjunção “porque” [ga.r] indica a ligação redacional com os versículos antecedentes, mesmo tendo origem diferente dos demais.531 As diretrizes da comunidade, além de enfrentar diferentes pontos de vista internos quanto à validade da Lei, enfrentavam dificuldades externas provenientes de outros grupos judaicos, e suas respectivas interpretações da Lei. No primeiro capítulo já vimos a configuração desses grupos de acordo com fontes históricas e outras evidências - especialmente os escribas e os fariseus -; agora nos interessa apontar a controvérsia deles com Jesus, a partir do v.20, bem como da forma como Mateus os retratou. Que Jesus teve conflitos com alguns setores do judaísmo, está claro pelos testemunhos nos sinóticos, tanto da tradição de Mc, quanto da tradição de Q. Mateus reproduz ambas as tradições e acrescenta ainda material extra que, sem dúvida, acirrou os ânimos de ambos os lados. Há diversos motivos provocadores de conflitos com os fariseus, descritos no Evangelho: o fato de Jesus se associar com pecadores; o desvio dos discípulos em seguir os preceitos que regulamentavam a alimentação, a pureza e a guarda do sábado532, conforme apresentado acima. A inserção desse dito junto com os demais sobre a Lei atende à tendência de Mateus em criticar os oponentes religiosos.533 A liberdade de Jesus diante da Tradição dos Pais e da própria Lei foi o principal motivo da controvérsia com os fariseus e escribas: isso é mostrado nos conflitos no sábado (12,1-14, e par).534 Mesmo assim, é bom salientar que Jesus os considerava “intérpretes oficiais da lei bíblica e a quem se deve obediência (Mt 23,2-3).”535 530 J. JEREMIAS conjetura a possibilidade do dito original ter começado com Amém, mas ter-se perdido depois para essa formulação menos intensa. Estudos no Novo Testamento, p.141. 531 Cf. BANKS, R. op.cit., p.241; TRILLING, W. El verdadeiro Israel, p.262. 532 Cf. GARCIA, P.R. O Sábado do Senhor teu Deus, p.125. Para ele, associar os fariseus aos rabinos – ou judaísmo rabínico – é uma incorreção, pois necessariamente um não corresponde ao outro. Por isso, a exemplo de Jacob Neusner, Garcia chama o judaísmo do período de Mateus de Judaísmo Formativo. 533 BANKS, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.241. 534 Cf. BORNKAMM, G., Jesus de Nazaré, p.167. 535 SALDARINI, A., Fariseus, escribas e saduceus, p.177.; cf. Também FLUSSER, D., Jesus, p.46. 143 J. Jeremias distingue os dois grupos: “os escribas são os mestres da teologia, que se formaram depois de anos de estudo; os fariseus, ao contrário, não são teólogos, e sim grupos de leigos piedosos.”536 Para ele, a citação de escribas e fariseus em 5,20 mostra uma estrutura tripartida no Sermão que está diretamente relacionada ao sentido do termo “justiça”: dos teólogos, dos leigos piedosos e dos discípulos de Jesus, considerando sua interpretação sobre os escribas e fariseus citada acima.537 Com efeito, após a introdução (5,3-19) e o enunciado do tema (5,20), a primeira parte do Sermão mostra a controvérsia entre Jesus e os teólogos sobre a interpretação da Escritura (as seis grandes antíteses de Mt 5,21-48: “Eu, porém, vos digo...”). Na segunda parte, á à justiça dos fariseus que Jesus se opõe e, efetivamente, a esmola, a observância das três horas de oração e o jejum caracterizam esses piedosos grupos de leigos (6,1-18). A última parte expõe a nova justiça dos discípulos de Jesus (6,19-7,27). O tema desta didaquê tripartida é, portanto, o comportamento cristão em oposição ao dos seus contemporâneos judeus.538 G. Bornkamm, no entanto, entende que o dito do v.20 usa os escribas e fariseus com exemplo, mas não são eles o alvo primário da perícope como um todo.539 Talvez a idéia fosse demarcar um exemplo negativo para assegurar o comportamento da comunidade. É o que aponta G. Barbaglio: No v.20, passa-se a determinar o comportamento subjetivo em relação à palavra normativa de Deus, revelada plenamente por Cristo. A práxis farisaica e rabínica resulta radicalmente inadequada. Os discípulos são chamados a uma obediência que, por extensão e intensidade, lhe seja superior. Trata-se de uma condição necessária para entrar no Reino da salvação final.540 Tudo indica que a exposição de Jesus tem como objetivo o comportamento dos discípulos, mas sem dúvida, da mesma forma, ao menos como Mateus organizou o Sermão, trata da forma como a comunidade irá contrapor as atitudes dos escribas e fariseus.541 Como visto acima, sempre que Jesus se posicionava em questões referentes à Lei, Mateus colocava num contexto de polêmica com os fariseus e escribas. 536 JEREMIAS, J., Estudos no Novo Testamento, p.99. BULTMANN define os escribas como “simultaneamente teólogos, educadores do povo e juristas.” Teologia do Novo Testamento, p.49 538 Idem, p.100. 539 BORNKAMM, G., op.cit., p.167. 540 BARBAGLIO, G., Os Evangelhos I, p.119. TRILLING acrescenta: “su autoridad entra en conflicto con la autoridad de la cadena de tradición rabínica y a la vez la substituye, porque es algo definitivo”. EL verdadeiro Israel, p.257. 541 CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.193. Ele comenta: “O objetivo de Jesus, completando e interpretando a vontade de Deus previamente revelada, é a justiça/retidão, a realização da vontade salvífica de Deus por seus seguidores (ver 3,15; 5,6.10). Esta obra está definida contra a dos escribas e fariseus.” 