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Marcelo da Silva Carneiro
Jesus, a Torá e os Nebîim, e o pleno cumprimento da
justiça em Mt 5,17-20: uma análise exegético-teológica.
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Teologia da PUC-Rio como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em
Teologia.
Orientador: Prof. Isidoro Mazzarolo
Rio de Janeiro
Janeiro de 2008
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Marcelo da Silva Carneiro
Jesus, a Torá e os Nebîim, e o pleno cumprimento da
justiça em Mt 5,17-20: uma análise exegético-teológica.
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Teologia da PUC-Rio como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em
Teologia.
Aprovada pela Comissão Examinadora aba
Orientador: Prof. Isidoro Mazzarolo
Rio de Janeiro
Janeiro de 2008
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do
orientador e da universidade.
Marcelo da Silva Carneiro
Graduou-se em Teologia pelo Instituto Metodista Bennett
em 1998. Fez Especialização em Teologia na mesma
instituição, em 2002. Como pastor Metodista, trabalhou
em vários projetos de Educação com crianças,
adolescentes, jovens e adultos, preferindo o ensino na
área bíblica. Iniciou sua pesquisa lecionando como
professor substituto na Faculdade de Teologia Bennett.
Efetivado, especializou-se na área do Novo Testamento.
Atualmente é coordenador acadêmico do curso, além de
professor.
Ficha Catalográfica
Carneiro, Marcelo da Silva
Jesus, a Tora e os Nebîim, e o pleno cumprimento
da justiça em Mt 5, 17-20: uma análise exegéticoteológica / Marcelo da Silva Carneiro ; orientador:
Isidoro Mazzarolo. – 2008.
170 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Teologia)–Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2008.
Inclui bibliografia
1. Teologia – Teses. 2. Jesus histórico. 3.
Evangelho de Mateus. 4. Sermão do Monte. 5. Lei e
profetas. 6. Justiça. 7. Escribas e fariseus. 8.
Escatologia. I. Mazzarolo, Isidoro. II.
Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Teologia. III. Título.
4
À Mírian, Luiza e Gabriel,
meu porto seguro e fonte de motivação.
5
Agradecimentos
Ao meu orientador, Dr. Isidoro Mazzarolo, pela paciente troca de idéias e
estímulo, fundamentais para que esse trabalho se concretizasse.
Ao CNPq e à Vice-Reitoria Acadêmica da PUC-Rio, pelos auxílios concedidos,
imprescindíveis para viabilizar a realização dessa pesquisa.
Aos professores e professoras do Departamento de Teologia da PUC-Rio, que me
possibilitaram uma abertura de conhecimento e estimularam a sede pelo saber.
Às secretárias do Departamento de Teologia da PUC-Rio, Denise e Jussara, que,
com sua disponibilidade e simpatia, facilitaram o processo acadêmico.
Aos colegas de complementação e disciplinas de pós-graduação, pela riqueza de
compartilhar suas experiências pessoais e acadêmicas.
Aos meus colegas da Teologia do Bennett, e da Coordenação Regional de
Capacitação Missionária, pelo suporte e apoio no processo de estudos.
Ao bispo Paulo Lockmann, por seus conselhos, apoio e generosidade nas trocas de
idéias pastorais e acadêmicas.
À Mírian, pois sem ela eu não me tornaria a pessoa que sou hoje, por seu amor
incondicional, sua cumplicidade e sua lucidez.
Aos meus filhos, Luiza e Gabriel, por me fazer desejar ser uma pessoa melhor e
mais capaz.
Aos meus pais, que acreditam e torcem por mim.
Aos amigos, amigas e parentes que, de alguma forma, nas encruzilhadas da vida,
me ajudaram a chegar até aqui. Muitas delas são responsáveis diretas pela
concretização desse projeto.
6
Resumo
Carneiro, Marcelo da Silva. Jesus, a Torá e os Nebîim, e o pleno
cumprimento da justiça em Mt 5,17-20: uma análise exegético-teológica. Rio
de Janeiro, 2008. 170p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Teologia,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Jesus foi um judeu piedoso de seu tempo, observante da Lei, preocupado em
cumprir a vontade de Deus. Perceber a relação de Jesus com a Lei nos ajuda a
entender a situação das comunidades seguidoras dele na Palestina, em constante
confronto com outras propostas de fidelidade à Torá. Nessa dissertação propomos
uma análise exegético-teológica de Mateus 5,17-20, para compreender essa
relação de Jesus com a Lei, como ele a cumpriu, e que exigências fez a partir de
sua própria prática. A afirmação de Jesus, de que veio “para cumprir”, já suscitou
todo tipo de interpretação, e o fato de estar no centro do discurso conhecido como
Sermão do Monte só aumenta o seu interesse. Com o auxílio do método históricocrítico, e ainda a criteriologia elaborada para a pesquisa do Jesus Histórico, é
possível fazer uma aproximação do texto ao mesmo tempo científica e piedosa,
legitimamente interessada nas afirmações daquele que é considerado o maior
mestre de todos os tempos.
Palavras-chave
Jesus Histórico; Evangelho de Mateus; Sermão do Monte; Lei e Profetas;
Justiça; Escribas e Fariseus; Escatologia.
7
Abstract
Carneiro, Marcelo da Silva. Jesus, the Torah and the Nebîim, and the
fulfillment of righteousness in Mt 5,17-20: an exegetical-theological analysis.
Rio de Janeiro. 2008. 170p. MSc. Dissertation – Departamento de Teologia,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Jesus was a piety Jew in his time, a Law observer, worried about fulfilling
the God’s will. Realizing the relationship between Jesus and the Law help us how
to understand the situation of his followers communities on Palestine, in constant
confrontation with other proposals of faithfulness to the Torah. This dissertation
proposes an exegetical-theological analysis on Matthew 5,17-20 to understand this
relationship between Jesus and the Law, the way he fulfilled it, and which
demands he made from his own practice. The Jesus’ saying, that he came “to
fulfill”, have already caused every kind of interpretation an the fact of being in the
speech’s center known as Sermon on the Mount just increases the interest for it.
With the historical-critical method and still the criteria elaborated to the Historical
Jesus research, it is possible to do an approach of the text at same time scientific
and piety, legitimately interested on the statements of whom is considered the
greatest leader of all times.
Keywords
Historical Jesus; Matthews’ Gospel; Sermon on the Mount; Law and
Prophets; Righteousness; Scribes e Pharisees; Eschatology.
8
Sumário
1. Introdução
10
2. O tema geral da pesquisa
14
2.1. A compreensão sobre Lei e Profecia no Judaísmo
14
2.2. O evangelho de Mateus em seu contexto
29
2.3. Mt 5,17-20 no horizonte do evangelho de Mateus
43
3. Análise de Mt 5,17-20
50
3.1. Crítica textual e tradução
50
3.2. Análise Literária
53
3.3. Análise Redacional
63
3.4. Status quaestiones do texto de Mt 5,17-20
69
3.5. Análise da Historicidade
78
4. Aspectos exegético-teológicos de Mt 5,17-20
4.1. Introdução
88
88
4.2. A Lei e os Profetas em Jesus: to.n no,mon h' tou.j profh,taj (v.17a) 88
4.3. Anular e cumprir: katalu/sai kai, plhrw/saiÅ (v.17b)
102
4.4. Até que passem o céu e a terra: e[wj a'n pare,lqh| o` ouvrano.j kai. h`
gh/ (v.18)
120
4.5. O menor e o maior no reino dos Céus: evla,cistoj kai, me,gaj evn
th/| basilei,a| tw/n ouvranw/n (v.19)
135
4.6. A justiça como plenitude da Lei: dikaiosu,nh plei/on (v.20)
141
5. Conclusão
153
6. Referências Bibliográficas
160
9
Nas instruções concretas de Jesus transparece
aquilo que é mais propriamente “cristão”, mostra-se
que o Jesus histórico tem perfeitamente algo a ver
com o cristianismo, ou mesmo que o cristianismo é
posto à prova. Em sua rigorosidade, essas instruções
são o espinho na carne do indivíduo que leva a sério
seu ser-cristão, mas também da Igreja.
Joachim Gnilka, Jesus de Nazaré.
10
1.
Introdução
A presente dissertação trata da relação de Jesus com a Lei (Torá) e os
Profetas (Nebîim), a partir de uma análise exegético-teológica de Mt 5,17-20.
Considerando as pesquisas mais recentes a respeito do Jesus histórico, nota-se que
alguns aspectos do ministério terreno de Jesus são mais verificáveis em termos
históricos do que outros. O papel de Jesus como mestre se enquadra numa análise
tanto histórica quanto teológica. Historicamente, é possível perceber aspectos de
Jesus como mestre que confluem com o cenário judaico do século primeiro da era
cristã. Teologicamente, o ensino de Jesus tem muito a ver com o princípio de seu
ministério como aquele que veio anunciar o reino de Deus.
É verdade que não podemos fragmentar o ministério de Jesus, com o risco
de esvaziá-lo e perdermos a visão ampla do seu alcance. Entretanto, em nossa
pesquisa desejamos verificar esse corte para perceber melhor qual seria a relação
de Jesus com os elementos constitutivos da fé judaica. A pergunta subjacente é: o
quanto Jesus estava vinculado à cultura e fé do povo judeu? Teria ele desejado
realmente romper com ela, ou queria de fato fazer uma revisão da prática dessa
fé? De forma mais concreta nosso trabalho vai abordar o tema a partir da relação
de Jesus com a Lei (Torá) e os Profetas (Nebîim), procurando responder algumas
questões básicas:
- Que atitudes Jesus teve em relação à Lei e aos Profetas: ele alterou de
forma significativa seus fundamentos, apesar de ter afirmado que veio para
cumprir, e não para anular? Ou cumpriu com zelo conforme se esperava de um
judeu piedoso?
- O que Jesus ensinou aos seus seguidores em relação à Lei, e como a
comunidade de Mateus recebeu essa tradição? Que objetivo esse dito teve na
realidade vivencial (Sitz im Leben) da comunidade mateana?
11
Para realizar a pesquisa, destacamos a perícope de Mt 5,17-20 por entender
que ela está estreitamente relacionada com o tema do cumprimento da Lei. Além
disso, está inserida por Mateus num bloco literário (cap. 5-7) cujo tema principal é
a vida prática da comunidade de discípulos, e como eles iriam praticar a justiça
superior. Esse conceito de justiça superior, citada diversas vezes nesse bloco
(5,6.10.20; 6,33) é central para entender a forma como Jesus cumpriu a Lei,
mesmo reinterpretando alguns aspectos, evidenciado pelas antíteses de 5,21-48.
A escolha do evangelho de Mateus para a pesquisa se dá por alguns
motivos: Mateus é considerado o evangelho mais próximo da cultura judaica1,
sendo que a perícope escolhida faz parte do extrato próprio do autor, denominado
“proto-Mateus” ou “fonte M”. Em segundo lugar, o evangelho de Mateus foi
organizado de um modo em que sua comparação com a Torá mosaica é inevitável:
tem cinco blocos de discursos, alternados por narrativas de milagres e disputas
com os religiosos de seu tempo. Por último, o evangelho de Mateus é considerado
o “evangelho da Igreja”, ao mesmo tempo em que demonstra essa proximidade
com a cultura judaica palestinense. Isso indica tanto uma aproximação apologética
– Jesus como Messias – quanto dialogal – Jesus é judeu - em relação ao judaísmo
contemporâneo ao Evangelho.
Na pesquisa desejamos demonstrar como o evangelho de Mateus trabalhou a
tradição a respeito de Jesus. Algumas hipóteses do que se deseja alcançar podem
ser apontadas:
- A possibilidade de esse dito ter origem no próprio Jesus, mesmo que a
comunidade o tenha retrabalhado. Para tanto, na análise sinóptica e histórica
iremos verificar até que ponto essa fala pode ter sido desprezada pelas demais
comunidades por aproximar Jesus demais do judaísmo (mesmo que na prática ele
tenha demonstrado isso).
- Sendo a perícope exclusiva de Mt (ao menos os versos 17 e 20), apontar a
possibilidade de que o texto tenha suas origens em categorias de pensamento
judaico, até mesmo em aramaico. Ainda que haja um trabalho redacional nessa
perícope, conforme muitos autores constatam, procuraremos identificar o quanto
Mateus trabalhou com as tradições da forma como os rabinos faziam, sendo seu
evangelho um tipo de midrash messiânico.
1
Cf. W.G.KÜMMEL, Introdução ao Novo Testamento, pp.136ss.
12
- Verificar como Mateus entendeu a mensagem de Jesus a respeito do reino
dos Céus, e da vontade de Deus para as pessoas, considerando o tipo de Mestre
que Jesus foi. Seria esse ensino uma advertência para uma prática dirigida por
uma ética superior, a compreensão de que a vida de Jesus realizava em si as
profecias e cumpria toda a Lei, ou ainda uma dimensão escatológica que
fundamentasse o agir cotidiano?
A abordagem metodológica que adotaremos para a pesquisa irá utilizar em
grande parte o método histórico-crítico, além da metodologia da pesquisa do Jesus
Histórico, para verificar a autenticidade do dito, e a análise semântica para uma
compreensão maior do texto à luz de seu contexto no evangelho de Mateus.
No primeiro capítulo vamos fazer um levantamento das informações sobre o
tema em geral, iniciando pela compreensão a respeito da Lei e dos Profetas desde
o Antigo Israel até o Pós-Exílio. Buscam-se aí aspectos históricos que tenham
influenciado o conceito sobre a Lei e os Profetas no imaginário religioso popular
da época, sem, no entanto, nos atermos ao processo de formação do texto escrito
em si, posto que não é essa a proposta da presente pesquisa. Depois vamos
analisar alguns aspectos gerais do evangelho de Mateus, e o lugar contextual da
perícope de Mt 5,17-20 dentro do livro. Esse passo é importante para situar-nos
no universo literário, mas também histórico da comunidade de Mateus, que se
reporta ao ambiente judaico do primeiro século.
No segundo capítulo, passaremos ao estudo efetivo da perícope de Mt 5,1720, analisando o texto grego crítico. Para tanto, será necessária fazer a crítica
textual, que possibilitará uma proposta de tradução. Em seguida, será o momento
da análise literária e redacional, através da qual faremos o levantamento das
fontes, a comparação sinóptica com Lc 16,17, o único texto com o qual Mt tem
relação direta. Essa análise é importante para perceber que Mateus agiu como
redator consciente, utilizando suas fontes de maneira precisa, de acordo com seus
objetivos.
Ao analisar a perícope em termos literários levanta-se a questão da
autenticidade, importante para o estudo teológico do texto. Por isso, passaremos
ao estado da questão da perícope, mais precisamente com respeito à autenticidade
do dito. Há duas posições bem claras: muitos autores aceitam o dito como
autêntico, segundo critérios mais ou menos precisos. Por outro lado, um grupo de
autores afirma o dito como uma construção da comunidade de Mateus, em função
13
do contexto histórico concreto vivido por ela. Para sermos mais precisos na
conclusão a respeito da autenticidade, será utilizada a metodologia elaborada pela
third quest, a qual nos auxiliará na análise da historicidade.
No terceiro capítulo se procederá a uma análise mais aprofundada, a partir
de cada versículo, em si e em conjunto com os demais. Instrumentos importantes
para essa análise serão os aspectos semânticos dos principais termos do dito, além
do estudo exegético, para perceber como Mt trata cada tema ou termo em sua
obra, e qual o sentido teológico desses elementos dentro do conjunto da perícope.
Nosso objetivo aqui será pensar na idéia corrente acerca da Lei e como Jesus se
relacionou com ela, em contraposição a outros grupos contemporâneos,
notadamente os escribas e fariseus. Além disso, percebe-se a necessidade de
investigar o nível de escatologia presente na perícope, e como ela se relaciona
com o todo do ensino de Jesus.
Para que a pesquisa possa ser levada a efeito, será utilizado o texto crítico
em grego, de acordo com a organização de Nestlé-Aland, 27ª ed., com tradução
apoiada em dicionários, livros técnicos, além de autores que estejam mais
diretamente ligados ao estudo do evangelho de Mateus, de preferência no bloco
literário denominado sermão do monte. Alguns autores se destacam na pesquisa
sobre o Jesus Histórico e particularmente na relação dele com a Lei, por isso não
se pode afirmar um autor como referencial teórico isoladamente. Mas há uma
tendência na pesquisa de se trabalhar com o princípio da contraposição. Em geral,
para isso, começaremos com opiniões clássicas, oriundas da metade do século
vinte, como as de R. Bultmann, J. Jeremias, L. Goppelt. G. Barth, G. Bornkamm,
G. Kümmel, W. Trilling, dentre outros. Como contraponto, trabalharemos com
autores com pesquisas mais recentes, muitos ligados à third quest, mas com
nomes bastante respeitados no meio acadêmico com relação ao tema, como D.
Flusser, G. Vermes, J. P. Meier. J. D. Crossan, G. Theissen, F. Vouga, D.
Marguerat, e outros.
Nossa pesquisa considera especialmente o ambiente histórico social no qual
o respeito à Lei e aos Profetas se enquadrava no mundo palestino do primeiro
século. Procuraremos verificar se a literatura judaica do primeiro século trazia
algo semelhante ou diametralmente oposto ao que Jesus afirmou. Se vamos
chegar ao Jesus Histórico ou não, a própria pesquisa tem deixado em aberto essa
questão.
14
2
O tema geral da pesquisa
2.1.
A compreensão sobre Lei e Profecia no Judaísmo
A afirmação de Jesus a respeito da Lei e dos Profetas em Mateus está de
acordo com uma compreensão geral que o judaísmo do primeiro século tinha a
respeito do assunto. O texto de Mt 5,17-20 trata da questão de forma mais
pontual, e mesmo que essa passagem seja mais da comunidade de Mateus, que do
próprio Jesus, não tira do texto seu caráter contemporâneo ao judaísmo do
primeiro século, no que tange à compreensão da Lei e dos Profetas.
Para entender, então, como Jesus se posicionou, ou de que maneira a
comunidade de Mateus respondeu à questão da Lei diante de um judaísmo em
crise e reconstrução, é preciso analisar como a Lei e a Profecia eram
compreendidas dentro do imaginário religioso comum do judaísmo do século
primeiro. Faremos a seguir uma exposição panorâmica a respeito dessa
compreensão sobre a Lei e a Profecia desde o Antigo Israel até o período da
dominação romana.
2.1.1.
A Compreensão sobre a Lei
A compreensão de Israel sobre a Lei é vital para existência dele como povo.
Parte de um conceito geral, que a coloca como a realização da vontade de Deus.
Se Deus é um só, e Israel é expressão dessa grandeza, então toda a coletividade, e
não apenas o indivíduo, é chamada a viver segundo a vontade Deus. Essa decisão
atinge tanto a vida privada quanto a pública, e não se restringe ao culto.2
O vocabulário relativo à Lei é bastante extenso, como demonstra o Salmo
119, e mesmo as traduções apontam para essa pluralidade, em termos como: leis,
ordenanças, mandamentos, estatutos, palavras, sentenças, preceitos, caminhos,
etc. Nossa pesquisa não nos permite tratar de todos os termos, mas dois deles se
2
Cf. OTTO, E., “Lei”, In: BAUER, Dicionário Bíblico-Teológico, p.229.
15
destacam: (1)
jP;v.mi
– do verbo
jpv,
“julgar”, “decidir” – que tem o sentido
estrito de sentença arbitral, arbítrio, decisão legal, e que no plural pode significar
julgamento,
juízes,
consuetudinário.3 (2)
direito
e
até
justiça,
principalmente
no
direito
hr;)wOT – do verbo hry, cujo sentido mais usual é “instruir”,
“ensinar”.4 No entanto, é o sentido da Lei que nos interessa. O termo se aplica “à
instrução recebida de autoridade superior, servindo de regra de conduta em
determinado caso particular.”5 Também pode indicar “toda espécie de
determinações, não necessariamente jurídicas, dadas por Javé pela boca de
sacerdotes ou profetas.”6 Depois passou a identificar o grupo de Lei relacionadas a
Moisés (cf. Js 1,7; Ed 3,2; Ml 3,22), quando os rolos da Lei foram designados
como Torá.7 Crüsemann define o conceito em linhas gerais:
A palavra torah designa, em linguagem coloquial da época do Antigo
Testamento, o ensinamento da mãe (Pr 1,8; 6,20; cf. 31,26) e do pai (4,12) para
introduzir seus filhos nos caminhos da vida e adverti-los diante das ciladas da
morte. Nisso, como em todos os demais usos, a palavra abrange informação e
orientação, instrução e estabelecimento de normas, e, com isso, também promessa e
desafio. Expressa igualmente o mandamento e a história da instrução, da qual
emerge. A partir daí, o conceito Torá torna-se um termo técnico para a instrução
dos sacerdotes aos leigos (Jr 18,18; Ez 7,26), mas designa também as palavras dos
mestres da sabedoria (Pr 7,2; 13,14) ou do profeta (Is 8,16.20; 30,9) para os
discípulos. No Deuteronômio, por fim, Torá transforma-se no conceito mais
importante da vontade de Deus universal e literariamente fixada (p.ex. Dt 4,44s;
30,10; 31,9). Aqui Torá abrange tanto narrações (esp. Dt 1,5) quanto leis (cf. esp.
Sl 78, 1.5.10). Mais tarde, esse conceito deuteronômico designa a lei de Esdras
(p.ex. Ne 8,1), todo o Pentateuco, mas também a palavra profético-escatológica de
Deus para os povos (Is 2,3 par. Mq 4,2; Is 42,4).8
Os diferentes aspectos apontados no conceito de Torá apontam para uma
idéia que vai desde o estabelecimento de Israel como nação, passando pela grande
mudança de mentalidade ocorrida no período do Exílio e a posterior elaboração do
judaísmo tardio, que ficou conhecida como judaísmo rabínico.
Nos tópicos a seguir vamos analisar de forma panorâmica essas fases.
3
Cf. V.V.A.A., Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português, p.146; 259.
Idem, p.265; 94. Segundo o dicionário, no QAL o verbo hry tem o sentido de “lançar”, “atirar”;
no Hifil “dar de beber” ou “instruir”. O sentido dependerá do contexto, mas é esse último que nos
interessa estudar. Cf. VAUX, R. de, Instituições de Israel no Antigo Testamento, p.392 et.seq. Ele
acrescenta que a função sacerdotal de dar orientação, como num oráculo, pode derivar do assírio
tertu, que significa ‘oráculo’.
5
MICHAELI, F., “Lei”, Vocabulário Bíblico von Allmen, p.223 et.seq.
6
FRAINE, J. de, “Lei de Moisés”, Dicionário Enciclopédico da Bíblia, p.878.
7
WIGODER, G., Dicttionnaire Encyclopédique du Judáisme, p.1124.
8
CRÜSEMANN, F., A Torá, p.12. F. SCHMIDT distingui três grandes aspectos para a Torá: “a
Lei como revelação, cujo depósito a tradição confia à grande Assembléia; a Torah como código
legislativo; a lei escrita ou oral cujos intérpretes e guardiães (sic) são os sacerdotes e escribas.” O
Pensamento do Templo de Jerusalém a Qumran, p.24.
4
16
2.1.1.1.
A Lei no Antigo Israel
a. Nas origens (séc. XXI-VIII a.C.)
O período mais antigo da história de Israel traz dificuldades com relação ao
entendimento sobre a Lei, considerando a conexão dessa história com o direito
dos povos vizinhos à nação israelita. Enquanto Israel ainda não existia como
nação, povos vizinhos já tinham coleções de leis, como o código Ur-Nammon e
Lipit-Ishtar (do fim do terceiro milênio a.C.), o código de Hammurabi e o de
Eshnuna, (da primeira metade do segundo milênio).9
Por outro lado, a própria consistência de Israel como nação até o século X é
muito discutida pelos pesquisadores do Antigo Testamento.10 Nesse sentido, devese pensar que no Antigo Israel a Lei (Torá) devia ser concebida mais nos aspectos
de uma orientação familiar, e de leis consuetudinárias, voltadas para o bem-estar
do clã e da tribo, do que numa esfera nacional centralizada em determinado lugar
(como se tornou Jerusalém posteriormente).11
Além disso, deve-se considerar a importância da Tradição Oral no processo
de estabelecimento da Lei em Israel. A mesma tradição oral que passou as antigas
histórias dos patriarcas, bem como as narrativas da história das origens (Gn 1-11),
foi responsável pelo processo de transmissão de normas e leis de convivência, que
acabaram por alcançar o status de Torá. A tradição rabínica posterior aponta para
isso, como se pode ver no tratado Pirqe Abot (“Ética dos Pais”), da quarta ordem
da Mishná:
Moshê recebeu a Torá no Sinai, e a entregou para Yehoshua, e Yehoshua
para os anciões, e os anciões para os profetas, e os profetas a entregaram
para os homens da grande assembléia. Eles disseram três palavras: sede
9
Cf. OTTO, E., “Lei”, In: BAUER, Dicionário Bíblico-Teológico, p.229.
O conceito de Confederação de Tribos vem sendo questionada desde a metade do século XX
Pela maioria dos exegetas. Alguns, porém, mantiveram a concordância sobre o assunto, como
Gunneweg, von Rad, Albright, e outros. O grande problema é a falta de evidências arqueológicas
do período que confirmem a informação de que Israel tenha uma identidade nacional já no século
XI a.C., antes da ascensão da dinastia davídica e da separação de Israel e Judá.
11
VAUX, R. de, Instituições de Israel no Antigo Testamento, p.23 passim. Para ele o vínculo entre
as pessoas, antes de ser jurídico ou político, era, acima de tudo, de sangue, por se considerarem
todos “irmãos” a partir de uma linhagem comum. É a vinculação própria das tribos nômades. P.23
Sobre Jerusalém como centro de culto nacional, p.347 et.seq.
10
17
ponderados no julgamento, levanteis muitos díscipulos e façais uma cerca
em torno da Torá.12
b. A Lei nos reinos de Israel e Judá (séc. VIII a.C.)
A partir do século VIII a.C. Israel e Judá, e posteriormente somente este,
iniciarão um grande processo de juntar coleções de leis, normas e narrativas, as
quais farão parte da Lei como unidade literária posterior. Reconstituir essa
história, porém, é elemento de uma pesquisa a qual não teremos espaço para tratar
aqui.13
A Lei no Israel Antigo era, antes de tudo, a instrução dos pais aos filhos, a
partir de normas éticas e cultuais básicas, que na convivência entre as tribos
mostrou-se ser capaz de integrar os grupos que agiam com as mesmas normas. As
coleções de leis civis, rituais, e de ordem cúltica só se deram a partir do século VII
a.C., por conta da organização de uma estrutura palaciana, tanto no norte quanto
no sul, este último até o século VI, quando Jerusalém foi tomada e sua elite levada
cativa para o exílio babilônico.14
2.1.1.2.
A Lei no Exílio e Pós-Exílio
a. A Lei no período exílico (586-538 a.C.)
O Exílio representou uma grande mudança na mentalidade israelita. Dentre
os muitos conceitos que foram revistos está o da Lei, que começa a representar
um conjunto literário mais fechado. Segundo Zenger, “a formação da Torá
acontece no processo da reconstrução da identidade judaica depois de desfeita sua
condição de estado autônomo.”15
Já no exílio, o grupo deuteronomista lê a história passada como programa
para um novo Israel, juntando diferentes tradições – também com o grupo
sacerdotal – para pensar num grande projeto de nação.16
12
cf. MURRAY, M. Et.all. (Trad.) Mishná, essência do judaísmo talmúdico, p.9; COOLIN, M;
LENHARDT, P., A Torah Oral dos Fariseus, p.14.
13
O próprio Crüsemann, em sua obra de larga análise, entende que “a pergunta pelo que significa
entender a Torá de forma histórica logo nos leva ao problema básico da exegese atual e sobretudo
da pesquisa do Pentateuco: a pergunta pelas fontes e pelo texto na sua forma final, a pergunta pela
análise sincrônica e diacrônica.” A Torá, p.18.
14
Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá, p. 22ss.; ZENGER, E., Introdução ao Antigo Testamento,
p.91ss.
15
ZENGER, E., op.cit., p.52.
16
Cf. OTTO, E., “Lei”, In: op.cit., p.230.
18
b. A Lei no período persa (538-333 a.C.)
Com o fim do exílio, o grupo de judeus que retornou para a terra de Israel
estabeleceu uma reorganização religiosa, cuja principal marca é a centralização da
religião judaica em Jerusalém, em que “todas as prescrições da lei, cultuais ou
não, eram determinadas pelos sacerdotes.”17 Como a administração era dirigida
pelos persas, eram eles quem supervisionavam as reformas na legislação e no
culto. Esdras e Neemias tiveram sua atividade delimitada nesse contexto (cf. Ed
1,1ss; 7,8-26; Ne 2,1ss).
Paralelamente, o período pós-exílico testemunha o crescimento de uma
Teologia da Sabedoria, que em uma de suas correntes, “considera a Torá de Israel
como a maior e verdadeira dádiva divina da sabedoria.”18 Dt 4,4-6 prepara uma
identificação entre a Torá e a Sabedoria, tema que será melhor trabalhado pelo
Sirácida (Sr 24).19
c. A Lei no período helenístico (333 a 63 a.C.)
O período helenístico não trouxe mudança no cenário político-religioso,
conforme informa Koester:
Durante a dominação de Jerusalém pelos Ptolomeus no século III e pelos
Selêucidas no início do século II a.C., o sumo sacerdote em exercício estava sujeito
à autoridade do rei e tinha de cumprir suas ordens. No âmbito da jurisdição do
Estado-templo, porém, não havia autoridade política superior à do templo e à de
sua hierarquia sacerdotal.20
As tradições sobre a arca da aliança, a conquista da cidade de Jerusalém por
Davi, e Salomão, seu filho como construtor da casa de Deus são teológica e
ideologicamente justificadas para sustentar a posição do templo como centro
gravitacional da fé israelita, pelo menos de acordo com a proposta cronista.21 Fica
exposto, por outro lado, que a Torá foi entregue por Moisés, e com ela agora
apresentada por Esdras – talvez já o Pentateuco recém encerrado – torna-se o
centro da vida do povo, como ideal dos judeus piedosos.22
A partir daí se dá um duplo fenômeno: por um lado, a Lei se torna mais
concreta, tendo a vontade de YHWH explicitada para o povo, orientada pelos
17
KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento 1, p.230. Também cf. GRELOT, A esperança
judaica no tempo de Jesus, p.32ss.
18
ZENGER, op.cit., p.287.
19
OTTO, E., “Lei”, in: op.cit., p.230; ZENGER, E., op.cit., p.287; LÍNDEZ, Sabedoria e sábios
em Israel, p.54.
20
KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento 1, p.230.
21
Cf. ZENGER, E., Introdução ao Antigo Testamento, p.221.
22
Cf. o relato de Esd 7,12-26, que trás o conteúdo de uma carta enviada por Artaxerxes a Esdras,
promulgando a “lei de Deus” como lei oficial dos judeus. Ibid., p.54.
19
sacerdotes23; por outro, a dinâmica da Torá oral permanece, como base para
interpretação da Torá escrita. Lenhardt atribui à Torá oral um alcance que engloba
a Torá escrita. Para ele,
os problemas postos pela Escritura, a Torah escrita, são secundários em relação aos
apresentados pela Tradição, a Torah oral. Esta, efetivamente, marcada pelas
divisões que desfiguraram o judaísmo antes da destruição do Templo, foi
enfraquecida, mutilada pelos massacres da guerra, pela morte de muitos mestres e
discípulos, transmissores da Torah Oral.24
d. A Lei a partir da dominação romana (63 a.C.)
Apesar da considerável mudança que representou a dominação romana na
Palestina, desde 63 a.C., a religião judaica manteve sua independência, no tocante
aos costumes e obrigações provenientes da Lei. A exceção ficou por conta das leis
que previam pena de morte, pois esses casos só podiam ser decididos pelo próprio
prefeito romano (o administrador da Judéia, desde a deposição de Arquelau em 6
d.C.). Além disso, foram instituídas onze toparquias, governadas cada uma por um
sinédrio, sendo o mais importante o de Jerusalém. Todos tinham uma jurisdição
sobre causas relativas à lei judaica, mas com os limites impostos pelos romanos.
Era o sinédrio que, em última análise, tinha o papel de julgar questões que
envolvessem supostos casos de violação da Lei.25
Para o povo simples, no entanto, a Lei não estava circunscrita a um tribunal.
Um judeu do primeiro século considerava que a Lei representava o ideal de vida a
ser seguido: junto com o templo formava “os dois centros do judaísmo na época
do segundo templo.”26
A forma como a Lei era estudada fora do contexto do templo se dava,
primordialmente, por meio das sinagogas. A origem das sinagogas está vinculada
à diáspora judaica exílica e pós-exílica. Eram instituições de agregação dos
judeus, para a realização de tarefas públicas, mas também para tarefas religiosas.27
Identificadas como associações no estilo grego, segundo Koester,
como no caso de outros grupos étnicos ou religiosos emigrados, estas eram
associações de estrangeiros residentes, que haviam recebido certos privilégios
23
De acordo com SCHMIDT, F., “entre o puro e o impuro, o sagrado e o profano, a função dos
sacerdotes é “distinguir”, bâdal.” O pensamento do templo de Jerusalém a Qumran, p.77.
24
COLLIN, M; LENHARDT, P., A Torah oral dos fariseus, p.13. O termo tradição – tradução de
para,dosij – aparece sete vezes nos sinóticos (Mateus e Marcos) e três nos demais escritos
(Colossenses, 2 Tessalonicenses e 1 Pedro) do Novo Testamento.
25
KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento I, p.396; NELIS, J., “Sinédrio”, Dicionário
Enciclopédico Bíblico, p.1443 et.seq.
26
MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus histórico, p.386.
27
Cf. HÄTTENMEISTER, “Synagoge”, in KOCH, Begegnungen zwischen Christentum und
Judentum in Antike und Mitteralter, p.164.
20
pertinentes à incorporação e à prática do seu ofício ou profissão, ou associações de
28
culto, como as organizadas por seguidores de outros cultos nacionais.
e. A Lei no cotidiano da Palestina
Na Palestina, as sinagogas já existiam antes de 70 d.C., porém, em pequeno
número. De acordo com Charlesworth, hoje há provas de pelo menos três
sinagogas anteriores a 70 na Judéia e na Galiléia, a saber, Massada, o Herodium e
Gamla (na Galiléia, a leste do lago de Genesaré).29 As duas primeiras “eram
salões de reunião usados para muitos fins, inclusive a oração comum e a leitura da
Escritura.”30
A sinagoga de Gamla demonstra que a Galiléia compartilhava dos mesmos
ideais com relação à Lei. De acordo com Roloff, de fato “em torno da virada do
século II para o I foi promovida a rejudaização sistemática mediante a imigração
de judeus fiéis à Lei. O objetivo era recuperar o território original da terra de
Israel para o povo de Israel.”31
Por outro lado, a família israelita – em toda a Palestina - dá destaque à Lei
no seu dia-a-dia, pois “o cotidiano estava determinado de muitas maneiras pela
Torá e seus regulamentos.” Por conta de todos os aspectos da Lei que ditavam a
vida particular (questões relativas a casamento, alimentação, festas, separação do
sábado, etc.), desde muito o judaísmo desenvolveu essa prática piedosa, que os
Salmos atestam (especialmente 1,19,119).32
Mesmo com a pouca evidência arqueológica, além do fato de ser o Templo
o centro gravitacional da fé judaica até 70 d.C., pode-se perceber uma dinâmica de
descentralização da transmissão da Torá.33 Jesus, porém, viveu toda a intensidade
da Lei de acordo com os princípios judaicos palestinenses, em especial dos
habitantes da Galiléia.
2.1.2.
A Compreensão sobre a Profecia
28
KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento 1, p.227.
CHARLESWORTH, J.H., Jesus dentro do Judaísmo, p.118.
30
SALDARINI, A., Fariseus, Escribas e Saduceus, p.67.
31
ROLOFF, J. A Igreja no Novo Testamento, p.19.
32
STEGEMANN, E., G.,História social do protocristianismo, p.169s.
33
Essa descentralização foi ampliada após a destruição do templo e de Jerusalém pelo general
Tito, em 70 d.C. Cf. OVERMAN, J.A., O Evangelho de Mateus e o Judaísmo Formativo, p.47
et.seq.
29
21
Ao falarmos da profecia, nos referimos aos profetas, feita por Jesus em Mt
5,17. O termo tem sua origem no hebraico
~yaybn, ou o singular aybn, traduzido
pela LXX como profh,thj.34 Para o israelita, esse termo vincula um carisma e uma
importante parte da produção literária que testemunhou esse carisma,
especialmente no período da monarquia até o exílio.
De um modo geral, a compreensão israelita a respeito da profecia está
vinculada à forma como a Bíblia Hebraica foi organizada: após o
Pentateuco/Torá, encontramos a grande seção dos profetas – anteriores e
posteriores – que “continuam a pregação do profeta ideal, incomparável, que foi
Moisés”.35 Isso demonstra a importância e o papel da profecia no imaginário de
Israel.
Considerando que os profetas anteriores são os livros que narram a história
desde a conquista da terra (Js) até o exílio (2 Rs), e os profetas posteriores
envolvem os escritos dos profetas desde o século VIII a V a.C., temos uma
continuidade histórica desde a entrega da Lei a Israel até o pós-exílio, quando a
nação assumiu uma prática de fé consistente, especialmente no aspecto do
monoteísmo. Assim, a profecia é um elemento presente em toda a história de
Israel, que vai ter importantes ressonâncias no período do judaísmo
contemporâneo a Jesus.36
Por outro lado, o termo “os Profetas” passou a designar o segundo bloco
considerado canônico – ou sagrado – pelos judeus já no início do século
primeiro.37 A afirmação de Jesus em diversos momentos, em que afirma to.n
no,mon h' tou.j profh,taj (a Lei e os Profetas) está situada nesse contexto, de um
grupo literário que fazia parte da dinâmica da religião judaica. Mas, em que
sentido esse grupo literário era importante? E por que Jesus se reporta a ele?
Vamos analisar de forma panorâmica as principais fases concernentes à
compreensão a respeito da profecia, pensando no seu entrelaçamento com a Lei.
2.1.2.1.
A Profecia no Antigo Israel
34
BROWN, “Profeta”, in: Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.1879ss.
FISCHER, “Profeta (AT)”. In: BAUER, op. cit., p.345.
36
MARTIN-ACHARD, “Profecia”, Vocabulário Bíblico, p.338 et.seq.
37
Cf. BILLERBECK I, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch I, p.240.
35
22
a. A profecia nas origens (séc. XI a VIII a.C.)
O surgimento da profecia na vida do povo de Israel não é fenômeno único,
como atestam vários estudos realizados a respeito da questão junto aos povos
vizinhos.38 De acordo com a notícia de Oséias 12,14, havia no reino do norte,
desde muito tempo, tradições que associavam a origem do profetismo a Moisés.39
Mas ela de fato aconteceu em Israel apenas a partir do século IX, especialmente
com as figuras de Elias e Eliseu.40
Nesse primeiro momento, a profecia se caracteriza e confunde com
elementos extáticos, presentes em alguns grupos e situações (cf. 1 Sm 10,5ss).
Para esses grupos antigos utilizava-se o termo
~yaiybin> - do singular aybin: - que
“usualmente é considerada uma palavra derivada do verbo acádico nabû,
‘chamar’, ‘proclamar’.”41 O termo utilizado tem um sentido passivo, situando o
profeta como alguém que é chamado. Isso se confirma pelas narrativas de vocação
de alguns dos profetas que tem registro literário (ex. Jr 1,1-10; Os 1,1-11; Is 6,113, etc.), bem como pela fórmula hy'h'
rv<åa] hw"åhy>-rb;D> - palavra do Senhor que
veio a - em vários textos (Mq 1,1; Sf 1,1; Ag 1,1; Ml 1,1).
b. A profecia no séc. VIII a.C.
O exercício do ministério do profeta, no entanto, não se restringia a apenas
uma dimensão. Havia vários outros termos para designar um profeta, de acordo
com a situação, além dos aspectos políticos e sociais que envolviam a atividade.
Wilson aponta para esse problema:
Até a leitura apressada das fontes revela que os escritores bíblicos tiveram visões
divergentes e às vezes conflitivas sobre a profecia. Estas visões foram
presumivelmente o produto de longo período de desenvolvimento, e agora é difícil
determinar a medida de precisão com que refletem realidade histórica. Todavia,
não existe nenhum motivo para suspeitar que as várias concepções bíblicas de
profecia tenham sido simplesmente criadas de uma só peça inteira. Pelo contrário,
elas devem ser tomadas como indicação de que os grupos portadores da tradição
bíblica na verdade conheciam diferentes tipos de profecias.42
38
Podemos citar alguns que abordam a questão: FOHRER, Geschichte der israelitischen Religion;
SCHMIDT, A Fé no Antigo Testamento; PEDERSON, The Role played by inspired persons
among the Israelites and the Arabs; SICRE, Profetismo em Israel; WILSON, Profecia e
Sociedade no Antigo Israel.
39
Cf. SICRE, J.L., Introdução ao Antigo Testamento, p.222.
40
De acordo com a concepção de von Rad, Teologia do Antigo Testamento, p.451ss.
41
BROWN, “Profeta”, in: Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.1879.
Também GUNNEWEG, Teologia Bíblica do Antigo Testamento, p.239s.
42
WILSON, Profecia e Sociedade no Antigo Israel, p.20-21.
23
Nessa concepção Wilson delimita o movimento profético em pelo menos
duas grandes tradições: a tradição efraimita do norte, mais coesa e registrada
literariamente, e as tradições de Judá, no sul. Estas tendem a ser menos
delimitadas, registradas e mais fragmentadas, daí inclusive a denominação de
“tradições”, ao invés de tradição.
Do ponto de vista da motivação ideológica dos profetas, pode-se afirmar
que, mesmo não sendo uniformes em sua abordagem, os profetas tinham como
foco o pecado da incredulidade de Israel, “ou seja, a não-confiança em Javé na
situação concreta e, ao invés, confiar em si próprio.”43 De modo específico, os
profetas atacam as diferentes manifestações dessa incredulidade, que são o
orgulho, a idolatria, as estruturas monárquicas, assim como as sacerdotais.
c. Tipologia da profecia no Israel Antigo (séc. VIII a.C.)
Zenger descreve sumariamente uma tipologia no tocante à condição social
do multifacetado profetismo do Israel Antigo: (a) Os profetas de congregações ou
irmandades – denominados
~yaiybiN>h; ynEåB.
[filhos de profetas/discípulos de
profetas] (1Rs 20,35; 2Rs 2,3.5.7.15) –formam comunidades de profetas, que
costumavam atender às demandas populares por orientação; (b) Os profetas do
templo, cujas atividades incluem interceder e anunciar em nome de Deus no
contexto do culto. Em Jerusalém são subordinados aos sacerdotes. A narrativa do
chamado de Samuel, em 1Sm 3, transparece um pouco o processo para o
surgimento de um profeta ligado ao templo; (c) Os profetas da corte, que servem
ao rei e ao seu propósito, e anunciam a palavra de Deus no tocante às situações de
guerras e catástrofes, bem como participam das celebrações de entronização,
núpcias do príncipe herdeiro, e outras. Desses profetas era esperado o
~wOlv;44,
conforme o texto paradigmático de 1Rs 22; (d) Os profetas independentes, que
formam o grupo menor numericamente, e menos respeitado no período em que
atuaram. No entanto exerceram um ministério de oposição, e por isso mesmo
tornaram-se historicamente os mais importantes. A maioria dos profetas
“escritores” faz parte desse grupo.45
43
GUNNEWEG, A.H.J., op.cit., p.249.
Paz, não num sentido meramente metafísico ou existencial, mas com implicações sociais,
políticas e que atinjam a coletividade.
45
ZENGER, E., Introdução ao Antigo Testamento, pp.370ss. O autor considera ainda que
“nenhum ‘livro de profeta’ é da autoria do profeta, cujo nome lhe foi dado.” p.372, e afirma que os
livros relacionados a esses profetas surgiram, de fato, das mãos de círculos de alunos e discípulos
44
24
Essa atividade profética se tornou fortalecida e respeitada a partir do exílio,
quando os oráculos sobre a destruição de Judá se confirmaram. Como lembra
Gunneweg, “nessa época da ruína chegam ao ápice a proclamação de Jeremias e o
profetismo de Israel em geral.”46
2.1.2.2.
A Profecia no Exílio e Pós-Exílio
a. A nova compreensão sobre Profecia (séc. VI a.C.)
O exílio representou uma mudança na forma de ser e de se compreender a
profecia em Israel, da mesma forma como se deu com a Lei. Para aqueles que
foram deportados para a Babilônia em 597 a.C., o passar do tempo no cativeiro
formou no coração dos judeus um ódio que se aninhou (cf. Jr 51,34-35), “e junto
com o ódio, os desejos de vingança, a saudade da terra prometida, as ânsias de
libertação.”47
Com esses sentimentos, o povo teve sua fé e esperança abaladas. Mas é
nesse momento que a palavra profética se levanta para consolar o povo (cf. Is
40ss), a ponto de dar um salto teológico em torno da figura do Servo sofredor.48 A
partir daí a profecia ganhou um cunho cada vez mais escatológico e universal, em
face do novo cenário que os profetas estão vivendo.49
Segundo von Rad, uma marca da profecia desse período é que “são
individualidades religiosas e literárias.”50 Há um direcionamento maior para a
pessoa, e sua decisão pessoal diante de Deus. “A novidade nesses profetas, do
ponto de vista formal, é o alargamento da base da sua pregação, em comparação
com os profetas mais antigos”.51
b. O surgimento do apocaliptismo (séc. IV a.C.)
deles que coletaram e elaboraram essas obras. Mas não se pode pensar nisso sem grandes reservas.
Ver também IMSCHOOT, “Profeta”, Dicionário Enciclopédico da Bíblia, p.1221.
46
GUNNEWEG, A.H.J., op.cit., p.278.
47
SICRE, J.L., Profetismo em Israel, p.311.
48
Essa controvertida figura, que tem suscitado amplo debate sobre seu significado histórico, foi
adotada muito cedo pelos cristãos como uma representação de Cristo, o messias que sofre pelo
povo. Cf. SICRE, J.L., op.cit., p.312s; GUNNEWEG, A.H.J., op.cit., p. 292s; von RAD, op.cit.,
p.672-681.
49
Essa idéia não tem consenso entre os autores. Para muitos, mesmo antes do exílio já existia
profecia com cunho escatológico, enquanto outros defendem que a escatologia nasce realmente
depois. Para uma discussão sobre o assunto, ver CORRÊA LIMA, M. de L., Salvação entre juízo,
conversão e graça, pp. 15-63.
50
RAD, G. von, op.cit., p.683.
51
Ibid., p.683. Von Rad avalia que essa mudança se dá no estilo literário, principalmente, que se
abre a diferentes formas, bem como na estruturação da proclamação.
25
Simultaneamente, o período pós-exílico viu surgir um movimento, a partir
do período helenístico (séc IV a.C.), que teve sua origem na profecia, e marcou
profundamente o imaginário popular judaico: o apocaliptismo, cujo único
representante no Antigo Testamento é o livro de Daniel52. De acordo com
Koester,
Os inícios do pensamento apocalíptico são anteriores ao período helenístico: suas
origens estão intimamente relacionadas com uma mudança fundamental no
pensamento teológico de Israel, que aconteceu no tempo do exílio. A decadência
do reino de Judá e a destruição de Jerusalém no início do século VI a.C. suscitaram
dúvidas profundas sobre o conceito de teodicéia histórica.53
Toda essa situação provocou mudanças no enfoque da profecia, adquirindo
elementos universalistas, até mesmo com “alusões mitológicas”.54 De acordo com
Sicre, se uma parte da profecia trabalhou com a idéia da monarquia, e mesmo da
aceitação do império após o exílio – nunca de forma acrítica, é verdade – no
entanto, outra parte dela se colocou frontalmente contra o domínio imperial
estrangeiro, sempre com um colorido nacionalista.55
Toda a transformação social que marcou a vida e a história do povo de
Israel, não só mudou sua concepção da sua identidade, como da forma que Deus
passou a falar com o povo. Agora a nação é uma realidade que não está vinculada
somente a um espaço geográfico, mas a uma eleição e aliança, baseadas na Lei,
que tem nos profetas os mensageiros que tornam essa esperança palpável, por
meio de sua mensagem.
Podemos afirmar que essa marca da profecia pós-exílica influenciou o
imaginário popular, como realmente aconteceu na revolta macabaica e nos
movimentos de dissidência56 que surgiram a partir do período helenístico. Jesus
certamente respirou desses ares profético-apocalípticos.
c. A canonização da profecia (séc. II a.C.)
A profecia tinha vários desdobramentos nos primeiros anos do século I d.C.,
especialmente por conta da canonização dos textos proféticos da antiga tradição
52
De fato, no Antigo Testamento, o único exemplo literário que podemos afirmar como
Apocalipse é Daniel. Alguns outros trechos apocalípticos são encontrados em Isaías (24-27; 33).
Pequenos elementos pré-apocalípticos podem ser percebidos em outros profetas, mas que não
configuram as mesmas características de Daniel. Ver discussão em ZENGER, Introdução ao
Antigo Testamento, p.449s.
53
KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento 1, p.233.
54
Ibid., p.233.
55
SICRE, J.L. Profetismo em Israel, p.447s.
56
Especialmente o grupo dos hassidim, que deu origem aos fariseus, bem como a comunidade de
Qumran e a reação samaritana ao governo judaico de Jerusalém. Cf. KOESTER, op.cit. p.235-248.
26
judaica, bem como pelo contato que a cultura judaica tivera com o helenismo
desde o século IV a.C. Por outro lado, diversos movimentos proféticos se
levantaram na Palestina nesse período, tanto antes como depois da destruição de
Jerusalém, em 70 d.C. De forma sintética vamos analisar esses aspectos.
A canonização dos livros proféticos se deu por volta do II século a.C. Antes
disso não pode ter sido, pois os samaritanos realizaram o cisma nesse período e só
aceitavam a Torá – Pentateuco. Além dessa época também não é provável, tendo
em vista a “introdução grega da obra” de Jesus Ben Sirac, pelo ano de 132 a.C.,
que cita os Profetas ao lado da Lei (Pentateuco), bem como os demais escritos.57
Como literatura canônica, os profetas “são considerados comentários à
Torá”. Por isso mesmo cedo foram separadas leituras de profetas que
acompanhavam a cada sábado um trecho da leitura da Torá. A própria
canonização da Lei deu aos livros proféticos o valor de cânon para a fé judaica,
considerando sempre Moisés superior a todos eles, como nos lembra Crüsemann:
Nesse contexto, a identificação de Moisés no fim do Pentateuco, em Dt 34,
recebe uma importância que dificilmente pode receber atenção suficiente. Ao
contrário, por exemplo, do Código Deuteronômico sobre os profetas com sua
promessa de haver sempre um profeta como Moisés (Dt 18,15ss), nesta passagemchave, ele é exaltado para a compreensão de toda a obra sobre profecia. (...) Moisés
e, com ele, também sua Torá, são fundamentalmente superiores a toda a profecia
posterior.58
Como processo cultural, a profecia judaica foi matizada por seu contato com
a profecia helenística, especialmente os oráculos sibilinos. Associados às Sibilas,
figuras lendárias que exerciam sua atividade por meio de êxtases, esses oráculos
podiam ser, inclusive, ex eventu, com forte cunho escatológico. Os judeus
aproveitaram esses textos para divulgar suas crenças apocalípticas, tanto de
desgraça quanto de esperança de um mundo melhor.59
d. Movimentos proféticos a partir do período romano (séc. I a.C.)
No período romano há diversos relatos testemunhando pelo menos dois
tipos de profetas populares: “o profeta oracular”, cuja função estava ligada ao
juízo divino e à redenção promovida por Deus; e “o profeta de ação”, que
inspirava e guiava um movimento popular para antecipar a redenção divina.60
57
Cf. ZENGER, E., op.cit., p.30s.
CRÜSEMANN, F., op.cit., p.472.
59
KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento 1, p.175; PRADO, A.M. “Questionamentos
acerca da Sibila Babilônica”, p.3. Segundo o autor, o texto do Pastor de Hermas indica que
também os cristãos sofreram influência desse tipo de oráculo.
60
HORSLEY, R.A., Bandidos, Profetas e Messias, p.125.
58
27
Esses movimentos proféticos do século I d.C. mostram que o “profetismo
estava muito vivo entre o povo judeu.” Horsley descreve ainda como se
processava a adesão do povo:
Numerosas pessoas, inspiradas e convencidas da iminência da ação de Deus,
abandonavam seu trabalho, suas casas e aldeias para seguir seus líderes
carismáticos no deserto. Elas sabiam pelas tradições sagradas que fora no deserto
que Deus tinha manifestado sinais e prodígios de redenção em tempos antigos, e
que o deserto era o lugar da purificação, preparação e renovação.61
i. Os profetas de ação
Flavio Josefo desprezava o chamado “profeta de ação”, conforme relatou:
“Impostores e demagogos, sob o pretexto de inspiração divina, provocaram ações
revolucionárias e impeliam as massas a agir como loucos. Levavam-nas ao
deserto onde Deus lhes mostraria sinais de iminente libertação.”62
Dos movimentos liderados por profetas de ação, Josefo narrou três que se
destacaram dos demais, cujas características apocalípticas estavam muito claras:
um primeiro movimento se deu entre os samaritanos, no período de Pôncio
Pilatos. Segundo Josefo o líder anunciou ter descoberto vasos sagrados enterrados
por Moisés no monte Garizim. Pilatos reprimiu violentamente o movimento,
matando seus líderes.63 Outro movimento, agora na Judéia, foi liderado por
Teúdas,64 cerca de 45 d.C. Ele afirmou que iria dividir o rio Jordão, como Josué.
Fado, governador da Judéia na época, não permitiu e dizimou o grupo.65 Um
terceiro movimento foi liderado por um judeu ligado ao Egito, na época de Félix
(c. 56 d.C.). Esse defendia uma nova conquista da terra prometida, pretendendo
invadir Jerusalém para se tornar governador. Mas foi igualmente destruído.66 Em
todos esses casos houve franca participação dos camponeses, revoltados com a
dominação romana e a conivência das autoridades judaicas.
ii. Os profetas oraculares
Outro grupo de profetas do qual se tenha conhecimento no primeiro século
são os “profetas oraculares”. Horsley comenta o seguinte sobre eles:
61
HORSLEY, R.A., op.cit., p.146.
JOSEFO, F. Guerras Judaicas, 2.259.
63
JOSEFO, F., op.cit., 18.85-87.
64
Citado pelo fariseu Gamaliel, no discurso presente na narrativa de Atos dos Apóstolos em 5,36.
No relato de Atos parece que ele agiu antes de Judas Galileu (6 d.C.), mas isso é confusão do
autor.
65
JOSEFO, F., Antiguidades Judaicas, 20.97-98.
66
Josefo cita o caso em dois textos: Antiguidades Judaicas, 20.169-171; Guerras Judaicas, II.26163.
62
28
Transmitiam oráculos, tanto de julgamento como de libertação, como o tinham
feito os profetas oraculares clássicos, Amós ou Jeremias, séculos antes. Os profetas
oraculares que anunciavam libertação iminente acham-se concentrados no período
imediatamente antes e durante a grande revolta, quando as condições sociais e
econômicas dos camponeses estavam-se deteriorando ao mesmo tempo que o
comportamento oficial se tornava cada vez mais irregular e opressivo.67
Vários profetas desse tipo são citados por Josefo, inclusive João Batista,68 e
esses profetas incomodaram as elites tanto quanto o outro tipo de profetas. Basta
ver o destino de João Batista nas mãos de Herodes.
Como conclusão dessa rápida análise, percebe-se que o início do século I
testemunhou um florescer da profecia, nos moldes pré-exílicos, mas que carregava
também um teor apocalíptico pós-exílico. Isso demonstra uma releitura das
tradições por parte dos judeus palestinos que sofriam debaixo da opressão
estrangeira e dos desmandos do poder local.
De alguma forma, todo esse panorama influenciou a mentalidade popular
acerca dos profetas. Nos escritos do Novo Testamento, se observa um afastamento
desse tipo de movimento profético, tendo em vista que a pregação de Jesus não o
levou para um confronto direto com o poder romano. Mas é bastante razoável
pensar que os discípulos dele partilharam desse tipo de convicção e desejo de
trazer o reino de Deus pela força.69
Ao mesmo tempo, essa profecia reafirmava o valor da Torá e dos Nebîim,
pois afirmava a busca de fidelidade a um, enquanto se inspirava no ministério
registrado no outro. Será nesse cenário que vamos encontrar Jesus e sua posição
em relação às Escrituras Canônicas dos judeus do século I d.C., conforme
veremos nos próximos capítulos.
Por outro lado, a comunidade de Mateus esteve mais perto desse Jesus que
as demais comunidades cristãs? Será que a afirmação de que ele veio para cumprir
“a Lei e os Profetas” expressa um Jesus tão arraigado nas tradições judaicas, que
as demais comunidades diluíram essa imagem? Ou será que na verdade ele não
teve essa atitude, e foi a comunidade de Mateus que a formulou, numa tentativa de
salvaguardar sua identidade judaica? Para tentarmos responder a essa pergunta,
vamos antes traçar um quadro panorâmico do evangelho de Mateus e seu contexto
de origem.
67
HORLEY, R.A., Bandidos, Profetas e Messias, p.163.
JOSEFO, F., Antiguidades Judaicas, 18.116-119.
69
Cf. GRELOT, P., A Esperança judaica no tempo de Jesus, p.109
68
29
2.2.
O evangelho de Mateus em seu contexto
Na pesquisa a respeito do evangelho de Mateus há muitas convergências
entre os pesquisadores, assim como muitas divergências. Antes de entrarmos no
universo do texto escolhido para análise, vamos fazer uma análise geral sobre o
Evangelho de Mateus em suas origens, a partir do seu Sitz im Leben.
2.2.1.
Objetivo e estrutura geral da obra
Mateus costuma ser identificado como o evangelho mais eclesiástico,70 ao
mesmo tempo em que é o mais próximo da cultura judaica, ou seja, uma obra
cristã num contexto judaico.71 Porém, ocorre uma diferença significativa quanto à
intenção da obra. Em Mateus Jesus é o Messias Salvador, primeiro para o povo de
Israel, mas também já apontando para uma universalidade.
Ao mesmo tempo, em Mateus há um claro questionamento sobre a Lei, de
como ela não tem mais valor diante da nova aliança iniciada em Cristo, mas que,
ao mesmo tempo, continua a ter valor em sua essência. Isso é exemplificado
largamente no Sermão do Monte. Como afirma Koester:
O Sermão da Montanha não deixa dúvidas de que Jesus não veio revogar a lei, mas
para dar-lhe pleno cumprimento, e essa lei impõe aos discípulos a obrigação de
cumpri-la – embora a justiça deles deva ser superior à dos fariseus (5,17-19). Para
explicar essa ‘justiça superior’, Mateus formulou as antíteses do Sermão da
Montanha (5,21-48), que contrapõem ‘o que foi dito aos antigos’ com as palavras
do próprio Jesus: ‘Eu, porém, vos digo’. O que está em jogo em cada caso é uma
radicalização das exigências da lei.72
Para alguns, é o evangelho com maior conteúdo eclesiológico. Mateus teria
menos cristologia e mais questões referentes à Igreja, que continuaria a atividade
de Jesus, especialmente pelo discipulado. Pede-se aos seguidores, acima de tudo,
“obediência incondicional em relação a tudo o que ele ordenou”.73 Mas Jesus está
70
Cf. SCHREINER; DAUTZENGERG, Forma e exigências do NT, pp.274-294; ROLOFF, J. A
Igreja no Novo Testamento, p.159ss.
71
KÜMMEL aponta alguns aspectos que explicam a relação de Mt com o AT: “a) ele não explica
os usos e costumes, os preceitos e as expressões judaicas (..); b)dispõe as narrativas orientado-as
para uma formulação especificamente rabínica de uma questão (...); c) Traz toda uma série de ditos
em apoio da validez incondicional da Lei (...); traz de preferência os ‘logia’ de Jesus que
circunscrevem expressamente a atividade de Jesus a Israel (...); e) adapta a maneira de se exprimir
de Jesus às expressões próprias dos judeus (...).” Introdução ao NT, pp.135-137.
72
KOESTER, H., Introdução ao NT 2, p.191s.
73
ROLOFF, J., A Igreja no NT, p.160.
30
presente para acompanhar a caminhada da Igreja, a partir da autoridade
escatológica que lhe foi conferida. Por isso, a Igreja supera Israel como
testemunha de Deus aos povos, indo ao encontro dos gentios. Essa compreensão
situa Mateus numa heilsgeschischte onde a ekklesia é o novo povo de Deus.74
Carter coloca em maior evidência a situação da comunidade frente ao
império romano, o que aproxima Mateus da tradição deuteronomista, a qual
entende que os eventos históricos demonstram o juízo divino se concretizando. O
império romano estaria nas mãos de Deus na destruição de Jerusalém, mas teria
extrapolado seu papel, cuja oposição não poderia ser pela violência, e sim por
uma visão da história na qual Deus puniria Roma também por seus pecados.75
A estrutura do evangelho tem por princípio diferenciar blocos narrativos e
de discursos. As propostas clássicas para a estrutura de Mateus – Bacon, com a
estrutura dos cinco livros alternados por narrativas76; o sistema concêntrico de
Lohr, com seis narrativas e cinco discursos77, ou ainda na mesma linha a divisão
em cinco partes (com narrativa e discurso em cada uma) de Rolland78 - apontam
sempre para o mesmo processo, de se ter uma parte narrativa alternada por um
bloco de discurso. Essa estrutura mostra uma intenção de colocar Jesus frente a
Moisés e ao Pentateuco.79
Uma característica própria em Mateus é a de comentar as narrativas, no
momento em que compara a situação com textos do Antigo Testamento. E Mateus
vê nisso não obra do acaso, mas o fato de que todas as coisas acontecem por
vontade de Deus, que já tinha estabelecido essa história, com conseqüências
universais.80 Para Mateus, Jesus é – da mesma maneira como foi anunciado por
Marcos – aquele que veio para pregar o reino de Deus e o mestre. Mas a ênfase
74
ROLOFF é um dos autores que defende essa interpretação. Cf. op.cit., pp.159-187. KOESTER
concorda que o Sermão do Monte não está endereçado a indivíduos, mas a toda a Igreja. Por outro
lado, destaca-se o fato de ser o único evangelho a utilizar a palavra “igreja” [evkklhsi,a], em Mt
16,18 e 18,17, sempre relacionando à comunidade de seguidores de Jesus. Cf. op.cit., p.192.
75
Cf. CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, pp.63-72.
76
BACON, “The Five Books of Matthew Against the Jews”, The Expositor VIII, 85, pp.56-66.
77
C.H. LOHR, “Oral Techniques in the Gospel of Matthew”, CBQ 23 (1961)
78
ROLLAND, “From the Genesis to the End of the World. The Plan of Matthew’s Gospel”, BT 2,
p.156.
79
Outras estruturas, no entanto, podem ser identificadas, dependendo das referências com que se
trabalhe. Kümmel e Garcia preferiram por não adotar esse sistema de estrutura quíntupla. Win J.
C. Weren, que abordou a questão em artigo recente, aponta que os diversos estudos feitos a
respeito mostram que não é simples declarar se há uma estrutura básica no evangelho. Cf.
WEREN, “The Macrostructure of Matthew’s Gospel”, p.171-200. Em nossa pesquisa vamos
considerar a estrutura clássica de narrativa-discurso.
80
Cf. BARBAGLIO, G., Os Evangelhos (I), p.50.
31
mateana recai sobre a idéia do mestre, como bem demonstra o Sermão do
Monte.81 Por outro lado, Mateus enfatiza Jesus como “o Messias Salvador
enviado por Deus, o rei de Israel.”82
Um terceiro aspecto importante no objetivo de Mateus, além da eclesiologia
e da cristologia é a escatologia.83 Em Mateus, a vinda do reino de Deus, seu juízo
sobre o mundo e a recompensa final para os fiéis não apenas aspectos do
querigma, mas temas fundamentais, que perpassam toda a obra. Aparecem muito
mais perícopes com esse motivo do que em Mc e Lc juntos.84
Esse texto, em que a comunidade é considerada parte do projeto de Deus
para o mundo, Cristo é o Messias, e há uma mensagem escatológica perpassando
a pregação, reflete seu Sitz im Leben. Uma comunidade que precisa de orientação
para a vida, mas que é seguidora dos princípios de Jesus.85
2.2.2.
Fundo histórico do texto
Há um consenso bastante grande quanto ao tempo em que nasceu o
evangelho de Mateus. Sendo ele dependente de Marcos, e tendo esse sido escrito
entre os anos 64-70 d.C.86, Mateus não poderia ser anterior a 70. Por outro lado, a
o fato de Inácio conhecê-lo também impede uma data posterior a 100. Além disso,
não deve ter sido escrito próximo aos anos 70, por realizar uma revisão bastante
81
Ibid., p. 51.
CAMACHO, F.; MATEOS, J., O Evangelho de Mateus, p.8. No entanto, do ponto de vista dos
antagonistas Jesus é julgado por suas curas e milagres, “pelo poder do maioral dos demônios”, em
9,34, e como “enganador”, em 27,63s. Isso indica que o ministério de Jesus em Mateus não pode
ser resumido a faceta de mestre, mesmo que haja uma ênfase nesse sentido. Cf. STANTON, G.N.
A Gospel for a New people, p.171 passim.
83
De acordo com STANTON, G.N., “Matthew writes with several Christological, ecclesiological
and eschatological concerns.” A Gospel for a New People, p.43. MARGUERAT, D., compôs sua
pesquisa exatamente considerando o julgamento escatológico, como algo presente o tempo todo na
obra de Mateus. Le jugement dans l’Évangile de Matthieu. KÄSEMANN realizou uma
conferência em 1960 a respeito da relação de Mt com a mensagem apocalíptica cristã, transcrita no
artigo “Os inícios da Teologia Cristã”, Apocalipsismo, pp.231-254. A repercussão dessa pesquisa
foi tão grande que Bultmann respondeu a Käsemann através de um artigo, em 1964, na revista
APOPHORETA, Festschrift für E. Haenchen.
84
MARGUERAT comenta que os textos de Mt que tem esse acento são 60 em 148 perícopes,e
enquanto Mc são 10 em 92, e em Lc 28, em 146. Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.13.
85
Stanton analisa a possibilidade do evangelho de Mateus ter atendido, na verdade, a várias
comunidades, e não somente a uma, como normalmente se pensa, tendo em vista que ele escreveu
no gênero evangelho e não epístola. Cf. STANTON, G.N., A Gospel for a New People, p.45
et.seq. Mesmo concordando com essa possibilidade, vamos tratar aqui da comunidade (singular),
como uma grandeza ideológica.
86
Cf. KÜMMEL, W.G., Introdução ao Novo Testamento, p.117. De fato ele defende o ano 70
como a data da composição.
82
32
considerável do texto de Marcos. Considerando esses aspectos, mesmo não sendo
muito conclusivos, vários autores sugerem uma datação entre 80-90 d.C.87, a
partir da qual vamos basear nossa pesquisa.
Um aspecto importante para um trabalho que pense a autenticidade dos ditos
de Jesus em Mateus e, por conseguinte, nos ajude a pensar a posição de Jesus
frente à Torá, é a tradição a que o evangelista teve acesso. Koester comenta que
há uma probabilidade do “Evangelho dos Ditos” (Q) já estar sob autoridade de
Mateus mesmo antes da redação do evangelho, que teria reelaborado esse
material, ao juntar o material de Marcos. E não só ele teria tido acesso a esse
material, mas Tomé também. Assim, “Mateus e Tomé teriam sido então as duas
autoridades apostólicas mais antigas para a transmissão dos ditos de Jesus.”88
A autoria de Mateus também é cercada de incertezas e questionamentos.
Apesar dos manuscritos não trazerem no corpus a identidade do autor, já no
século II foram agregados cabeçalhos que afirmavam euagglion
katta
Maqqaion89 ou mesmo apenas kata Maqqaion90. Isso se deve aos textos de
Papías, que não foram preservados, mas chegaram até nós numa clássica citação
de Eusébio de Cesaréia: “Referente a Mateus, diz o seguinte: ‘Mateus ordenou as
sentenças em língua hebraica, mas cada um as traduzia como melhor podia.’91 O
fato de Papías usar o nome de Mateus, relacionando com o apóstolo, não define
realmente se ele seria o autor. Mateus passa a ser a identidade do “autor”, no
sentido da comunidade de fé relacionada ao apóstolo Mateus.92
87
KÜMMEL, W.G., op.cit. p.145 et.seq.; MAZZAROLLO, I., Evangelho de São Mateus, p.3
et.seq.; CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.35 et.seq.; MATEOS e CAMACHO, O
evangelho de Mateus, p.10 et.seq.; STEGEMANN, E., História social do protocristianismo, p.257
et.seq.
88
KOESTER, H., Introdução ao NT, p.188. Como confirmação dessa possibilidade, temos o
estudo de KLOPPENBORG, J. S., The Formation of Q, a respeito da fonte Q, além da posição de
STANTON, A Gospel for a New People., que afirma o uso de Q por Mateus como uma
reelaboração de gênero, ou seja, o evangelista já teria encontrado a fonte Q pronta e adaptado para
seu gênero próprio, junto com Marcos.
89
“Evangelho segundo Mateus” de acordo com as unciais W e D, as minúsculas da família 13, a
versão boaírica, ou seja especialmente no texto Cesareense, além do texto Majoritário, que indica a
presença dessa forma no texto Bizantino. Cf. WEGNER, U., Exegese do NT, pp.41-45.
90
“Segundo Mateus”, testemunhado pelas unciais a e B, nos melhores maiúsculos do Novo
Testamento, segundo o texto Alexandrino. Cf. Ibid., pp 41-45.
91
FISCHER (Trad.), HE, III, 39, 16. Sobre a questão de Mateus ter sido escrito em grego, ver
KOESTER, H., Introdução ao NT 2, p.188; KÜMMEL, Introdução ao NT, pp.146-148.
92
Cf. CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.33s. Quanto à afirmação de que Mateus não
seria o autor citamos o próprio Koester, op.cit., p.187s, bem como Kümmel, que afirma que “o
autor de Mateus, cujo nome nos é desconhecido, teria sido um cristão proveniente do judaísmo e
de fala grega, que provavelmente seria possuidor de erudição rabínica”, op.cit., p.148. com quem
concordam Mateos e Camacho, O Evangelho de Mateus, p. 11.
33
Quanto ao lugar de origem, as opiniões se dividem. Alguns autores
reafirmam a posição tradicional da exegese moderna de situar Mateus na Síria,
provavelmente em Antioquia.93 Outros, mais recentemente, o situam na Palestina,
seja em Séforis ou Tiberíades.94 Para a atual pesquisa levou-se em conta uma
proximidade do contexto palestino e Galileu, o que significa que concordamos
com a segunda hipótese geográfica. De fato, o embate entre círculos cristãos e
fariseus só pode ser plenamente compreendido a partir de uma análise da situação
ocorrida na Palestina, após o ano 70 d.C. Mesmo que o texto final tenha sido
escrito na Síria, transparece conflitos originários da Palestina. Ou seja, em sua
formação, a comunidade associada ao evangelho de Mateus tem fortes ligações
com o judaísmo.95
2.2.3.
Características da comunidade a partir do movimento de Jesus
O seguimento de Jesus em Israel se deu efetivamente na região da Galiléia,
pelo que se constata em todos os evangelhos canônicos.96 Alguns identificam que
o movimento dele tinha muito a ver com os movimentos populares
contemporâneos, especialmente com reis populares e expectativas messiânicas.97
93
Cf. KÜMMEL, W.G., Introdução ao NT, p.145s; MATEOS e CAMACHO, O Evangelho de
Mateus, p.10; MAZZAROLO, I., Evangelho de São Mateus, p.5s; CARTER, W., O Evangelho de
São Mateus, p. 34s.; KOESTER, H., Introdução ao NT, p.188.; RICHARD, P., “A origem do
cristianismo em Antioquia”, p40 et.seq.
94
Cf. OVERMAN, O evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.27-29, seguido por
GARCIA, O Sábado do Senhor Teu Deus, e STEGEMANN, História, p.257. Outro que expressa
essa opinião é SALDARINI, “The Gospel of Matthew and Jewish-Cristian Conflicts”, In:
LEVINE, The Galilee in late Antiquity, pp.23-38.
95
CARTER, W. O Evangelho de Mateus, p.54 et.seq.
96
Sobre a questão do ministério de Jesus na Galiléia ver o estudo aprofundado de FREYNE, S. A
Galiléia, Jesus e os Evangelhos. Um dos aspectos que ele aborda é o problema da descrição dos
evangelhos como retratos não-históricos da situação. Ele chega mesmo a afirmar que entre as
evidências históricas do contexto galileu e as narrativas evangélicas há tal discrepância que “é
difícil ver como um ministério carismático/profético, tal como o que Jesus realizou, pôde
desempenhar ali um papel significativo.” P.189. Contra essa posição, porém, HANSON, J.S., e
HORSLEY, R.A., Bandidos, Profetas e Messias, que considera pertinente o que foi narrado por
Josefo e outros a respeito de revoltas camponesas na Judéia, bem como na Galiléia. Ele cita, por
exemplo, que “a cidade de Séforis, que foi incendiada e cujos habitantes foram vendidos como
escravos no ano 4 a.C., estava situada apenas algumas milhas ao norte da aldeia Nazaré, a terra de
Jesus.” p.111. MERZ, A. E THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.190 et,seq, também defende que
havia tensões de diversos tipos (entre judeus e gentios, entre cidade e campo, ricos e pobres,
governantes e governados, na Galiléia).; Também GARCIA, P.R., O Sábado do Senhor teu Deus,
p.30 et.seq.
97
Cf. HANSON, J.S., e HORSLEY, R.A. op.cit. 89 passim; Também HORSLEY, R.A., Jesus e o
Império, p.80 passim; CROSSAN, J.D., O Jesus Histórico, p.340 passim; GRELOT, P., A
esperança judaica no tempo de Jesus, p.109 passim.
34
De fato, era um movimento popular, de massa, com ensino em parábolas, e
demonstração da chegada do reino de Deus pela realização de curas e milagres.98
É possível fazer uma diferenciação entre três fases para um estudo do
fenômeno do seguimento de Jesus: uma primeira fase do seguimento
propriamente dito, com uma relação discípulo-mestre; uma segunda fase da
“protocomunidade” de Jerusalém, surgida logo após a morte e ressurreição de
Jesus; uma terceira fase, das “comunidades messiânicas”, a partir de 70 d.C.,
principalmente retratadas nos evangelhos de Mateus e João. Para um estudo a
partir do evangelho de Mateus, por conseguinte, temos diante de nós essa última
fase, o que está em concordância com a datação anteriormente trabalhada.99
Tendo por princípio que as comunidades palestinenses herdaram muito das
características do seguimento original de Jesus – com algumas modificações
institucionais necessárias –, é interessante levantar alguns dados que tem sua fonte
ainda no próprio Jesus e seu movimento. Alguns aspectos que Stegemann aponta
do seguimento de Jesus podem ter sido claramente continuados pela comunidade
cristã de Mateus. Esses aspectos se apresentam especialmente na “desviância
genuína, mas sem ruptura com o judaísmo”, e mantém a relação com as
instituições religiosas do judaísmo, com os elementos básicos da fé judaica, e com
a Torá.100
Aplicado ao movimento de Jesus, Stegemann sugere que “o caráter
carismático do seguimento de Jesus implica certa desviância genuína e uma
concepção pré-política”.101 A mensagem de Jesus, da irrupção do reino de Deus,
98
Cf. GNILKA, J, Jesus de Nazaré, p84 passim. THEISSEN, G. Sociologia do Cristianismo
Primitivo, p.33 et.seq. Ele afirma que “já em seus inícios, o movimento de Jesus visava a
integração.”