537 144 Também é possível encontrar os escribas e fariseus questionando as palavras e atitudes de Jesus, sempre de forma negativa.542 De acordo com a classificação de Berger,543 citamos abaixo o quadro das narrativas - somente em MT, seja a partir de Mc, da fonte Q, de fonte própria – consideradas controvérsias entre Jesus e os seus oponentes: Perícope Situação/tema Grupo antagônico 9,10-13 9,14-17 12,1-8 12,9-14 12,22-32 12,38-42 13,53-58 15,1-19 16,1-4 16,5-12 17, 24-27 19,1-12 21,14-17 21,23-27 22,15-22 Comer com os publicanos e “pecadores” A questão do jejum A questão de colher espigas no sábado A cura no sábado Jesus e belzebu A recusa do sinal O profeta em sua pátria A questão da pureza Outra vez a recusa de sinal O fermento dos grupos antagônicos O imposto do Templo A questão do divórcio A aclamação das crianças A autoridade de Jesus O imposto de César 22,23-33 22,34-40 22,41-46 Sobre a ressurreição O principal mandamento Sobre o filho de Davi Fariseus Discípulos de João Fariseus Fariseus Fariseus Escribas e Fariseus Povo de Nazaré Escribas e Fariseus Fariseus e Saduceus Fariseus e Saduceus Cobradores de Impostos Fariseus Sacerdotes e escribas Sacerdotes e anciãos Discípulos dos fariseus e Herodianos Saduceus Fariseu, Intérprete da Lei Fariseus O quadro544 nos mostra, de forma bastante clara, que o grupo ao qual Mt mais se refere são os fariseus545. Das 18 passagens selecionadas, eles são citados 12 vezes, sendo 2 vezes com os escribas (12,38-42; 15,1-19) e 2 vezes com os saduceus (16,1-4; 5-12). Em outra ocasião são citados com os herodianos (22,1522). O que aparentemente é um contra-senso histórico – a aliança entre os fariseus e seus rivais, os saduceus – é explicada por alguns como provável, considerando que ambos os grupos tenham se unido para enfrentar um adversário comum. Essa 542 MINCATO, R. “Os fariseus e Jesus: uma releitura”, p.52 et.seq. BERGER, K., Formas literárias do Novo Testamento, p.77-78. Ele amplia a classificação de DIBELIUS, Die Formgeschichte des Evangeliums, p.247. Um aspecto curioso levantado por Bultmann é que, segundo sua análise das controvérsias, os interlocutores dos diálogos de disputa originalmente não eram pessoas ou grupos definidos. Somente num estágio mais avançado, a tradição os caracterizou como fariseus ou escribas. BULTMANN, L’historie de la tradition synoptique, p.71. 544 Por motivos didáticos excluímos da lista relatos em que a controvérsia é interna, entre os próprios discípulos (como em 19,13-15; 20,20-28; 26,6-13), ou quando não estava bem definida a origem do questionamento (como em 12,46-50; 18,1-5; 19,16-30). 545 SALDARINI comenta que Mateus altera, em várias passagens, o grupo antagonista, de escribas para fariseus. As outras passagens onde isso acontece são: 9,34 e 12,24. Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense, p.173 passim. 543 145 união já aparece em João Batista (Mt 3,7-10), e também quando vão interpelar Jesus, não a respeito da Lei - assunto que gerava entre eles mesmos muita discrepância - , mas a respeito dos sinais de Jesus como Messias (16,1-12). Depois do fato, Jesus admoesta os discípulos sobre o fermento dos dois grupos: fariseus e saduceus.546 No tocante à relação “escribas e fariseus” não há muitos pontos de contato entre eles, a não ser no fato de ambos questionarem Jesus sobre aspectos da Lei e da prática. Mesmo assim, há muito mais citações para os fariseus do que para os escribas. A. Saldarini comenta que “normalmente os escribas são omitidos e os fariseus acrescentados nas passagens onde existe confronto com Jesus. Os fariseus são vistos por Mateus como opositores mais ativos de Jesus do que os escribas. Embora os escribas permaneçam como adversários, o papel deles é restrito, tanto como contestadores de Jesus, quanto como líderes de Jerusalém.”547 Em relação à disputa sobre a Lei com os fariseus, nos relatos de controvérsia, há um entendimento de que, em Mt 12,1-8, Cristo determina o centro de gravidade da Torá, indica o lugar do qual ela deve ser lida, e revela o sentido último que testemunha dele. A controvérsia surgiu como uma nova disputa confessional, não entre os judeu-cristãos helenistas e os conservadores, mas entre a comunidade de Mt contra o judaísmo farisaico. Ambos concordam com a validade da Lei, mas discordam quando se trata de sua interpretação, por causa da Lei. 548 Sobre Mt 12,9-14, F. Vouga aponta os temas dominantes são os mesmos da perícope anterior. Também aqui o problema é com a tradição sinagogal549. Mas F. Vouga entende que a polêmica contra a sinagoga não mais, segundo a redação de 546 CARTER, O Evangelho de São Mateus, p.135 et.seq.; SALDARINI, op.cit., p.179 et.seq., que também comenta: “Mateus usa os grupos principais do judaísmo – os fariseus e os saduceus – como símbolos de falsos mestres, em conflito com Jesus”. 547 SALDARINI, A., op.cit., p.176. 548 Cf. VOUGA, F., Jesus et la Loi, p.48. Também J. COMBLIN, “As linhas básicas do Evangelho segundo Mateus”. Ele afirma: “o Evangelho se opõe às tradições humanas dos escribas e fariseus, assim com à confusão que fazem entre lei divina e tradições humanas. (...) Dessa maneira, Mateus já ataca a maneira como os escribas e fariseus aplicam a Lei. Ele ataca também diretamente a concepção da Lei e de justiça que adotaram.” P.24 549 Sobre a sinagoga, W. CARTER faz uma interessante análise. Quando Mateus trata do episódio em que Herodes sabe do nascimento do Messias (2,1ss), ele afirma que foram “reunidos” [sunagagw.n] os sacerdotes e escribas. Carter comenta: “O verbo reuniu é a forma verbal de ‘sinagoga’, uma instituição da qual Jesus será distanciado (‘a sinagoga deles’, 4,23; 9,35; 12,9; 13,54; 23,34) e que receberá consistentemente má reputação (p.ex., 6,2.5; 10,17; 23,6) (...) Seu uso aqui representa a oposição da aliança a Deus e Jesus como os típicos mas condenados comportamentos dos centros de poder.”O Evangelho de São Mateus, p.113. 146 Mt, é um debate real. Antes, os opositores de Jesus pertencem a um judaísmo do qual os destinatários de Mt estão distantes, e aponta para um movimento judeucristão palestinense de língua aramaica, que testemunha a bondade de Deus, à margem ou contra a obediência farisaica da Lei.550 J. Roloff comenta que os escribas e fariseus conhecem “o centro inequívoco, da vontade de Deus na lei, qual seja, o mandamento do amor, esquivando-se, porém, do seu cumprimento.”551 Quanto aos escribas, Mateus é bem mais tolerante em relação a eles. É bem verdade que eles são apresentados, de um modo geral, como questionadores de Jesus (“E eis que alguns dos escribas diziam entre si: Ele blasfema.” 