99
Cf. STEGEMANN, E.; W., História social do protocristianismo, p.217.
100
STEGEMANN, E.; W., História social do protocristianismo, pp.217 et. passim. Por desviância
Stegemann define uma nova abordagem para o termo hairesis usado por Josefo para falar dos
grupos judeus no primeiro século. Por ser um conceito de origem grega – “partido” – padece do
fato do grupo ter uma escola que trata apenas dele mesmo. O que aconteceu na Palestina do
primeiro século é que esses grupos pensaram a identidade do judaísmo como um todo. Por outro
lado, o conceito utilizado por Weber de “seita” (na obra Wirtschaft und Gesellschaft: Grundriß der
verstehenden Soziolage. 5.ed., 1976) , foi colocado em contraponto à igreja. Esse conceito, de fato,
não ajudou a perceber “as diferenças específicas entre esses grupos”. THEISSEN chama essa
desviância de “radicalismo itinerante”, a partir da transmissão das palavras de Jesus nos sinóticos,
Sociologia da cristandade primitiva, p.36.
101
STEGEMANN, E.; W., op.cit. p.238. Com isso, Stegemann propõe uma nova abordagem, a
partir da teoria da desviância, que “descreve o processo da formação de desviância em conexão
com situações fundamentais de crises nas sociedades, bem como a formação de grupos como parte
de uma ‘carreira de desviância’ em que a exclusão inicial como divergente é neutralizada”. P.179.
Decisivo para que isso aconteça, de acordo com essa teoria, não é a reação ao grupo desviante,
nem tampouco que essa desviância aconteça numa sociedade altamente estruturada em termos
35
bem como a aceitação dos excluídos da sociedade em seu movimento
caracterizam bastante essa desviância, mesmo que Jesus apresentasse certa
expectativa compartilhada com outros grupos e movimentos. Aí temos uma
ruptura implícita com o judaísmo. Mas não se pode afirmar que a ruptura
definitiva se deu já no movimento, pelo contrário, deve ter se dado a partir de uma
intensificação no processo de desviância nas comunidades cristãs pós-70 d.C.
Mas, “é evidente que essa autocompreensão escatológico-carismática do
seguimento de Jesus marcou também sua relação com as instituições do judaísmo
e especialmente com a Torá”.102
Em relação aos aspectos gerais da fé judaica, é possível ver em Jesus uma
relação de prática fiel, como os diversos relatos em que o mostram em reuniões
nas sinagogas aos sábados (Mc 1,21.39; 3,1; 6,2; Lc 4,15ss, etc.). Ali Jesus
participa normalmente, questionando em alguns casos aos religiosos que
freqüentam ao local, não o processo em si.103 Com relação ao Templo, apesar da
atitude marcante de Jesus contra os cambistas, não há da parte dele uma posição
prévia contrária ao Templo. Outros grupos, inclusive os fariseus, também faziam
críticas à administração sacerdotal.104 Por fim, Jesus também não teve uma atitude
contrária à família. Ainda que seu seguimento exigisse um afastamento da família
terrena, ele foi a favor do sustento dos pais (Mc 7,10-13), do acolhimento de
crianças órfãs (Mc 9,37) e contra o divórcio (Mc 10,1-12). Jesus seguiu os
princípios básicos da fé judaica, como o monoteísmo e a teologia da aliança. Da
mesma forma, sua relação com a Torá parte de um respeito e uma atitude positiva.
ideológicos, mas as circunstâncias de crise que forçam uma nova tomada de posição e uma nova
orientação.
102
STEGEMANN, E.; W., op.cit., p.238. Para G. THEISSEN, realmente foi uma separação
paulatina. Como ele afirma: “após a morte de Jesus, seu movimento de renovação intrajudaico
transformou-se numa seita judaica. (...) A partir do ano 70 d.C. a ‘seita’ se torna um cisma
definitivo – condicionado pela destruição do templo e por desenvolvimentos internos do judaísmo
e do cristianismo primitivo.” O Jesus Histórico, p.167. No entanto, ele já afirmou que Mateus, por
exemplo, formula certas ordenanças “a partir de uma perspectiva intra-judaica”. Cf. Sociologia da
cristandade primitiva, p.104.
103
VERMES, A religião de Jesus, o judeu, p.21 et.seq. Entretanto, o autor aponta o curioso fato de
não haver nessas passagens clara alusão a uma participação de Jesus em atos de culto nas
sinagogas, com exceção da leitura do rolo em Lc 4,16-21.
104
THEISSEN lembra que a Galiléia como um todo tinha “uma marcada devoção ao templo por
parte dos galileus e uma forte ligação dos habitantes da periferia com o centro do culto judeu e
com as instituições afiliadas a ele”, conforme demonstram as fontes. MERZ, A. E THEISSEN, G.,
O Jesus Histórico, p.198.
36
Esses aspectos básicos parecem se expressar também na comunidade de Mateus,
caso se tenha a Palestina como lugar de origem.105
Pelos aspectos levantados acima, entende-se que a comunidade de Mateus
teria uma prática semelhante à de Jesus, sem a intenção de criar uma religião ou
fechar-se ao judaísmo. No entanto, o texto do evangelho e as pesquisas realizadas
demonstram que, internamente, a comunidade vivia sob tensão.106 O principal
motivo dessa tensão interna é a questão a respeito da Lei e sua observância.
Enquanto um grupo defendia a Lei e sua validade (cf. 5,17-20; 10,5-6; 23,1-3),
outro fazia uma releitura dela ou pelo menos da observância judaica (5,17-48;
23,1-36).107 A comunidade de Mateus seria, então, formada por um grupo misto,
“composta por um setor judeu-cristão de rígidos observantes e de um estrato de
cristãos mais abertos”.108
Mateus não trabalha com diferentes níveis de crentes (a multidão e os
perfeitos), mas com a idéia de “discípulos”, seguidores que devem buscar a
perfeição, ou o ser perfeitos [te,leioj].109 Assim, o evangelho de Mateus
expressaria uma oposição contra os antinomianos da comunidade (Mt cita aqueles
que não praticam a Lei - avnomi,an - três vezes: 7,23; 13,41; 24,12), os quais
relativizavam as exigências da perfeição. Para eles, o Antigo Testamento foi
válido até Jesus, mas agora não tinha mais sentido para a Igreja.110 Ao mesmo
tempo, a comunidade de Mateus não era uniforme do ponto de vista social, e
expressava um pouco da sociedade à qual estava ligada.111
105
Cf. FLUSSER, Jesus, p.37 et.passim;
Cf. CARTER, W. O Evangelho de São Mateus, p.54-63. Mesmo considerando que ele tome
Antioquia como lugar de origem do evangelho de Mateus, os conflitos aos quais se refere são
válidos para uma análise tendo por base a Palestina. Em ambos a polêmica tem como foco o grupo
dos judeus seguidores de Cristo contra os judeus não-seguidores, que têm o poder da sinagoga.
107
Cf. BROWN, R., An Introduction to the New Testament, p.213.
108
Cf. BARBAGLIO, G. Os Evangelhos 1, p.39 et.seq.
109
BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.96 et.seq.
110
Ibid., p.159. Alguns conjeturaram se esse grupo seria paulino, mas de fato deve se tratar de
cristãos gentílicos que começam a pressionar os cristãos judeus por uma atitude mais aberta em
relação à Lei, conforme se verifica nas discussões em Atos 15, e nas epístolas de Paulo e de Tiago.
Para Stanton, no entanto, não é possível, de forma sumária, identificar que sejam esses oponentes
internos. Ele afirma: “Hypotheses based on a possible interpretation of one verse, or even of a
cluster of verses, are likely to be insecure. The only opponents who are in view from the beginning
to the end of Matthew’s gospel (form 2.1 to 28.15) are the Jewish leaders.” STANTON, G.N., A
Gospel for a New People, p.49.
111
Cf. CARTER, W. O Evangelho de São Mateus, p.48 et.seq. Partindo do pressuposto que o
evangelho teria nascido em Antioquia, o autor analisou o estrato social daquela cidade. Ele aponta
que em Mateus o grupo se identificar como “pequeno”, seja numericamente, seja na condição
social. Segundo ele, “dado a experiência comum de endividamento, perda de terras e perda de
status e relações de parentesco conforme o povo rural se mobilizava para a cidade procurando
106
37
Além dos problemas internos (ou que estivessem ligados a outros grupos
crentes em Cristo), a comunidade de Mateus igualmente esteve sob forte pressão
externa, que levou o grupo a uma ruptura completa com o judaísmo de sua época.
O estudo dos grupos antagônicos é fundamental para entender esse quadro.
2.2.4.
Os grupos antagônicos
A destruição do Templo, como resultado de Guerra Judaica de 66-70 d.C.
trouxe uma série de mudanças significativas para os piedosos palestinenses, sejam
eles judeus ou cristãos.
Acabaram o culto sacrifical e muitos atos e deveres religiosos ligados ao templo
(...). As funções dos sacerdotes no templo tornaram-se obsoletas, assim como o
cargo do sumo sacerdote. Terminaram as tarefas tradicionais do Sinédrio, que tinha
112
sua sede no templo.
Essa quebra exigiu novas respostas, que culminaram na formação de um
judaísmo mais voltado para observância da Lei como princípio de vida, e menos
dependente de preceitos rituais ligados ao templo. Importante para isso foi o papel
dos sábios e dos mestres da lei, grupo que passou a se destacar a partir daí. Esse
período é conhecido como o nascedouro do “judaísmo rabínico” ou “judaísmo
clássico”. Ou no dizer de Overman, o “judaísmo formativo”.113 O grupo de
Mateus vai ter sérias controvérsias com esse grupo, mesmo que cada um estivesse
estabelecendo seu próprio projeto.114 É possível que o conflito de fato fosse bem
mais amplo e até mais fragmentado, mas as narrativas que chegaram a nós, em
especial no evangelho de Mateus, mostram uma pequena parte dele.115 Seja como
algum meio para sobreviver, é provável que parte dessas pessoas fizesse parte da audiência de
Mateus.” P.50. Então deveriam haver ricos, pobres, livres, escravos, comerciantes, etc.
participando da comunidade.
112
STEGEMANN, História social do protocristianismo, p.254.
113
OVERMAN, O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.14s. Ele chega a afirmar que
há uma substancial diferença entre dois: “a evolução do judaísmo formativo para o rabínico foi um
processo histórico prolongado e complexo que ocorreu ao longo de um período de várias centenas
de anos.”
114
Cf. o comentário de P. R. GARCIA: “os essênios e os cristãos abandonaram o Templo e
estabeleceram seus próprios ritos de piedade e serviço religioso; os fariseus ficaram numa posição
intermediária”, O Sábado do Senhor teu Deus, p.45. Também MAZZAROLO, I., Evangelho de
Mateus, p.5. Ele afirma: “Os que aderiram ao cristianismo eram hostilizados pelos que os
rejeitavam a e as perseguições eram constantes.”
115
Como afirma J.A. OVERMAN: “No conflito entre o judaísmo formativo e o judaísmo de
Mateus, somos expostos a uma fatia bastante pequena do processo global de definição e
consolidação judaica do período pós-70.” O Evangelho de Mateus e o Judaísmo formativo, p.15.
38
for, há uma tensão crescente entre esses diferentes grupos, diante do vácuo de
referência para a fé judaica. Bonneau indica essa tensão:
O Evangelho de Mateus dá conta de diversos conflitos que permitem uma
reconstrução plausível da situação dos seus destinatários. (...) Mateus luta contra os
adversários externos, judeus, fariseus com toda a evidência, do meio dos quais sua
comunidade e ele mesmo saíram e aos quais ele opõe uma nova compreensão da fé
judaica, à luz do acontecimento Jesus. Uma profunda rivalidade se estabelece entre
os dois grupos e conduz a uma violenta polêmica, até mesmo a uma perseguição.116
O Evangelho de Mateus cita vários oponentes a Jesus – fariseus, escribas,
chefes de sinagoga, saduceus, sacerdotes, governantes judeus e romanos -. Alguns
de fato não existiam ou pelo menos não tinham mais a mesma força nos anos pós70, como o saduceus117. Outros se fortaleceram nos processo de descentralização
da religião e busca de renovação da identidade, como os fariseus e os escribas,
grupos centrais para o estudo em questão.
2.2.4.1.
Os fariseus
O grupo dos fariseus é um dos mais citados em Mateus como antagonista.118
J. de Fraine descreve os fariseus como “um partido religioso, no judaísmo, que se
aplicava a estudar profundamente a lei mosaica e as tradições dos antepassados, e
propugnava a mais rigorosa observância da sua interpretação da lei.”119 Além
disso, são caracterizados como um movimento leigo originado da resistência
contra o esvaziamento dos ideais religiosos tradicionais do judaísmo por parte da
realeza sacerdotal secularizada (os saduceus).120 Entretanto, dependendo da fonte
116
BONNEAU, Profetismo e Instituição no Cristianismo Primitivo, p.181. Overman trabalha a
questão. Igreja e comunidade em crise – o Evangelho segundo Mateus, esp. p.18.
117
Os saduceus surgiram de círculos sacerdotais favoráveis ao governo hasmoneu, e também
tinham o templo como centro da religião israelita. Como se consideravam sucessores do sumo
sacerdote Sadoc, do tempo do rei Davi, entendiam que o sistema do Templo lhes assegurava poder
e estabilidade. Aliás, O Templo foi o principal motivo de sua rivalidade com os fariseus e porque
não dizer dos essênios. Era um grupo conservador e ortodoxo em suas crenças e posturas.
Acreditavam acima de tudo na unidade de culto, nação, terra e história. Sua doutrina baseava-se na
crença de que o ser humano faz o seu destino; a negação do além, bem como da ressurreição dos
mortos e prêmio após morte; atentavam apenas para a Torah escrita, rejeitando toda a Torah Oral.
Estavam ligados às classe superiores. No entanto, a maior parte das informações que temos a seu
respeito é de fonte indireta, o que pode carregar certas distorções movidas por preconceito. Sobre
eles ver SALDARINI, Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense, pp.307-316; Em
STEGEMANN, uma abordagem social em termos de movimento de desviância, História social do
protocristianismo, pp. 176-185; ROLOFF, A igreja no Novo Testamento, p.22s.
118
Mt 3,7; 5,20; 9,11.14.34; 12,2.14.24.38; 15,1.12; 16,1.6.11.12; 19,3; 21,45; 22,15.34.41; de
forma especial as imprecações do cap.23, onde inclui os escribas; 27, 41.62.
119
FRAINE, J de, “Fariseus”, Dicionário Enciclopédico da Bíblia, p.557.
120
Ibid., p.558. Também conforme a pesquisa de KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento
1, p.240s; ROLOFF, J., A igreja no Novo Testamento, p.20.
39
a qual consultamos, a configuração do grupo dos fariseus pode ter diferentes
características. Flávio Josefo os designa como grupo de interesse político, que
teria surgido como tal por volta do final do século 2 a.C., na época de João
Hircano.121 Na literatura rabínica que surgiu a partir do século 3 d.C. os fariseus
são indicados como mestres, a partir das escolas de Hillel e Shammai, dois
fariseus notáveis do primeiro século, o que dificulta a interpretação das
descrições.
De um modo geral, no entanto, há evidências de que os fariseus compunham
associações, ou grupo de comensais, que desejava ter influência sobre Israel, mas
não alcançou essa proeminência.122 A composição social desse movimento,
segundo a pesquisa feita por Stegemann a partir das fontes, indica uma pertença
aos estratos superiores, tanto da elite quanto do séqüito.123 Já Saldarini, em sua
pesquisa, enxerga uma mescla maior nos estratos sociais. De fato ele coloca a
questão de modo abrangente:
Uma questão importante, não respondida pelas fontes, diz respeito às atividades
diárias dos fariseus e a origem dos meios de vida. A teoria antiga de que eles eram
artesãos urbanos é muito improvável, porque os artesãos eram pobres, sem
instrução e sem prestígio. A teoria mais comum de que os fariseus eram um
movimento escribal leigo, um grupo de estudiosos e intelectuais religiosos que
substituíram os líderes tradicionais e obtiverem grande autoridade sobre a
comunidade é igualmente muito implausível. Embora alguns fariseus fizessem
parte da classe governante, a maioria eram funcionários subordinados, burocratas,
juízes e educadores. Eles são mais bem compreendidos como conservadores que
eram servos letrados da classe governante e tinham uma proposta para a sociedade
judaica e influência junto ao povo e junto aos seus patronos.124
O nome do grupo deve derivar do hebraico perushîm (~yviWrp.), da raiz
hebraica prs (vrp), que pode significar “os que estão separados”, ou
“separatistas”.125 Essa designação é pouco freqüente na literatura rabínica, sendo
muitas vezes usada pelos seus adversários de forma pejorativa, significando, em
sentido negativo, “sectários” ou mesmo “hereges”, afastados dos outros de modo
121
Cf. descrito em A. Saldarini, op.cit., p.99 et.seq. Ele aponta que “grupos como os fariseus, que
existiram por dois séculos, mudam com o tempo, às vezes significativamente”. P.290
122
Cf. SALDARINI, A., op.cit., p.223-229. Também STEGEMANN cita a questão, op.cit.,
p.183s.
123
STEGEMANN, História social do protocristianismo, p.185-188. O quadro da p.216 mostra a
condição dos principais grupos na pirâmide social da terra de Israel, no primeiro século.
124
SALDARINI, Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense, p.294. (Destaques
meus). De fato Saldarini se aproxima da posição de Stegemann, quando este aproxima os fariseus
do grupo do séqüito, que estaria a serviço da elite, cf. nota anterior. Sobre o sistema de classes de
um modo geral ver o próprio Saldarini, pp.53-59, e Stegemann, op.cit., pp.71-118.
125
Cf. FRAINE, J de, “Fariseus”, Dicionário Enciclopédico da Bíblia, p.557.
40
ilegítimo.126 O significado dessa separação, em sentido positivo, pode ser de
“pessoas que se retraíram da sociedade judaica normal ou da sociedade gentia, a
fim de observar a lei judaica (pureza, dízimo) mais rigorosamente”. É possível
entender o sentido de prs como “intérpretes”, o que estaria de acordo com a
abordagem do Novo Testamento sobre o grupo, no qual demonstra que os fariseus
tinham sua própria interpretação da Lei.127
Pelo contato com a cultura helenista, desenvolveram aspectos inovadores no
judaísmo. Formaram importantes escolas, como as de Hillel e de Shammai, de
onde surgiu o movimento do rabinismo, que existe até hoje.128 Também
enfatizaram a possibilidade do indivíduo cumprir a vontade divina, contra o
conceito tradicional da salvação coletiva. Em termos de doutrinas, acreditavam
numa sinergia entre Deus e os homens; na ressurreição dos justos e na punição
dos maus; acrescentavam Tradição Oral (Haggadah e Hallakah) à Torah mosaica;
estavam próximos do povo simples (!)129, e tem seu respeito; honravam os antigos
e buscavam ter comunhão entre si.130
Uma das práticas mais importantes dos fariseus foi a observância da Torá
Oral, ou nos termos de Josefo, das tradições (paradosis):
O que eu gostaria agora de explicar é isto, que os fariseus entregaram ao povo
muitas observâncias segundo a tradição de seus Pais, que não estão escritas na Lei
de Moisés; e, por esta razão, os saduceus rejeitaram-nas e dizem que devemos
honrar as observâncias que estão em nossa palavra escrita, e não observar aquelas
que são derivadas da tradição de nossos antepassados. Quanto a essas coisas,
grandes disputas e diferenças surgiram entre eles.131
Essas tradições defendidas pelos fariseus se chocaram com a interpretação
de Jesus e consequentemente com a comunidade de Mateus, conforme se percebe
em várias passagens (Mt 12,1ss; 15,1ss; etc.). Isso por que “tanto o judaísmo
formativo como a comunidade de Mateus estavam preocupados em legitimar suas
126
Cf. MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.250; D. FLUSSER comenta que “na
literatura rabínica, os sábios nunca designam a si mesmos de fariseus. Conhecemos, porém, dois
homens que assim o faziam: Flavio Josefo e Paulo.” Jesus, p.46.
127
Cf. OVERMAN, J.A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.75. Ele cita Josefo
que descreve os fariseus como “os intérpretes mais acurados da Lei”. P.75. Também SALDARINI,
A., Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense, p.232.
128
Cf. KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento 1, p.241, onde ele comenta: “a ‘escola’ e
as tradições de interpretação transmitidas de mestre a discípulo tornaram-se a instituição religiosa
principal do judaísmo farisaico, análoga à função da escola nos meios filosóficos da antiguidade.”
129
No entanto, E. STEGEMANN fala de uma relação distanciada com o “am há áretz” da Galiléia.
Cf. História social do protocristianismo, p.183.
130
Cf. SALDARINI, A. op.cit, pp.123-126, onde compara o grupo com os saduceus; KOESTER,
H., op.cit., p.238 passim. Sobre isso ver OVERMAN, op.cit., pp.70-75.
131
Antologias Judaicas, 13.10.6 – 297.
41
crenças e comportamento.”132 Em termos práticos, se trata de interpretar a Lei e
defender uma paradosis adequada à existência de cada grupo, que acabava
entrando em choque com a visão do outro grupo, visto como adversário.
Curiosamente, todos têm em mãos o mesmo instrumento (a Lei e os Profetas
como escritura reguladora) e o mesmo propósito (realizar a vontade de Deus).133
Entretanto, não eram apenas os cristãos que tinham conflito com os fariseus.
Eles tinham clara oposição por parte dos saduceus, que os consideravam
hipócritas e rejeitavam sua paradosis. Flusser relata a respeito que “em seu leito
de morte o rei saduceu Alexandre Janeu advertiu sua esposa não contra os
verdadeiros fariseus mas contra os ‘pintados’.”134 Os essênios chamavam os
fariseus de “caiados”, referência que encontramos em Jesus (cf. Mt 23,27s).135
2.2.4.2.
Os escribas
Ao lado dos fariseus encontramos diversas citações sobre os escribas136,
como um grupo que tem sua própria estrutura e ideologia. Mas quem eram os
escribas? Como podemos identificá-los historicamente?
A palavra “escriba” vem do grego [grammateu,j] e descreve um funcionário
que trabalha para a elite, compilando documentos, ou mesmo que realiza essa
tarefa no povoado.137 No contexto judaico isso também aconteceu, porém a
origem hebraica está na palavra sôfer (rpewOs), da raiz spr (rps), que indica a
132
OVERMAN, J.A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.71. O autor aponta para a
questão do desenvolvimento de tradições como parte da construção social de um grupo que produz
um novo movimento numa sociedade. É preciso dar autoridade normativa à maneira como o grupo
se organiza, para que as gerações seguintes se guiem pelos mesmos valores. Nas palavras de
Overman, “para que o movimento sobreviva, as pessoas precisam esquecer gradualmente que essa
ordem social foi estabelecida por pessoas e continua a dependente do consentimento de pessoas.
Essas construções sociais do movimento precisam passar a ser identificadas com uma autoridade
maior, mais estabelecida e tradicional.” P. 70 et.seq.
133
MINCATO, R. “Os fariseus e Jesus: uma releitura”, p.53 et.seq. MERZ, A. e THEISSEN, A. O
Jesus Histórico, p.252. O autor comenta que a relação de Jesus com os fariseus é apresentada nas
fontes de forma “ambivalente”. O mesmo princípio pode ser aplicado à relação da comunidade
cristã com os grupos judeus contemporâneos.
134
FLUSSER, D. Jesus, p.46.
135
Cf. Documento de Damasco (CD) 8:12, 19:25, apud Ibid., p.46. Na verdade os essênios
detestavam os fariseus, mas também rejeitavam sua doutrina, ao contrário das comunidades cristãs,
que tinham bastante correlação doutrinal com os fariseus. Flusser afirma que, do ponto de vista de
modo de doutrina, Jesus pode ser comparado a um fariseu, num “sentido mais amplo”. P.48
136
Muitas vezes citados junto com os fariseus, a seguir os textos em que aparecem
exclusivamente: Mt 2,4; 7,29; 9,3; 16,21; 17,10; 20,18; 21,15; 26,3.57.
137
MERZ, A. E THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.248.
42
escrita, e no caso o substantivo “escriba, escrevedor, escrivão, secretário.”138 Mas
escribas como um grupo organizado só encontramos registro nos evangelhos
sinóticos, em conexão com os fariseus e com os sumos sacerdotes, sempre como
antagonistas de Jesus.139
J.Jeremias aponta que havia uma corporação de escribas em Jerusalém,
desde a classe sacerdotal mais alta, passando pelos sacerdotes de menor peso, bem
como os levitas, chegando até mesmo às demais classes populares, das quais um
dos mais famosos, sem dúvida, foi Hillel, um operário.140 Ele demonstra ainda que
o saber é o único e exclusivo fator do poder dos escribas. Quem desejasse agregarse à corporação dos escribas por ordenação, seguia um ciclo regular de estudo de
alguns anos. O jovem israelita, desejoso de consagrar sua vida à sábia atividade de
141
escriba começava o ciclo de sua formação como discípulo (talmîd).
Saldarini procura mostrar, a partir das diferentes fontes, que também a
concepção a respeito dos escribas podia mudar, e consideravelmente. De um
modo geral, desde a Antiguidade os textos mostram o escriba como secretário, e
mesmo como alto oficial do gabinete real. Em Esdras o escriba tem uma função
importante junto aos repatriados. Já na comunidade judaica após o exílio, os
escribas estavam vinculados aos sacerdotes e todas as funções de dirigentes.
Provavelmente tiveram influência na redação final do Deuteronômio, dado o seu
caráter sapiencial. 142
Nesse período do pós-exílio os escribas tiveram um papel central na
elaboração do texto final dos diferentes livros que compuseram a Lei, os Profetas,
e bem assim, os Escritos. Com isso, também puderam ter o papel de intérpretes da
Lei, como transmissores da tradição bíblica. E nesse caso os escribas nem mesmo
seriam parte de um único grupo, mas estariam em grupos que traduzissem as
diferentes tradições de Israel.143 Na literatura judaica dos séculos anteriores a
Cristo há extensa presença dos escribas. Diversos elementos presentes em Henoc,
138
Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português, p.170. Saldarini comenta, inclusive,
que secretário seria o termo idiomático adequado para sofer. Op.cit., p.251.
139
Cf. MERZ, A. E THEISSEN, G., op.cit., p.248.
140
Cf. JEREMIAS, J., Jerusalém no tempo de Jesus, pp.317-320.
141
Ibid., p.320.
142
Cf. SALDARINI, A. Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense, pp.252-281.
143
VAUX, R. de. Instituições de Israel no Antigo Testamento, p.393; Para SCHMIDT, com a Lei
ganhando força na sociedade judaica, “a visão da comunidade judaica seria muito exclusivamente
a dos escribas.” O Pensamento do Templo de Jerusalém a Qumran, p24.
43
Qoélet, Daniel, Ben Sira, além de outros textos do período atestam esse grupo
presente no processo de construção do saber judaico.144
Flávio Josefo citou os escribas em diferentes contextos: como oficiais de
todos os níveis, não exatamente como grupo organizado. Em sua obra
Antiguidades Judaicas ele promoveu a presença dos escribas em vários pontos da
história, onde o texto bíblico não apresenta.145 Josefo fez isso em vários outros
textos, sempre repetindo a função escribal como apoio aos grupos atuantes em
diferentes áreas. Sintetizando, Saldarini faz essa observação:
Josefo menciona escribas em determinado número de passagens porque eles são
comuns e aceitos em seu meio social. As funções, o status social e o poder dos
escribas variam de altos oficiais a humildes funcionários dos povoados. A
capacidade de ler e escrever era crucial para o lugar e função deles na sociedade,
mas o status exato deles dependia do monarca ou da classe governante. Josefo não
apresenta os escribas como um grupo específico, distinto, com seus próprios
ensinamentos, como os fariseus, saduceus e essênios. Ao contrário, os escribas
eram um tipo de indivíduo social bem conhecido e aceito, que podia desempenhar
diversos papéis e a quem se atribuíam diferentes status sociais.146
A grande oposição entre a comunidade de Mateus e os escribas tem a ver
com a autoridade deles como intérpretes da Lei contraposta à autoridade de Jesus,
o que é equacionado na forma como o evangelista encerra o Sermão do Monte
(7,29). Mas sempre está diante dos dois grupos a forma como devem interpretar a
tradição judaica.147
2.3.
Mt 5,17-20 no horizonte do evangelho de Mateus
144
Cf. SALDARINI, A., op.cit., pp. 263-270. Ele comenta que o período helênico viu surgir um
movimento escribal não obrigatoriamente vinculado ao sistema sacerdotal. Talvez isso se deva ao
fato do escriba grego ser mais “secularizado” que o judeu. Mesmo assim, há escribas do templo
citados por carta de Antíoco, no século II a.C., bem como há registros de escribas – citados como
“pessoas piedosas” – no texto de 1 Macabeus (1 Mc 7,12-14). Aqui eles foram ligados aos
macabeus na grande revolta macabaica. Mesmo assim não está claro qual seria essa relação.
Quanto a essa questão Saldarini afirma o seguinte: “A natureza e o status dos assideus são bastante
incertos também. Os assideus têm sido tratados, na maioria das vezes, como uma seita bem
definida ou como um grupo coeso que mais tarde deu origem aos fariseus, essênios, escribas e
talvez outros grupos judaicos do segundo século, mas nada da redação de 1 Macabeus sugere isto.
A palavra para ‘companhia’ é ‘sinagoga’, uma palavra grega com amplo leque de significados.
Sabemos apenas que estes judeus piedosos eram hábeis guerreiros em lutas corporais, que
voluntariamente se ofereciam para lutar. É bem mais provável que pietistas seja uma designação
descritiva de um amplo espectro de judeus que resistiam ativamente à helenização e defendiam a
piedade, ou seja, a forma de vida deles, contra o ataque de Antíoco, e não o nome de um grupo
bem definido.” P. 262.
145
Ex: Comp. 1 Sm 14,31-35 com Ant 6.6.4; 1 Cr 23,1-6 com Ant 7.14.7; etc.
146
SALDARINI, A., op.cit., p.273.
147
Cf. MERZ, A. e THEISSEN, G. O Jesus Histórico, p.249. No capítulo 3, faremos uma análise
literária em Mateus a respeito da polêmica entre Jesus, os escribas e os fariseus.
44
A compreensão geral a respeito do evangelho de Mateus nos leva
necessariamente à contextualização da perícope em estudo dentro do conjunto da
obra. Conforme já foi apontado anteriormente, a perícope não é um material
isolado, mas tem estreita relação com o conjunto da obra mateana. Vamos ver a
seguir o seu contexto temático, e o contexto integral dentro do evangelho de
Mateus, vinculada às orientações de Jesus sobre certos aspectos da Lei.
2.3.1.
O contexto temático: o Sermão do Monte
Podemos considerar que a perícope de Mateus 5,17-20 está no coração do
Sermão do Monte, como esquema programático para o reino de Deus.148 A leitura
do Sermão do Monte tem sido alvo das pesquisas desde o início do século vinte,
após a abordagem liberal a respeito da interpretação das palavras ditas por Jesus.
O bloco, no qual a perícope está inserida, que compreende os capítulo 5 a 7, é o
primeiro bloco de discursos de Mateus, e é denominado “Sermão do Monte”,
desde que Santo Agostinho deu esse título ao seu comentário a Mt 5-7.149
Segundo J.Jeremias, no Sermão do Monte encontra-se o ensino catequético
para os novos discípulos, advindos do judaísmo farisaico, ou que antes eram
adeptos dos escribas.150 Por se tratar de uma Didaquê, compreende o conteúdo do
querigma, e todos os elementos fundamentais para a conduta e fé cristã. Sendo
assim, nesses capítulos temos um programa de vida em termos de discipulado. O
discípulo que conseguir viver segundo a proposta ali apresentada será considerado
o maior, um discípulo perfeito.151 Na visão judaica, o Sermão do Monte tem sido
lido como uma derashá; “que contém uma exposição de versículos extraídos do
Pentateuco, sobretudo da segunda parte do decálogo.”152
148
Considerando que faz parte da continuação do primeiro bloco da atividade de Jesus, anunciando
o reino de Deus. Cf. KÜMMEL, Introdução ao NT, p.123; CARTER, W., O Evangelho de São
Mateus, p.175s; MAZZAROLO, Evangelho de São Mateus, p.72; LADD, Teologia do NT, p.119,
dentre outros.
149
De Sermone Domini in Monte.
150
Jeremias entende que há dois grupos específicos aqui, um dos escribas, que seriam teólogos da
Torá, outros dos fariseus, leigos piedosos, com teólogos apenas na liderança. Estudos no Novo
Testamento, p.99.
151
MARCONCINI, Os Evangelhos Sinóticos, p.133s.
152
FLUSSER, “Um paralelo rabínico ao Sermão da Montanha”. O Judaísmo e as Origens do
Cristianismo, p.32.
45
Esse discurso, da forma como está construído, jamais deve ter sido proferido
por Jesus.153 Há algumas representações importantes de Jesus como o novo
Moisés, ao subir no monte para anunciar a vontade de Deus, expressa na Lei
(Torá). Há uma reafirmação dessa Lei, com reformulações necessárias para que a
comunidade seja ainda mais fiel ao propósito de Deus do que os outros grupos
foram.154
A estrutura do Sermão do Monte é apontada como uma sucessão de temas
superpostos. De um modo geral a estrutura é relativamente fácil de ser
identificada. De acordo com Stanton155, as Bem-aventuranças (5,3-12) são uma
introdução ao sermão como um todo; os ditos sobre o “sal” e a “luz” (5,13-16)
seriam uma segunda introdução. 5,17-7,12 formam uma seção central, que abre e
fecha com o dito que trata da Lei e dos Profetas, em 5,17-20 e 7,12. Depois disso
há um epílogo, em 7,13-27, que fecha com coerência a proposta do sermão.
Quanto à estrutura interna da seção central, é relativamente fácil identificar
as partes de 5,17-6,18, como sua primeira grande parte. O dito sobre a Lei e os
Profetas de 5,17-20 é explanado e exemplificado nas seis antíteses de 5,21-47. O
verso 48 (“Portanto, sede perfeitos como perfeito é o vosso Pai que está nos
céus”) pode ser uma conclusão de toda a parte. Já 6,1 inicia outra parte da seção
central, em que Jesus trata da prática da religião de forma autêntica em contraste
com uma forma hipócrita, que no texto não são claramente identificados, e com a
forma gentílica de orar (6,2-18), com estruturas similares para falar da esmola
(6,2-4), da oração – com o ensino do Pai-nosso (6,5-15) e do jejum (6,16-18).
Já a segunda grande parte dessa seção (6,19-7,11) oferece maior dificuldade
na definição de sua subestrutura. A princípio parece um quebra-cabeças, pois há
ditos que tratam do dia a dia, com relação ao acúmulo de bens (6,19-23), com a
ansiedade do pão cotidiano (6,24-34), além da proibição do juízo e do estímulo a
uma confiança no Pai que está nos céus (7,1-11). De novo, há uma conclusão do
conjunto de ditos que já foi associada a um dito de Hillel (“Portanto, tudo o que
vós quereis que os homens vos façam, fazei vós também a eles; porque esta é a
153
Cf. vimos anteriormente, na questão da autenticidade. Aceitamos, nesse sentido, que o fato dos
ditos serem autênticos não inviabiliza uma construção redacional pelo autor. Pelo contrário, uma
simples comparação de Mateus com Lucas deixa entrever que ambos se propuseram a essa tarefa.
154
Cf. BARBAGLIO, Os Evangelhos (1), p.104ss; SCHREINER, Forma e exigências do Novo
Testamento, p.289-293; MATEOS, CAMACHO, O Evangelho de Mateus, p.55ss;
155
STANTON, A gospel for a New people, p.297s.
46
Lei e os profetas.”). Esse dito, na verdade, encerra a segunda parte da seção
central, e prepara para o epílogo.
A interpretação da Igreja a respeito do Sermão do Monte foi, desde muito
cedo, entendido como um padrão para a vida cristã. A possibilidade de viver o
sermão, de fato, caiu na esfera moral, como um padrão a ser buscado, em face das
tentações e do pecado que assedia a alma humana. Mesmo Agostinho, no entanto,
reviu sua interpretação do Sermão do Monte diversas vezes. Da mesma forma,
Martinho Lutero, séculos depois, em sua interpretação, entendeu que havia um
ideal para a vida cristã no sermão, mas que, diante da dificuldade de colocar em
prática as premissas sobre a violência, em especial, entendeu que se trata no caso
de “dois reinos”, um espiritual e outro terreno, dentro dos quais o cristão
convive.156
Ainda para Lutero a vivência da chamada “Lei de Cristo” só pode se dar
pela graça, pela qual Cristo nos aceita, mesmo sem sermos capazes de obedecer
completamente seus mandamentos. Assim a Lei é também Evangelho, e não
contradiz o espírito da nova aliança, tão cara à teologia protestante. Foi dessa
forma que J.Jeremias compreendeu o sermão, como evangelho, como ele mesmo
afirma:
O Sermão da Montanha – esta é a nossa conclusão – não é lei, mas sim Evangelho.
Pois, efetivamente, esta é a diferença entre lei e Evangelho: a lei deixa o homem
entregue às suas próprias forças e o desafia a empregá-las ao máximo; o
Evangelho, porém, coloca o homem diante do dom de Deus e lhe pede que faça
deste dom inefável o verdadeiro fundamento de sua vida. São dois mundos
diferentes. Para frisar bem a diferença, seria conveniente, na teologia do Novo
Testamento, evitar as expressões “ética cristã”, “moralidade ou moral cristã”: este
vocabulário profano é inadequado e pode dar margem a confusão. Seria melhor
falar de “fé vivencial”: assim claramente se exprimiria que o dom de Deus
precedeu suas exigências.157
Nos séculos XVIII e XIX, vários pesquisadores da vida de Jesus
trabalharam com a idéia da mensagem do Sermão do Monte como continuação do
judaísmo (Reimarus)158, como ética de pura moralidade (Baur)159, ou ainda uma
verdade moral eterna, desprovida de limitações históricas e totalmente livre
(Holtzmann).160
156
Cf. a exposição de STANTON, A Gospel for a New People¸ p.289-292.