9,3). Mas Mt procura mostrar Jesus com muito mais prestígio junto ao povo do que os escribas (cf. o final do Sermão do Monte, “Porquanto os ensinava como tendo autoridade; e não como os escribas.”7,29). Provavelmente essa falta de autoridade dos escribas esteja em conexão com a advertência de Jesus em 23,3: “Todas as coisas, pois, que vos disserem que observeis, observai-as e fazei-as; mas não procedais em conformidade com as suas obras, porque dizem e não fazem”.552 A marca da tolerância de Mateus quanto aos escribas está na parábola do escriba, em Mt 13.52: “E ele disse-lhes: Por isso, todo o escriba instruído acerca do reino dos céus é semelhante a um pai de família, que tira do seu tesouro coisas novas e velhas.” Os discípulos de Jesus eram conclamados a serem como um escriba, interpretando a Lei, mas dentro do critério do reino dos Céus. Sobre isso Brown comenta: O argumento aqui mostra que nem toda a interpretação e aplicação estão erradas. Jesus e os discípulos se ocupam com elas. Estão erradas, no entanto, quando deixam de ressaltar o verdadeiro significado da lei, e quando substituem a palavra de Deus pela tradição humana.553 Na verdade, muito já se disse que o retrato descrito a respeito dos fariseus – bem com dos escribas – no evangelho é um tanto distorcido, anedótico até, para 550 VOUGA, F., Jesus et la Loi, p.63. ROLLOF, J., A Igreja no Novo Testamento, p.174. GNILKA, no entanto, lembra que mesmo os fariseus em si não formavam um grupo homogêneo, conf Também vimos anteriormente. Só para citar as mais importantes, no tempo de Jesus havia a escola de Hillel e a de Shammai, cada uma tentando estabelecer sua interpretação da Lei como a mais autêntica. Jesus de Nazaré, p.248. 552 Cf. SALDARINI, A., Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense, p.171 et.seq. Também CHARLES, que comenta: “Absurdly scrupulous in their tithing on mint, anise and cumin, which were used for medicinal as well as culinary purposes, Pharisees neglected the more “weighty” matters of social ethics—e.g., justice and mercy (23:23-24). The result was an ethical monstrosity in and of itself.”, “Do not Suppose that I come”, p.58 et.seq. 553 BROWN, “lu,w”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.1980. 551 147 reforçar a superioridade de Jesus frente aos seus adversários.554 Mesmo assim, é incorreto afirmar que o evangelho de Mateus seja anti-semita, apesar das severas críticas presentes em passagens exclusivas, especialmente o cap.23, usado por muitos como exemplo de anti-semitismo. Na verdade, o que está em jogo é autopreservação do grupo diante da oposição da sinagoga, e a fé em Jesus como o intérprete da Lei por excelência.555 Por isso, sempre vamos ter que relativizar o grau de oposição que eles realmente fizeram a Jesus.556 4.6.2. O sentido da justiça superior: perisseu,sh| u`mw/n h` dikaiosu,nh plei/on “Justiça” – heb. qdc, gr. dikaiosu,nh - é um termo que designa no AT uma relação conectiva: entre o jurídico e o salvífico; entre Deus e os homens. Aponta para uma conduta relacionada com a comunidade, de fidelidade a ela, regulamenta o relacionamento entre as pessoas, por isso tem estreita relação com a “misericórdia/amor” [dsx].557 No NT há diversos conceitos para “justiça”, todos vinculados ao sentido semita de relação, ação concreta, e não ao sentido grego de um ideal de virtude.558 Paulo foi quem mais tratou do assunto, numa perspectiva um pouco diferente daquela de Mateus.559 Mas depois de Paulo, Mateus é quem mais utiliza o termo. Na verdade, nos evangelhos, “justiça” [dikaiosu,nh] é um termo tipicamente mateano – aparece sete vezes em Mt (Mt 3,15; 5,6.10.20; 6,1.33; 21,32) e apenas 554 Mesmo considerando os aspectos apontados por FLUSSER, Jesus, p.44 et.seq., sobre a rejeição que os fariseus sofriam por parte de diversos grupos judaicos, conf. capítulo 1. 555 Cf. a análise de HAGNER, D., “Matthew: Apostate, Reformer, Revolutionary?, p.206 et.seq. Também CARTER, W., O Evangelho de Jesus, p.54 passim. Ele comenta: “Crucial para compreender a comunidade (grandemente) judaica de Mateus comprometida com Jesus, é o reconhecimento de estar envolvida numa luta local no interior de uma sinagoga por seu lugar em uma tradição comum. (...) A audiência de Mateus é dessa forma uma grupo judeu em tensão com a comunidade da sinagoga ainda configurada por e comprometida com as tradições judaicas comuns.” P.63. 556 J. GNILKA Também faz essa advertência. Jesus de Nazaré, p.265 ets.seq. 557 OTTO, “Justiça (AT)”, Dic Bib Teo, p.222 et.seq. 558 KERTELGE, “Justiça (NT)”, Dic Bib Teo, p.224. 559 Essa diferença foi analisada, por ex, por ZUMSTEIN. Ele levanta a questão, que muitos também relacionam, de que conceito de justiça em Mateus e Paulo é diferente. Enquanto para este, a justiça se apresenta na forma como Deus justifica o pecador, que a recebe pela fé, Mateus indica que o crente, ao cumprir a Lei, pode aspirar à justiça, cujo caminho foi apontado por Jesus no Sermão do Monte. Mateus o Teólogo, p.43. Ver Também a discussão levantada por BARTH, “Matthew’s understanding of the Law”, p.159 et.seq. 148 uma vez nos outros sinópticos (Lc 1,75).560 É um tema central no Sermão do Monte, pois aparece ali cinco vezes.561 Quanto ao sentido de “justiça” para a compreensão de 5,17-20, Carter comenta que há várias maneiras de interpretá-lo562. Analisando o termo, porém, entende que a melhor maneira de compreender a “justiça” – ele denomina “justiça/retidão” - leva em conta que Deus age como justo ao agir em conformidade com a Aliança na qual se comprometeu de salvar o povo (cf. 51,14; 65,5; Is 46,13; 51,5-8). Em contrapartida, o povo de Deus é justo na medida em que se mantém fiel às exigências da aliança. Ou seja, para haver justiça plena, é preciso haver o agir de Deus de forma salvífica, ao mesmo tempo em que os homens cumprem suas exigências.563 Isso se dá, de forma especial, no relato do batismo de Jesus, e esse seria o sentido de “cumprir toda a justiça” de 3,15.564 Com esse ato, Jesus se tornou o “modelo e fundamento possibilitador”565 de uma justiça superior. O texto de 21,32 tem relação com 3,15. Nele, Jesus afirma que “João veio a vós no caminho da justiça”, numa disputa a respeito de sua autoridade com os “príncipes dos sacerdotes e os anciãos do povo” (cf. v.23). Aqui “justiça” representa a obediência de João ao mandato de Deus e sua pregação pelo arrependimento, e a qual meretrizes e publicanos aderiram.566 De um modo geral, Mt usa o termo “justo” para quem vive e age de acordo com a vontade de Deus, e o agrada. Isso está relacionado aos justos e profetas do AT (em 13,17 e 23,29.35), como para pessoas contemporâneas a Jesus (como 560 Cf, BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.138 et.seq. MARTIN, B.L., “Matthew on Christ and the Law”, p.60. 562 CARTER, W., op.cit., p.143. “(1) Alguns argumentam que o termo sempre se refere à atividade salvífica de Deus. (2) Alguns sugerem que sempre se refere a homens realizando a exigência de Deus. (3) Outros sugerem que ambos os elementos estão presentes: dom divino e ação humana. (4) Ainda outros argumentam que os usos são inconsistentes e necessitam ser determinados caso por caso”. G. BARBAGLIO entende que “justiça”, “no primeiro evangelho, quer dizer fidelidade nova e radical à vontade de Deus.” Os Evangelhos (1), p.91; Cf. PARISI, S. “Mt 5,17-20: giustizia superiore e fede ‘estroversa’.” P.57 et.seq; TRILLING, W. El verdadeiro Israel, p. 263 et.seq.; BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.139 et.seq.; TASKER, R.V.G. Matthew: An Introduccion and Commentary, p.67 et.seq. 563 Cf. BULTMANN. R., Teologia do Novo Testamento, p.49. 564 CARTER. W., O Evangelho de São Mateus, p.143; MARGUERAT, D. Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.136 et.seq.; BORNKAMM, G., “End-Expectation and Church in Matthew”, p.36 et.seq. Nesse texto ele afirma a necessidade do Messias cumprir a plena vontade de Deus na terra, desde que foi proclamado como “Filho de Deus”; G. BARTH acrescenta a idéia de “dom escatológico” para a justiça cumprida por Jesus, e como apontado acima, se deu pela sua humilhação de se colocar no mesmo nível dos pecadores. “Matthew’s understanding of the Law”, p.140. 565 ROLOFF, J., A Igreja no Novo Testamento, p.175. 566 Cf. MARGUERAT, D. Le jugement, p.292 passim. 561 149 José, em1,19), e ainda para os fiéis escatológicos, que seguiram a Jesus e se apresentarão a ele no fim (25,37.46).567 Por outro lado, pode-se pensar que a ética exigida a partir da justiça é inteiramente encarada a partir da perspectiva do juízo. Quando a justiça humana está vinculada à vontade divina, sanciona o juízo de Deus.568 Nesse último sentido esta a importância do substantivo “justiça”, pois para entrar no reino dos Céus, é preciso ter a “justiça superior”569, que supera a dos escribas e fariseus. É onde o Sermão do Monte demonstra ter um centro temático: a prática de uma justiça que exceda qualquer outra, que não seja baseada nos ensinos de Jesus.570 Como Bornkamm comenta: Isto se torna claro justamente nas antíteses do Sermão da Montanha. Nelas, a exigência de Deus se torna extremamente simples. (...) “...as antíteses mostram que Jesus já considerou a mentalidade como ação; ela têm por objetivo a obediência até à ação concreta: ‘Quem ouvir estas minhas palavras e as puser em prática...!’.571 Assim, o v.20 aprofunda o apelo à obediência total. Mas de forma polêmica, pois a justiça exigida é a total obediência à Lei, conf. demonstrado nos v.17-19. A originalidade de Mt, para Zumstein, está no “comportamento de acordo com a vontade de Deus que abre as portas da salvação. A ética torna-se a única via que conduz à aprovação divina.”572 Sobre isso Overman comenta: Em nenhum ponto o comportamento e a resposta dos membros da comunidade de Mateus recebem mais atenção e ênfase do que no Sermão da Montanha. Aqui, Mateus dá destaque aos “testes de “comportamento” para falsos profetas da comunidade (7,15-23). A noção distintiva em Mateus de “conhecer alguém por seus frutos” é uma maneira pela qual enfatiza repetidamente certos comportamentos e ações para o verdadeiro seguidor de Jesus. A parábola dos construtores sensato e insensato também destaca a conexão entre ouvir e fazer 567 KERTELGE, “Justiça (NT)”, Dic Bib Teo, p.225. MARGUERAT, D., Le jugement, p.138. Ele complementa: “La justice n’est pas envisageane en dehors de la Torah, une justice ‘meilleure’ que celle des scribes et pharisiens encore moins qu’une autre.” P.138 et.seq. 569 Cf. MAZZAROLO, I., Evangelho de São Mateus, p.87; Outras possibilidades: “Justiça melhor”, BORNKAMM, Jesus de Nazaré, p.175; “Justiça/retidão superior”, CARTER, O Evangelho de São Mateus, p.193; “Obediência/observância”, BARBAGLIO, G., Os Evangelhos I, p.118; “Fidelidade”, CAMACHO e MATEUS, O Evangelho de Mateus, p.64., 570 Cf. BORNKAMM, G.,Jesus de Nazaré, p.175 et.seq. 571 Ibid., p.178 et.seq. THEISSEN analisa que essa prática, de renúncia à violência e amor ao próximo “não se fundamentam no relacionamento com Deus, mas também no relacionamento com outras pessoas. Inegavelmente, o distinguir-se de outros grupos é um importante impulso para a concretização dessa exigências.” Sociologia da cristandade primitiva, p.103. 572 ZUMSTEIN, J., Mateus o Teólogo, p.42. Banks afirma que o sentido da justiça deve ser entendido em termos de “conduta” e do modo como é utilizada, e por isso fica melhor no sentido quantitativo do que qualitativo. Esse sentido é enfatizado tanto no v.19 quanto nas perícopes das antíteses (21-48), bem como é a perspectiva geral do Sermão do Monte. BANKS: “Matthew’s understanding of the Law”, p.242 568 150 (7,24ss). (...) Quando Mateus fala em justiça no Sermão da Montanha, ele se refere ao comportamento e às ações esperados dos membros da comunidade.573 E qual é o agir esperado? É um agir a partir da exigência de uma justiça absolutamente nova, que exceda em muito a justiça dos escribas e fariseus, e por isso seja mais perfeita.574 O dito apresenta o verbo perisseu,w, que significa “abundar”, “ser a mais”, “sobrar”.575 É um verbo muito utilizado na linguagem paulina,576 mas que Mt também usa algumas vezes: duas vezes com sentido de advertência para os discípulos (Mt 13,12; Mt 25,29) e uma vez como crítica aos fariseus (12,34). Também aparece nas duas narrativas da multiplicação dos pães, em 14,20 e 15,37, ao descrever a abundância de