JEREMIAS, Estudos no Novo Testamento, p.112.
158
REIMARUS, Apologie oder Schutzchrift für die vernünftigen Verehrer Gottes. I. 99ss.
159
BAUR, Kritische Untersuchungen über die kanonischen Evangelien, ihr Verhältnis zueinader,
ihren Charakter und Ursprung, Tübingen, 1847, p.585.
160
HOLTZMANN, Die synoptischen Evangelien, Leipisz, 1863, p.188.
157
47
Mas foi no século vinte que a interpretação escatológica do Sermão do
Monte, ganhou corpo, especialmente a partir de A. Schweitzer. Influenciado pelas
interpretações do final do século dezenove, entendeu que a pregação ética de Jesus
era motivada pela expectativa do julgamento divino, tornando-se assim uma
preparação para ele (ética do ínterim). Ou seja, não seria um sermão para as
gerações seguintes, senão para aquela que estava vivendo naquele momento. Isso
é demonstrado, segundo ele, em outras partes do evangelho de Mateus. Com essa
interpretação abriu-se um campo de discussão em torno da relação entre o ensino
ético de Jesus e a proclamação da vinda do reino de Deus. Mesmo assim, há
tendências recentes que interpretam o sermão à luz da proclamação geral de Jesus
nos sinóticos, a qual não seria escatológica futura, mas realizada. Crossan afirma
mesmo que a pregação de Jesus tinha uma teologia da presença de Deus, uma
escatologia participativa.161
Mais recentemente a pesquisa tem pensado na importância da crítica
redacional para analisar o Sermão do Monte. Com isso identificou-se partes nos
blocos de discursos que claramente apontam para a capacidade de Mateus como
redator/autor, não somente como compilador de ditos. Isso leva a algumas
questões sobre as quais os pesquisadores têm se debruçado: O Jesus de Mateus é
só intérprete ou quer esclarecer o sentido da Lei de Moisés? A quem o sermão é
endereçado, a todos ou só aos discípulos? Jesus é o novo Moisés, que sobe no
novo monte Sinai, com a nova Lei? Que partes do sermão devem ser entendidas
literalmente, e quais devem ser interpretadas como metáforas ou hipérboles?
Afinal, o sermão é dominado por um senso escatológico (ética de ínterim) ou por
uma prática diária saudável da fé?
As questões acima estão no centro do debate e devem ser respondidas por
parte, dito a dito, separando aquilo que vem de Jesus e o que deve ser acréscimo
de Mateus a partir de sua necessidade em relação à sua comunidade. Nossa
exegese deve passar, sem dúvida, por essas questões.
2.3.2.
Mt 5,17-20 no contexto integral do evangelho
161
Cf. sua conferência “A vida de Jesus”, proferida no I Seminário Internacional do Jesus
Histórico, no Rio de Janeiro, em 2007.
48
Mateus elaborou seu material, separando em blocos: narrativos e
discursivos. Nas narrações encontramos ditos, que na verdade apontam para uma
disputa.162 Nesses relatos, em geral, ele acompanha Mc e Lc. Nos discursos, no
entanto, é que Mt expôs sua singularidade literária. “Os cinco discursos são
composições de Mateus, que aproveitou materiais tradicionais que em geral já
estavam reunidos em unidades menores de ditos.”163 Essa reunião se deu por meio
de elementos temáticos comuns.
Ao ler os capítulos 5 a 7, percebe-se claramente a intenção do autor em
realizar todo um bloco centrado no tema da Lei, como sendo o primeiro grande
discurso de Jesus. Ao qual Mateus dá seqüência com um bloco de narrativas de
milagres. “Com isso ele quer mostrar que Jesus é o Messias da Palavra e o
Messias da Ação. Palavra e ação: uma coisa não existe sem a outra.”164 Essa
afirmação é menos problemática do que aquela que diz que os cinco discursos
apontam Jesus como o novo Moisés, pois há outras estruturas numéricas que são
mais evidentes e importantes para Mateus (o número 14 das gerações, o indicativo
duplo em várias passagens: dois cegos, dois endemoninhados, etc..).
Mateus contem um certo número de passagens que tratam da questão a
respeito da Lei (Mt 5,18ss; 23,2ss.23s.25s; 22,34-40). A questão é saber de que
forma realmente ele desejava relacionar a Lei com a sua comunidade. Por isso, em
geral, os relatos apontam ou uma revisão do sentido da Lei (como nas
advertências contra os escribas e fariseus no capítulo 23) ou uma síntese ética (a
centralidade do amor no cumprimento da Lei, no capítulo 22).165
Também é perceptível que Mateus utilizou a expressão Mh. nomi,shte
também em Mt10,34, que por sua vez tem paralelo com Lucas 12,51. Quando se
trata da Lei, e da posição de Jesus a respeito disso, Mateus trabalha mais com a
fonte Q do que com Marcos. Mesmo assim, não se pode ignorar que o tema
percorre de alguma forma o evangelho de Marcos, pois aparece a discussão sobre
a cura em dia de sábado (Mc 2,23-3,6) e a problemática da pureza ritual na
alimentação (Mc 7,1-23, utilizado apenas por Mateus), como questões pontuais.
Mas o evangelho de Marcos não registra o termo Lei (no,moj e suas variantes) em
162
Bultmann e Dibelius desenvolveram esse conceito, pelo nome de apoftegmata, ou seja,
pequenas unidades narrativas cujo centro está numa palavra pontual de Jesus.
163
KOESTER, H., Introdução ao NT, p.189.
164
JEREMIAS, Estudos no NT, 92.
165
Cf. BARTH, “Matthew´s understanding of the Law”, p.62-78.
49
nenhum momento, pois está sempre mais ocupado com a ortopráxis do que com o
discurso, diferente de Mateus, o qual associa ambas as atitudes.
Mas uma questão importante é saber se o dito vem de Jesus ou de Mateus. É
uma expressão do mestre, imitado pela comunidade em meio ao panorama da
reconstrução do judaísmo, ou uma projeção desta para o problema da legitimidade
de sua pregação, diante de outros modelos que “competiam” no cenário pós-70?
Para podermos perceber isso precisaremos fazer uma análise da historicidade, a
qual, apesar de não ser o cerne de nossa pesquisa, vai influenciar diretamente nas
respostas a que estamos buscando. No próximo capítulo iremos fazer essa análise,
precedida pelo estudo do texto em si, e seus aspectos literários e redacionais.
50
3
Análise de Mt 5,17-20
3.1.
Crítica textual e tradução
3.1.1.
O texto grego de Mt 5,17-20
17
Mh. nomi,shte o[ti h=lqon katalu/sai to.n no,mon h' tou.j profh,taj\ ouvk
h=lqon katalu/sai avlla. plhrw/saiÅ
18
avmh.n ga.r le,gw u`mi/n\ e[wj a'n pare,lqh| o`
ouvrano.j kai. h` gh/( ivw/ta e]n h' mi,a kerai,a ouv mh. pare,lqh| avpo. tou/ no,mou ( e[wj a'n
19
pa,nta ge,nhtaiÅ
o]j eva.n ou=n lu,sh| mi,an tw/n evntolw/n tou,twn tw/n evlaci,stwn
kai. dida,xh| ou[twj tou.j avnqrw,pouj( evla,cistoj klhqh,setai evn th/| basilei,a| tw/n
ouvranw/n\ o]j dV a'n poih,sh| kai. dida,xh|( ou-toj me,gaj klhqh,setai evn th/| basilei,a|
tw/n ouvranw/nÅ
20
le,gw ga.r u`mi/n o[ti eva.n mh. perisseu,sh| u`mw/n h` dikaiosu,nh
plei/on tw/n grammate,wn kai. Farisai,wn( ouv mh. eivse,lqhte eivj th.n basilei,an tw/n
ouvranw/nÅ
3.1.2.
Crítica textual166
O verso 17 não apresenta variantes. A transmissão desse versículo foi imune
a alterações, omissões ou acréscimos. Talvez se possa relacionar essa postura com
o fato de tratar-se de uma afirmação cristológica, e por isso, considerada mais
digna de atenção que uma narração comum. Dois termos têm bastante peso na
tradução desse versículo: katalu/sai e plhrw/sai.
O versículo 18 apresenta três variantes que devem ser comentadas. Na
primeira, o acréscimo de “e os Profetas” no genitivo (kai twn profhtwn)167. Há
nela uma tentativa de harmonização com o verso 17, que traz a mesma forma de
articular Lei e Profetas (porém no acusativo).
166
De acordo com o texto NESTLÉ-ALAND, 27ª. edição.
De acordo com Θ, f 13, o manuscrito 565, e outros manuscritos que divergem do texto
majoritário, além da citação de Irineu167, todos do tipo cesareense.
167
51
Uma segunda variante no mesmo versículo omite a palavra an, que é uma
partícula verbal que completa a frase (que), e tem “significado dubitativo ou
condicional ou eventual em geral,”.168 É uma variante originada no texto do tipo
alexandrino, mas com pouquíssimas testemunhas.
Outro acréscimo constatado aparece no códice latino “c”169, que afirma
caelum et terra transibunt, verba autem mea non praeteribunt, citando Mt 24,35:
“o céu e a terra passarão, mas minhas palavras não irão passar” (o` ouvrano.j kai. h`
gh/ pareleu,setai( oi` de. lo,goi mou ouv mh. pare,lqwsin)) Parece ser uma inserção a
partir de um comentário litúrgico, talvez uma nota de margem, para referência de
relação entre os dois textos, que depois foi incorporada como parte integrante.
Sem valor para dar autoridade ao acréscimo, no entanto, essa relação nos ajuda a
perceber como a perícope foi trabalhada em diferentes momentos da história.170
Avaliação das variantes do v.18 pelo critério externo: a primeira variante
sofre diante dos seguintes problemas: é bastante atestada, mas em apenas um tipo
de texto, o cesareense, que é considerado intermediário entre o tipo alexandrino
(mais puro) e o ocidental (mais livre). As variantes atestadas por ampla expansão
geográfica são preferíveis àquelas que constam apenas de um pólo. Também são
manuscritos recentes, e a regra entende que manuscritos mais antigos devem ser
preferidos. Na verdade, são melhores testemunhas para Marcos do que para
Mateus.171
A segunda variante ainda tem a seu favor o testemunho de textos antigos do
tipo alexandrino, mas a ausência dessa variante no sinaítico depõe contra os
demais manuscritos. Pelo contrário, esse importante Uncial apresenta a omissão
do termo. Acontece a mesma situação da variante anterior, pois não é constatada
numa esfera geográfica maior. Dificuldade maior ainda encontra última variante,
pois é atestada apenas em um códice, o que confere pouco peso a ela.
Avaliação
pelos
critérios
internos:
em
duas
variantes
há
uma
intencionalidade, no sentido de ser feita uma harmonização do texto. Na primeira,
168
RUSCONI, “a'n”. In: Dicionário Grego do Novo Testamento, p.38. Essa diferença aparece na
maiúscula B*, l 2211, além de alguns outros poucos manuscritos (B* (séc. IV), o lecionário 2211
(séc. X), além de alguns outros).
169
Códice latino “c” (séc.XII/XIII). Esse códice é dos séc. XII/XIII, mas segue rigorosamente as
mesmas porções de textos do códice “e”, que se originou no séc. V.
170
Cf. O texto de Nestlé-Aland se apóia nos demais manuscritos que atestam esse trecho de
Mateus, e que contém as melhores testemunhas dele. NESTLÉ-ALAND, p.58 da introdução.
171
Cf. WEGNER, Exegese do NT, pp.44-47.
52
harmoniza-se com o verso 17, onde a Lei e os Profetas figuram juntos. Na última,
há uma aproximação com o texto paralelo, presente no sermão do monte. Pelo
critério de se preferir a leitura mais breve, além do critério que prefere textos não
harmonizados com paralelos, essas variantes devem ser desconsideradas como o
texto mais original. A segunda variante poderia entrar, considerando que torna a
leitura mais difícil e breve (preferível).
Conclusão: não há motivos para preferir qualquer uma das variantes, com
exceção, talvez, da segunda. Por isso vamos acatar o texto de acordo com NestléAland. Alguns aspectos do texto devem ser ressaltados, para fins de tradução:
avmh.n, a expressão ivw/ta e]n h' mi,a kerai,a e pa,nta ge,nhtai.
O versículo 19 apresenta apenas uma variante, na verdade, uma omissão do
trecho “aquele que observar e ensinar, será chamado o maior no reino dos
céus”.172
Avaliação da variante: pelos critérios externos, os manuscritos que
demonstram essa variante são de boa qualidade, e bastante antigos. Também
expressam mais do que uma única área geográfica, pois têm representantes do
texto alexandrino e do ocidental.173 O problema é que nem os melhores papiros,
nem o Códice Vaticano (B) atestam essa forma. O mesmo acontece com as
testemunhas do texto Ocidental, em que os papiros não atestam essa forma. Não
há, assim, condições de avaliar pelo critério externo.
Pelo critério interno, pode-se presumir que essa variante tenha mais peso do
que os demais, pois o texto mais breve deve ser preferível, e nesse caso simplifica
o versículo. Por outro lado, precisamos verificar se, teologicamente, esse trecho se
coaduna com o restante do sermão do monte, onde a exaltação está nas pequenas
coisas. O cumprir a Lei não é motivo para auto-justificação, pois esse é um dos
motivos da crítica de Jesus aos Fariseus. Ao mesmo tempo, no entanto, faz parte
do estilo de ensinamento de Jesus a antítese, e o paralelismo de membros.
Considerando, então o critério externo e interno, tanto poderíamos deixar o
v. 19 sem o trecho como mantê-lo. Como as muitas traduções do texto inserem
esse trecho, vamos colocá-lo entre chaves [], para distinguir do restante do
172
De acordo com o códice ‫( *א‬num texto original diferente das correções existentes), D (séc. V),
W (séc. V) e um manuscrito da versão copta boaírica (talvez séc. IV). O texto adotado por NestléAland utiliza os demais manuscritos que testemunham esse trecho do Evangelho de Mateus.
173
O Códice Sinaítico (‫ )א‬é um dos mais antigos e melhores textos do NT, caracterizado,
sobretudo, por sua brevidade e linguagem mais rude.
53
versículo, e posteriormente analisarmos sua funcionalidade no pensamento geral
da perícope.
O versículo 20 tem uma variante só: não consta do uncial D. Considerando
o critério externo, pois no caso o critério interno não nos ajudaria, devemos
desconsiderar essa variante, pois um único manuscrito não deve ser referência
para a leitura encontrada em todos os demais. O texto de Nestlé-Aland, também
nesse caso, se baseia em todas as testemunhas do Evangelho de Mateus, o que em
si já desautoriza essa variante. Vamos manter o versículo e adotar o texto corrente.
Considerados os fatores textuais apresentamos a seguir nossa tradução do
texto.
3.1.3.
Tradução de Mt 5,17-20
17
Não considereis que eu vim para anular a Lei e os Profetas174; não vim
para anular, mas para cumprir.
18
Em verdade vos digo: até que passem o céu e a
terra, nem um iota (yod) ou um pequeno sinal (qots)175 da Lei passará, sem que
tudo aconteça.
19
Portanto, qualquer um que violar o menor dos mandamentos,
mesmo que insignificante, e assim ensinar às pessoas, será chamado o menor no
reino dos céus; [aquele que observar e ensinar, será chamado o maior no reino
dos céus.]
20
Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos
escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus.
3.2.
Análise Literária
A análise literária de Mateus já descreveu que, de uma forma geral, a obra
foi elaborada em blocos que alternam discurso e ação, conforme já apontado no
capítulo anterior. A seguir, faremos a análise específica do evangelho, em relação
à perícope de Mt 5,17-20
174
to.n no,mon h' tou.j profh,taj. Considerando o ambiente aramaico da religião de Jesus, é mais
coerente considerar que a expressão já está traduzida do hebraico “Torá ve Nebîim” (~yaiybin>w> hr;wOt).
Na tradução e em diferentes partes do trabalho adotaremos o termo “Lei e Profetas”, levando em
consideração esse aspecto do texto.
175
A expressão ivw/ta e]n h' mi,a kerai,a (um iota ou um pequeno sinal) deve ser concebida dentro do
universo lingüístico semita, e por isso pode ser traduzido por “um yod ou um qots”. O yod é a
menor letra do alfabeto hebraico, que não têm vogais, enquanto o qots (pequeno sinal) era uma
pequena marca utilizada para adornar o texto da Torá. BROWN, R.E., e FITZMEYER, J.,
Comentário Bíblico “San Jerônimo”, p.185.
54
3.2.1.
Delimitação e estrutura da perícope
A perícope de Mt 5,17-20 está inserida no grande bloco de discurso
conhecido como “Sermão do Monte” ou “Sermão da Montanha”. Falar dessa
perícope sem falar do bloco literário onde está inserida é quase impossível, pois
seria ignorar o papel dessa fala dentro do programa de ensino de Jesus quanto ao
reino de Deus (dos Céus).
A delimitação da perícope é aparentemente simples. Trata-se de um material
cuja redação é claramente perceptível quando se observa o conjunto de textos do
sermão do monte em contraste com os demais evangelhos.176 A análise redacional
perceberá essa questão, mas desde já podemos apontar os aspectos literários
presentes no texto. Apesar da redação de Mateus juntar diversos ensinamentos
nesse bloco (cap.5-7), é possível delimitar as pequenas unidades presentes no
discurso, mesmo diante do trabalho redacional.
No entanto, a aparente clareza para delimitar o trecho recai numa questão:
5,17-20 serve de sumário esquemático introdutório para o conjunto de
interpretações de Jesus com respeito à Lei em 5,21-48? Ou é uma afirmação
contraditória, que é posicionada ali para mostrar aos ouvintes como o tema da Lei
é complexo e impreciso? Vamos analisar melhor esse aspecto mais à frente na
pesquisa.
O trecho que antecede (5,13-16) é a continuação da grande introdução do
sermão do monte. Nela Jesus afirma os discípulos como sal da terra e luz do
mundo. Parece encerrar o assunto com a expressão “assim resplandeça a vossa luz
diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso
Pai, que está nos céus”. O trecho posterior inicia uma longa seção que trata de
diferentes posicionamentos de Jesus no tocante à Lei Mosaica, em geral alterando
a maneira como se deve agir. A fórmula típica desse trecho é “Ouvistes o que foi
dito pelos Antigos; eu porém, vos digo” [VHkou,sate o[ti evrre,qh toi/j avrcai,oij],
176
De fato, a maioria dos autores trabalha essa perícope com esses limites, mas relacionada com o
restante do “Sermão da Montanha”, cf. MAZZAROLO, I., O Evangelho de São Mateus, p.83s;
CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.189s; BARBAGLIO, G., Os Evangelhos 1, p.117s;
LAGRANGE, M., Évangile selon Saint Matthieu, p.78; MARGUERAT, D., Le jugement das
l’Évangile de Matthieu; BONNARD, P., Évangile selon Saint Matthieu, p.60; TRILLING, W., El
verdadeiro Israel, p.239ss; BANKS, R., “Matthew´s understanding of the Law”, p.226.
55
que sintetiza a idéia jurídica e teológica presente no conjunto de sentenças, num
sistema antitético177.
Assim colocada, a perícope de 5,17-20 tem função de introdução da série de
antíteses legais do sermão do monte (5,21-48). Como função de introdução, o
texto tem muito a ver com a análise global do evangelho de Mateus a respeito da
verdadeira essência da Lei e da obediência a ela. Uma estrutura possível do trecho
é a seguinte:
17: Não considereis que eu vim para anular a Lei e os Profetas;
não vim para anular, mas para dar pleno sentido.
18: Em verdade vos digo:
até que passem o céu e a terra,
nem um iota (yod) ou um pequeno sinal (qots) da Lei passará,
sem que tudo aconteça.
19: Portanto,
qualquer um que violar o menor dos mandamentos, mesmo que
insignificante, e assim ensinar às pessoas,
será chamado o menor no reino dos céus;
aquele que observar e ensinar,
será chamado o maior no reino dos céus.
20: Porque vos digo que,
se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus,
de modo nenhum vocês entrarão no reino dos céus.
Nessa estrutura percebe-se um paralelismo permeando o texto, característica
do ensino de Jesus.178 No v.17 encontramos a idéia inicial de afirmar que não veio
para destruir sendo encerrada com a repetição de katalu/sai, para em seguida
apresentar a idéia de dar pleno cumprimento com o verbo plhrw/sai.
No v.18 verifica-se duas repetições nas três afirmações que seguem a avmh.n
ga.r le,gw u`mi/n\ A primeira afirmação é espelho para as duas seguintes. Primeiro
177
Essa expressão é encontrada em diversos autores, desde que J. Jeremias analisou o estilo dos
ditos de Jesus a partir das estruturas semíticas, das quais o paralelismo é a mais presente no Novo
Testamento. Ele mesmo considera que tanto Mt 5,17 quanto o trecho de 5,21-48 devem ser
tratados como paralelismo antitético. Teologia do Novo Testamento, p.45 et.seq. W. Carter utiliza
a expressão “seis ‘por exemplo’” para essa unidade que vai de 5,21-48. Evangelho de Mateus,
p.194 et.seq.
178
Cf. WEGNER, U., Exegese do Novo Testamento, p.90s.
56
repete que nada passará - pare,lqh| - na segunda afirmação, comparando o fato de
que nem as menores partes da Lei perderiam a validade antes que chegasse o fim
do céu e da terra. Depois repete a fórmula e[wj a'n, como abertura da idéia de que
tudo acontecerá antes que o céu e a terra deixem de existir.
O v.19 tem paralelismo em duas partes do texto. Primeiro, ligando a idéia de
que aquele que violar o menor - evlaci,stwn – dos mandamentos será o menor evla,cistoj – no reino dos céus. O segundo paralelismo está na repetição da
expressão klhqh,setai evn th/| basilei,a| tw/n ouvranw/nÅ Como cada um será
considerado no reino dos céus vai depender de sua atitude diante da Lei.
Joachim Jeremias analisou o paralelismo antitético nos ensinos de Jesus, e
percebe nessa perícope a ocorrência em 17 (a//b), 19 (a//c)179, conforme esquema
a seguir:
17: Não considereis que eu vim para anular a Lei e os Profetas;
não vim para anular, mas para dar pleno sentido.
19: Portanto,
qualquer um que violar o menor dos mandamentos, mesmo que
insignificante, e assim ensinar às pessoas,
será chamado o menor no reino dos céus;
aquele que observar e ensinar,
será chamado o maior no reino dos céus.180
Nesse tipo de ensino aparenta o semitismo subjacente ao ensino de Jesus.
Para Jeremias, o paralelismo antitético nos aproxima das ipsissima verba de Jesus,
acima de qualquer outro estilo de pregação.181 Jeremias também pesquisou o ritmo
na fala de Jesus (no aramaico), para verificar uma tendência de estilo oral. Dentre
os diversos tipos (quatro, na verdade)182 analisados, ele apontou o v.17 como
exemplo de métrica “quinária”.183
179
JEREMIAS, J., Teologia do NT, p.47. Segundo C.F. Burney o paralelismo antitético
“caracteriza o ensino de Nosso Senhor em todas as fontes dos evangelhos”. The Poetry of Our
Lord, p.83.
180
Colocamos em itálico os termos antitéticos, e em negrito os termos repetidos, mas em oposição.
181
JEREMIAS, J., op.cit., p.46.
182
Ritmos de quatro acentos, três acentos, dois acentos e a métrica quinária, cf. Ibid., p.53.
183
Segundo Jeremias, “o ritmo especial é o da métrica ‘quinária’, que se apresenta assim: 3+2,
com variação ocasional de 2+2 e 4+2. Originariamente era usada na lamentação dos mortos (qina),
na qual a carpideira que dirigia o canto fúnebre entoava um lamento mais longo (ritmo de três
acentos), ao qual as outras carpideiras respondiam com uma entonação mais breve (ritmo de dois
acentos”. Ibid., p.63.
57
Segundo Jeremias, no verso 18 há uma hipérbole, um estilo de linguagem
muito comum em Jesus, usado para chamar a atenção dos ouvintes.184 Além disso,
chama a atenção o uso do Amém, “para o qual não existe paralelo em toda a
literatura do judaísmo antigo nem do resto do Novo Testamento”.185 Mateus é
quem mais faz uso dessa expressão, mas ela é comum aos demais evangelhos,
inclusive o joanino. O uso da expressão avmh.n ga.r le,gw u`mi/n\ no evangelho de
Mateus, exatamente assim ou sem a palavra ga.r ocorre 30 vezes além dessa de
5,18186, enquanto ocorre 14 vezes no evangelho de Marcos, 8 vezes em Lucas e 25
vezes em João, o evangelista que utiliza o amém repetido na fórmula, para dar
maior ênfase. Sem dúvida, é digna de análise a importância que Mateus dá a essa
expressão.
Para uma análise das fontes utilizadas por Mateus nessa perícope, vamos
colocar o quadro sinótico da perícope de Mt 5,17-20 de acordo com Aland:187
Mateus 5,17-20
17
Lucas 16,16-17
Mh. nomi,shte o[ti h=lqon katalu/sai to.n
no,mon h' tou.j profh,taj\ ouvk h=lqon katalu/sai
16
~O no,moj kai. oi` profh/tai me,cri VIwa,nnou\
avpo. to,te h` basilei,a tou/ qeou/ euvaggeli,zetai
avlla. plhrw/saiÅ
kai. pa/j eivj auvth.n bia,zetaiÅ
18
17
avmh.n ga.r le,gw u`mi/n\ e[wj a'n pare,lqh| o`
Euvkopw,teron de, evstin to.n ouvrano.n kai. th.n
ouvrano.j kai. h` gh/( ivw/ta e]n h' mi,a kerai,a ouv mh.
gh/n parelqei/n h' tou/ no,mou mi,an kerai,an
Pare,lqh| avpo. tou/ no,mou(
pesei/nÅ
e[wj a'n pa,nta
ge,nhtaiÅ
19
o]j eva.n ou=n lu,sh| mi,an tw/n evntolw/n tou,twn
tw/n
evlaci,stwn
avnqrw,pouj(
kai.
evla,cistoj
dida,xh|
ou[twj
klhqh,setai
evn
tou.j
th/|
basilei,a| tw/n ouvranw/n\ o]j dV a'n poih,sh| kai.
dida,xh| ou-toj me,gaj klhqh,setai evn th/| basilei,a|
tw/n ouvranw/nÅ
20
le,gw ga.r u`mi/n o[ti eva.n mh. perisseu,sh| u`mw/n
h` dikaiosu,nh plei/on tw/n grammate,wn kai.
Farisai,wn(
ouv
mh.
eivse,lqhte
eivj
th.n
basilei,an tw/n ouvranw/nÅ
184
Cf. Ibid., p.68.
JEREMIAS, J., Teologia do NT, p.77.
186
Mt 5,26; 6,2.5.16; 8,10; 10,15; 10,23; 10,42; 11,11; 13,17; 16,28; 17,20; 18,3.13.18.19.23.28;
21,21.31; 23,36; 24,2.34.37; 25,12.40.45; 26,13.21.34.
187
NESTLÉ-ALAND, Synopsis of the Four Gospels, p.52.
185
58
Há uma unidade básica na perícope, mas que demonstra rupturas e ligações
ligadas redacionalmente. O v.17 é uma afirmativa fechada em si mesma, que pode
inclusive ser analisada em separado do restante da perícope. O v.18 está
relacionado ao assunto no sentido geral, mas é proveniente de Q (Cf. abaixo) e é
um logia independente. O v. 19 conecta-se melhor com o 17, continuando o
raciocínio de cumprir ou não cumprir a lei. Apenas para ilustrar o que afirmamos
antes, o v. 20 também desloca o raciocínio do cumprimento da Lei para a prática
da justiça dos escribas e fariseus (o que em essência é a mesma coisa, com
terminologia diferente).
Há um pequeno ponto de contato entre ambos na expressão de que não
passarão nem céu nem terra antes que a menor partícula da Lei se cumpra.
Aparentemente, então, o v.18 de Mateus seria proveniente de Q, usado também
por Lucas (16,17), mas de maneira totalmente diferente. A perícope lucana está
inserida no tema a respeito de João Batista e de como se deve ter acesso ao reino
de Deus.188
Quanto aos versículos 17, 19 e 20, são material exclusivo de Mateus. Por
isso mesmo pode-se falar numa coesão maior entre os v. 17 e 19, com o v.18
sendo um arranjo redacional. O que fica nesse caso é o seguinte: será que Mateus
usou esse dito no centro da perícope para dar maior autoridade ao restante?
Considerando que Q é uma fonte conhecida também em outras comunidades, a
inserção dessa logia é bastante justificada.
188
Curiosamente, esse dito de Q presente em Mateus e Lucas não está no mesmo bloco literário,
ou seja, enquanto Mateus colocou-o numa perícope do Sermão do Monte, Lucas trabalhou esse
dito fora do contexto do sermão da planície, que é o correlato lucano para o Sermão do Monte.
Como indicou J. JEREMIAS: “O Sermão da Montanha tem seu correlato em Lucas, a saber, o
Discurso da Planície (Lc 6,20-29). (...) Todavia, o Discurso da Planície é mais curto que o Sermão
da Montanha. Disso se deve concluir que temos no Discurso de Lucas uma forma mais antiga do
sermão”. Estudos no Novo Testamento, p.92.
59
Por outro lado, Boismard apresenta a seguinte análise sinóptica:189
Mt
Mc
Lc
24 34a En verité je
vous dis
que
ne passera pas
cette
génération...
13 30a En vérité je
vous dis
que
ne passera pas
cette
génération...
21 32a En Vérité
je vous dis
que
ne passera pás
cette
génération...
35
31
33
Mt
Lc
17
5 N'allez pas
croire que je sois
venu abolir la
Loi ou les
Prophètes : je ne
suis pas venu
abolir, mais
accomplir.
18
Car verité je
vous (le) dis :
avant que passent
le ciel et la tierra
Le ciel et la
terre passeront,
mais mes paroles
Le ciel et la
terre passeront,
mais mes paroles
Le ciel et la
terre passeront,
mais mes paroles
un seul iota
ou un seul trait
ne passeront pas.
ne passera pas,
de la Loi,
avant que tout
soit arrivé.
19
20
ne passeront pas.
ne passeront pas.
16 17 Mais il est
plus facile
que le ciel et la
terra passent,
qu’un seul trait
de la Loi
ne tombe.
34b
...avant que tout 30b...avant que tout 32b...avant que tout
cela soit arrivé.
cela soit arrivé.
cela soit arrivé.
Celui donc....
Car je vous...
A sinopse de Boismard indica outra proposta, essa com um dito registrado
no próprio Mt, Mc e Lc: “Em verdade vos digo que não passará esta geração sem
que tudo isto aconteça. Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras não
passarão” [avmh.n le,gw u`mi/n o[ti ouv mh. pare,lqh| h` genea. au[th e[wj a'n pa,nta tau/ta
ge,nhtai]. Nos três evangelistas, esse dito está inserido no chamado “sermão
profético”, na verdade um texto de cunho escatológico, com certa abordagem
apocalíptica.190 Goppelt trabalha com a idéia de que Mateus introduziu a última
parte da paralela de 24,34b (“sem que tudo isto aconteça” [[wj a'n pa,nta tau/ta
189
BENOIT, P., BOISMARD, M. F., Synopse des quatre evangiles, p.46.
Cf. CARTER, W., O Evangelho de Mateus, p. 580ss. A. Schweitzer foi quem lançou a idéia de
Jesus como um pregador apocalíptico, o que foi muito criticado pela academia. Käsemann trabalha
a questão, tentando resgatar o sentido de uma mensagem escatológica em Mateus como forma de
alertar contra a anomia. Essa mensagem teria em mente um juízo escatológico. “Os inícios da
Teologia Cristã”, in: Apocalipsismo, pp.231-254. K. BERGER admite que Mt 5-7 apresenta uma
“motivação claramente escatológica”. Formas Literárias do NT¸ p.120.
190
60
ge,nhtaiÅ]), “para ligar esse dito com o versículo precedente, o v.17.”191 O paralelo
em Lucas (16,17) não tem essa última expressão, como se pode verificar na
análise de Aland, acima.
Isso nos levará, inevitavelmente, a uma questão: até onde se pode pensar o
dito em termos escatológicos? Sabendo que Jesus pregava e pensava em
categorias escatológicas, não é de se admirar a similaridade de termos e idéias
entre esses textos. Por outro lado, a fonte Q tem sido caracterizada por uma
abordagem escatológica, pelo menos em parte do material.192 Assim, o dito de Mt
5,17-20 teria por trás de si uma orientação escatológica, que vamos analisar mais
profundamente no capítulo 3.
3.2.2.
Forma e Gênero Literário
Do ponto de vista de gênero e forma, certamente estamos diante de material
discursivo, mas vamos nos aprofundar a fim de perceber de qual tipo de discurso
estamos tratando, para situar melhor o Sitz im Leben193 de Mt 5,17-20. Os
evangelhos foram bastante pesquisados nesse campo, e há algumas posições a
respeito da forma.
De um modo geral, Bultmann qualifica a perícope como um dito do gênero
profético,194 proveniente de material de Q, e retrabalhado na tradição mateana. Ao
considerar esses ditos isoladamente, percebe-se que todos estão no subgênero de
ditos proféticos, de acordo com a classificação de U. Wegner:195
· no v. 17 um dito iniciado com h=lqon (“eu vim”)
· no v.18 um dito introduzido por avmh.n (“em verdade”).
191
GOPPELT, L., Teologia do NT, p.132.
MACK, B.L., O Evangelho Perdido, pp.145-157.
193
Termo bastante utilizado por Dibelius e Bultmann e sua Formgeschichte. Wegner traduz por
lugar vivencial, e explica: “é uma expressão que procura reproduzir as palavras alemãs ‘Sitz im
Leben’. Sitz significa ‘lugar/assento’ e im Leben quer dizer ‘na vida’. Literalmente ‘Sitz im
Leben’ significa, pois, ‘lugar na vida’ = ‘lugar vivencial’. Alguns autores preferem outras
traduções, como ‘lugar de origem’, ‘situação geratriz’, ‘ambiente vital’ ou ‘contexto histórico’.”
Exegese do NT, p.171. Em nossa pesquisa vamos nos manter o termo no alemão, por se tratar de
termo largamente utilizado pela exegese.
194
BULTMANN, R. L’histoire de la Tradition Synoptique, p.519.
195
De acordo com a exposição de WEGNER sobre as conclusões de Bultmann, Exegese do NT,
p.201. De fato, nesse trecho de sua pesquisa, Bultmann só trabalhou com o material sinóptico –
atestado em Mt, Mc e Lc – mas por analogia, acreditamos que essas formas possam ser aplicadas
ao texto em questão. BULTMANN, op.cit., p.519.
192
61
· nos v. 19 e 20 ditos de correlação escatológica (19: “aquele, porém, que
os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus”; 20: “se a
vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum
entrareis no reino dos céus.”);
Segundo essa classificação, o Sitz im Leben dessa perícope seria o discurso
parenético na comunidade. Através das palavras de Jesus a comunidade receberia
instruções, conselhos e mandamentos. Teriam também a função de auxiliar na
comunidade uma descrição a respeito da natureza da pessoa de Jesus.196
Jeremias trabalha em outra direção, pois ao analisar o Sermão do Monte
como um todo ele enxerga ali uma Didaquê, ou seja, o texto nasceu no ambiente
da catequese dos novos discípulos da comunidade. Ele afirma também que o v.17
é um dito sobre a própria pessoa de Jesus, bem como enquadra o v.18 na mesma
categoria.197 Seguindo essa lógica, os v. 19 e 20 estariam direcionadas para a
polêmica com os fariseus e escribas, e seria uma introdução para a exposição a
respeito no trecho de 5,21-48. Esse dito de Jesus apresenta-se de tal maneira em
Mateus – inserida no grande conjunto do Sermão do Monte - que ganha ares de
halaká cristã.198 Flusser, no entanto, compara o Sermão da Montanha como uma
derashá, e o método exegético de Jesus, comparável a um midrashim rabínico.199
No extenso estudo de K. Berger sobre as formas literárias do Novo
Testamento, que atualizou a pesquisa de Bultmann, há diversos aspectos a serem
apontados. De forma abragente, ele apontou o Sermão do Monte como um gênero
de discurso, “composto de material variado.”200 Para Berger, aliás, o trecho 5,1720 faz parte de um todo bem delimitado, uma grande perícope que envolve 5,2-48.
O material variado a que Berger se refere faz parte do tipo de texto simbulêutico e
epidíctico. 201 Ambos os gêneros permeiam a perícope, que parece ter nascido na
196
Cf. WEGNER, U., Exegese do NT, p.199.
Cf. JEREMIAS, J., Estudos no NT, p.98. A análise do Amém como expressão exclusiva de
Jesus foi deixada para o momento da Análise da Historicidade do texto, cf. infra.
198
Cf. SCHREINER e DAUTZENGERG, Formas e Exigências do NT, p.289.
199
FLUSSER, D., “Um paralelo rabínico ao Sermão da Montanha”, p.32.
200
BERGER, K., Formas literárias do NT, p.67. J.M.Robinson enxergou nos textos de Q ainda
outro gênero, próximo daqueles estudados por Bultmann e Berger. Ele percebeu que na literatura
antiga os conjuntos de ditos eram em geral atribuídos a sábios, como os antigos conjuntos
sapienciais egípcios ou israelitas. Por isso batizou-os de logoi sofôn (ditos dos sábios). Assim, se o
v.18 realmente pertencer a Q, e tudo indica que seja, então também compartilha esse gênero.
201
BERGER conceitua assim os textos simbulêuticos: “pretendem mover o ouvinte a agir ou a
omitir uma ação. O nome vem do grego symbouléomai = aconselhar. Frequentemente dirige-se à
segunda pessoa. A forma mais simples é a admoestação; a mais complexa, a argumentação
simbulêutica.” Já os textos epidíctico são definidos como aqueles que “tencionam impressionar o
197
62
forma oral, para depois ter sido registrada por escrito. Como unidade própria, Mt
5,17-20 é identificada como um discurso normativo, que é um ensino
antropológico-ético. Ali se trabalha a validação da Lei.
Analisando as partes da perícope, podemos perceber no v.19 o gênero
simbulêutico, um dito com cunho parenético. Sua forma seria de uma admonição
no esquema “ato-efeito”, uma promessa condicional de salvação ao lado de
anúncios condicionais de desgraça: uma conclusão bipartida. Há também um
anúncio condicional de perdição, numa fórmula de canonização, à qual o v.18 é
incluído. Ainda no esquema “ato-efeito”, o v.20 aponta para um dito sobre o
“entrar” no reino de Deus e sobre “herdar” e “ver”, sendo uma frase condicional.
Há, no entanto, uma possibilidade de ver na perícope o gênero epidíctico, na
forma de um dito que contenha o “eu” do enviado, especialmente na expressão
“Eu vim...”, presente no verso 17.202
A característica geral do gênero simbulêutico está expressa em seu uso de
parênese, que Dibelius definiu como uma série de admonições de conteúdo
ético.203 Para compreender adequadamente seu sentido, especialmente no caso do
Sermão do Monte, é preciso analisar a forma como se dá a parênese no contexto
jurídico judaico. O sistema legal judaico pouco tinha a ver com o direito romano,
e os discursos de Jesus que tratam dessa matéria não podem ser interpretados à luz
deste. Em geral, no tempo de Jesus, o direito se fundamentava nas grandes
autoridades que interpretavam a Lei. Aqui temos um dado que nos ajudará a
aprofundar a nossa compreensão sobre a relação entre Jesus e a Torá, e sua
exigência de justiça.
Trilling204, por sua vez, analisa cada versículo da perícope como tendo uma
forma própria: o v.17 como uma sentença teológica na forma do EU; o v.18 uma
palavra profética; o v.19 como uma sentença legal; e o v.20 também como palavra
profética, mas que adiciona uma regra de piedade. Com isso cada verso teria um
Sitz im Leben próprio.
O panorama geral da perícope, enfim, nos leva a um Sitz im Leben cuja
principal função é parenética, pois pretende orientar a vida da comunidade à luz
leitor, para fazê-lo sentir admiração ou repulsa; sua sensibilidade para valores é abordada na esfera
pré-moral”. Op.cit., p.21.
202
BERGER, K. op.cit., p.111 passim.
203
Cf. DIBELIUS, Der Brief des Jacobs, p.16s.
204
TRILLING, W., El verdadeiro Israel, p.265.
63
do modelo que Jesus representa para ela, que pode ser num nível de catequese,
como propõe J. Jeremias.
3.3.
Análise redacional
No capítulo anterior pudemos ver, de forma panorâmica, o objetivo de
Mateus em sua redação, e na estrutura que moldou para atender a esse objetivo.
Aqui desejamos discutir a redação específica de 5,17-20, à luz de seu contexto
imediato205. Antes porém, analisaremos a atividade redacional mateana, em
relação às fontes utilizadas.
3.3.1.
Aspectos redacionais do evangelho de Mateus
O evangelho de Mateus apresenta sinais de atividade redacional pela forma
como ele utilizou os materiais que tinha à disposição. Ele os modificou e agrupou
segundo um determinado objetivo que transparece durante a obra. Os discursos
formam blocos temáticos, e cada um é encerrado com a fórmula “e aconteceu que,
concluindo Jesus este discurso” [Kai. evge,neto o[te evte,lesen o` VIhsou/j tou.j lo,gouj
tou,touj(], ou semelhantes (em 7,28; 11,1; 13,53; 19,1; 26,1). Uma análise
sinóptica percebe material comum entre Mateus, Marcos e Lucas, o que conferiu
aos três a denominação de evangelhos sinóticos.206 No entanto, dois aspectos há
muito têm sido trabalhados: há partes em cada um dos três (inclusive Mc) que não
foram utilizadas pelos outros dois; e mesmo o material comum muitas vezes
apresenta diferenças e alterações. Isso deixou claro que os evangelistas tinham,
cada um, objetivo teológico e literário próprio, e que não eram meros
compiladores, mas redatores com plena capacidade de interferência no texto, ou
na tradição.207
205
A análise da perícope à luz do contexto temático e integral foi feita no capítulo anterior, p.4349.
206
Esse termo foi atribuído aos escritos dos três primeiros evangelhos pelo pesquisador alemão J.J.
Griesbach, em sua obra Synopsis evangeliorum [sinopse dos evangelhos], publicada em 1776.
207
Sobre a questão sinótica ver: A clássica obra de BULTMANN, R. L’historie de la Tradition
Synoptique. Uma obra que trás vasta bibliografia para aprofundamento é KÜMMEL, W.G.
Introdução ao NT, pp.36-93. Duas obras introdutórias em português que dão uma visão
panorâmica: DAUTZENGERG, SCHREINER, Formas e Exigências do Novo Testamento, p.256273; MARCONCINI, B., Os Evangelhos Sinóticos, p.69-84.
64
Com relação à dependência literária, a pesquisa atual tem aceitado de forma
bastante ampla a tese de que Mateus utilizou material de Mc e Q – a teoria das
duas fontes208. A grande questão está em torno do material próprio – a fonte M, ou
tradição M. Para alguns ela pode ser na verdade parte do material de Q numa
versão ampliada, que Lucas não aproveitou.209 Outros defendem que a fonte M
teria sido uma terceira fonte escrita, por se tratar de vasto material.210 Uma
terceira posição, no entanto, defende que o material exclusivo de Mateus seja
proveniente da tradição oral.211 A dificuldade está em como comprovar essa fonte.
Alguns autores pensam que a correlação estaria na forma como Mateus cita o AT,
em trechos exclusivos (ex: 1,23; 2,15.18s.23; 4,15s; 8,17; 12,18-21; etc.). Todas
elas são iniciadas pelas fórmula de cumprimento “para que se cumprisse o que foi
dito da parte do Senhor pelo profeta” [i[na plhrwqh/| to. r`hqe.n u`po. kuri,ou dia. tou/
profh,tou le,gontoj(], ou semelhantes a essa. Mas mesmo aí há um problema. A
análise desse material demonstrou que, na verdade, foi Mateus quem compôs
essas fórmulas, e não as teria colocado a partir de alguma fonte212. Seria assim o
trabalho redacional próprio do evangelista.
3.3.2.
Atividade redacional em Mt 5,17-20
Na perícope de 5,17-20 temos uma pequena unidade redacional que,
conforme vimos na análise literária (2.2.1) tem, como fonte, material comum a Lc
16,17, provavelmente advindo de Q, mas que também guarda semelhanças com
outra perícope (Mt 24, 34-35), paralela a Mc 13,30-31 e Lc 21,32-33. Os v.17, 19
e 20 pertencem ao material próprio de Mateus, e mesmo podendo ser de diferentes
momentos, foram reunidos em torno da temática do cumprimento da Lei. Mas
como se pode analisar a redação dessa perícope?
Redacionalmente, Bonnard considera que os quatro versos de 5,17-20 não
são coerentes entre eles, nem na forma nem no conteúdo, o que transparece um
208
Desenvolvida pelo filólogo C. Lachmann no século XIX, e muito aceita hoje em dia pelos
exegetas, mesmo considerando alguns problemas e questões não resolvidas, como o material
exclusivo de Lc (quase do tamanho do evangelho de Mc) e a citação de Papias a respeito de um
texto de Mateus em aramaico, nunca encontrado.
209
Cf. as teses de Bacon, J.P.Brown e Strecker.
210
Cf. MANSON, T.W., The Sayings of Jesus; e as teses de Johnson, Henshaw, Kilpatrick, et all.
211
Kümmel defende essa tese, Introdução ao NT, bem como Albertz, Guthrie, Heard, Dahl.
212
Cf. Grundmann, Lohmeyer, Bacon, Strecker.
65
arranjo redacional de diversos elementos da tradição prémateana.213 Marguerat
considera essa perícope uma das mais difíceis do ponto de vista literário e
redacional, pois com exceção do v.18, que pode ser comparado diretamente com
Lc 16,17, não há clareza no restante do material quanto ao uso de fontes e arranjo
redacional. Os indícios de trabalho redacional se dão por conta da cadeia de
conjunções que articula o pensamento geral da perícope ( “ga,r” 18, “oun” 19a,
“de,” 19b, “ga,r” 20).214 Seguindo a análise de Trilling, na seção sobre a forma do
texto (3.2.2), há indícios de atividade redacionais, pois Mateus junta num pequeno
conjunto de sentenças expressões que, a despeito da aproximação temática, são
oriundas de ambientes específicos, e respondem a questões diferentes, quando
analisadas isoladamente. Se as sentenças, isoladamente, vêm de Jesus, foram
trabalhadas em conjunto pelo evangelista para tratar da questão mais ampla a
respeito da Lei.215
Barth216, por outro lado, entende que os vv.18 e 19 formam uma unidade,
pois o salto entre o v.19 e o 20 é grande demais para ser uma redação mateana, ou
seja, Mateus já os teria encontrado da forma como estão. Já o v.17 parece uma
construção de Mt, ao mesmo tempo em que permite uma interpretação para o
v.18. Ambos são parte de uma costura redacional. Seja como for, de acordo com
Barth, o núcleo central 18 e 19 seria mais antigo, com complementos posteriores,
os v. 17 e 20. Bultmann já havia diagnosticado que o v.20 é uma construção do
evangelista, elaborada para introduzir a série de antíteses de 5,21-48.217
Já Pregeant aborda a questão redacional levando em conta todo o conjunto
ao qual 5,17-20 está ligado: as antíteses (5,21-48) e também as orientações de
Jesus para a comunidade (6,1-18). Ele considera que a melhor hipótese para a
redação está na relação v.17 ligado às antíteses (como se deve interpretar as
escrituras hebraicas), e o v.20 relacionado às orientações (como praticar a justiça
superior a dos escribas e fariseus). E entende que os v.18 e 19 são uma inserção de
213
BONNARD afirma: “D’ailleurs, les quatre versets de Mat., tant pour la forme que pour le fond,
ne sont pás absolument cohérents entre eux; il s’agit sans doute d’un arragement réunissant divers
éléments de la tradition prémathéenne; em conséquence, il serait faux d’y chercher um
développement selon les normes d’une logique occidentale.” L’Évangile selon Saint Matthieu,
p.60s.
214
MARGUERAT, D., Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p. 112.
215
TRILLING, W., op.cit., p.265.
216
BARTH, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.65s. Como também M. LAGRANGE,
que chega a afirmar que “la suite serait limpide, si l’on passait du v.17 au v.20. Le v.18 semble
être là comme une transition entre le v.17 et le v.19.” Évangile selon Saint Matthieu, p.95.
217
BULTMANN, R., L’historie de la tradition synoptique, p.176.
66
Q, e assim a perícope deve ser lida como vv.18-19 à luz de 17-20 e não o
contrário.218
Realmente, o v. 17 apresenta características de uma atividade redacional. De
acordo com Marguerat, Mt repete a fórmula “to.n no,mon h' tou.j profh,taj”,
originária da fonte Q, em 5,17, 7,22 e 22,40, como recurso redacional. O verbo
“plhroun” faz parte da terminologia própria de Mateus.219 Além disso, Banks
entende que as palavras de abertura (Mh. nomi,shte) são um artifício retórico para
reforçar o aspecto positivo das sentenças seguintes.220
O v. 18, em comparação com Lc 16,17 apresenta alguns aspectos peculiares,
segundo o quadro comparativo entre os dois textos:
Mateus
18
avmh.n ga.r le,gw u`mi/n\ e[wj a'n pare,lqh| o`
Lucas
17
Euvkopw,teron de, evstin to.n ouvrano.n kai. th.n
ouvrano.j kai. h` gh/( ivw/ta e]n h' mi,a kerai,a ouv mh.
gh/n parelqei/n h' tou/ no,mou mi,an kerai,an
Pare,lqh| avpo. tou/ no,mou( e[wj a'n pa,nta ge,nhtaiÅ
pesei/nÅ
Apesar da construção um pouco diferente, ambos se baseiam nos mesmos
vocábulos, especialmente o termo “pare,lqh”, subjuntivo do verbo pare,rcomai, e
quer dizer “passar, passar além”. Em 5,18 pode ser entendido no sentido
metafísico, como algo que vai passar, ter fim, perecer.221 Esse verbo aparece em
Lc seis vezes, quase sempre com conotação escatológica.222 Em Mateus aparece
um pouco mais, oito vezes, em contextos diferentes, nem sempre escatológicos:
além das duas vezes de 5,18, em 8, 28, referindo-se aos endemoninhados que
impediam a passagem de um caminho (pare,lqein), no capítulo 24, em alguns
momentos, como no v.34 (pare,lqh) e 35 (pareleu,setai e pare,lqwsin), e na
oração de Jesus ao Pai, a respeito de passar o cálice, em 26, 39 (parelqa,tw) e 42
(parelqein). Em Mateus, portanto, o verbo é utilizado com mais sentidos do que
em Lc. Por isso, o sentido escatológico de 5,18 só persiste numa análise sinóptica
com os textos paralelos.
Considerando que o v.18 vem da tradição comum de Q, mas que Lucas
utilizou de maneira totalmente diferente, vemos aqui a maestria de Mateus em
218
PREGEANT, R., Christology beyond dogma, p.63 et.seq.
MARGUERAT, D., op.cit., p. 112 et seq.
220
BANKS, R., op.cit., p.226.
221
Cf. RUSCONI,C., Dicionário do grego do NT¸ p.357.
222
Em Lc 16,17 (pare,lqein), 21,23 (pare,lqh), 21,33 – duas vezes (pareleu,sontai), 12,37 e 17,7
(pare,lqwn). Apenas esse último pode ser entendido num sentido não escatológico.
219
67
colocar duas tradições diferentes em uma unidade de dito, como se Jesus o tivesse
afirmado num momento histórico definido, da maneira como está escrito.223
No tocante à estrutura redacional, temos então uma certeza: há trabalho
redacional em Mt 5,17-20. As hipóteses em torno desse trabalho, no entanto, não
são conclusivas, mesmo considerando o fato do v.18 (e talvez o 19) ter sua origem
na fonte Q. Mesmo assim seguiremos a proposta da moldura de 17 e 20
complementando a idéia de 18 e 19, cuja fonte seria diversa das demais partes. A
partir da afirmação escatológica do verso 18, Mateus teria associado o dito sobre a
permanência da Lei e dos Profetas na pessoa dele, no verso 17. E, a partir da
declaração do maior e menor no reino em relação à Lei (também escatológica) no
verso 19, ele associou a advertência sobre o cumprimento da justiça dos
discípulos na atual realidade, no verso 20.
Um esquema redacional nos daria:
v.18: a eternidade da Lei = v.17: a permanência da Lei em Jesus
v.19: o maior e o menor no reino = v.20: a exigência do cumprimento da
justiça na comunidade.
A conexão das duas partes é o reino dos céus, conforme analisaremos mais
profundamente no próximo capítulo. Seja como for, também é certo afirmar que a
perícope não está de forma alguma isolada no evangelho, mas faz parte do
contexto imediato ao qual está ligada. Vejamos que contexto é esse.
3.3.3.
O contexto imediato de Mt 5,17-20
A perícope de 5,17-20 serve de sumário esquemático introdutório para o
conjunto de interpretações de Jesus com respeito à Lei em 5,21-48? Ou é uma
afirmação contraditória, que é posicionada ali para mostrar aos ouvintes como o
tema da Lei é complexo e impreciso? Vamos tentar identificar o objetivo da
perícope no contexto imediato onde está posta.
Segundo Barbaglio224, percebe-se na composição que o autor pretendeu
resolver a questão a respeito da vontade de Deus. Estava claro que todos deveriam
obedecer a esta vontade, mas a questão era: qual vontade? Aquela da Lei e dos
223
Mesmos assim, muitos apontam que o dito de Lucas deve ter a forma original, pelo fato de ser
mais curto. Cf. BANKS, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.234; VERMES, G., A
religião de Jesus, o Judeu, p.26 et.seq.
224
BARBAGLIO, G., Os Evangelhos (1), pp.118ss.
68
Profetas? Ou haveria outra nova, que seria desenvolvida a partir de Jesus? Havia
na verdade uma contenda interna na comunidade, pois alguns “proclamavam que
Jesus viera como libertador para anular a lei de Moisés; outros sustentavam que
sua tarefa fora a de subscrever, até nos mínimos particulares, tudo aquilo que aí
está escrito”.225 Assim, a perícope é uma tentativa de solucionar o problema, em
tese, e as antíteses posteriores seriam aplicações práticas dessa máxima de
cumprir e não anular. Esse pensamento é compartilhado por Filson226, que entende
que não é uma resposta fácil. Afinal, teria Mateus construído essa perícope apenas
para questionar aqueles que rejeitavam o valor da Lei (como os de Paulo, segundo
o pensamento corrente).
M.Lagrange227 entende que mesmo sendo uma composição de dois
pensamentos expressos em momentos diferentes por Jesus (o v.18 em relação aos
demais), demonstram uma unidade de intenção: mostrar Jesus como reformador
religioso. Assim, a perícope seria uma introdução ao tema, exposto em 5,21-48.
Da mesma forma, S.Parisi228 vê como o anúncio do tema da justiça superior
exigida por uma fé expressiva. Trilling concorda com a abordagem de uma
introdução, mas considera que mais especificamente o v.20 teria essa função.229
De um modo geral percebe-se a conexão de 17-20 com 21-48, com a
ordenação de Jesus a respeito da atitude dos discípulos em relação à Lei. Sendo
uma introdução, a perícope prenuncia a abordagem de Jesus nesse caso. O que
fica patente é a tendência de Jesus (ou Mateus) reinterpretar a Lei, para dar-lhe o
pleno sentido.
Quanto a essa última observação é necessário aprofundar nossa análise. Para
nossa exegese é relevante perceber se a perícope é uma construção da comunidade
de Mateus, a partir de sua situação histórica, conforme apontado no capítulo 1, ou
se de fato o dito veio de Jesus, mesmo considerando os aspectos redacionais
indicados acima. Para tanto, propomos a seguir o estado da questão acerca da
autenticidade do dito de Mt 5,17-20.
225
Ibid., p.118.
FILSON, F.V., A commentary on the Gospel according to St. Matthew, p.83s.
227
LAGRANGE, M., Evangile selon Saint Mathhieu, pp.92s.
228
PARISI, S., “Mt 5, 17-48: giustizia superiore e fede ‘estroversa’. La morale sociale da ‘un
punto de vista’ della Scrittura”. Vivarium 2, p.45ss.
229
TRILLING, W., El verdadeiro Israel, p.267. Bem assim comentam TASKER, Matthew: an
Introduction and Commentary, pp.64ss; BORNKAMM, G. Tradition and Interpretation in
Matthew, p.24ss, bem como F. VOUGA, Jésus et la Loi selon la tradition synoptique, p. 191ss.
226
69
3.4.
Status quaestiones do texto de Mateus 5,17-20
Considerando a questão a respeito da autenticidade do dito, podemos
afirmar de antemão que pelo menos até o século dezenove a opinião corrente era a
favor dela. Um dos pontos a discutir em nossa abordagem é: depois de tantas
pesquisas a respeito dos ditos de Jesus, e do substrato histórico por trás dos textos,
é possível afirmar que Mateus 5,17-20 é um dito autêntico de Jesus? A pesquisa
bíblica anterior ao método histórico-crítico não levantou nenhuma objeção quanto
ao fato das palavras terem sido ditas pelo próprio Jesus. A partir do século vinte é
que se pode falar de duas posições claramente diferenciadas.
3.4.1.
Mt 5,17-20 como posição da comunidade de Mateus
A posição que tem influenciado ainda hoje a pesquisa é a de R. Bultmann
(1948).230 Em sua pesquisa sobre o Novo Testamento foi o primeiro a colocar, de
forma clara, a idéia de que os evangelhos refletem muito mais a posição da Igreja
e suas necessidades de organização, do que as aspirações e projetos de Jesus.
Analisando a exigência de Deus para com os discípulos, Bultmann afirma que há
uma relação entre Jesus e o AT, mesmo que não seja direta, pois “Jesus não negou
polemicamente a autoridade do AT: este é um fato que se comprova pela atitude
posterior de sua comunidade, que permaneceu fiel à lei do AT e com a qual Paulo
entrou em conflito por causa dessa atitude.” Assim, a comunidade se posicionou
diante dos grupos helênicos, colocando na boca de Jesus as palavras constantes na
perícope.
Por isso, para Bultmann essa “palavra que, em vista de outros ditos de Jesus
e em vista de seu efetivo comportamento, de modo algum pode ser um dito
autêntico, sendo antes uma formulação da comunidade no período de conflito
posterior”.231 Isso não quer dizer que esse comportamento foi imaginado pela
comunidade, pois realmente Jesus deve ter tido uma reconhecida autoridade de
mestre. Da mesma forma não houve em Jesus um oposição frontal aos costumes
judaicos (esmola, oração, jejum), mas uma tomada de posição sobre a motivação
adequada para essa prática.
230
231
BULTMANN, R. Teologia do Novo Testamento, pp.48-60; Id., Jesus, pp.71-84, 128-138.
Idid., p.54.
70
R. Bultmann analisa a importância de Jesus para a fé da comunidade
primitiva, e interpreta a perícope mostrando Jesus como Messias. Nessa
compreensão, está implícita a possibilidade de interpretação da Torá, pois o
Messias é o mestre. A coleção de ditos, nesse sentido, é mais do que mera
transmissão de dados, mas herança do Rei da comunidade, cujas palavras contém
sabedoria e uma dimensão escatológica própria do Messias. “Dessa convicção
nascem novos ditos do Senhor, ditos que se destinam a decidir casos de
controvérsia, como: ‘Não penseis que vim para revogar a lei os profetas! Não vim
para revogar e sim para cumprir...’ (Mt 5.17-19).”232
Além disso, R. Bultmann refletiu sobre as conseqüências do fato da
comunidade primitiva ter consciência escatológica para sua vida prática cotidiana;
seria a Lei válida para ela? Nesse sentido, é assim que ele percebe Mt 5,17-19,
como resposta da comunidade com intensa raiz judaica, principalmente pela
influência de Tiago, que vê na postura aberta de Paulo e dos helenistas um perigo
para a fé da comunidade. O dito de Mt 5, 17 teria nascido nesse contexto.
A posição bultmanniana fez escola, e outros se posicionaram na mesma
direção, como G. Bornkamm (1956),233 que admite o papel autêntico de Jesus
como um escriba, não no sentido técnico do termo, mas como intérprete da Torá.
Fazendo um paralelo com a sabedoria judaica contemporânea a Jesus, ele constata
que a aproximação de Jesus com o judaísmo não é circunstancial, mas deve
“despertar compreensão para o fato de que o judaísmo moderno está amplamente
empenhado em reclamar para si o Jesus histórico como um de seus grandes
mestres.”234
Entretanto, G. Bornkamm confirma a posição de R. Bultmann, de
demonstrar que o dito surgiu no ambiente de conflito, e que foi “posta na boca de
Jesus”.235 Por outro lado, compara a posição de Jesus diante da Lei na tradição de
Marcos, que é similar à posição de Mateus. Ou seja, de um modo geral Jesus teria
realmente tido um papel escribal de intérprete, mas o dito de Mt 5,17-20 seria uma
construção da comunidade diante de um contexto posterior de conflito com os
grupos antagônicos que exigiu uma palavra mais clara do mestre.
232
Ibid., p.54 passim.
BORNKAMM, G., Jesus de Nazaré, 163-174.
234
Ibid., p.166.
235
Ibid., p.167.
233
71
Afinado com essa posição, encontramos G. Barth (1960),236 que cita o
próprio R. Bultmann e entende que a perícope expressa um embate entre o grupo
conservador na congregação que tinha uma compreensão própria da Lei. Diante
da questão se a Lei teria sido abolida ou não, Mt 5,18 surge para sanar a questão:
mesmo o elemento mínimo da Lei nunca desaparecerá. G. Barth entende então
que o dito de 5,17 é posterior a 18 e 19, e foi costurado para tornar-se uma
unidade.237
G. Barth interpreta o dito dentro do contexto da polêmica sobre a posição de
Jesus frente à Lei, que seus contemporâneos tiveram. Tudo indica uma correção
nessa posição, como se Jesus quisesse abolir a Lei e fundar algo novo, ou ainda
pior, que tivesse tendências antinomianas. Assim, 5,17-20 deve ser interpretado à
luz de 21-48, onde são apontadas as diretrizes práticas do seguimento da Lei na
nova aliança. É desse modo que o termo plhro,w deve ser compreendido.
Na década de 1970, G. Barbaglio teceu um comentário a respeito do
evangelho no qual não deu um veredicto simplista sobre o assunto, onde também
traça a costura redacional. Ali, ele vaticina a princípio que os v.17 e 20 são
composição mateana, enquanto o v.18 provém de Q, mesmo que reflita de fato um
ambiente de igreja judaico-cristã. Já o v.19 ele considera certamente como
expressão dessa igreja. O sentido desse dito, então, está vinculado ao contexto da
polêmica, de um lado contra setores identificados como “cristãos libertários de
cultura grega”, contra os que pretendiam simplesmente se ater ao escrito da lei
antiga, segundo a tradição farisaica. Em suma, para Barbaglio, Mt 5,17-20
demonstra que “Jesus encontra-se entre o passado do AT, que também tinha
registrado a revelação da palavra do Senhor, a manifestação da sua vontade, e o
futuro do Reino anunciado por ele”.238
De certa forma, é a mesma posição de A. Overman (1990) que chega,
inclusive a afirmar: “interpretações dessa passagem têm se perdido com
freqüência em questões referentes à autenticidade de certos versículos e ao grau
de revisão empregado por Mateus”.239 Ele critica uma tendência de estudar a
perícope isoladamente, sem analisar todo o contexto no restante do livro, que
236
BARTH, G. “Matthew’s Understanding of the Law”, pp.64-73.
Efetivamente concordamos com essa costura redacional, como veremos no capítulo 2, mas isso
em si não prova nada quanto à autenticidade.
238
BARBAGLIO, G., Os Evangelhos 1, p.118s.
239
OVERMAN, A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.92s.
237
72
mostra a compreensão de Mateus a respeito da Lei. De qualquer modo, a tese
central de Overman, que hoje é defendida por muitas pessoas, é que a análise
redacional e literária de Mateus nos leva a um estudo do cristianismo primitivo e
não do Jesus Histórico. Com isso conclui-se que, a despeito de não tomar posição,
há uma clara definição da inautenticidade dos ditos como um todo, que seriam
reflexo da comunidade.240
Quase no mesmo período, dois expoentes da pesquisa a respeito do Jesus
Histórico mantiveram a posição iniciada por Bultmann. J. D. Crossan, em sua
análise do assunto (1991),241 que não chega a analisar em separado a autenticidade
dos ditos de Jesus, especialmente de Mateus 5,17-20. Há duas evidências de sua
concordância com Bultmann na pesquisa: ele lista os ditos que Jesus teria
realmente proferido242, e deixa de fora a perícope de Mateus, citando o dito
paralelo de Lc 16,16-17. A segunda evidência ele apresenta no apêndice a respeito
dos estratos das tradições que compuseram os evangelhos, através de um
inventário.243 A partir dessa catalogação Crossan propõe o seguinte quadro para a
formação da perícope de 5,17-20: os versos 17, 19 e 20 seriam “testemunho único
do Terceiro Estrato”, da tradição M. Ou seja, material elaborado dentro da própria
comunidade de Mateus. O versículo 18 seria proveniente de 1 ou 2 Q, um
“testemunho independente duplo do Primeiro Estrato”. Seria apenas esse dito que
poderia ser considerado autêntico.
O outro forte pesquisador que indica a perícope como construção da
comunidade mateana é J. Gnilka (1993), que afirma textualmente: “Não
possuímos uma palavra básica de Jesus em relação à lei. Isto torna mais difícil
esclarecer a questão, como também explica as idéias disparatadas que se
manifestam na pesquisa.”244 Gnilka entende que o dito de Mt 5,17-20 nasceu sob
o peso da disputa entre diferentes grupos a respeito da Torá, e aceita a atribuição
dada à comunidade de Mateus a respeito do dito.
Num artigo contemporâneo à pesquisa de J. Gnilka, I. Broer (1993)
escreveu a respeito das antíteses do Sermão do Monte. Nesse artigo é
demonstrado que a leitura de Mt 5,17-20 junto com 21-48 ajuda a entender o
240
Talvez considerando como autênticos apenas os ditos testemunhados em Q e Marcos, e ainda
assim com ressalvas.
241
CROSSAN, J.D. O Jesus Histórico.
242
Ibid., pp.13-25.
243
Ibid., pp.472-486.
244
GNILKA, J., Jesus de Nazaré, p.197.
73
conflito sobre a Torá entre os seguidores de Jesus e a comunidade materna
judaica. A radicalização da Torá no texto não era entendida como ab-rogação da
Lei do AT.245
Concluindo, essa corrente afirma categoricamente que o dito de 5.17-19
seria um dito desenvolvido pela comunidade de Mateus, e não do próprio Jesus, e
que respeita a tradição em que Jesus não se coloca claramente contrário à lei, mas
a reinterpreta. O problema na posição de Bultmann e dos demais, quando
confrontada com a nova abordagem na pesquisa de Jesus, é a contradição entre a
posição de Jesus perante a Lei, que ele reconheceu como legítima, e a palavra em
si, que ele não aceita como autêntica. Um grupo social, originado de uma grande
liderança, que tem na palavra o cerne de sua atividade, e considera tal palavra
como Torá viva, dificilmente se sentiria à vontade para construir um repertório
para esse mestre.246
3.4.2.
Mt 5,17-20 como dito autêntico de Jesus
Numa posição inversa, mas utilizando recursos científicos para abalizar suas
conclusões, encontramos J. Jeremias (1970), já no decurso da Nova Pergunta pelo
Jesus Histórico. Sua posição, definida especialmente quando desenvolveu sua
Teologia do Novo Testamento, é resultado de um extenso trabalho filológico,
iniciado décadas antes. Jeremias considera o dito como parte de um grupo de
sentenças que Marcos não teve acesso, e por isso mesmo seria autêntico, a partir
da análise da base aramaica dos ditos de Jesus. Ele afirma que Mt 5.17b vem de
uma tradição rabínica, no Talmude Babilônico, Shabbat 116 b247 (p.33).
Para Jeremias, Mt 5.17 é a “expressão mais aguda dessa consciência de
plenipotência” de Jesus em relação à sua missão.248 Ele afirma alguns aspectos
importantes:
245
BROER, I. “Die Antithesen der Bergspredigt Ihre Bedeutung und Funktion für dier Gemeinde
des Matthäus.” pp.128-133.
246
Essa discussão aponta para o problema que hoje se discute em termos de autoria dos
evangelhos, quanto ao papel da comunidade na construção dos textos. Além disso, o papel da
tradição oral no Sitz im Leben de cada uma. Eis aí um ponto que precisa ser melhor refletido, sobre
as fontes, o contexto vital e a herança que cada comunidade teve como pano de fundo em sua
formação. Sobre o assunto, ver OVERMAN, A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo,
pp.79-148; MARCONCINI, B., Os evangelhos sinóticos, pp.122-126;
247
JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento, p. 33.
248
Ibid., p.142.
74
Contra a antigüidade do dito alegou-se que h=lqon [vim] refere-se em retrospectiva
à atividade de Jesus como já acabada. Todavia, como mostra Mt 11.19, essa
afirmação não condiz nem sequer com o texto grego, quanto mais com o tytea]
[’atet] aramaico subjacente, que pode significar simplesmente ‘eu estou aqui’, ‘eu
quero’, ‘é minha tarefa’. Por outro lado, fala em favor da antigüidade da palavra o
fato de ela ser uma das pouquíssimas palavras de Jesus que nos foram transmitidas
em aramaico.249
Quanto a essa última parte veremos se Jeremias prova sua tese, comparando
com o Talmude (ver na análise semântica, cap.2). Para ele, os títulos cristológicos
são interpretação posterior da comunidade, a partir das imagens que o próprio
Jesus deve ter destacado dele mesmo.
Ainda mais claramente do que nas imagens emprestadas à linguagem simbólica, a
consciência que Jesus tinha acerca da sua soberania expressa-se na profusão
incomum do ’egw, enfático nos seus ditos, em igual grau tanto no material sinótico
como no joanino. Encontra-se não só em afirmações que Jesus faz sobre sua missão
como em Mt 5.17, mas perpassa toda a sua pregação.250
Conclusão: J.Jeremias trabalha com a hipótese de que o dito seria de Jesus,
mesmo que a Igreja tenha dado a ela um tom mais cristológico. Essa posição
também influenciou um grande grupo de exegetas, que têm defendido essa
hipótese.
Um pouco antes (1960), G.W. Kümmel, já trabalhara sua própria Síntese
Teológica do Novo Testamento,251 a partir de um pressuposto: “não existe a
mínima razão para que se concorde com a opinião de que a probidade histórica de
um trecho da tradição possa ser somente uma exceção”.252 Ele considerou que,
mesmo não sendo possível reconstituir a biografia completa e a trajetória histórica
cronologicamente, a partir dos evangelhos, não se pode descartar que por trás
deles há uma sólida tradição a respeito de Jesus, que tem especialmente nos ditos
sua mentalidade e pregação. Para Kümmel, na verdade, é a inautenticidade que
precisa ser provada, e não o contrário. Dito isto, Mt 5,17-20 se torna autêntico no
conjunto dos demais ditos de Jesus.
249
Ibid., p.142. Jeremias atribui ao texto grego um traço semítico, que denuncia uma tradução. Em
suas palavras, ele afirma: “Deve-se dizer ainda mais precisamente que a língua materna de Jesus é
o dialeto galileu do aramaico ocidental. Pois as analogias lingüísticas mais aproximadas das
palavras de Jesus se acham nos textos populares aramaicos do Talmude e dos midrashim
originários da Galiléia. A fixação por escrito desses textos só se deu entre os séculos 4 e 6 depois
de Cristo, mas há muita probabilidade de que já no tempo de Jesus o aramaico usado no dia-a-dia
na Galiléia se distinguia do aramaico (judaico) do sul da Palestina por sua pronúncia, por suas
variações lexicais, por sua imprecisões gramaticais e por um menor influxo por parte da linguagem
da escola rabínica. Em Mt 16.73 pressupõe-se que em Jerusalém se podia reconhecer um galileu
pelo seu dialeto.” P.33.
250
Ibid., p.362.
251
Lançado em 1968.
252
KÜMMEL, W.G., Síntese Teológica do Novo Testamento, p.44.
75
A questão da autenticidade foi tratada por alguns exegetas como assunto
definido. É o caso de R. Banks (1974), que tenta superar a discussão sobre a
autenticidade, colocando a compreensão de Jesus sobre a Lei como sendo também
a discussão de Mateus e sua comunidade. Com isso Banks aponta para uma
decisão: considerar como já discutida a questão, em função das conclusões a que
se chegou através do método histórico-crítico, especialmente na História das
Formas e da Crítica Redacional. Para ele, importante é discutir a compreensão que
Mateus e sua comunidade tiveram do próprio Jesus e de sua mensagem relativa à
Lei. 253
O que o dito passa em termos dessa compreensão é o fato de que a
comunidade de Mateus estava vivendo a problemática da disputa de espaço com
outros grupos, especialmente com a tradição farisaica. Jesus teria afirmado sua
posição sobre a Lei numa alusão crítica a essa tradição, que os discípulos
deveriam superar, com um novo senso de justiça. Essa nova justiça se cumpriu
integralmente em Jesus, que enfatizou o caráter profético e provisório da Lei
frente à vontade de Deus e seu Reino, que superaria completamente a letra e a
tradição (paradosis) dos fariseus. O centro da questão, de fato, não está no mero
cumprimento das normas, mas a obediência a partir de um relacionamento vivo
com o próprio Jesus.254
B.L. Martin (1983), em um breve artigo,255 analisa o posicionamento de
vários pesquisadores a respeito da posição de Mateus na questão de Jesus e a Lei,
a partir da perícope de 5,17-20. Comentando o sentido do texto, Martin entende
que as palavras de Jesus devem ser tomadas como “instrução”, dentro do contexto
ético do amor a Deus e ao próximo. Seria nessa linha que Jesus teria afirmado sua
posição em relação à Lei, cumprindo-a no critério do amor.
Anos mais tarde, a pesquisa que levou em consideração a autenticidade – ou
que decidiu não tratar do assunto – continuou a evocar sentidos para o dito de
5,17-20. Como exemplo, podemos ver o comentário de F. Mateos e F. Camacho
sobre Mateus (1993), que trata do assunto em questão como sendo uma busca de
253
BANKS, R., “Matthew's Understanding of the Law: Authenticity and Interpretation in Matthew
5:17-20”, pp. 226-242.
254
Como afirma BANKS: “For Matthew, then, it is not the question of Jesus’ relation to the Law
that is in doubt but rather its relation to him! AS this analysis hás sought to show, however, such a
way of posing the issue stems from the authentic words of Jesus which Matthew’s account
enshrines.” P.242.
255
MARTIN, B.L. “Matthew on Christ and the Law”, pp.53-70.
76
sentido para a situação do povo oprimido, para quem a mensagem de que ele veio
para cumprir a Lei, seria também a mensagem do cumprimento das promessas.