alimentos, mesmo após a partilha. O dito de 13,12 fala sobre dar e tirar, inserido dentro da explicação sobre a parábola do semeador: “Porque àquele que tem, se dará, e terá em abundância; mas àquele que não tem, até aquilo que tem lhe será tirado.” Vem de Marcos, e aponta para o perigo da pessoa conhecer os mistérios do reino e não corresponder a eles. Da mesma forma, em 25,29, em outra parábola (dos talentos) Jesus adverte sobre “enterrar” o dom entregue a cada um: “Porque a qualquer que tiver será dado, e terá em abundância; mas ao que não tiver até o que tem ser-lhe-á tirado.”; pode se referir àqueles que ouviram o Evangelho e não o tomaram com convicção, antes se fecharam à sua proposta.577 Nos dois ditos, o resultado de quem acolheu e viveu é a abundância [perisseuqh,setai]. Quem não o fez, perderá até o que não tem (seria uma falsa justiça?). Já o dito de 12,34 é uma severa crítica dirigida aos fariseus: “Raça de víboras, como podeis vós dizer boas coisas, sendo maus? Pois do que há em abundância no coração, disso fala a boca.” Está inserido numa perícope de Q578, mas é material exclusivo de Mateus, pois essa afirmação não consta da paralela. Ao mesmo tempo, Nestlé-Aland aponta que é paralela de Mt 7,15-20, uma palavra dirigida aos discípulos, advertindo-os dos “falsos profetas” [yeudoprofhtw/n], que não dão bons frutos.579 O verso seguinte dessa perícope é muito revelador: “Nem 573 OVERMAN, A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.98. LAGRANGE, M. Évangile selon Saint Matthieu, p.96. 575 RUSCONI, C. “perisseu,w”, Dicionário do grego do NT, p.370. 576 Cerca de 25 vezes, em várias formas verbais, como em Fp 1,9.26; 1 Co 14,12; 2 Co 8,7s; 9,8; 15,58; Cl 2,7; etc. 577 Cf. MAZZAROLO, Evangelho de Mateus, p.203; CARTER, O Evangelho de São Mateus, p.365. 578 Paralelo em Lc 6,43-45. 579 NESTLÉ-ALAND, Synopsis of the Four Gospels, p.62. 574 151 todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus.” (7,21), pois aponta claramente o critério para entrar no reino dos Céus: seguir ao Senhor e praticar seus mandamentos. E aqui retornamos ao princípio de 5,20. Em 5,20, o adjetivo plei/on - “cheio”, “numeroso” – se junta a perisseu,sh, dando a este uma intensidade afirmativa, por isso se traduz “exceder em muito”.580 É essa expressão que vai determinar a medida da justiça que os discípulos terão que praticar: superior a dos grupos contemporâneos que se arrogam como intérpretes da Lei.581 Jesus valorizou as exigências do Decálogo, mas propõe uma vivência nova, com uma ótica renovada; as antíteses demonstram como ele tratou da essência da Lei que deveria ser praticada.582 Sem isso há um enfático “de modo nenhum” [ouv mh.] que aponta para a impossibilidade de se entrar no reino dos Céus.583 Mas, como analisou L. Goppelt, não é um mero acumular de atos isolados de justiça que darão esse resultado, que é o motivo de fracasso dos fariseus, segundo Mt. “Trata-se de uma total dedicação a Deus e ao próximo, dedicação essa que determina inteiramente o relacionamento entre ambos.”584 Essa exigência, vinda do próprio Jesus, foi acolhida por Mateus de maneira irresoluta, e certamente dirigida vida de sua comunidade.585 Considerando o que apontamos aqui, não é de se admirar que o ensino sobre a justiça superior tenha, em sua essência, uma idéia escatológica. Ou seja, a recompensa pela fidelidade aos ensinos de Jesus não se dará nesse mundo, mas no 580 RUSCONI, C., “perisseu,w”, “plei/oj”, Dicionário do Grego do Novo Testamento, p.370, 376; RIENECKER, Chave Lingüística do NT Grego, p.10 581 TRILLING, W., EL verdadeiro Israel, p.264. 582 PARISI, S. “Mt 5,17-20: giustizia superiore e fede ‘estroversa’.” P.54. F. V. FILSON acrescenta: “The gospel brings mercy, comfort, and divine help, but it does not cancel the demand of God for faithful and complete obedience to his will. A commentarya on the Gospel according to St. Matthew, p.84. 583 Cf. JEREMIAS, J., Estudos no Novo Testamento, p.100; Também STANTON, A Gospel for a new People, p.322.; 584 GOPPELT, Teologia do Novo Testamento, p.457. Paralelamente, Lucas trabalha esse tema na Parábola do “Bom” Samaritano (Lc 10,30-37), a qual aponta para o verdadeiro cumprimento do amor ao próximo: servir a qualquer pessoa necessitada de uma ajuda concreta. Não importa quem o faça, será esse que demonstrará amor ao próximo. Em Mateus o samaritano estaria cumprindo a justiça superior. 585 Cf. KÜMMEL, Síntese Teológica do Novo Testamento, p.165. Ele comenta: “houve pelo menos círculos na comunidade primitiva que praticavam uma adesão conseqüente à observância tradicional das leis, exigindo comportamento semelhante de todos os adeptos do Cristo ressurrecto.” Podemos pensar que a comunidade de Mateus é herdeira ou foi formada a partir desse “setores”. Cf. STANTON, A Gospel for a new people, p.50. 152 reino dos Céus. O final do Sermão do Monte ilustra a exigência de Jesus em forma de advertência para a comunidade. Na perícope de 7,21-23, consta o seguinte: “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus.” (v.21) Há uma relação direta entre o agir segundo a vontade de Deus e o entrar no reino dos Céus. Segundo a perícope, o que determina a entrada é a prática do amor, que não é citado textualmente, mas está subjacente ao tema, tendo em vista, que elementos como a prática do exorcismo, da profecia e da realização de milagres não qualificam ninguém como tendo feito a vontade de Deus.586 É a respeito da comunidade, em última análise, que pairam as principais advertências do texto de 5,17-20. Sua prática deve ser de tal modo no mundo que brilhe intensamente (5,16) e seja reconhecida por todos como prática da justiça.587 No final do evangelho de Mateus (28, 19-20), como proposta de continuidade, está de novo a dupla exigência de praticar e ensinar. A obediência exigida aos discípulos é também estendida a todos os que aderirem à fé pelo batismo, os quais serão ensinados de acordo com a orientação do mestre. Ele por sua vez, continuará presente na Igreja, seja pela sua pessoa, seja pelos seus ensinos sendo vivenciados pela comunidade.588 Sobre isso, J. Roloff comenta: “A dimensão escatológica da igreja, o seu pertencimento ao reino dos céus, manifesta-se visivelmente diante do mundo na sua prática da vontade de Deus.”589 De forma escatológica a Igreja, hoje, manifesta a justiça superior, em busca da perfeição, como Jesus solicitou: “Sede vós pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus.” (5,48). Assim, pode-se dizer que “justiça e perfeição são dois aspectos da mesma coisa”.590 Ou seja, assumindo na vida a ética do amor que Jesus ensinou e praticou. 