Nesse sentido, “Jesus quer desfazer um mal-entendido e uma decepção. Os que
conhecem a grandeza das promessas do At, que se traduziram na expectativa
messiânica, podem sentir-se defraudados diante do horizonte que Jesus
apresenta.”256
G.E. Ladd (1990) também considera a autenticidade dos ditos de Jesus, e
interpreta a perícope, a partir do Sermão do Monte como uma ruptura tanto da
Tradição farisaica quanto da Mishnah. Para ele, o que diferencia o ensino de Jesus
ali é a ética da vida interior, em que a justiça perfeita se realiza a partir do
coração. Além disso, por ter realizado plenamente o verdadeiro propósito da Lei,
ele pode declarar o que é válido e o que não é.257
Um dos expoentes da Third Quest que concorda com essa abordagem é G.
Vermes. Em sua pesquisa a respeito da relação de Jesus com a religião judaica, a
partir das fontes sinóticas, Vermes faz importantes afirmações sobre o assunto.
Tratando a respeito da relação específica entre Jesus e a Lei (1993),258 Vermes
entende que a pesquisa com relação à autenticidade tem uma tendência pessimista,
e por isso mesmo abordem mais a teologia ou a perspectiva de um evangelista, do
que o cerne da mensagem de Jesus. Vermes pretende caminhar nessa direção, e no
tocante à autenticidade, ele pensa no princípio cui bono: quem ganha e quem
perde com determinado ensinamento? Assim, ele conclui:
Um pronunciamento que serve aos interesses da cristandade gentílica em seus
primórdios e não se harmoniza com a perspectiva geral de Jesus é provavelmente
produto da igreja primitiva. Em contraste, se nos defrontamos com uma doutrina
contrária e de impossível conciliação com as necessidades eclesiásticas, pode-se
presumir sua autenticidade histórica.259
Tratando do material exclusivo de Mateus, com coloração mais judaica,
Vermes propõe uma leitura a partir do material de Marcos e Lucas que reforçam o
fato de que Jesus não aboliu de forma absoluta a validade da Lei. Tal abordagem
confirma um fato: Jesus não se opôs à Lei. Por isso o material exclusivo de
Mateus não tem que ser, necessariamente, fruto do pensamento da comunidade,
sem relação com a posição de Jesus. Em seu sistema de classificação dos ditos de
256
CAMACHO, F. e MATEUS, F., O evangelho de Mateus, p. 64s.
LADD, G.E., Teologia do Novo Testamento, pp.117-122.
258
VERMES, G., A religião de Jesus, o judeu, pp.19-48.
259
VERMES, op.cit., p.24.
257
77
Jesus, Vermes identifica Mt 5,17-20 como um dito autêntico, que sofreu edições
posteriormente para enfraquecer o peso da afirmação acerca da permanência da
Torá. Na verdade, “um exame rigoroso das passagens relevantes atinentes à
validade permanente da Torá revela que o dito básico vem de Jesus.”260 As
mudanças ou omissões em outras tradições refletem as exigências de uma “igreja
não-judaica, cujos membros já não se consideravam sujeitos às pesadas regras da
religião judaica”261.
Semelhante posição tem G.N. Stanton (1993), que realizou estudos no
evangelho de Mateus privilegiando a comunidade receptora da mensagem. Para
ele, com relação ao material exclusivo M, presente no dito de 5,17-20, não se
pode falar de uma criação de Mateus, mas de uma exegese dele em torno de ditos
autênticos do mestre. Na verdade Mateus teria a postura de um escriba que guarda
um tesouro: os ditos do próprio Jesus, mas que adaptaria esses ditos ao contexto,
da mesma forma como fez com os textos da tradição marcana e da fonte Q.262 Em
relação ao sentido da perícope, ele entende que diante do questionamento dos
opositores quanto à atitude de Jesus perante à Lei, os discípulos são convocados a
prática urgente da vontade de Deus, num grau ainda maior que os Escribas e
Fariseus.263
Outro exemplo de posição imparcial no tocante à autenticidade é a de
Theissen que, em seu manual (1996), trata da aparente contradição sobre o uso da
expressão “Antes que passem o céu e a terra, não passarão da lei um i nem um
ponto do i, sem que tudo haja sido cumprido” (Mt 5,18/Lc16,17)264 por Mateus e
Lucas em contextos literários totalmente diferentes. Quanto a isso ele afirma:
Independentemente da questão sobre a autenticidade, ambos os ditos poderiam ser
atribuídos a Jesus em virtude de seu conteúdo, pois sua posição perante a Torá era,
de fato, ambivalente. A combinação de intensificação e abrandamento das
normas é característica da relação de Jesus com a Torá.265
Mais recentemente, numa nova abordagem a respeito dos evangelhos, com a
preocupação de uma hermenêutica política por trás do texto, encontramos W.
Carter, que em 2000 realizou um “comentário sociopolítico e religioso a partir das
margens” do evangelho de Mateus. Em sua análise da perícope, ele trata da
260
Id., O autêntico evangelho de Jesus, p.402.
Ibid., p.402.
262
STANTON, G.N. A Gospel for a New People, pp.340-345.
263
Ibid., p.300s.
264
Citado conforme tradução do texto de Theissen, O Jesus Histórico, p.387.
265
MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.388.
261
78
temática do império de Deus em contraponto ao império romano, que de certa
forma, assombrava o imaginário dos povos oprimidos, sempre lembrando que eles
não eram livres em absoluto para decidirem sua forma de viver. Assim sendo, a
afirmação de Jesus, além do sentido direto de uma conformação à vontade do
Senhor, ganha um colorido de resistência aos poderes romanos e ao
colaboracionismo por parte das elites judaicas, que pretensamente são justas.266
Concluindo, o debate acerca da autenticidade de Mt 5,17-20 se dá
principalmente por ser material quase totalmente exclusivo de Mateus. O contexto
judaico e a relação conflituosa da comunidade mateana com os demais grupos
judaicos fizeram com que esse dito tivesse importância capital. Mas isso quereria
dizer que o dito foi criado pela comunidade? E se um dito tão marcadamente
judaico de Jesus tivesse de fato sido “esquecido” pelas demais comunidades,
simplesmente porque não as ajudava em sua caminhada, cada vez mais distante do
mundo do judaísmo, e mais próximo da realidade helênica? A análise a favor da
autenticidade poderá nos conduzir na exegese do texto, a fim de verificar a
validade dessa hipótese.
3.5. Análise da historicidade
Não dúvida de que Jesus teria ensinado aos seus discípulos, e que esses
ensinos foram preservados pelas comunidades receptoras de sua mensagem. Seu
ensino teve muito a ver com a ética do judaísmo corrente, e de fato deve ser
encontrada ali sua raiz. Vários autores compararam o posicionamento de Jesus
frente à Torá com a exegese rabínica corrente.267
No sistema da interpretação judaica a respeito da Torá, compendiada na
Mishnah a partir dos anos 80 do século 1 da era cristã, há uma força muito grande
na Tradição Oral, da qual certamente Jesus participou e a partir da qual
desenvolveu sua própria “Mishnah”. Como diz o Talmud de Jerusalém Peah II, 6
17a:
O Rabbi Haggai em nome do Rabbi Shemuel bar Nahman: ‘Foram ditas palavras
oralmente e outras foram ditas por escrito. Não saberíamos quais são preferíveis se
266
CARTER, W., O Evangelho segundo São Mateus, p.189ss.
Em especial G. VERMES escreveu um artigo, a partir de uma palestra ministrada em Oxford,
no ano de 1982, “Literatura judaica e exegese do Novo Testamento: reflexões metodológicas”,
onde analisa a similaridade entre os ensinos de Jesus presentes no Novo Testamento e os escritos
judaicos contemporâneos a ele. Segundo ele, a maior probabilidade a ser trabalhada é a de que o
“Novo Testamento e a doutrina rabínica derivam de uma fonte comum, por exemplo, o
ensinamento tradicional judaico”. Jesus o mundo do Judaísmo, p.106.
267
79
não estivesse escrito (Ex 34,27): Porque foi em virtude destas palavras que fiz
aliança contigo e com Israel. Assim se entende que as palavras orais são
preferíveis.’268
Tendo em vista essa idéia judaica, podemos apontar a historicidade dos
ditos de Jesus tendo como matriz vivencial o ensino dos sábios judeus. Essa é uma
realidade que também podia ser vinculada a Jesus. Na verdade não havia, no
judaísmo tardio, uma escola formal para mestres, no sentido dos intitulados rabis.
O fato de Jesus ter sido chamado assim não contradiz sua origem camponesa
humilde, pois o estudo realizado a partir de registros literários, sejam cristãos,
sejam rabínicos, ou mesmo oriundos do movimento epigráfico, demonstram que
não haviam ritos ou formas fixas que determinavam o rabinato naquele período.
De fato, “um escriba se tornava ‘Rabi’ tão logo outros, e especialmente alunos, o
tratassem como tal e lhe pedissem conselho.”269 Sem dúvida, essa era a situação
de Jesus. Cabe agora avaliar esse ensino exposto no dito de Mt 5,17-20 a partir
dos critérios de historicidade.270
A avaliação da historicidade dos evangelhos passa por critérios que “são
apenas mais ou menos prováveis; raramente se chega a uma certeza”.271 Em nossa
análise, que não é o centro da pesquisa, mas que fundamenta boa parte dela,
queremos verificar até que ponto o dito de Mt 5,17-20 vem de Jesus, e até que
ponto é uma elaboração de Mateus frente a uma necessidade específica de sua
comunidade de fé. Vamos analisar a perícope de acordo com os critérios de
historicidade divulgados pela pesquisa, a partir do Critério da Múltipla Atestação,
da Plausibilidade Histórica, do Constrangimento, Critério da Rejeição e da
Execução e do Critério do Estilo de Jesus.
3.5.1.
268
Cf. citado por LENHARDT, A Torah Oral dos Fariseus, p.20.
MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.381.
270
Esses critérios foram elaborados no bojo da Third Quest, como aceitáveis academicamente para
determinar até que medida podemos declarar um dito de Jesus como histórico ou não. Hoje
também já se aplica essa criteriologia às narrativas de milagres. Mas não há um consenso exato
sobre quantos e quais devem ser aplicados ao estudo do texto. Theissen, por exemplo, propõe que
os critérios de diferença e coerência sejam substituídos pelo da plausibilidade histórica. Ele é
seguido por Wegner nessa posição. Marconcini propõe cinco critérios, baseado em Latourelle.
Meier propõe um sistema um pouco mais complexo: ele dividiu os critérios em primários
(constrangimento, descontinuidade, múltipla confirmação, coerência, rejeição e execução) e
secundários ou dúbios (traços de aramaico, ambientação palestina, vividez da narração,
tendências do desenvolvimento da tradição sinóptica e suposição histórica). Em nossa abordagem
vamos nos ater aos critérios que são mais aceitos e tem maior objetividade de análise.
271
MEIER, J.P., Um judeu marginal, p.169.
269
80
Critério da Múltipla Atestação
Também chamado de critério da múltipla “confirmação” (Meier) ou
“depoimento múltiplo” (Marconcini), trata da existência de um dito de Jesus “em
mais de uma fonte literária independente (p. ex., Marcos, Q, Paulo, João) e/ou em
mais de um gênero ou forma de literatura (p.ex., parábola, história de debates,
história de milagres, profecia, aforismo).272 Meier e Theissen destacam a
importância da fonte ser independente.273 Casos em que Mt e Lc simplesmente
repetem ditos presentes em Mc não representam em si um exemplo de múltipla
atestação.
Ao aplicar esse critério à perícope em questão, vamos seguir a
classificação de Crossan. Nela, o versículo 18 tem sua origem em 1 ou 2 Q, e seria
um testemunho independente duplo do Primeiro Estrato. Já os versos 17, 19 e 20
são da tradição de M, e por isso devem ser testemunho único do Terceiro Estrato,
a partir da Tradição M.274 Isso não quer dizer, a priori, que o dito não foi afirmado
antes, mas que só foi registrado por escrito numa terceira fase redacional do texto.
A questão é: a perícope fica prejudicada em sua análise de historicidade, pelo fato
de ser material exclusivo, na forma como foi redigida no evangelho de Mateus?
Vejamos se há correlação no dito com outras fontes independentes: o v.17
tem semelhança com Mt 10,34, que por sua vez é paralelo de Lc 12,51, conforme
podemos verificar na estrutura:
Mateus 5,17
17
Mh. nomi,shte o[ti h=lqon katalu/sai to.n no,mon
Mateus 10,34
34
Mh. nomi,shte o[ti h=lqon balei/n eivrh,nhn evpi.
h' tou.j profh,taj\ ouvk h=lqon katalu/sai avlla.
th.n gh/n\ ouvk h=lqon balei/n eivrh,nhn avlla.
plhrw/saiÅ
ma,cairanÅ
[Não considereis que eu vim para anular a Lei e
[Não considereis que eu vim para trazer paz à
os Profetas; não vim para anular, mas para dar
terra; não vim para trazer paz, mas espada]
pleno sentido ]
Há uma evidente correlação estrutural entre os dois ditos. Nos dois casos o
uso de h=lqon [eu vim], segundo Banks, reforçam um significado cristológico
particular que Mateus pretende expressar.275 O v.18 apresenta uma clara relação
com Lc 16,17, como visto acima, enquanto os demais versículos não apresentam
272
Ibid., p.177.
Cf. Ibid., p.177; MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.137.
274
CROSSAN, J.D., O Jesus Histórico, pp.472-485.
275
BANKS, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.227.
273
81
correlatos diretos. Entretanto, em outras formas literárias encontramos Jesus
assumindo essa postura diante da Lei. Em Marcos 2,23-3,6 ele coloca em prática
sua interpretação a respeito da Torá, não necessariamente numa oposição a ela,
mas numa perspectiva adequada, inclusive com uma citação dos Nebîim276. Por
esse critério, no entanto, o dito de Mt 5,17-20 não pode ser considerado autêntico,
pois tem um testemunho fraco fora do evangelho de Mateus.
3.5.2.
Critério da Plausibilidade Histórica
Theissen propõe o Critério da Plausibilidade Histórica em substituição ao
de Diferença e Coerência. Ambos são critérios adotados por Meier
(Descontinuidade e Coerência) e Marconcini (Descontinuidade e Conformidade).
O critério de Descontinuidade é um dos mais consensuais entre os pesquisadores,
e tem como foco “as palavras e atos de Jesus que não podem ser originários nem
do judaísmo de seu tempo, nem da Igreja primitiva depois dele”.277 O problema
apontado por Theissen e que Meier concorda é que o caráter singular do
ministério de Jesus é avaliado como uma realidade, sem que se tenha absoluta
certeza de como era o judaísmo da época dele e a igreja logo após ele. Mesmo
levando em conta a idéia de que Jesus foi único em seu tempo, não se pode
ignorar o fato de que ele foi um judeu do século I, e como tal se posicionou em
relação às tradições que recebeu, ou seja, muito do que fez tinha essas tradições
como base, seja para dar continuidade, seja para romper.
Por outro lado, o critério da Coerência ou Conformidade afirma que “é
material autêntico de Jesus o que concorda em conteúdo com as tradições
conquistadas na base do critério de diferença (mesmo que caibam no pensamento
judeu ou do cristianismo primitivo).”278 Tanto Theissen quanto Meier entendem
que esse critério pressupõe a infalibilidade do critério de Descontinuidade, o que
acaba por ser um argumento frágil para a validade de ambos. Não se pode afirmar
que a Igreja tenha inventado toda a tradição a princípio estranha a Jesus, pelo
simples fato de divergir dele. Corre-se o riso de declarar como inautênticos ditos
apenas pelo fato de não terem consistência com o que foi aceito pelo critério
276
1 Sm 21,1ss. O Sacerdote citado no texto seria Aimeleque. Abiatar foi o filho dele, que se
juntou a Davi depois que Saul massacrou os sacerdotes por causa do apoio dado ao fugitivo.
277
MEIER, J.P., Um judeu marginal, p.174.
278
MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.135.
82
anterior. De fato, é como se o ensino de alguém não pudesse evoluir em termos de
compreensão e aplicação.
Por isso Theissen sugere o Critério da Plausibilidade Histórica, ou seja,
elementos que apontam para uma vinculação de Jesus com o judaísmo, ao mesmo
tempo em que mostram a influência dele sobre a Igreja posterior. Assim, “nas
fontes é histórico o que ajuda a explicar a influência de Jesus e pode, ao mesmo
tempo, surgir apenas num contexto judeu.”279
Aplicado à perícope, a idéia de Jesus defendendo a Torá não será em
hipótese alguma estranha ou artificial. Pelo contrário, pensar que Jesus teria uma
postura antinomiana, próxima de um crítico da cultura judaica, isso sim, é
questionável. Jesus teria, no dizer de Geza Vermes,
uma preocupação abrangente com o propósito final da Lei que ele percebia, de
forma primária, como essencial e positiva, não como uma realidade jurídica mas
como uma realidade ético-religiosa, revelando o que pensava ser o
comportamento justo e divinamente ordenado para com os homens e para com
Deus.280
Por um lado, a defesa da Torá era uma atitude própria para um judeu do
século I da era cristã. Era um dos fundamentos da religião praticada pelos judeus
da Galiléia, e tudo indica que a atitude de Jesus de ir a sinagogas aos sábados
reflete uma piedade própria de um judeu de seu tempo.281
Por outro lado, o teor escatológico presente no verso 18, típico da fonte Q,
se repete no verso 19, pois ali fala do maior e do menor no reino dos Céus, termo
mateano que normalmente reflete a expectativa messiânica da comunidade. Além
disso, há no texto uma exortação para que a comunidade expresse uma justiça
superior, que supere ao tipo de espiritualidade presente no projeto dos escribas e
fariseus. Essa continuidade da expectativa do pleno cumprimento da Lei e da
Profecia vigorou na comunidade, e é atestada até mesmo nas cartas paulinas.
Hoje, a idéia de que Jesus tenha tido uma pregação escatológica é bastante
aceita.282 Assim, por esse critério o dito de Mt 5,17-20 pode ser autêntico.
3.5.3.
Critério do Constrangimento
279
Ibid., p.136.
VERMES, G., A religião de Jesus, o Judeu, p.48.
281
Cf. MERZ, A. e THEISSEN, G., op.cit., p.198 et,. seq; VERMES, op.cit., p.19 et. seq.
282
Cf. GNILKA, J. Jesus de Nazaré, p.146 et. seq; Theissen faz longa análise do tema, O Jesus
Histórico, p.276-298.
280
83
Esse critério, conquanto seja muito semelhante ao Critério de
Descontinuidade, na verdade procura expor como a tradição dos evangelhos lidou
com certas passagens a respeito de Jesus que tivessem causado dificuldade. É o
caso do batismo de Jesus, por exemplo, que em Mc não é explicado, e que após
receber as explicações teológicas e históricas de Mt e Lc, simplesmente é
suprimido da narrativa de Jo.283
No tocante ao dito de 5,17-20, é possível perceber esse constrangimento
no todo da tradição. Marcos levantou a questão mostrando Jesus interpelando a
Tradição dos Pais, no relato de 7,1-23, onde responde ao questionamento sobre os
ritos de pureza. Da mesma forma, Marcos apresenta a postura desafiadora de
Jesus frente ao Sábado, chegando a afirmar que “O sábado foi feito por causa do
homem, e não o homem por causa do sábado” (Mc 2,27). Mateus reafirmou todo
esse problema, explicitando teologicamente a motivação de Jesus quanto à Lei
(Mt 5,17-20), enquanto Lucas diluiu essa postura (Lc e João nem mesmo evoca
qualquer discussão a respeito da Lei, a não ser o fato de também ali Jesus curar no
sábado e ser inquirido a esse respeito (Jo 5,9ss; 9,14ss).284 Em outra ocasião, a
posição das comunidades gentílicas, da resolução do “concílio” de Jerusalém, e
principalmente, de Paulo diante da Torá, demonstra um outro caminho quando
comparados a Jesus (At 15) .
Em Mt 5,17-20 vamos considerar que Jesus teria se colocado como
intérprete, e não promulgador da Torá. Numa perspectiva ouvinte-praticante, essa
postura de completar e cumprir pode fazer parte da categoria de pensamento de
Jesus. Nesse sentido ele seria o intérprete definitivo da Torá, que teria cumprido
fiel e cabalmente até mesmo o menor traço do texto, bem como cada yod presente
nela285. É exatamente o que se sucede nas perícopes posteriores, onde ele aplica
essa idéia de completar, dando o sentido máximo a alguns aspectos específicos da
Lei, como o trato com o inimigo, com o irmão, a questão do adultério e até
mesmo dos juramentos.
Esse critério também aponta para o dito como autêntico? A solução só
pode se dar na medida em que percebemos um amplo campo de discussão sobre a
283
Cf. exposição de MEIER, J.P. Um judeu marginal, p.10 et.seq,
Entretanto, é curioso que haja mais citações à Lei em Lucas e João do que no próprio evangelho
de Mateus, mesmo que João a cite como sendo a Lei dos judeus (Jo 10,34).
285
Geza Vermes coloca numa nota uma explicação a respeito, a partir do texto do Exodus Rabbah,
texto rabínico, onde o yod e qots aparecem lado a lado. Ver A Religião de Jesus, o judeu, p.26,
nota 11.
284
84
observância da Lei entre as diferentes vertentes cristãs na primeira metade do
século um, conforme se nota ao ler a epístola aos Gálatas. Percebe-se a
problemática entre os cristãos provenientes do judaísmo - cristão-judeus - e os
cristãos provenientes do helenismo – cristão-gentios.286 Dentro do contexto de
polêmica, considerando que Mateus escreveu para afirmar a observância à Lei
como princípio de vida a partir do próprio Jesus, não podemos afirmar
categoricamente a autenticidade do dito.
3.5.4.
Critério da Rejeição e da Execução
Sob o crivo do critério da rejeição e da execução, encontramos algo que
deve nos fazer pensar. Esse critério é vinculado ao fato de que o Jesus histórico
disse e fez coisas que incomodaram setores de poder do seu tempo, e que por isso
mesmo foi morto nas mãos das autoridades, em execução pública. De acordo com
o que temos no texto, a afirmação de Jesus pode muito bem ter provocado as
autoridades por, pelo menos, dois motivos:
(1) como em outras vezes, Jesus dimensionou o papel e a conseqüência
pessoal de quem agisse de acordo com os seus ensinos, no tocante ao reino dos
céus. Para muitos líderes, o fato de Jesus estabelecer critérios para o cumprimento
da Torá – como fazer o bem aos sábados, dar menor importância às rígidas
normas de pureza ritual, ou ainda se associar a setores discriminados da sociedade
(pecadores e publicanos em especial) era motivo de acusação por blasfêmia e
heresia. E ele chegou a ser chamado de blasfemo (Mt 26,65).
(2) Jesus coloca a justiça (dikaiosyne) dos escribas e fariseus como algo
artificial e que deveria ser superado pelos seus próprios discípulos. O termo
justiça aqui está ligado ao sentido de retidão e equidade, como algo a ser mostrado
e distribuído, e que está vinculado à própria justiça divina. Essa atitude certamente
286
Koester considera a expressão cristianismo judaico problemática, tendo em vista que “os
apóstolos e missionários da nova mensagem de Jesus vieram de Israel, embora não
necessariamente daqueles círculos da Palestina que emergiram como ‘judaísmo rabínico’ depois da
destruição do Templo”. Afinal, ele completa, muitos vieram da diáspora da língua grega. Esses
seriam os cristão-judeus helênicos, que tiveram polêmica com os cristão-judeus palestinenses.
KOESTER, Introdução ao Novo Testamento 2, p.216. Sobre esse assunto ver o apêndice 1: “On
the Problem of Jewish Christianity”, de G. Strecker, a partir do artigo de W. Bauer, “Orthodoxy
and Heresy in Earliest Christianity”, na versão eletrônica de R. A. Kraft, de 1993.
http://ccat.sas.upenn.edu/humm/Resources/Bauer/bauer_a1.htm#FN1#FN1. Também GOPPELT,
op.cit. p, 281 et.seq.
85
mexeu com os mais conservadores, piedosos até, o que explicaria seu ódio por
Jesus.
Entretanto, não há provas suficientes (mesmo considerando alguns relatos
dos evangelhos) de que os fariseus e os escribas se envolveram diretamente na
condenação e morte de Jesus.
287
Por isso, esse critério não auxilia objetivamente
na conclusão pela autenticidade do dito. Mesmo assim, é fato que a maneira como
Jesus lidou com o templo e o sistema sacerdotal pode ter causado sua prisão.
3.5.5.
Critério da Análise do Estilo de Jesus
Esse critério, considerado dúbio por Meier, é tratado com importância por
Marconcini.288 Ele parte da idéia de que Jesus tenha ensinado em aramaico e que
mesmo o texto grego dos evangelhos pressupõe uma tradição oral de raiz
aramaica.289 Sendo assim, se um dito tiver uma correspondência formal com a
forma aramaica, em termos de ritmo, sintaxe, etc. então teria grandes chances de
ser autêntico. Em contrapartida, um dito que tivesse dificuldade de ser traduzido
do grego para o aramaico dificilmente seria de Jesus. Essa pesquisa foi
exaustivamente trabalhada por J. Jeremias, que analisou as características da
ipsissima vox. Segundo ele são “características da dicção de Jesus que não
possuem nenhuma analogia na literatura da época e que, por isso, podem ser
consideradas como marcas da ipsissima vox de Jesus.”290
A crítica de Meier a esse critério é que se as comunidades de fala grega
puderam criar ditos relacionados à pessoa de Jesus, também as comunidades
palestinenses, de língua aramaica, o poderiam fazer. Além disso, esse critério já
pressupõe que determinado conjunto de ditos é autêntico, e isso pode ser
metodologicamente equivocado.291 Assim, Meier entende que o critério da análise
287
Cf. CROSSAN, J.D. Quem matou Jesus?, obra na qual o autor defende que todos os textos a
respeito da prisão, julgamento e execução de Jesus sofrem interferência das lutas “intra-judaicas”,
ou seja, os autores culpavam aqueles que de alguma forma interferiam na comunidade, ou que na
memória dela tiveram atitudes negativas. Especialmente p.43-55.
288
MARCONCINI, B. Os Evangelhos Sinóticos. 2004, p.52 et.seq.
289
Cf. THEISSEN, op.cit., apesar dele deixar essa hipótese em aberto, p.190 et.seq.
290
JEREMIAS, J., Teologia do NT¸ pp.69-79; Id., Estudos no Novo Testamento, pp.137-147.
Jeremias estudou essa característica nas parábolas, nos ditos enigmáticos, do reino de Deus, no uso
da palavra Abba e da palavra Amen.
291
MEIER, J.P., Um judeu marginal, p.180.
86
do estilo de Jesus só é válido depois que o dito tiver passado pelos demais
critérios.
Em nosso caso, então, se torna válido complementar os dados até aqui
levantados, agregando-se à análise o resultado da pesquisa relacionada ao estilo de
ensino de Jesus, conforme registrado nos sinóticos.
No caso do uso de Jesus da palavra avmh.n, Jeremias entende que é uma
exclusividade dele, sem paralelos, seja na literatura do judaísmo antigo, seja no
Novo Testamento. O termo vem do aramaico
!mEïa', que significa “certamente”,
de acordo com Baumgartner292. Pode ser entendido como uma fórmula solene; em
Deuteronômio aparece como aceitação do povo às maldições proferidas contra a
desobediência a diversos mandamentos (Dt 27,15-26). Em Neemias é a resposta
do povo em momentos solenes de culto (Ne 5,13; 8,6). No Novo Testamento
encontramos expressão similar nos escritos de Paulo, relacionado ao culto público
(1 Co 14,16) e no Apocalipse que, em geral, reproduz fórmulas oriundas do
ambiente litúrgico (Ap 5,14; 7,12; 19,4; 22,20).
A diferença nos evangelhos é que o termo é usado para sublinhar as palavras
próprias de Jesus, e nunca aparece na boca de outros, o que aponta para o uso
dessa expressão como elemento introdutório solene em diversos textos dos três
evangelistas. O comentário de Jeremias a esse respeito é que a tradição dos ditos
demonstrou respeito por esse termo estrangeiro. Na verdade, poderia ser uma
associação com a expressão dos profetas “assim diz o Senhor”, que apontavam a
fonte de suas palavras, cuja origem seria divina. De modo correspondente, ao usar
o termo Jesus demonstra sua plenipotência. No dizer de Jeremias, “a novidade
desse uso lingüístico, sua estrita restrição às palavras de Jesus e o testemunho
unânime de todas as camadas da tradição evidenciam que nos deparamos com
uma inovação lingüística nos lábios de Jesus.”293 Considerando esse critério,
podemos considerar o dito de Mt 5,17-20 uma fala autêntica de Jesus, preservada
pela comunidade e utilizada como fundamento para a identidade dela.
3.5.6.
Síntese e conclusão da análise da historicidade
292
BAUMGARTNER, Hebräisches und aramäisches Lexicon zum Alten Testament, Lieferung I,
3ª.ed. Leiden, 1967, p.62b.
293
JEREMIAS, J., Teologia do NT¸ p.78.
87
Mesmo considerando que os critérios da historicidade não são absolutos nas
suas conclusões, por vários motivos podemos considerar esse dito autêntico:
a)
Ele reflete tanto o contexto judaico de Jesus como aponta para a
influência dele sobre a Igreja posterior, mesmo sendo atestado por poucas fontes
independentes;
b)
O tema do dito foi sendo retrabalhado pela tradição cristã, a ponto da
Lei deixar de ser do grupo dos cristãos para ser apenas dos judeus. O
constrangimento que ele causou foi sendo minimizado nas comunidades com
menos expressão judaica.
c)
A postura de Jesus frente à Lei foi um dos motivos de sua crucificação,
mesmo ele não tendo sido condenado pelos grupos citados em Mt 5,17-20
(escribas e fariseus);
d)
No dito o estilo de Jesus é claro, com elementos aramaicos
característicos de sua fala.
Evidentemente que as explicações acima podem muito bem ser apenas uma
projeção, já que a comunidade de Mateus estaria sendo severamente perseguida
pelos fariseus. No entanto, como nota dissonante, temos o próprio Paulo que,
sendo fariseu, se declarou “perseguidor (diôkô) da Igreja” (Fp 3,6), ou seja, numa
época anterior ao evangelho de Mateus. Certamente uma das motivações para essa
perseguição seria não apenas a mensagem positiva do Evangelho, como também
certas insinuações com respeito à espiritualidade praticada pelos fariseus.
Com relação à comunidade de Mateus, podemos entender que, ao ser
questionada quanto à sua autenticidade, frente aos demais projetos pós-70 em
Israel, ela busca em Jesus uma palavra que estabeleça nele, e não nela mesma, a
autoridade para revisar a Torá e se declarar o novo Israel. Um Israel que segue a
Torá cuja síntese é: amar a Deus e ao próximo.
Concluindo, diante da pergunta sobre a autenticidade do dito (com exceção
do v.18) ou se ele seria uma projeção da comunidade de Mateus, referindo-se aos
projetos judaicos concorrentes pós-70, preferimos pensar que a comunidade teria
recuperado tradições antigas a respeito da relação de Jesus e a Torá que a Igreja
num todo foi perdendo, por ter outros interesses em vista.
88
4
Aspectos exegético-teológicos de Mt 5,17-20
4.1.
Introdução
É possível saber ao certo a relação entre Jesus de Nazaré e a Torá? Que
indicativos temos de sua compreensão a respeito da Lei? Conseqüentemente, da
vontade de Deus e de sua prática piedosa como judeu Galileu, a partir do dito de
Mt 5,17-20, considerando-o como dito autêntico? Esse dito teria um sentido
meramente pragmático, comum à piedade farisaica, ou Jesus também pensou em
termos escatológicos a respeito do cumprimento da Lei e dos Profetas?
Essas são as principais perguntas que desejamos responder, a partir de uma
análise exegético-teológica, que passa pela análise semântica do dito e sua relação
com o todo do ministério de Jesus, segundo exposto no livro de Mateus. Além
disso, queremos evidenciar a teologia do texto, o que afirma para a fé da
comunidade a respeito do próprio Jesus e de seu ministério.
4.2.
A Lei e os Profetas em Jesus: to.n no,mon h' tou.j profh,taj (v.17a)
Vamos retomar aqui alguns aspectos dos capítulos anteriores, no sentido de
entender ao que Jesus se referia quando trata da Lei e dos Profetas. Mais ainda,
desejamos perceber qual era a relação de Jesus com essa categoria de pensamento,
tão importante no imaginário judeu.
17a
Não considereis que eu vim para anular a Lei e os Profetas;
4.2.1.
O sentido da Lei e dos Profetas para Jesus
Considerando o uso desse termo associado – Lei e Profetas – tudo indica
que Jesus se refere ao grupo de textos reconhecido pelos judeus como inspirados
89
por Deus, referência para sua prática de fé.294 Os judeus residentes na Galiléia
exercitavam a mesma fé dos judeus da Judéia, especialmente no que tange à
Torá.295 Pensando em Jesus como um “judeu observante”, no dizer de Vermes,
segundo a imagem que emerge dos evangelhos:
De início, Jesus é regularmente associado com sinagogas, centros de culto e de
ensino. Encontramos referências gerais à sua presença nestes centros da Galiléia,
por vezes especificamente no Shabat. Duas dessas sinagogas, uma em Cafarnaum
(Mc 1,21; Lc 4,31) e a outra em Nazaré (Lc 4,15), são especificamente
designadas.296
Dentre as atividades comuns de um judeu piedoso estava a prática de ir à
sinagoga para a leitura da Lei e dos Profetas.297 A configuração de uma sinagoga
na diáspora não deveria ser muito diferente daquelas localizadas em Israel. Assim,
podemos identificar Jesus como um judeu praticante, ouvinte (ou talvez até
mesmo leitor) da Torá e dos Nebîim.298 Alguém que observa os mandamentos,
para cumpri-los.299
Mateus é quem mais registra essa terminologia; em três outras ocasiões
(7,12; 11,13; 22,40) ele cita o Cânon judaico, que ainda não tinha sido dividido
em três partes. Essa maneira de dividir o Antigo Testamento só foi reconhecida a
294
Cf. BILLERBECK, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch, I, p.240.
Segundo FREYNE, S., “um dos estereótipos dos estudos sobre a Galiléia é a afirmação de que
os galileus não eram observantes quanto à Torah.” A Galiléia, Jesus e os evangelhos, p.173.
296
VERMES, G., A religião de Jesus, o judeu, p.21.
297
Cf. GNILKA, J., Jesus de Nazaré, p.197. A sinagoga também servia como centro de
hospedagem e lugar de reunião para questões jurídicas dos judeus, além do propósito de ser um
centro de devoção. Cf. MERZ, A. e THEISSEN,G., O Jesus Histórico, p.149; E. STEGEMANN
comenta que antes do ano 70 d.C. o número de sinagogas na Palestina deve ter sido pequeno.
História social do protocristianismo, p.168s. Em At 13,14-15 há uma referência que ilustra esse
ponto. Ao entrar numa sinagoga, no dia de sábado, Paulo e Barnabé, esperaram até que terminasse
“a leitura da Lei e dos Profetas” [th.n avna,gnwsin tou/ no,mou kai. tw/n profhtw/n.], para também
poderem falar.
298
A discussão acerca da alfabetização de Jesus tem sido razoável e inconclusa. De acordo com
THEISSEN, O Jesus Histórico, p.382 et.seq., há evidências de que Jesus tinha capacidade de ler,
como o ensino em sinagogas, a existência de uma sinagoga em Nazaré, etc. J.P. MEIER, Um judeu
marginal, p.347, aponta que “na cultura popular oral e quem ele se criou e mais tarde passou a
ensinar, a alfabetização não era uma necessidade absoluta para as pessoas comuns.” Mesmo assim
ele considera possível que Jesus tenha sabido ler.
299
Ibid., p.384 et.seq. aponta o modo como Jesus utilizava as Escrituras, nas vezes em que ela as
cita: a consciência de cumprimento (próximo do sentido de Mt 5,17), onde Jesus demonstra
“conhecimento da ação escatológica de Deus”; conduta provocativa, o uso polêmico da Escritura
com o fim de provocar seus ouvintes; argumentação polêmica, quando faz o uso correto da
Escritura para justificar uma atitude polêmica; fundamento ético (também próximo de Mt 5,17),
quando Jesus demonstra concordar com o fato de que a Lei expressa a vontade de Deus e não deve
ser menosprezada, mas interpretada adequadamente. Também cf. D. FLUSSER, O Judaísmo e as
origens do Cristianismo, p.32.
295
90
partir do fim do século um, quando são encontradas referências no Talmude
Babilônico e na Midrash dos Salmos300.
Uma das referências de Jesus ao cânon bipartido está também no Sermão do
Monte, quando estabelece a sua Regra de Ouro: “Portanto, tudo o que vós quereis
que os homens vos façam, fazei-lho também vós, porque esta é a lei e os profetas”
[Pa,nta ou=n o[sa eva.n qe,lhte i[na poiw/sin u`mi/n oi` a;nqrwpoi( ou[twj kai. u`mei/j
poiei/te auvtoi/j\ ou-toj ga,r evstin o` no,moj kai. oi` profh/taiÅ] (Mt 7,12)301; em
outra ocasião, quando discutiu a respeito do papel de João Batista: “Em verdade
vos digo que, entre os que de mulher têm nascido, não apareceu alguém maior do
que João o Batista; mas aquele que é o menor no reino dos céus é maior do que
ele.” [avmh.n le,gw u`mi/n\ ouvk evgh,gertai evn gennhtoi/j gunaikw/n mei,zwn VIwa,nnou
tou/ baptistou/\ o` de. mikro,teroj evn th/| basilei,a| tw/n ouvranw/n mei,zwn auvtou/
evstin] (11,13); e numa terceira ocasião, em diálogo com um “doutor da Lei” a
respeito de qual seria o maior mandamento: “Destes dois mandamentos dependem
toda a lei e os profetas.” [evn tau,taij tai/j dusi.n evntolai/j o[loj o` no,moj kre,matai
kai. oi` profh/taiÅ] (22,40).
Mas que grupo de textos inspirados seria esse? Seria em sentido estrito?
Parece que não. Barth entende que se deve pensar que, ao utilizar a referência de
Lei e Profetas, Mateus esteja, de fato, tratando do Antigo Testamento como um
todo, como deve ter sido com Jesus em seu tempo.302 O uso dos Salmos no texto
de Mateus confirma isso (Mt 5,5, com paralelo em Sl 22,26 e 25,9; Mt 7,23, com
paralelo em Sl 5,5 e 6,8; Mt 13,35, com paralelo em Sl 49,4; Mt 21,16, com
paralelo em Sl 8,2; e Mt 27,43, com vários paralelos messiânicos: Sl 3,2; 14,6;
22,8; 42,10; 71,11). Filson afirma que, se Jesus pensa no Antigo Testamento todo,
então ele aceita a Escritura como uma revelação e ao mesmo tempo exigência de
Deus para o ser humano.303
300
Cf. BILLERBECK, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch I, p.240. Há
citação desse cânon juntamente com os Ketubîm no TB 11,23 e na Midr Ps 90 §4s. BARTH
comenta a respeito: “There is reflected in this formula the fact that the Hagiographa were
canonized only towards the end of the first century”. “Matthew’s understanding of the Law”, p.92.
301
Importante aqui é a inversão da lógica sapiencial judaica, cf. registrada em Tb 4,15, bem como
presente no ensino de Hillel. Nesses textos se afirma de forma negativa: “o que não quereis que
vos façam, não fazeis a ninguém”. Jesus inverte ao colocar de forma positiva, insistindo que o
fazer o bem é mais importante do que apenas deixar de fazer o mal. Cf. MAZZAROLO, I.
Evangelho de Mateus, p.120. Ver abaixo, na § 3.3.2, outras opiniões a respeito.
302
BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.93.
303
FILSON, F.V., A Commentary on the Gospel according to St. Matthew, p.83.
91
O que aponta no texto a aceitação desse corpus canonicus é a expressão
“não penseis” [Mh. nomi,shte], uma declaração aberta de que a intenção de Jesus
não era de invalidar a vontade de Deus expressa nas Escrituras. Na verdade, se
Jesus pensasse ou agisse assim, seria como um herege, ou blasfemo diante de sua
religião.304
Por outro lado, segundo a posição de Bultmann, essa expressão indica
recurso redacional de Mateus. Sendo o dito elaborado pela comunidade
palestinense, foi uma tentativa de refutar a posição antinomiana da comunidade
helenística, que seria a grande polêmica entre os dois grupos: a correta
compreensão a respeito do valor da Lei.305 Concorda com ele Charles, para quem
Mateus usou a expressão Mh. nomi,shte como um recurso estilístico de oratória de
Jesus para dar peso ao seu argumento.306 Ao mesmo tempo, entretanto, pode-se
pensar em termos da autoridade de Jesus apontada no dito, acima daquela
demonstrada pelos escribas, perante a Lei.307
A comunidade de Mateus de fato deve ter seguido Jesus em sua concepção
das Escrituras. Desse modo, também para ela a Lei e os Profetas designavam a
revelação da vontade de Deus. A menção dos profetas nessa fórmula, segundo
Marguerat, não deve ser vista nem pelas promessas antigas, nem como portadores
do curso da história da salvação, mas como proclamadores da Torá.308
Cabe aí, então, uma interpretação ética a respeito da fórmula “Lei e
Profetas”, em que nem devemos pensar numa mera alusão ao corpus literário,
considerado sagrado, nem a uma regra, como o código legal a ser obedecido. A
compreensão adequada da fórmula pode ser a de que se trata da exigência ética
transmitida por Deus ao seu povo, a partir da tradição vétero-testamentária. Nessa
304
Cf. expressa Charles: “To a Jew, the setting aside or abrogating of the law constituted the mark
of a heretic”. CHARLES, J.D., “The Ethic of the Sermon of the Mount Reconsidered”, p.52.
305
BULTMANN, L’historie de la tradition synoptique, p.176. Cf. também BARTH, G.,
“Matthew’s understanding of the Law”, p.67, GNILKA, J., Jesus de Nazaré, p.197.
306
CHARLES, J.D., op.cit., p.52. Uma declaração paulina que deve ter provocado boa parte dessa
discussão está em Rm 10,4: “Porque o fim da lei é Cristo para justiça de todo aquele que crê.”
[te,loj ga.r no,mou Cristo.j eivj dikaiosu,nhn panti. tw/| pisteu,onti].
307
O evangelho de Marcos, na primeira cura que Jesus realiza (na verdade, um exorcismo, em Mc
1,23-28), mostra o questionamento dos escribas, perguntando se essa seria uma nova doutrina
[didach. kainh.]. A autoridade de Jesus fica evidenciada de tal maneira que provoca surpresa.
Mateus não tem essa narrativa em seu evangelho. Cf. MAZZAROLO, I., Evangelho de Marcos,
p.70.
308
MARGUERAT, Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.125.
92
exigência ética vamos encontrar Jesus e seu posicionamento a respeito da Lei e
dos Profetas, bem como a transmissão dessa idéia a seus seguidores.309
Entretanto, o v.18, que pode ser considerado o eixo central da perícope,
mostra que Jesus na verdade não trata da ética a partir de considerações genéricas
apenas, mas de seu registro escrito e transmitido pela tradição, inclusive com os
acentos e ornamentos próprios que os copistas elaboraram no decorrer da
transmissão dos manuscritos. 310
Podemos pensar que havia um senso comum entre os judeus de que a Lei e
os Profetas não podiam ser mexidos, nem nos menores detalhes, pois isso
certamente iria alterar o sentido das ordenanças. Nesse caso aceitamos a idéia de
que Jesus compartilhou desse pensamento, e foi acompanhado pelas comunidades
palestinenses, em sua maioria composta de judeu-cristãos.
Trilling, percebe três sentidos para a Lei, em sua análise da perícope: no
verso 17, como base para o cumprimento de Jesus; no verso 18, a Lei como norma
irrevogável; no verso 19 como resumo de todos os preceitos que apontam para o
reino de Deus. Mas para entender o sentido que predomina em Mateus como um
todo, é preciso analisar todo o material que trata da Lei.311
A plena compreensão desse sentido para Jesus se dará a partir da análise do
restante do dito e das implicações éticas referentes a ele.
4.2.2.
Jesus e as ordenanças da Lei
Até aqui pudemos supor que Jesus – e da mesma maneira a comunidade de
Mateus – entendia a Lei e os Profetas como sendo a revelação divina para seu
povo, através da Tradição escrita transmitida e registrada no Antigo Testamento, e
que contém exigências éticas para a vida. Mas o que significa isso num sentido
mais estrito? Que exigências eram levadas em consideração, que ordenanças da
Lei mais influenciam as decisões do indivíduo e da comunidade?
309
Ibid., p.125.
Há uma história rabínica do Exodus Rabbah, presente na Midrash, que trata da questão do yod e
do qots. Nela, Salomão tenta manipular a vontade divina, alterando o verbo hbr (multiplicar) da
terceira pessoa para a primeira pessoa na proibição do rei aumentar o número de mulheres (cf. Dt
17,17). O yod se levanta e questiona a Deus, dizendo que de letra em letra toda a Torá será
destruída. Deus então responde que todos podem tentar, mas que ele não permitiria que a Torá
fosse destruída. Cf.VERMES, G., A religião de Jesus, o judeu, p.26.
311
TRILLING, W., El verdadeiro Israel, p.266.
310
93
As pesquisas recentes sobre o Jesus Histórico têm equilibrado entre uma
interpretação de clara oposição de Jesus frente à Lei, e uma plena equivalência da
posição dele com o judaísmo contemporâneo. Por um lado há uma compreensão
de que Jesus não teria uma oposição ferrenha contra o judaísmo, e por outro, a
clareza de que ele tinha uma grande liberdade em analisar a Lei e estabelecer o
seu valor, e isso teria causado escândalo.312
Em sua pesquisa sobre o assunto, Bultmann trabalhou com a idéia de que a
posição de Jesus em relação às ordenanças está diretamente ligada à sua
proclamação escatológica a respeito do reino de Deus, e conseqüentemente seria
uma abordagem mais profunda das exigências de Deus. Por isso, Bultmann afirma
que a pregação de Jesus explica a exigência de Deus como sendo protesto contra
o legalismo judaico, na linha dos grandes profetas.313
Ao mesmo tempo, no entanto, Bultmann reconhece que Jesus não negou a
validade do AT. O que ele combateu foi a “maneira de compreender e aplicar o
AT.”314 Jesus também não combateu os costumes piedosos, apenas questionou a
maneira como eram praticados. Assim, Jesus teria “uma atitude naturalmente
soberana em relação ao AT, uma atitude que discerne criticamente entre
importante e não importante, entre essencial e indiferente.”315
Kümmel concorda que Jesus tinha em mente uma concepção escatológica
em sua posição frente à Lei. No entanto, como expressão de sua autoridade, que
demonstrava o fato de que a salvação escatológica tinha sido iniciada no próprio
Jesus.316 Segundo ele, isso se deu pela própria maneira como os judeus lidaram
com a tradição, pois a Lei não tratava de questões triviais do cotidiano, nas
situações particulares. Jesus conviveu com a interpretação da Lei a partir da
tradição oral, e foi capaz de até mesmo desconsiderar algumas exigências que
considerava erroneamente interpretadas, como no caso do sábado (Mt 12,1ss – os
discípulos colhendo espigas para comer e depois a realização de uma cura).317
312
Cf. BROER, I., “Lei (NT)”, DBT, p.231.
BULTMANN, R., Teologia do Novo Testamento, p.49 et. seq.
314
BULTMANN, op.cit., p.54
315
Ibid., p.54. Considerando o uso do AT por Mateus, G.N. STANTON afirma: “The OT is woven
into the warp and a woof of this gospel; the evangelist uses Scripture to underline some of his most
prominent and distinctive theological concerns”. A Gospel for a New People, p.346.
316
KÜMMEL, W.G., Síntese Teológica do Novo Testamento, p.76 et.seq.
317
Ibid., p.76. Para Goppelt, por exemplo, só podemos entender a posição de Jesus frente à Lei,
quando olhamos concretamente sua posição frente à Halaká, ou seja, a Tradição Oral. GOPPELT,
L., Teologia do Novo Testamento, p.118 et.seq.
313
94
Jeremias também entende que a postura de Jesus se deva ao fato de ter sido
criado no ambiente judaico, em que o Antigo Testamento ganha proeminência
para as questões da vida. Na verdade, Jeremias afirma que “não se pode entender
de forma alguma as suas palavras sem o conhecimento do Antigo Testamento.”318
Há, na postura de Jesus uma lealdade para com a Lei, e o desejo dele de que
seus seguidores também sejam leais a ela. Longe de ser um rebelde contra a
religião judaica, Jesus teve nas Escrituras judaicas o suporte para sua mensagem e
ministério.319 Theissen explica esse processo como uma ambivalência da parte de
Jesus na sua relação com a Lei:
Jesus intensificava as normas éticas (sobretudo, o mandamento do amor) em que é
nítida uma tendência a um ethos universal. E relativizava as normas rituais
(sobretudo os mandamentos sobre a pureza) pelos quais se separa o judaísmo do
helenismo – sem eliminar tais normas completamente.320
Theissen ainda aponta que outros grupos faziam exegese da Lei em linhas
semelhantes. Quanto à perícope em questão, ele afirma que as antíteses que se
seguem são uma tomada de posição de Jesus frente à Lei.321 A respeito dessa
questão, Tasker trabalha com a idéia de que o ensino de Jesus sobre a Lei não
contradiz aquilo que Moisés ensinou, mas é uma oposição às interpretações
correntes desse ensino. Caso não se entenda assim, mesmo considerando que o
dito de 5,17-19 coloca Jesus no mesmo nível da Lei, as antíteses tornam-se
contraditórias em relação ao dito que as introduz.322 Gnilka completa, afirmando
que “a posição de Jesus em relação à Lei está voltada para a salvação do homem.
As concepções da lei que estão em contradição com isto são por ele rejeitadas
como não correspondendo à dignidade do homem.”323
Para Vermes, no entanto, de forma prática, a questão está na tendência,
presente também nos rabinos do primeiro século, de “pesquisar os princípios
centrais da Torá, e mesmo sua essência”.324 Flusser confirma essa perspectiva,
pois segundo ele, “para Jesus havia, naturalmente, o problema peculiar de sua
relação com a Lei e seus preceitos, mas o mesmo ocorre com todo judeu crente
318
JEREMIAS, J., Teologia do Novo Testamento, p.303s.
FILSON, F.V., A Commentary on the Gospel according to St. Matthew, p.83.
320
MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.388.
321
Ibid., p.389.
322
TASKER, R.V.G., Matthew: An Introduction and Commentary, p.64 et.seq.
323
GNILKA, J., Jesus de Nazaré, p.207.
324
VERMES, G., A religião de Jesus, o judeu, p.42.
319
95
que leva a sério seu judaísmo”.325 Com isso, tem-se que pensar em dois fatores, já
apontados: a relação de Jesus com a tradição oral, talvez o principal motivo de
questionamento; e a busca dele pelo essencial que, praticado, cumpriria toda a
justiça.
De acordo com Overman, a comunidade de Mateus aprendeu de Jesus essa
prática, de interpretar adequadamente a Lei, pois é totalmente cabível que uma
pessoa seja zelosa cumpridora da Lei e, ao mesmo tempo, não cumpri-la
rigorosamente. É o que ocorre nas histórias de controvérsia entre Jesus e membros
de grupos judeus com respeito a aspectos da Lei, como na questão do sábado (Mt
12,1-14), e de certas normas rituais de pureza determinados pela Tradição dos
Anciãos (Mt 15,1-20) que é a tradição Oral.326
E qual foi a posição de Jesus frente a essa tradição? Essa é, talvez, a questão
chave para entender a diferença na posição de Jesus e seus adversários quanto à
Lei.
4.2.3.
Jesus e a Tradição Oral
Ao tratar da Tradição oral, nos referimos acerca do aparato que Jesus lidou
para interpretar e até interferir nos mandamentos, como ocorre nas antíteses do
Sermão do Monte (5,21-48). Essas questões estão relacionadas ao outro aspecto
da Torá: a Torá Oral, que interpreta a Torá Escrita e estabelece parâmetros para
sua prática.
De acordo com a definição judaica a respeito da Torá oral, a Lei de Moisés
escrita – chamado por alguns grupos do judaísmo de Chumash [vmwx]– necessita
da explicação e do detalhamento que auxilie na observância dos mandamentos
registrados por Moisés. Mas essa explicação, segundo a Tradição, foi também
dada por Moisés, o qual recebeu de Deus.327 Por isso têm a mesma autoridade que
325
FLUSSER, D., Jesus, p.37. Entretanto, Maldonado aponta que o dito de Jesus sobre João, em
Mt 11,13: “porque todos os Profetas e a Lei profetizaram até João”, deve ser entendido como uma
declaração do fim da validade da Lei do Antigo Testamento. MALDONADO, J., Comentario a los
quatro evangelios, p. 437. Essa interpretação implicaria numa contradição com o dito de Mt 5,1720.
326
OVERMAN, A., O evangelho de Mateus, p.92 et.seq.
327
Cf. o tratado Pirqe Abot, analisado no Cap 1.
96
a Lei escrita. Essa interpretação é chamada de Halaká, que é “o quê, quando, onde
e como de uma vida judaica.”328
As grandes escolas de interpretação do tempo de Jesus, segundo a Mishná,
eram a de Hillel e a de Shammai. Conforme Vermes informa: “Hillel e Shammai,
os líderes das mais influentes escolas farisaicas, possivelmente ainda estavam
vivos e, no curso da vida de Jesus, Gamaliel, o Velho, tornou-se sucessor de
Hillel”.329 Segundo Flusser, um dos aspectos que diferenciava as duas escolas
estava na tolerância para a entrada dos gentios na fé judaica. Enquanto Hillel era
mais tolerante, Shammai tinha maior dificuldade em aceitar essas conversões.330
Considerando essa postura, Flusser afirma que Jesus estaria mais próximo de
Shammai do que de Hillel. Em algumas passagens do Sermão do Monte,
transparece realmente uma má opinião de Jesus para com os não-judeus: a
preocupação com as coisas materiais (Mt 6,32-34), as repetições consideradas vãs
(Mt 6,7) e o desconhecimento do mandamento do amor (Mt 5,47). Soma-se a isso
o fato de Jesus, em sua prática comum, não curar não-judeus, mas ater-se às
“ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15,24).331 Isso, no entanto, contraria
outra abordagem, na qual Jesus e Hillel teriam muito em comum, especialmente
considerando a regra de ouro.332 Pode-se presumir, dessa forma, que Jesus não
esteve atrelado a nenhuma escola específica, mas que esteve em diálogo com
algumas tendências do judaísmo de seu tempo.
Mas qual foi a atitude concreta de Jesus frente à Halaká? De acordo com
boa parte dos autores, a posição de Jesus foi de rejeição.333 Segundo Goppelt, a
rejeição total da Halaká faz com que Jesus não discuta diretamente com seu
ambiente a respeito da interpretação da Lei, nem mesmo sistematize uma
interpretação própria, contrariando a dos fariseus. Ele complementa: “A visão
328
R. Shlita “A eternidade da Halachá”. http://www.admatai.org/iniciantes/mensagem_42.htm,
acessado em dezembro de 2007. Halaká é um termo hebraico, hk;)l;)h,] e quer dizer “modo de vida”,
“direção”. Vem de $lh = “ir”, “andar”, e “designa uma doutrina fixa, lei ou princípio que é uma
norma para a prática religiosa.” MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.389.
329
VERMES, G., Jesus e o mundo do judaísmo, p.13. No entanto, a Mishná apresenta aspectos
anedóticos de ambos, dando preferência clara a Hillel, como se encontra no Talmude Babilônico,
Shabbat 30b-31a: “Nossos mestres ensinaram: ‘um homem deveria sempre ser humilde e afável
como Hillel e nunca ser intransigente e impaciente como Shammai...’.” Cf. COLLIN, M. e
LENHARDT, P., A Torah Oral dos Fariseus, p.23.
330
FLUSSER, D., Jesus, p.51.
331
cf. Ibid., p.51 et.seq.
332
Cf. BORNKAM, G.,Jesus de Nazaré, p.166, COLLIN, M. e LENHARDT, P., op.cit., p. 26.
333
Cf. JEREMIAS, Teologia do Novo Testamento, p.306 et.seq.; GOPPELT, L., Teologia do Novo
Testamento, p. 119 et.seq.; MARTIN, “Matthew on Christ and the Law”, p.59;
97
judaica da lei leva necessariamente à casuística: a visão de Jesus a exclui.”334
Entretanto, Flusser aponta para outra direção. O dito de Jesus que trata da cátedra
de Moisés,335 cf Mt 23,2-3, demonstra que os ensinos dos fariseus e escribas eram
aceitos por Jesus. O que ele criticava eram as atitudes deles, que não praticavam o
que ensinavam.336 Mais uma vez transparece, em Jesus, uma atitude de releitura e
interpretação, própria de um legislador e intérprete da Lei, e não de um radical
pregador de anomia religiosa. E com uma abordagem que o assemelha a um
profeta, pois eles também não desconsideravam a lei. Por isso, é importante
considerar a idéia de Jesus como profeta e intérprete da Lei.
4.2.4.
Jesus, profeta e intérprete da Lei
Seguindo um pouco o raciocínio de Bultmann, de que Jesus teria adotado
uma posição de crítica ao legalismo judaico,337 na linha dos grandes profetas,
podemos pensar que ele agiu em defesa da Lei como também o fizeram os
profetas antes dele. Jesus não chamou a si mesmo de profeta, e esse aspecto não
está tão claro em Mateus como está em outros evangelhos.338 O que Mateus
reforça muito é o grande número de referências de cumprimento de profecias, cuja
fórmula é “para que se cumprisse o que fora dito por meio do profeta” [i[na
plhrwqh/ to. rhqen dia. tou/ profh,tou le,gontoj].339 Segundo Brown, “essas
citações enfatizam que toda a vida de Jesus, até o mínimo detalhe, situava-se no
334
GOPPELT, L., op.cit., p.121.
Que ficava em Corazim, lugar ao qual Jesus dirigiu palavras de alerta, cf. Mt 11,21. Crüsemann
observa que a existência de tal elemento é antecipada por uma idéia de um ofício mosaico de
interpretação da Lei de Moisés. CRÜSEMANN, F., A Torá, p.153.
336
FLUSSER, D., Jesus, p.48. Ele demonstra ainda que essa crítica não foi exclusiva de Jesus,
pois tanto os saduceus quanto aos essênios tinham severas críticas aos fariseus (Documento de
Damasco 8:12). Por outro lado, os textos rabínicos antigos criticam fariseus não observantes,
exaltando o fariseu fiel à Tora, cf. o Tratado Sotá, 22b, no Talmude Babilônico. BARTH concorda
com essa posição: “In the original meaning of the saying therefore the word ‘everything’ included
the Rabbinic tradition.” BARTH, “Matthew’s understanding of the Law”, p.86.
337
BULTMANN, R., Teologia do NT, p.49 et. seq.
338
Lucas aponta muito mais para a figura de Jesus como profeta. Isso ocorre já no início de seu
ministério, quando leu o rolo de Isaías na sinagoga (Lc 4,14-30) e ainda se insere na perspectiva de
Elias e Eliseu. Além disso, os discípulos do caminho de Emaús viram nele um profeta “poderoso
em palavras e obras, diante de Deus” (Lc 24,19). E a obra de Atos, continuação de Lucas, reafirma
em alguns momentos essa perspectiva (At 3,11-26; At 7,1-53). Mesmo assim, Mateus associa
Jesus aos profetas, especialmente tomando sua vida como cumprimento das profecias. Cf.
DILLMANN, “Profeta (NT)”, DBT, p.347. Ver também a expectativa popular em torno dos
profetas em GRELOT, P., A Esperança judaica no tempo de Jesus, p.120-125.
339
Essa fórmula aparece em Mt 1,22s; 2,15; 2,17-18; 2,23; 4,14-16; 8,17; 12,17-21; 13,35; 21,4-5;
27,9.
335
98
plano predeterminado por Deus.”340 Mateus cria assim uma relação da história de
Jesus e da vivência de sua comunidade, com as tradições que fundamentam o
judaísmo corrente, especialmente em relação às profecias, em torno das quais
havia grandes expectativas.341
Considerando o que já levantamos na pesquisa, em que a profecia tinha
ganhado uma dimensão escatológica além da busca pela fidelidade à Lei, faz
sentido a idéia de que a pregação de Jesus tinha forte cunho escatológico.342 Da
mesma forma, percebe-se na pregação de Jesus a preocupação dos profetas de
levar o povo de volta à Lei de Deus, e não abandoná-la. Assim, Mt 5,17-20 pode
ser considerada uma palavra profética de Jesus, tanto para levar o povo até Deus,
quanto para declarar a validade da Lei para o povo. Em outras palavras, é possível
afirmar uma expectativa na comunidade de que o mestre seja também o “Filho do
Homem” escatológico, e isso se tornou ainda mais evidente à luz da fé pascal.343
De acordo com a pesquisa de Cullmann, sobre a cristologia do Novo
Testamento, a idéia de Jesus como profeta está bem próxima da idéia dele como
Messias. Segundo sua exposição, isso se dá por causa do conceito de Filho do
Homem, que é não apenas uma designação associada aos profetas, como também
se tornou depois interligado com a idéia de um profeta do fim dos tempos, o qual
configura-se como o Messias. Para Cullmann, “a noção de ‘profeta’ explica, pois,
perfeitamente a atividade de Jesus como pregador, assim como também a
autoridade com a qual atua e fala.”344 Mas isso não está muito claro em Mateus,
pois como aponta Bonneau, apesar de Jesus ser chamado como um profeta em
algumas ocasiões, inclusive a si mesmo, citando um provérbio popular (Mt
13,57), “Mateus não situa Jesus na categoria dos profetas”.345
340
BROWN, R.E., O Nascimento do Messias, p.96-97.
Cf. OVERMAN, A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.82 et.seq.;
342
BULTMANN, R., Teologia do Novo Testamento, p. 90. Cf. mais recentemente MEIER, J.P.,
Um judeu marginal vol 2, livro 2, p.78 et.seq. Ele até polemiza a respeito: “Em anos recentes,
alguns estudiosos têm questionado o ponto de vista segundo o qual Jesus pregava a respeito de um
reino escatológico que haveria de chegar em breve”. P.79.
343
Cf. BULTMANN, R., op.cit., p.90. J.GNILKA, no entanto, alerta para não limitar a figura de
Jesus a um predicado messiânico, tendo em vista que muitos outros foram usados, e nenhum foi
claramente definido. Cf. Jesus de Nazaré, p.235 et.seq.
344
CULLMANN, O., Cristologia do Novo Testamento, p. 67. Ele aborda o assunto nas p.31-74.
345
BONNEAU, Profetismo e Instituição no Cristianismo Primitivo, p.184 et.seq. A bem da
verdade, o próprio Cullmann chegou a essa conclusão: “Os evangelhos sinópticos mostram, pois,
que uma parte do povo considerava Jesus, durante sua vida, como o profeta esperado para o fim
dos tempos. Este fato é tanto mais importante considerando-se que nem Mateus, nem Marcos, nem
Lucas tenham se servido desse título para expressarem sua própria fé em Jesus.” CULMANN,
op.cit., p.58. Ele de fato conclui que a idéia de Jesus como profeta abrange apenas um aspecto do
341
99
Da mesma forma, segundo a pesquisa de Gnilka, deve-se considerar Jesus
como mais que um profeta, mesmo que ele tenha desenvolvido elementos cuja
matriz estivesse presente no movimento profético, tais como: o anúncio do
domínio/reino de Deus sobre todos os povos, como nova ordem de salvação; o
chamado de discípulos, para seguirem-no de forma especial; e um certo apelo
messiânico em sua definitividade, mesmo que faltando o traço político-nacional,
aspecto fundamental para os seus contemporâneos.346
A pesquisa de Theissen aponta para uma abordagem do anúncio de Jesus
como profeta escatológico, a partir do conceito de Kümmel, em que há, na
pregação dele uma dupla dimensão: presente e futura.347 Assim define Theissen a
respeito da pregação de Jesus:
No que se refere ao conteúdo, Jesus representa uma variante da expectativa
apocalíptica, mas no aspecto formal ela aparece como profecia – não na forma de
um escrito esotérico secreto da pré-história remota, mas como uma proclamação
(oral) ligada a sua pessoa. Sua pregação é uma revitalização da apocalíptica em
forma profética.348
Mas, analisando o que já foi exposto acima, percebe-se que, mesmo que
Jesus tenha lidado com a Lei da mesma forma que os profetas, de fato ele agiu
mais como mestre, como intérprete da Lei. De fato, pode-se afirmar que “Mateus
substitui a função profética de Jesus pela de mestre.”349 Ou seja, quando se trata
da questão da Lei, evidencia-se em Jesus mais o papel de escriba e intérprete da
Lei do que de profeta. Destaca-se aí o plano ético de sua pregação, vinculado à
ética da Lei. A pesquisa sobre o papel de Jesus como mestre passou por diversas
fases, e nos últimos anos leva em consideração sua condição histórico-social
concreta, a partir do ethos judaico ao qual ele estava vinculado.350 Apesar das
ministério terreno de Jesus, não podendo responder nem à questão escatológica e futura de seu
ministério, nem à sua preexistência.
346
GNILKA, Jesus de Nazaré, p.238. Sobre o assunto ver também BRUEGGEMANN, A
Imaginação Profética, especialmente as p.104-143.
347
Cf. MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.267 et.seq.
348
MERZ, A. e THEISSEN, G., op.cit., p.273. Kümmel, no entanto, considera que em Jesus o
tempo profético se encerrou. Cf. KÜMMEL, G.W., Síntese Teológica do Novo Testamento, p.92.
Cabe aqui pensar até que ponto o dito de Mt 5,17-20 tem elementos proféticos e apocalípticos, ou
ainda, em que proporção tratam do presente ou do futuro. Ver § 3.3 infra.
349
BONNEAU, G., Profetismo e Instituição no Cristianismo Primitivo, p.185.
350
Theissen faz uma síntese dessa pesquisa, que coloca as diferentes fases, especialmente
referindo-se ao séc. XVIII e XIX, onde pensou-se uma ética atemporal, e uma pregação de uma
moral eterna, dissociada da história. Nas primeiras décadas do século vinte, a pesquisa começou a
ter uma abordagem mais historicizada. O primeiro passo se deu por meio da ética escatológica, que
chama o ser humano a uma resposta, mas que minimiza o papel das exigências concretas. Depois
da descoberta dos manuscritos de Qumran, e mesmo antes, outros pesquisadores abordaram por
meio da comparação com elementos contemporâneos a Jesus, como os escritos rabínicos, os textos
100
divergências de abordagem há um consenso: Jesus agia como mestre, e assim era
considerado. Mas a partir de qual base?
A tradição sinóptica (Mc 14,14 par. Mt 26,18, Lc 22,11), bem como a
tradição de Q (Mt 8,19ss par. Lc 9,57ss) e a tradição M (Mt 23,8) apresentam a
idéia de que Jesus é o Mestre por excelência. Mateus reuniu e reforçou bastante
essa ênfase, conforme se pode ver no fim do Sermão do Monte: “porque os
ensinava com autoridade, e não como os escribas” [h=n ga.r dida,skwn auvtou.j w`j
evxousi,an e;cwn kai. ouvc w`j oi` grammatei/j auvtw/nÅ] (Mt 7,29). Peculiar em Mateus,
no entanto, é o fato de Jesus ser chamado de Mestre apenas por não-judeus e por
Judas (cf. 26,25.49). Os discípulos chamam Jesus apenas de Senhor (kurie).
Segundo Müller, “Mt não quer apresentar Jesus como mestre judaico, e sim,
programaticamente, como o novo legislador”.351 O dito de Mt 5,17-20 faz parte de
um conjunto de ditos messiânicos, com cunho sapiencial.352
Vermes sugere a idéia de que Jesus foi um mestre influente. “Era uma figura
antes popular que profissional, um mestre itinerante que não anunciava sua
mensagem em local fixo tal como numa escola (bet midrash) ou numa sinagoga
determinada”.353 No entanto, a despeito dessa imagem de mestre, há na figura de
Jesus em Mateus mais um aspecto messiânico e salvífico do que meramente de
intérprete. “Em Mateus, a função salvífica de Jesus está no nível de seu papel de
legislador.”354
Em seu papel de mestre, Jesus utilizou com bastante propriedade as
Escrituras Hebraicas, ao menos da maneira como os evangelhos descrevem.
Considerando o cânon aceito comumente pelos judeus de seu tempo, é natural que
de Qumran, e mesmo os valores presentes no judaísmo helenístico. Mas foi a partir da década de
1970 que a pesquisa – já vislumbrando a abordagem da Third Quest – trabalhou com o Sitz im
Leben da pregação ética de Jesus, e sua conseqüente relação com a Lei, no papel de Mestre (Rabi).
Cf. MERZ, A. e THEISSEN,G., op.cit., p.375-381.
351
MÜLLER, “Doutrina/Ensino”, Dicionário Bíblico Teológico, p.111 et.seq.
352
Bultmann já indicara esse fato, associando o papel de mestre ao de messias: “Quando se
coleciona seus ditos, isso não é feito só por causa de seu conteúdo doutrinário, e sim porque são as
palavras dele, do futuro rei. Segundo a concepção rabínica, o Messias, depois de aparecer, também
se apresentará como mestre da Torá – a comunidade já possui a interpretação da lei por parte de
Jesus e, no “Eu, porém, vos digo”, ela o ouve falar como o Messias. Em suas palavras já se possui
a sabedoria e o conhecimento que, segundo a crença dos apocalípticos, o Messias proporcionará
um dia.” BULTMANN, R., Teologia do NT, p.90.
353
VERMES, G., A religião de Jesus, o Judeu, p.49. Sobre isso Meier lembra que, mesmo
discutindo de igual para igual com os chefes de sinagogas, Jesus não teria nenhuma relação de
origem com o grupo levita ou mesmo sacerdotal: ele seria um camponês galileu leigo. Um judeu
marginal, p.343 et.seq.
354
BONNEAU, G., op.cit., p.188.
101
Jesus tenha feito uso dos métodos de exegese e de utilização delas.355 Mas não se
pode afirmar que ele mesmo tenha sistematizado seu ensino, pois era um pregador
carismático, mais do que um mestre de escola.356
Aqui, é possível falar de uma aproximação entre Jesus e a figura de Moisés?
Talvez se possa, mas não sem muitas reservas do ponto de vista hermenêutico,
mesmo considerando o relato da transfiguração (que tem sua origem em
Marcos).357 O que realmente importa é a tarefa efetiva que Jesus realizou, e que
Mateus organizou em termos de um discurso com lugar, público e objetivos
definidos. E aqui cabe a nós verificar o que ele quis dizer com sua expressão de
não destruir, mas cumprir, e que aspectos da Lei Jesus cumpriu.
4.2.5. Síntese da análise sobre a Lei e os Profetas em Jesus
Considerando o que foi abordado até aqui, podemos perceber que Jesus teve
um respeito pelas Escrituras hebraicas como qualquer judeu contemporâneo a ele,
mas manteve uma liberdade em relação às escolas de seu tempo, bem como em
relação às práticas correntes.
Na perspectiva mateana Jesus tinha um ministério de caráter profético, mas
é apontado como um mestre sábio, capaz de avaliar o texto sagrado tendo em
consideração fatores éticos mais profundos, nos quais a vida fosse o centro da
decisão. Sua independência em relação à paradosis – a tradição dos Pais, ou à
Torá Oral – se explica pelo fato dele não se vincular a nenhuma corrente em
355
Como afirma FLUSSER: “O método de exegese empregado por Jesus é o dos antigos
midrashim rabínicos, e mesmo que as conclusões pessoais de Jesus sejam às vezes ousadas, todas
elas permanecem bem dentro do contexto do pensamento e exame rabínicos e de modo nenhum
contradizem métodos de interpretação das Escrituras judaicas.” Op.cit. p.32.
356
VERMES, G., op.cit., p.49-70, confirma essa idéia em sua análise de Jesus como Mestre. Na
verdade, o que marcou o ensino de Jesus foi sua exousia – autoridade – que chocava e maravilhava
sua audiência. Vermes comenta: “não seria razoável duvidar que Jesus tenha jamais recorrido a
argumentos bíblicos, e entre estes, como foi sugerido, gozam das pretensões mais fortes de
autenticidade a adoção da expressão bíblica, o emprego de precedentes escriturais e a interpretação
enfática ou hiperbólica dos mandamentos com os quais todos os seus contemporâneos estavam
familiarizados. Mas essas instâncias são poucas e isoladas e de modo nenhum formam um corpus
bastante sólido para dotar a pregação de Jesus de poder excepcional.”, p.70.
357
Por ex. Crüsemann expõe que já no pós-exílio Moisés alçou à categoria de ‘carisma’, sendo
identificado em Esdras, pelo seu papel de promulgador da Torá, com o Sinédrio e seu predecessor,
o conselho dos anciãos do período helenista, por usa competência jurídica, e de uma forma
especial, com os grupos que elaboraram os documentos geradores do Pentateuco, pois, apesar de
suas divergências, tiveram em Moisés a figura agregadora, que permitiu a coexistência de projetos
tão diferentes num mesmo documento. CRÜSEMANN, A Torá, p.154-158. Além disso, Cullmann
admite que a crença popular do Moisés ressuscitado, advindo dos escritos apocalípticos judaicos,
não se coaduna com os evangelhos, pois estes reforçam mais a figura de Elias. CULLMANN,
Cristologia, p.35 et.seq.
102
especial. Mesmo assim seu ensino e posturas, conquanto apresentasse novidades,
em muitos aspectos está próximo de outros mestres de seu tempo. A novidade de
Jesus talvez estivesse numa proximidade com elementos da religiosidade popular,
especialmente no que se refere a um senso escatológico de sua mensagem, coisa
que vamos nos analisar amiúde em outro ponto.
Em relação à Lei Jesus afirma categoricamente o cumprimento, não a
anulação. Vamos analisar este aspecto para entender o pensamento do mestre
judeu, chamado Jesus.
4.3.
Anular e cumprir: katalu/sai kai, plhrw/saiÅ (v.17b)
A afirmação de Jesus a respeito da Lei e dos Profetas, que já vimos se tratar
das escrituras judaicas e especialmente da revelação da vontade de Deus para a
vida das pessoas, assume uma postura aparentemente ortodoxa: não veio
anular/destruir, mas cumprir. Um olhar mais atento, no entanto, vai nos levar ao
profundo sentido das palavras de Jesus, e as implicações para seus ouvintes.
Logo de início, nos deparamos com a declaração mais forte: “Eu (não) vim”
[(ouvk) h=lqon], que J. Jeremias relaciona com o “Vegw,” enfático. Para ele, nos ditos
autênticos de Jesus – pré-pascais – não há títulos messiânicos, pois ele não se
refere a si mesmo com títulos, com exceção de “Filho do Homem”.358 A
terminologia que indica uma autoconsciência messiânica está presente no uso do
“Vegw,” enfático, que aparece em Mt 5,17 na expressão h=lqon, indicativo aoristo
ativo, na 1ª pessoa singular do verbo e;rcomai, “vir” ou “ir”.359
Mateus reuniu esse dito, pois considerava que ele estava intimamente
relacionado à sua comunidade. Vamos analisar um pouco o significado das
expressões “anular” e “cumprir”, para assim podermos nos aproximar da
hermenêutica geral do dito.
4.3.1.
358
JEREMIAS, J., Teologia do Novo Testamento, p.362.
Cf. RUSCONI, C., “h=lqon” e “e;rcomai” Dicionário do Grego do Novo Testamento, p.218, 199.