586 MAZZAROLO, I., Evangelho de Mateus, p.123. Sobre a justiça comenta: “Os que procedem sem lei é porque fabricam e agem segundo suas leis próprias, alteram a ética e a justiça para obter ganhos da iniqüidade (Is 10,1-2; Mq 3,1-3).” Também BARBAGLIO, G. Os Evangelhos (1), p143 et.seq. completa, a respeito do amor: “Não o carisma, mas o amor é a sua verdadeira carteira de identidade, que será reconhecida pelo Senhor como condição para o ingresso no Reino.” P.144. 587 Cf. MALDONADO, J. Comentario a los cuatro evangelios, p.247. 588 Cf. BARBAGLIO, 418 et. seq. 589 ROLOFF, A Igreja no Novo Testamento, p.175; cf. Também BARTH. “Matthew´s understanding of the Law”, p.150. P. BONNARD afirma sobre a escatologia presente na exigência de Jesus: “c’est dasn cette atmosphère de joie eschatologique et de fidélité miraculeuse qu’il faut replacer cer versets et ceux qui suivent (21-48). L’Évangile selon saint Matthieu, p.62. 590 GOPPELT, Teologia do Novo Testamento, p.456. Ou, no dizer de GNILKA: “a suma da ética de Jesus é o amor.” Jesus de Nazaré, p.223. 153 5. Conclusão Jesus é a personalidade mais importante da história ocidental, mesmo para quem não é cristão confesso ou teólogo. Mesmo assim, sua relação com seu ambiente judaico é algo estudado com profundidade há apenas algumas décadas. Os estudos levados a efeito desde o início do século vinte, no entanto, possibilitaram uma maior compreensão da mensagem de Jesus em seu próprio contexto sócio-cultural. O principal aspecto para que se pudesse ampliar tal conhecimento foi o estudo de textos judaicos contemporâneos a Jesus, e a análise da estrutura social de seu tempo. História e análise social caminhando juntas para tentar completar o quadro que os evangelhos canônicos apenas apontam. Nesse sentido a presente pesquisa procurou perceber qual é a relação de Jesus com a Lei e os Profetas, e como a atitude dele foi compreendida e vivenciada pela comunidade de Mateus, que tem profundas raízes no Judaísmo. Havia na pesquisa, então, alguns aspectos fundamentais que precisavam ser discutidos: a compreensão geral sobre a Lei e os Profetas entre os judeus do primeiro século; e a compreensão particular de Jesus sobre o assunto. Para realizar a tarefa foi destacada a perícope de Mt 5,17-20, dentro do conjunto dos evangelhos sinóticos, como sendo a que melhor representava essa relação e expressava tanto o pensamento de Jesus como a resposta da comunidade às exigências feitas por ele, em seu próprio Sitz im Leben. O estudo do evangelho de Mateus tem demonstrado que ele é, ao mesmo tempo, um texto cristão, com conteúdo eclesiástico bastante marcante e até exclusivo (o único evangelho que usa o termo “igreja” [evkklhsi,a]), e um texto próximo da cultura judaica, por diversos aspectos, dentre eles o apoio incondicional à Lei e o uso do ensino de Jesus de forma bastante próxima dos mestres judeus. A comunidade de Mateus 154 era composta de cristãos-judeus que seguiam a Jesus, mas desejavam manter-se fiéis às raízes judaicas as quais estavam ligados, seja na Antioquia ou na Galiléia. Ao mesmo tempo, a comunidade de Mateus vivia a crise da destruição do templo (70 d.C.), e o antagonismo de outros grupos, os quais desejavam fortalecer a identidade de seu grupo nesse ambiente. Assim, é provável que o evangelho de Mateus tenha surgido como resposta documental para setores internos – pessoas que não concordavam com o estilo judaico da comunidade – e externos – os grupos judeus antagônicos. Para que essa resposta fosse convincente e forte o suficiente, era necessário que fosse fundamentada nos ensinos do próprio Jesus, o líder por excelência do grupo. Quanto aos grupos antagônicos, os mais citados no evangelho são os fariseus e os escribas, dois grupos que se fortaleceram após o declínio do grupo sacerdotal, por conta da destruição do templo. Mas eram grupos polêmicos, criticados não só por Jesus (e ainda mais por Mateus), como também por outros grupos contemporâneos, que nada tem a ver com a propaganda protocristã do primeiro século. A análise da perícope de Mt 5,17-20 levou em conta essas premissas gerais, e metodologicamente, utilizou várias abordagens, que se concatenam no corpo da própria pesquisa. Como metodologia para a exegese, foram utilizados principalmente o método histórico-crítico, que ajudaram a perceber como o dito foi construído redacionalmente na forma como se apresenta na perícope. Ficou patente que os v.18-19 formam uma unidade interna aos v.17,20, que se tornam uma moldura. Quanto à dependência nessa estrutura, no entanto, tanto se pode afirmar a primazia de 17,20 como ditos mais antigos, quanto o contrário. A partir dessa análise percebemos que, apesar da exclusividade do dito em Mateus, e de sua mão redacional claramente verificável, a perícope é uma junção de tradições antigas que vem de fonte exclusiva (M) na maior parte, e da fonte comum a Lucas (Q) no caso do versículo 18. Por outro lado, ficou claro que essa perícope não está isolada no todo do evangelho, mas forma um conjunto com sentido e objetivo coerente. Do ponto de vista contextual, de fato, introduz a seção seguinte do Sermão do Monte, onde são colocadas as antíteses (5,21-48), e mais adiante as normas de comportamento da comunidade (6,1-7,12). É possível estabelecer, assim, uma relação temática entre o v.17, com 5,21-48 (o pleno cumprimento da Lei), e o v.20 com 6,1-7,12 155 (praticar a justiça superior). Como confirmação de ambos os motivos, a declaração de que a Lei continuará valendo (v.18), e que ensinar e praticar essa Lei seria a condição para entrar no reino dos Céus (v.19). As principais questões que se colocaram frente ao tema e ao texto tem a ver com a autenticidade do dito, o fundamento judaico do dito, e se o conteúdo dele é escatológico ou não. Quanto à autenticidade, há uma corrente que a questiona e outra que a defende. Para os que a questionam, o princípio é simples: Jesus não foi um questionador ferrenho do Antigo Testamento e da cultura judaica, e a comunidade faz afirmações como sendo de Jesus que intensificam essa relação. Para que possa sobreviver, a comunidade coloca na boca de Jesus a defesa da Lei, coisa que o próprio Jesus nunca fez (Bultmann). Mesmo assim, essa corrente concorda que Jesus de fato teve papel de escriba, e como tal, teve autoridade para interpretar as leis à medida que julgava necessário (Bornkamm). Mas é possível que o grupo antagônico fosse de “dentro” e não de “fora”. Ou seja, alguns afirmam que o embate se dava no interior da comunidade, na discussão sobre seguir ou não a Lei. Assim, a perícope aponta para um grupo conservador dentro da própria comunidade de Mateus (Barth, Fabris, Gnilka, e outros). A corrente que defende a autenticidade segue uma linha de raciocínio a partir da análise literária em si. Para ela, o dito expressa uma base aramaica que demonstra a autoridade de Jesus e tinha correlação com ditos comuns da Galiléia contemporânea a Jesus (J.Jeremias). Para outros, no entanto, em oposição à corrente que não aceita o dito como autêntico, faltam provas que possam afirmar veementemente que ele é inautêntico (Kümmel). E por esse motivo interpretam o dito como autêntico, considerando como mais importante o sentido que ele tem, do que a discussão sobre a autenticidade em si. Para esses, o sentido do dito é o fato que Jesus rompe com tradições consideradas infiéis à Lei, por conta da casuística da tradição dos anciãos. A comunidade teria resgatado tradições sobre Jesus e a Lei que em geral foram ignoradas (Banks, Mateos e Camacho, Ladd, Martin). Por isso, alguns chegam a ter uma certa imparcialidade sobre o assunto (Theissen, Stanton, Carter). De um modo geral, o que essa corrente defende é que o fato do dito ser exclusivo de Mateus não significa automaticamente que não possa ser autêntico. 156 Por isso foi necessário fazer uso da criteriologia proposta pela third quest, a terceira onda de pesquisas a respeito do Jesus Histórico. Essa criteriologia é também passível de análise crítica, mas foi adequada para a presente pesquisa. Para o estudo da perícope de Mt 5,17-20 se leva em conta o fato de Jesus ter realmente utilizado o ensino como a principal forma de proclamar a mensagem, mesmo que não a tenha colocado por escrito ou sistematizado. Foram utilizados os critérios da Múltipla Atestação, da Plausibilidade Histórica, do Constrangimento, da Rejeição e da Execução e o Critério do Estilo de Jesus. Seguindo esses passos, chegou-se à conclusão que há fortes indícios para considerar o dito como autêntico. Os principais motivos foram: a estreita relação com seu mundo judaico, o estilo do dito, que aponta para categorias aramaicas, e o fato de que a Igreja não seguiu essa postura de fato, ou seja, foi exclusiva de Jesus. No tocante ao substrato judaico do dito, duas abordagens ajudaram a compreender a relação de Jesus com a Lei e suas exigências para seus seguidores. Por um lado, a análise temática a respeito do assunto permitiu verificar que não é possível pensar Jesus fora de seu contexto sócio-cultural. Ele foi realmente um judeu observante da Torá, manteve os costumes de seu povo e tinha uma piedade baseada nas antigas tradições israelitas. No entanto, Jesus teve autoridade, como profeta, como mestre, e como intérprete da Lei, que o qualificou a interpretar os preceitos que contrariavam premissas fundamentais da vontade de Deus. Aliás, foi na busca por cumprir a vontade de Deus que Jesus cumpriu a Lei. Não como um fim em si mesmo, mas como um princípio para a vida. Considerando esse sentido, ficou constatado que Jesus questionou certas interpretações por parte de grupos judeus contemporâneos, especialmente os escribas e os fariseus. Questões como o Sábado e a pureza levítica, interpretados casuisticamente, foram revistos por Jesus, que se colocou acima de tradições humanas. Por outro lado, certos preceitos do Decálogo, que permitiam violência ou eram vagos nas implicações práticas, foram intensificados por ele. Jesus proibiu a vingança, além de outras atitudes que tornavam o próximo objeto do desejo egoísta daqueles que tentavam distorcer a Lei. A conclusão coerente a que se chega é que Jesus levou o cumprimento da Lei ao nível de uma ética inigualável para seu tempo. A ética do amor a Deus e ao próximo como pleno cumprimento da vontade de Deus (cf. Mt 22,34-40). 157 A outra maneira como foi percebido esse substrato judaico se deu pela análise semântica dos ditos, agora partindo da premissa que são autênticos. Jesus utiliza expressões de forte cunho messiânico (o “Vegw,” enfático), que marcaram muitas das suas falas. A idéia do cumprimento é muito mateana, mas é atestada paralelamente em textos rabínicos que, de alguma forma, polemizam não com Mateus, mas com Jesus591. O termo grego plerw/sai - “cumprir” - demonstra que há vários sentidos que podem ser aplicados ao dito, mas o principal deles é o cumprimento da vontade salvífica de Deus, que aponta para a Lei não como fim em si mesma, mas orientadora para uma prática voltada para o amor. Outro termo que auxiliou na percepção da raiz judaica é o avmh.n, considerado por alguns como a verdadeira voz de Jesus nos evangelhos (J.Jeremias). O termo tem dois aspectos de importância para a nossa pesquisa. (1) Evidencia a autoridade de Jesus frente à comunidade, como mestre verdadeiro, cujo ensinamento devia ser seguido de forma absoluta. (2) Aponta o respeito por tradições de ditos que tivessem início com esse termo, mantendo a afirmação na língua original, apenas transliterando para o grego. Por fim, o termo “justiça” - dikaiosu,nh - tem em Mateus relação de significação com o qdc do Antigo Testamento, ao contrário de uma idéia helênica de justiça. Jesus afirmou a justiça dentro do imaginário judaico, o qual se refere às atitudes concretas que uma pessoa irá realizar a partir da instrução (Torá) que terá recebido. O conceito helênico trata do termo a partir de um ideal, ao contrário do dito de Jesus. Isso é relevante pelo fato de se perceber que a perícope de Mt 5,1720 não trata de um ideal a ser alcançado, como foi interpretado no passado, mas de uma prática vivencial concreta, que deve ser regida pelo princípio do amor. Esses três termos em particular são indícios de que há um substrato aramaico ao texto, o que pode significar duas coisas: ou a comunidade de Mateus tem suas bases na língua aramaica, ou a maior parte do material de ditos de Mateus vem do próprio Jesus. Nesse segundo caso, o que se percebe é a busca da comunidade em manter-se fiel ao projeto original de Jesus, que é uma releitura da forma como a Lei estava sendo interpretada e vivenciada. Mas, qual é o fim da fidelidade à Lei, e até quando irá durar sua validade? Essas perguntas, que 591 Como o caso do Shabbat 116a, citado no capítulo 3, que diz, em tom irônico: “Eu não vim para tirar algo da lei de Moisés Antes vim para acrescentar à lei de Moisés”. 158 provavelmente surgiram na vivência da comunidade, são respondidas de uma maneira que dá margem à compreensão do dito como sendo escatológico. Essa é a terceira grande questão de nossa pesquisa. A perícope deve ser entendida como escatológica no seu todo, ou apenas em partes? Ou ainda, ela tem elementos escatológicos de fato ou não? Tratar da perspectiva escatológica, conquanto não seja o centro da discussão nesse caso, é importante para entender especialmente dois trechos: “até que passem o céu e a terra”, e “não entrarão no reino dos Céus”, além da idéia de “pequeno” e “grande” no reino. Considerando que Jesus compartilhou com seus contemporâneos o conceito básico de escatologia, vinculado a antigas tradições proféticas, teremos sumariamente a idéia de uma referência a um tempo futuro, que superará a situação atual. Ou seja, se deve pensar em termos de uma descontinuidade histórica, entre o agora e o futuro, como algo que só poderia ser realizado por Deus. Ao mesmo tempo, Jesus lidou com o novo conceito popular de apocalíptica, em que o futuro chega para encerrar a presente ordem, instaurando uma ordem transcendente e divina. Nossa pesquisa verificou que o dito de Mateus tem realmente um cunho escatológico, somado a uma característica de hipérbole, própria do ensino de Jesus. A escatologia no dito tem por objetivo alertar a comunidade, fazê-la vigilante na observância da Lei, de acordo com os ensinos de Jesus, que deveriam ser repassados e praticados continuamente. Ditos similares em Mateus (por exemplo, em 13,12 ou 25,29) colocam o ensino numa perspectiva de futuro, a partir da prática da justiça superior, realizada no cotidiano, mas com vistas a algo maior, transcendente, o reino dos Céus. Ou, como se percebe na literatura apocalíptica judaica anterior a Jesus, a observância da Lei no tempo presente garante a participação no reino futuro. Por isso a prática da Lei não pode ser confundida com atos isolados de justiça contados de forma linear, mas de uma dedicação completa ao cumprimento da vontade salvífica de Deus, da mesma forma que Jesus. Essa justiça superior – em relação às demais interpretações da Lei, opostas a de Jesus – tem na lei do amor o máximo de seu cumprimento. Essa idéia do amor como cumprimento pleno da Lei está indicada tanto na base judaica da pesquisa quanto em sua base escatológica. É a expressão visível da perfeição divina, que só pode ser realizada pela comunidade de seguidores de Jesus. 159 Assim, nossa pesquisa aponta para o fato de que a relação entre Jesus e a Lei está centrada na ética do amor, e nas exigências concretas que essa ética pressupõe. Para Jesus, significou vivenciar o amor de forma intensa, responder por ele, responsabilizar-se pelo próximo, mesmo que este seja incapaz de corresponder. E fez isso até a morte, não de forma isolada, mas como ápice de sua entrega pelo próximo, pois sua vida o impeliu a isso. Cumpriu toda a Lei, e assim cumpriu toda a vontade salvífica de Deus. Para a comunidade de Mateus, representou perseverança na perseguição, solidariedade para com os aflitos que também se sentiam desprotegidos e incapazes de praticar a justiça. Não sabemos ao certo o que aconteceu com a comunidade de Mateus, se foi absorvida pelas comunidades gentílicas no processo de construir uma igreja “católica”, ou se simplesmente se isolou em seu projeto de um “novo” Israel, a ponto de deixar de existir como grandeza comunitária. Mas o fato é que a firmeza doutrinária pela qual a comunidade vivia deve servir de exemplo para as comunidades cristãs atuais. Se há um acento teológico que deve ser trazido para nossa prática hoje é a convicção de ensinar e praticar – grandezas que devem existir unidas, e nunca separadas – a Lei segundo a interpretação de Jesus. O ensino sem a prática é igual ao farisaísmo condenado em Mt 23,2-3; a prática sem o ensino será como não plantar quando se tem a semente à mão: em pouco tempo esta deixará de existir. Mas, sem dúvida, a grande prática cotidiana que é exigida por Jesus tem a ver com a ética do amor. É ela que deve orientar cada atitude e todo o ensino que o seguidor de Jesus deseja realizar. Qual um escriba, iniciado no reino dos Céus, é o discípulo de Jesus, o qual analisa sempre o que é “novo” e o que é “velho”, mediante o ensino do amor. 160 6. Referências bibliográficas 1. Obras gerais e comentários BACON, B.W. “The Five Books of Matthew Against the Jews”, The Expositor, VIII, 85, [S.I.:s.n.], 1918. BAILLIE, D. M. Deus estava em Cristo. Ensaio sobre a Encarnação e a Expiação. Trad. de Jaci Maraschin. 2ª ed. São Paulo: ASTE – JUERP, 1983. BALCH, D. “The Greek Political Topos peri no,mwn and Matthew 5:17,19 and 16:19”. In Social History of the Matthean Community: CrossDisciplinary Approaches. Ed. D. Balch. Minneapolis: Augsburg Fortress, 1991. 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