Esse dito tem um equivalente na literatura rabínica, no Shabbat 116a, que parece ser uma anedota
em relação ao evangelho de Mateus. Cf. BILLERBECK I, p.241; JEREMIAS, J., op.cit., p.143
et.seq. Apesar de não acrescentar nada de novo, visto que o registro desse texto é do séc. 3 d.C.,
Jeremias destaca o fato dele ajudar a perceber o substrato aramaico.
359
103
Jesus não veio anular - katalu/sai
A etimologia de katalu/sai junta a preposição kata, com o verbo lu,w, que “é
usado em uma variedade de sentidos em conexão com as instituições do
judaísmo.”360 No grego clássico, e de acordo com o uso no Novo Testamento, no
ativo tanto pode ter o sentido de “lançar para baixo”, “destacar”, “destruir”,
“demolir”, “desmanchar”, como pode indicar “acabar com”, “abolir”, “anular”,
“tornar inválido”.361 Estes últimos sentidos estão mais próximos do contexto
jurídico imediato do v.17, posto que este verbo é considerado um termo chave
para discussões em torno da constituição e das leis de um povo na política
grega.362 O termo “destruir” é mais apropriado para o sentido de terminar com
alguma coisa concreta, como o templo em Mt 24,2.363
R. Banks aponta para a mesma interpretação, visto que em outras passagens
o verbo katalu/w, além de ter o sentido de “destruir” (no caso do templo), está
contrastando com o verbo oivkodomw/n, “edificar”.364 O mesmo sentido se dá em
outros lugares, como At 5,38; Rm 14,20. Mas, em passagens pré-cristãs onde
aparece explicitamente o termo Lei, o sentido para katalu/w é “abolir” ou “anular”
(cf. 2 Mac 2,22; 4 Mac 5,33).365 Segundo P. Bonnard, o verbo não designa uma
refutação teórica a respeito da Lei, mas uma atividade própria que liberta ou
sustenta os homens para além de sua autoridade. Seria assim, uma polêmica
contra o legalismo rabínico.366
Qual seria o sentido de “não vim para anular a Lei”? Maldonado aponta para
algumas possibilidades: a sentença seria uma resposta aos judeus, que o acusavam
de destruir a Lei, ou mesmo contrapor essa acusação, contra os escribas e
intérpretes da Lei (cf. Mt 7,29; 15,9). Outra explicação seria o dito como uma
360
BROWN, “luw”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.1977.
Cf. BROWN, “luw”, op.cit., p.1983. Também. RIENECKER, F. e ROGERS, C. Chave
Lingüística do Novo Testamento, p.254.
362
Cf. BALCH, “Greek Political Topos peri no,mwn and Matthew 5:17,19 and 16:19”, p.68-76.
363
Cf. CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.190. Fitzmeyer, no entanto, entende que o
significado é o de abater, “como uma tienda de campaña”. Comentario Bíblico “San Jerônimo”,
Tomo III, NT I, p.185.
364
De acordo com Martin, a relação katalu/sai e plhrw/sai está no aspecto de mútua exclusão: se
não veio para anular, é porque veio cumprir. Há outros ditos de Jesus em que há esse paralelismo
(Mt 9,13; 20,28; 10,34b). MARTIN, B.L., “Matthew on Christ and the Law”, p.65. Trilling aponta
que essa estrutura também está presente em Marcos (Mc 2,17b; 10,45). El verdadeiro Israel,
p.250.
365
BANKS, “Matthew’s Understanding of the Law”, p.229. Martin também aponta esses textos,
“Matthew on Christ and the Law” p.65.
366
BONNARD, L’Evangile selon Saint Matthieu, p.61.
361
104
transição para iniciar a parte do sermão que trata da interpretação mais adequada
da Lei, e assim Jesus quis deixar bem claro que não estava destruindo a Lei, mas
aperfeiçoando-a, ou seja, explicando-a de acordo com o pensamento do legislador.
Assim, há uma interligação com a parte posterior que encabeça as antíteses:
“ouvistes o que foi dito aos antigos; (...) eu porém, vos digo” [VHkou,sate o[ti
evrre,qh toi/j avrcai,oij( (...) evgw. de. le,gw u`mi/n] .367 Como aponta I. Mazzarolo,
nessa tensão “Jesus revela sua soberania e superioridade absoluta em relação ao
que foi dito. Agora não é mais o tempo antigo, arcaico, mas o tempo próprio,
novo.”368
De acordo com Stanton, na verdade esse dito tomou forma de uma resposta
aos críticos da comunidade, que diziam ter abandonado a Lei, posto que estavam
inseridos no contexto judaico mais forte. Seria assim, um texto panfletário: “Jesus
não veio destruir a Lei e os Profetas”.369 É o que aponta Jeremias: “Jesus, pois,
responde à insinuação (mh. nomi,shte [não penseis]) de que seria um antinomista,
dizendo que sua tarefa não é a dissolução da Torá, mas o seu preenchimento.”370
Para a comunidade de Mateus isso teve um significado muito importante. A
afirmação de Jesus tem, no evangelho, um sentido de advertência para os
antinomianos. Segundo Overman, “Mateus acredita que tanto Jesus como sua
comunidade, que age de acordo com os ensinamentos de Jesus, são seguidores e
cumpridores da Lei.”371 Mas de que forma Jesus cumpriu a Lei? É o que veremos
a partir do sentido de plhrw/sai, a seguir.
4.3.2.
Jesus veio cumprir - plhrw/saiÅ
367
MALDONADO, J., Comentarios a los Cuatro Evangelios, p.247. W.Carter parafraseia da
seguinte forma: “o mandamento é conhecido pela audiência (Ouvistes) como palavra de Deus (a
forma passiva foi dito) confiada a gerações anteriores (aqueles de tempos antigos).” p.195.
368
MAZZAROLO, I., Evangelho de Mateus, p.88.
369
STANTON, G.N., A Gospel for a new people, p.300. BARBAGLIO, no entanto, afirma que na
verdade seria “uma opinião difundida na Igreja”, ou seja, seria uma polêmica interna. Os
Evangelhos I, p.119.
370
JEREMIAS, J., Teologia do NT, p.144. Cf Também Marguerat, M., Le jugement dans
l’Evangile de Matthieu, p.125 et.seq.; LUZ, U., Matthäus, p.232.
371
OVERMAN, A., O Evangelho de Mateus e o Judaísmo Formativo, p.93. De acordo com
Stanton, pode ser interpretado como ‘nem mesmo se sintam tentados a pensar...’. STANTON,
G.N., op.cit.,p.48 et.seq.
105
Jesus não veio anular a Lei e os Profetas, mas cumprir. De que maneira? O
termo plhrw/sai, cuja interpretação tem sido fruto de longo debate, deve ser bem
analisado para a plena compreensão do dito de Mt 5,17-20.
O uso de plhrhj e seus derivados aparecem na literatura grega desde
Ésquilo, e seu significado está relacionado com a raiz comum, plh, que significa
“cheio”, “plenitude”. Literalmente quer dizer “encher um vaso”, para que se
chegue ao plhroma, ou o vaso cheio. Em termos metafóricos, ganha o sentido de
“cumprir” um desejo, “atender” uma oração, “acalmar” a ira, “satisfazer” uma
vontade, “cumprir” uma obrigação ou “realizar” um trabalho, além de outros
sentidos, inclusive de tempo cumprido.372
No Novo Testamento o termo aparece 86 vezes, é um “termo técnico que se
emprega em conexão com o cumprimento da Escritura e também como
designação do cumprimento do tempo num sentido escatológico.”373 Quanto a
essa dupla possibilidade teremos que investigar as interpretações que têm sido
feitas a respeito, para ver qual sentido cabe melhor no dito de Mt 5,17.
Em geral, Mateus trabalha muito na perspectiva do uso de plero/w como
cumprimento das Escrituras do Antigo Testamento em diferentes ocasiões da vida
de Jesus, desde a concepção e nascimento374, depois no começo do ministério na
Galiléia375, e finalmente nos acontecimentos da paixão, como cumprimento de
profecias376. Mas dois ditos (3,15 e 5,17), exclusivos de Mateus, não estão
associados ao cumprimento de algum texto do Antigo Testamento específico, e
sim com a messianidade de Jesus. De acordo com Obelinner, “nesses dois textos,
Jesus liga sua convicção de ser o enviado de Deus aos conteúdos centrais da
história da revelação a Israel”.377
O texto de 3,15 trata do batismo de Jesus por João, em que declarou ser
necessário “cumprir toda a justiça” [plhrw/sai pa/san dikaiosu,nhn]. Não se trata
de fazer a vontade de Deus, visto que Mateus utiliza outros verbos para esse
372
Cf. SCHIPPERS, “plhro,w”, Dicionário de Teologia do Novo Testamento, p.1671.
Ibid., p.1673. Na verdade, a relação com as escrituras do AT e seu cumprimento é
sistematizado no esquema “promessa-cumprimento”, especialmente em textos com valor
cristológico. Cf. OBELINNER, “Cumprir/Encher/Plenitude”. Dicionário Bíblico Teológico, p.85.
374
Em 1,22s = 7,14; 2,6 = Mq 5,1-3; 2,15 = Os 11,1; 2,17s = Jr 31,15; 2,23 = Jz 13,5.
375
Em 4,14-16 = Is 8,23-9,1; 8,17 = Is 53,4; 13,35 = Sl 78,2; 12, 17-21 = Is 42, 1-4.
376
Em 21,5 = Is 62,11 e Zc 9,9; 27,9s = Zc 11,13 e Ex 9,12.
377
OBELINNER, op.cit., p.87. Cf. Também. a análise de G. BARTH, “Matthew’s understanding
of the Law”, Tradition and Interpretation in Matthew, p.68; BANKS, R., “Matthew’s
understanding of the Law”, p.229 et.seq.; MARGUERAT, D., Le jugement dans l’Évangile de
Matthieu, p.126. PARISI, S., “Giustizia superiore e fede ‘estroversa’”, p.52.
373
106
significado, como poiein, threin e fulassein, mas realizar a vontade salvífica de
Deus, de acordo com sua proclamação do reino de Deus e suas ações.378 Essa
afirmação sobre o cumprir a justiça é o motivo para Jesus se submeter ao batismo
de João, mesmo não tendo real necessidade dele.379
A melhor maneira de entender o sentido de plerw/sai em 5,17 é buscar o seu
correspondente aramaico, de acordo com as pesquisas realizadas a respeito, a
partir de textos correlatos do Talmude.380 Mesmo esse texto sendo posterior ao
tempo de Jesus (século III d.C.) ele ajuda a perceber que palavras podem ter sido
usadas com sentido similar, tendo em consideração que ele também se reporta a
tradições rabínicas mais antigas. Conforme o estudo de Jeremias, o Tb Shabbat
116b afirma:
at;)yy>r;wOa !mi tx;p.mil. al;) an;)a]
tytea] hvemD.
at;)yy>r;wOa l[; ypes;)wOal. aL;)a381
,
tytea] hvemD.
Eu não vim para tirar algo
da lei de Moisés
Antes vim para acrescentar
à lei de Moisés
No caso desse texto katalu,sai (anular) corresponde ao aramaico
(tirar fora), e plerw/sai (cumprir) corresponde ao aramaico
ypes;)wOa
tx;p.mi
(aumentar,
acrescentar, alargar). Assim, Jeremias afirma que
a tradução de ´osape (“acrescentar”) com plerw/sai [tornar pleno] no grego
expressa adequadamente que o propósito do “preenchimento” é atingir a medida
378
CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.142 et.seq.; BORNKAMM, G., Jesus de Nazaré,
p.91 et.seq; LANGRANGE, M., Évangile selon Saint Matthieu, p.54. MARGUERAT, D., Le
jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.126 et.seq; ZUMSTEIN, J., Mateus o Teólogo, p.52.
379
BARBAGLIO, G., Os Evangelhos 1, p93 et.seq. J. GNILKA comenta o seguinte a respeito:
“Que Jesus recebeu o batismo de João não pode ser posto em dúvida seriamente. Este fato,
manifestamente, trouxe dificuldades para a comunidade cristã. Mt 3,14s sabe relatar a respeito de
uma conversa ocorrida durante o batismo, tendo como pano de fundo que o batismo não se
coadunava com a condição de Jesus.” Jesus de Nazaré, p.78
380
Especialmente o Shabbat 116a, cf. BILLERBECK, Kommentar zum Neuen Testament aus
Talmud und Midrasch I, p.241; JEREMIAS, J., (cita como Shabbat 116b), Teologia do Novo
Testamento, p.142 et.seq.; BARTH, “Matthew’s Understanding of the Law”, p.92 et.seq.;
MARTIN (também cita o Shabbat 116b), “Matthew on Christ and the Law”, p.65 et.seq.
381
Quanto a esse termo específico alguns manuscritos trazem aL;)w> em vez de aL;)a., Isso muda
totalmente o sentido, pois o primeiro significa “nem”, ou seja, Jesus não teria vindo nem para tirar,
nem para acrescentar nada à Lei. O segundo, conforme constatada na tradução, aponta para a
mudança que Jesus veio trazer. Jeremias preferiu o segundo sentido, conforme consta no texto
apoiado também num texto do cristianismo judaico, o Recognitiones Pseudoclementinas, e numa
fonte judaico-cristã, que afirma pelo sentido de Jesus não veio “para diminuir, mas, pelo contrário,
para completar”. Cf. JEREMIAS, op.cit., p.144.
107
plena. Temos aí a idéia da medida escatológica, que Jesus usa em outros
lugares; plerw/sai é, portanto, um termo técnico escatológico.382
Jeremias, nesse sentido, considera que Mt 5,17 é a “expressão mais aguda”
da consciência de plenipotência de Jesus. Para ele o ponto central do dito é o
verbo plerw/sai.383
Outro que analisou profundamente o termo foi Barth, e em sua interpretação
de plerw/sai, uma possibilidade é o sentido de “completar”, que combina com as
idéias expostas em 5,21-48. Ou seja, assim interpreta-se plhrw/sai à luz de 21-48.
Seguindo alguns que procuraram o substrato aramaico da palavra, Barth chegou
ao termo
~Yeq384;, “tornar com efeito”, “confirmar”, e, em conexão com 21-48,
“ensinar”. O problema, para Barth, é o critério para a interpretação de um termo
que é especificamente mateano, para determinar, em primeiro lugar, em que
medida ela concorda com o contexto, e em segundo, em que medida ela concorda
com linguagem usual de Mateus em seu ambiente. Para isso, é preciso interpretar
plhrw/sai à luz de outras passagens em Mateus.385
Assim, Barth considera que o sentido de plhrw/sai em 5,17 não é nem o
simples “fazer”, como cumprimento mecânico da Lei, nem “determinar” o
verdadeiro sentido dos mandamentos, mas “estabelecer” a Lei e os Profetas, como
o próprio estabelecimento da vontade de Deus. Isso é marcado pelo fato da obra
de Cristo ser precisamente a realização da vontade de Deus, de acordo com a
cristologia de Mateus. Esse sentido se aproxima, da mesma maneira, do sentido de
plhrw/sai em 3,15.386 De fato, o estabelecimento do juízo de Deus é o pano de
fundo desse dito, bem como o de 3,15. Especialmente os versos 17 e 18c
382
Ibid., p.144.
Ibid., p.142.
384
Também pensado por BILLERBECK, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und
Midrasch I, p.241, contra a lógica de Jeremias, exposta acima. G. VERMES também pensa nesse
termo, e afirma: “Os antônimos ‘revogar/cumprir’ correspondem ao hebraico-aramaico lebbatellebattela/ leqqayem-leqqayema. Um bom paralelo é fornecido pela Mishná: ‘Aquele que cumpre a
Torá na pobreza, a cumprirá mais tarde na riqueza; e aquele que revoga a Torá (quer dizer, não a
observa como se ela estivesse nula e vazia) a revogará mais tarde na pobreza’ (mAb. 4,9).” A
religião de Jesus, o judeu, p.27.
385
BARTH, “Matthew’s understanding of the Law”, p.68. Mateus frequentemente usa o passivo
de plhro,w em conexão com trechos do Antigo Testamento, enquanto em 5,17 e 3,15 ele usa o
ativo plhrw/sai. (Em geral a LXX traduz para plhrwth/nai,o verbo alm, como em 1 Rs 2,27: hw"hy>
rb:åD>-ta, aLem;l. = plhrwqh/nai to. r`h/ma kuri,ou. Também em 1 Rs 8,15.24; 2 Cr 6,4.15; 36,21.22).
386
Ibid., p.69. Ele comenta: “This interpretation is further supported by the following fact: the
establishing of the will of God as the work of Christ plays an important part in the Christology of
Matthew.”
383
108
pertencem a esse contexto, que indica o fato de que o ensino de Jesus em
plhrw/sai está vinculado com o estabelecimento da Lei, da vontade de Deus.387
Nesse sentido, então, G. Barth concorda com J. Jeremias, que plerw/sai
aponta para um evento escatológico. A favor dessa interpretação encontramos L.
Goppelt, que explica a frase de 5,17 não somente com uma intenção apologética,
mas que positivamente também tem a intenção de “apresentar Jesus como aquele
que traz a consumação.”388 Para Goppelt, só podemos interpretar plhrw/sai à luz
do cumprimento escatológico das Escrituras. O fato de Mateus acrescentar ao dito
de Q (v.18) a afirmação do sermão escatológico de Jesus (Mc 13,31 par Mt 24,35)
só reforça essa idéia.389
B.L. Martin aponta seis diferentes possibilidades para plerw/sai: (a) “fazer”
ou “realizar”; (b) “estabelecer”; (c) “dar o verdadeiro sentido”; (d) “manter
intacto”; (e) “realizar o evento salvífico”; (f) “consumar escatologicamente”. Ele
aceita como melhor sentido o último, em nível escatológico, a partir da análise de
Jeremias.390
G. Barbaglio aceita que a intenção do dito é que a vinda de Jesus trás certa
superação, mas por um processo de completar, tornar pleno. A escatologia fica
por conta da aceitação de cada discípulo dessa plenitude da Lei, e do viver
segundo sua revelação em Cristo, para que possam participar da salvação final.391
W.G. Kümmel, conhecido por sua visão de uma escatologia realizada, considera
que Jesus está concretizando um evento escatológico, pois “reivindica que, com a
sua pregação da vontade de Deus, irrompeu um novo e definitivo tempo da
revelação da vontade de Deus. Conseqüentemente, Jesus entendeu ser sua tarefa
de dar o sentido verdadeiro à revelação transmitida até então”.392 É nesse sentido
que se contextualizaria o dito de 5,17.
Contra essa idéia de cumprimento escatológico, porém, temos outros
pesquisadores que interpretaram o dito de maneira diversa. M. Lagrange, para
quem o sentido de plhrw/sai está ligado ao pleno cumprimento da Lei, tanto em
termos de realização quanto de interpretação: Jesus veio aperfeiçoar a Lei.393
387
Ibid., p.147.
GOPPELT, L., Teologia do Novo Testamento, p.455.
389
Ibid., p. 132; 456.
390
MARTIN, B.L., “Matthew on Christ and the Law”, p.64 et.seq.
391
BARBAGLIO, G., Os Evangelhos I, p.119.
392
KÜMMEL, G.W., Síntese Teológica do Novo Testamento, p.76.
393
LAGRANGE, M., Évangile selon Saint Matthieu, p.93 et.seq.
388
109
Também P. Bonnard não aponta para um sentido escatológico, mas considera que
“Jesus interpreta a Lei dada aos Pais revelando o significado radical.”394
Outros pesquisadores tentaram não se ater a uma interpretação escatológica,
mas voltada para a plenitude do cumprimento em Jesus. É o caso da análise de J.
Maldonado; para ele no texto de 5,17 plero/w guarda certa relação de sentido com
3,15, pois se trata também ali da vontade salvífica de Deus, por meio da
obediência de Jesus. E ele certamente veio cumprir a Lei. Primeiro, porque,
enquanto vigorou a Lei, Jesus a cumpriu de forma diligente, como também os
seus discípulos, inclusive na guarda de datas como a Páscoa. Em segundo lugar,
ao interpretar a Lei, Jesus a aperfeiçoou. Na verdade, Jesus foi ainda mais severo
do que a Lei, em questões como vingança, o matar o próximo, o adultério, etc.
(elementos que ele trabalhou nas antíteses). Em terceiro lugar cumpriu a Lei por
meio da graça divina. Em quarto lugar, tudo o que estava prometido, mas oculto
na Lei, Jesus revelou à humanidade (cf. Lc 24,44). Se na Lei e nos Profetas se
distinguem quatro partes: promessas e vaticínios, preceitos do Decálogo,
cerimoniais e judiciais, Cristo cumpriu tudo. As promessas e os vaticínios,
realizando o predito e prometido; os preceitos morais do Decálogo,
aperfeiçoando-os; os cerimoniais, mostrando o que eles realmente significavam,
por exemplo, na circuncisão da carne, depois recebendo o batismo e apontando
para a circuncisão do coração; e os judiciais, substituindo os prêmios e os castigos
corporais e temporais por outros espirituais e eternos.
395
Ou seja, Jesus
interpretou a essência e o espírito da Lei, contra as tradições e distorções
realizadas pelos fariseus em sua interpretação casuística.
Quem também interpretou nessa linha foi J. Fitzmeyer. Para ele a missão de
Jesus é dar plenitude. O termo não se refere simplesmente a uma observância
literal, pois as antíteses negam essa possibilidade. Jesus afirma a vigência
permanente da Lei tal como ela é afirmada nos escritos rabínicos, mas não a Lei
de Moisés com as doutrinas orais explicativas, e sim a Lei completa e perfeita.396
É a questão colocada por G.N. Stanton: da perspectiva de Mateus, Jesus
estabeleceu a real intenção da Lei? Ou ele confirmou ou estabeleceu a Lei? Esse
último sentido é mais apropriado considerando os argumentos lingüísticos
394
BONNARD, P.: “Jesus interprète la Loi donnée aux peres en révélant la signification radicale”.
L’Evangile selon SAint Matthieu, p.61.
395
MALDONADO, J., Comentario a los cuatro evangelios, p.248 et.seq.
396
FITZMEYER, J., Comentario Bíblico Tomo III NT, I, p.185.
110
baseados no uso do aramaico que Jesus falava, ou mesmo pela ligação com os
v.18 e 19, pois ambos confirmam a importância da Lei.397
R. Banks, ao contrário de Fitzmeyer, aponta para o cumprimento das
Escrituras. O ponto central do sentido está na idéia da novidade e superioridade de
Jesus diante da Lei, daí o cumprimento. As instruções de Jesus em 21-48
exemplificam essa superioridade. O sentido que se pode dar para o termo
“cumprir” está profundamente vinculado ao seu objeto – a Lei e os Profetas – e
inclui tanto elementos de descontinuidade (o que supera a Lei em seu objetivo)
quanto elementos de continuidade (o cumprimento daquilo que a Lei aponta como
vontade de Deus).398
W. Trilling, ao analisar a questão, levanta outra idéia, também não
escatológica. Mateus diferencia entre pleroun [cumprir, completar] e telein [levar
ao seu fim], em que o primeiro tem um sentido mais religioso, enquanto este
último, um sentido mais profano. pleroun é um verbo que se utiliza conectado
com o cumprimento das Escrituras. O sentido do verbo no dito pode ser
interpretado como: a prática de Jesus a partir da Lei, considerada, juntamente com
os Profetas, como a “vontade de Deus revelada e registrada na Escritura.”399
Também pode ser o cumprimento das profecias como um todo, na vida de Jesus.
Nesse caso, plerw/sai em 5,17 pode ser pensado como a realização que Jesus
provocou dos acontecimentos preditos na Escritura, considerando que a Lei e os
Profetas têm a função profética, na perspectiva da história da salvação.400 Mas
Trilling não consegue ver em nenhuma das interpretações acima – seja de cumprir
no sentido de fazer, seja no sentido de realizar as profecias – uma solução
satisfatória. Por isso aponta para uma terceira hipótese, em que a relação entre
katalu,ein e plerou/n não deve ser entendida como contraditória, mas superlativa.
O peso deve estar em cima da expressão positiva “cumprir”, portanto, é o cumprir
de Jesus o eixo hermenêutico da passagem, e não o anular. Jesus veio trazer pleno
cumprimento, por meio do seu ensinamento, da vontade de Deus, sem anular o
que já foi revelado anteriormente, mas dando pleno efeito aos ensinamentos
efetuados por ele em seu poder (cf. Mt 7,29). Assim, o Antigo Testamento
397
STANTON, G.N., A Gospel for a new People, p.300,320.
BANKS, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.229 et.seq.
399
TRILLING, W., EL verdadeiro Israel, p.252.
400
Ibid., p.253.
398
111
mantém o seu valor como objeto material de estudo, e o seu caráter normativo é o
objeto formal.401
Parisi pensa na mesma perspectiva: Jesus não veio para anular a validade do
AT: o verbo deve ser entendido no sentido de dar à lei aquela finalidade que os
fariseus criam poder dar. Esse significado é alinhado com o conteúdo do v.18:
Mateus está propondo uma releitura da Lei e dos Profetas em perspectiva
cristológica; dessa ótica emerge que a vontade de Deus tem um valor permanente
mesmo em sua mínima expressão; isso é fundamental para Mateus.402
Há uma terceira linha de interpretação que, ao considerar o dito uma
construção redacional de Mateus, tem por premissa a idéia de que 5,17 quer
responder aos questionamentos feitos à comunidade, seja por outros cristãos, seja
por outros setores do judaísmo. É como interpreta Bornkamm, pois segundo ele
essa afirmação de Mateus é uma resposta contra uma posição que “proclamava
como missão de Jesus a anulação da vontade de Deus atestada na Escritura e a
instauração de uma nova era isenta de lei.”403
De acordo com Overman, para quem o evangelho é, em sua maior parte,
uma construção do evangelista, essa pode ser considerada a passagem-chave para
entender “a concepção de Mateus quanto à Lei”.404 Mt 5,17 aponta para o fato de
que Mateus e sua comunidade “não violam a Lei, mas compreendem-na e
cumprem-na completamente”405, considerando ainda afirmação do v.19. Isso tem
a ver com uma interpretação adequada da Lei, e que muitas vezes contrariava
outras, que tinham sentido oposto. Assim, o que Mateus faz na afirmação de que
Jesus não veio anular a Lei, mas cumpri-la, é responder à acusação de que a
comunidade não segue a Lei. Como a perícope identifica os escribas e fariseus
como os oponentes nesse mister, isso representa que no contexto da comunidade
eram eles que acusavam os seguidores de Cristo de anomia. Mas isso aponta
também para o fato de que a defesa de Mateus e suas acusações contra os fariseus
(especialmente no cap.23) fazem parte de um cenário de disputa ideológica, em
que os diferentes grupos estão em conflito aberto.406
401
Ibid., p.250-257.
PARISI, op.cit., p.52. É a linha de interpretação de Vermes; ele admite que 5,17 está vinculado
à idéia de cumprimento de profecia. A religião de Jesus, o judeu, p.27.
403
BORNKAMM, G., Jesus de Nazaré, p.167.
404
OVERMAN, A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.92.
405
Ibid., p.93.
406
Ibid., p.94.
402
112
Alguns pesquisadores interpretaram plerw/sai para além da perícope de
5,17-20 em si, mesmo considerando tecnicamente o significado do termo.
Dautzenberger afirma que, sob o aspecto teórico o “cumprimento da lei” é
apresentado essencialmente em três sentidos: como retorno à vontade de Deus
(19,1-9; 15,4), como concentração no mandamento do amor (23,39s) e como
realização prática por meio da acentuação perfeita. O amplo conceito de
“cumprimento” comporta esta aplicação múltipla. O elemento decisivo do
“cumprimento” se acha na concentração no mandamento do amor.407 Nesse
sentido Schippers chega a afirmar que o “cumprimento não deve ser entendido de
modo formal.”408 O fundamento para o cumprir de Jesus é o amor, o qual Jesus
demonstrou desde o início, quando declarou que estava cumprindo toda a justiça
(3,15).409
Flusser, em sua visão desde a perspectiva judaica, aborda a questão não a
partir da prática das normas de forma rigorosa, mas de sua essência, através da
qual o cumprimento de certo preceito abrange os demais. Ademais, ele aponta
para o fato de que Jesus não foi o único a desejar resumir a Lei numa busca por
seu sentido ético mais amplo.410 Para ele, inclusive, é preciso simplificar o sentido
do texto, pois, “seguindo a linguagem costumeira de sua época, ele evitou a
acusação de que a exegese da Lei que se seguia ab-rogava o significado original
407
DAUTZENBERG e SCHREINER, Formas e exigências do Novo Testamento, p.292.
SCHIPPERS, “cumprir”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.1676.
409
É o caso de D. FLUSSER, em seu artigo sobre o Sermão do Monte: “A última citação
(“Amarás o teu próximo”, Lev 19:18; ver Mt 5:43) e sua explicação encerram todo este trecho,
porque esse versículo foi considerado o ‘grande resumo da Torá’, não apenas de acordo com o
ponto de vista rabínico, como também de acordo com o próprio Jesus (Mt 22:34-38 e paralelos).
“Um paralelo rabínico ao Sermão da Montanha”, O Judaísmo e as Origens do Cristianismo, p.32.
Na verdade não se pode excluir esse sentido na hermenêutica geral da perícope.
410
FLUSSER, D., Jesus. p.40. Ele cita comentários de escribas no Mekhilta sobre Êxodo 31,14:
“O Sábado vos foi dado, não vós ao Sábado”, relacionando com Mc 2,27-28. Deve ser lembrado
também o clássico paralelo entre a Regra de Ouro de Hillel (Também Shabbat 31a) e de Jesus em
Mt 7,12, par Lc 6,31, ambos colocados em partes do sermão do monte ou planície. Quanto ao fato
de Hillel tratar do tema no negativo (“não façais”, enquanto Jesus reforça o positivo (“façais”), os
autores tendem a considerar que Jesus desejou reforçar mais o sentido positivo, como JEREMIAS,
J., Teologia do NT, p.311 et.seq. Entretanto, VERMES compara com outros textos rabínicos que
tanto podem tratar de forma negativa quanto positiva, A religião de Jesus, o judeu, p.43-46.
FLUSSER vai mais longe e considera que, de fato, ambos defendem o mesmo ponto de vista:
“Jesus e Hillel viam a Regra de Ouro como uma síntese da Lei de Moisés. Isso se torna inteligível
quando consideramos o dito bíblico, “Amarás a teu próximo como a ti mesmo” (Lv 19:18) era tido
por Jesus e pelos judeus, em geral, como o mandamento da Lei.
408
113
das palavras da Bíblia”.411 Desse modo, descarta-se na interpretação de Flusser
qualquer senso escatológico no texto.
Cabe agora uma breve análise do modo como Jesus cumpriu a Lei, para uma
compreensão mais ampla do dito no contexto da comunidade de Mateus.
4.3.3.
Como Jesus cumpriu a Lei
Jesus foi circuncidado ao oitavo dia (cf. Lc 2,21412), o que em si já indica
que o seu ambiente natural foi como judeu observante da Lei.413 Dentro da
tradição transmitida pelos evangelistas – mesmo com as interferências redacionais
em relação aos eventos – transparece em vários momentos esse respeito à Lei, ao
mesmo tempo de uma aparente liberdade na interpretação de questões pontuais.
4.3.3.1.
Jesus e aspectos relativos à observância em geral
O relato da Paixão mostra-nos que, considerando a época em que aconteceu
a derradeira ceia de Jesus com seus discípulos, eles estavam observando as datas
festivas da tradição de Israel, segundo Ex 23,14ss.414 Outro aspecto peculiar que
aponta para a observância regular da Lei são as vestes. De acordo com dois relatos
de cura (Mt 9,20 e par; 14,36) as pessoas tocam na borda das vestes de Jesus, que
tinham “franjas” – gr. kraspe,dou / heb. tciyci – em concordância com Nm 15,3840 (e sua tradução para a LXX). Além disso, uma narrativa pitoresca a respeito do
411
FLUSSER, D., Jesus, p.65. Também D. MARGUERAT trata do cumprimento relacionado com
amor, Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.128, bem como CHARLES, “Do not suppose
that I have come”, p.55. No entanto, W. CARTER afirma cabalmente que “alguns sugeriram que
Jesus cumpre a lei e os profetas ensinando a realizar o amor (22,34-40). Mas enquanto Paulo faz
esta argumentação (Rm 3,8-10; Gl 5,14), o verbo plhro,w (plêroô) está ausente no ensinamento de
Jesus sobre o amor em Mt 22,33-40. O Evangelho de São Mateus, p.191. Como apontado acima,
Carter compreende o cumprir como Jesus implementando a “vontade salvífica de Deus,
previamente revelada, na sua proclamação do império de Deus e nas suas ações.”
412
Curiosamente, Mateus omite essa informação, talvez por considerá-la óbvia aos seus ouvintes.
413
De um modo geral podemos afirmar que “a representação geral de Jesus que emerge dos
Evangelhos Sinóticos é a de um judeu que observa as principais práticas religiosas de sua nação.”
VERMES, A religião de Jesus, o judeu, p.21. FLUSSER denomina Jesus de “judeu, fiel à Lei.”
Jesus, p.37. THEISSEN analisa a postura de Jesus como uma ambivalência de postura, com a
intensificação e abrandamento das normas da Lei. O Jesus Histórico, p.388-399.
414
Nesse sentido, o evangelho de João é ainda mais aberto, pois mostra Jesus indo com seus
discípulos diversas vezes a Jerusalém, a fim de participar das festas. Se foi um artifício metafórico
por parte dele, ao menos reflete a possibilidade de Jesus ter feito isso. No evangelho, tem a
intenção de mostrar um Jesus mais dinâmico, missionário. Cf. MAZZAROLO, I, Nem aqui, nem
em Jerusalém, p.39.
114
pagamento de imposto para o templo (Mt 17,24-27), que guarda um certo humor,
coloca Jesus questionando, mas, por fim, obedecendo ao imposto.415
4.3.3.2.
Jesus e as controvérsias sobre o Sábado e pureza levítica
Entretanto, encontramos muitos relatos em que Jesus assume uma posição
de questionamento, não à Lei, mas às interpretações dadas por outros grupos
religiosos. Mas esses questionamentos estão presentes na vida de “todo judeu
crente que leva a sério seu Judaísmo.”416 Em geral esses questionamentos
aparecem em relatos de controvérsia, amparados por situações concretas, em
geral, de cura ou de comportamento. Destacam-se dentre eles a polêmica sobre o
sábado e as normas de pureza levítica.417
A respeito do sábado, de um modo geral Jesus não fez nada que o
quebrasse, com exceção de cura de pessoas em sinagoga e permissão para os
discípulos pegarem espigas no campo. A posição dele em ambos os casos contem
uma dupla demonstração, (1) de que ele é o Senhor do sábado418: “Porque o Filho
do homem até do sábado é Senhor.” (Mt 12,8), e (2) de que o sábado é dia de
praticar a misericórdia: “Pois, quanto mais vale um homem do que uma ovelha?
É, por conseqüência, lícito fazer bem nos sábados.”(Mt 12,12419). Na verdade, não
415
VERMES, op.cit., p.23 et.seq. Contra esse último exemplo, no entanto, L. F. RIBEIRO defende
que o v.27 é um arranjo redacional posterior, indicando, com isso, que Jesus teria se recusado a
pagar o imposto do Templo, assim como muitos camponeses e grupos antagônicos à estrutura
templária o fizeram. RIBEIRO, L.F. “‘Livres são os Filhos’ (Mt 17,24-27) O Jesus Histórico não
pagava o imposto do Templo.” p.1-14.
416
FLUSSER, D., Jesus, p.37 passim. Na verdade, nos casos de cura, os preceitos rabínicos
proibiam não cura em si, mas o uso de elementos mecânicos; Jesus não usou nenhum instrumento,
senão sua palavra, para realizar a cura no sábado. Cf. Também. VERMES, G., A religião de Jesus,
o Judeu, p.28-30.
417
Sobre o sábado Mateus registra narrativas de controvérsia no capítulo 12, 1-14; paralelo de
Marcos, que também indica diversos acontecimentos no sábado (1,21-28; 2,23-3,6); sobre as
questões de pureza levítica em Mt 15,1-20. Além disso, nas admoestações contra os fariseus (cap
23) há vários exemplos da prática farisaica que Jesus faz avaliação. Sobre a controvérsia com os
fariseus, ver infra em 3.5.
418
Cf. GARCIA, P.R., O Sábado do Senhor teu Deus, p.109.
419
A paralela de Mc 3,4 é ainda mais clara: “E perguntou-lhes: É lícito no sábado fazer bem, ou
fazer mal? salvar a vida, ou matar? E eles calaram-se.” Marcos também é o único a registrar o
seguinte dito: “E disse-lhes: O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do
sábado.” Há um paralelo rabínico muito similar, que diz: “O Sábado foi dado a vós, e não vós ao
Sábado.” Mekhilta sobre Ex 31,14, cf. FLUSSER, D., op.cit, p.40; VERMES, op.cit., p.30.
Segundo Vermes, isso não quer dizer que o dito rabínico tenha tido Mc como fonte, literariamente
anterior a ele, mas que essa era concepção geral entre os judeus piedosos do tempo de Jesus.
BORNKAMM, no entanto, prefere interpretar que o dito de Jesus seria blasfemo em relação à
ortodoxia, pois para ele o dito rabínico apenas aponta para a necessidade de consagrar o Sábado a
115
há nenhuma prescrição da Lei ou da Torá Oral que proíba o fazer o bem no
sábado; pelo contrário, em caso de risco de vida é lícito fazê-lo. Por isso, o
questionamento dos fariseus não se refere realmente à Lei420, mas a prescrições
seguidas por eles. A misericórdia no caso da cura – mesmo não havendo risco
imediato para a vida do doente – é clara, mas e no caso das espigas de milho? Se
seguirmos certas interpretações rabínicas, também ali se aplica o princípio da
misericórdia: saciar a fome é mais importante que guardar o sábado. Além disso,
quando alguém colhe as espigas apenas com as mãos, sem instrumentos
mecânicos, não há quebra formal da Lei. Percebe-se de fato um exagero por parte
dos fariseus que interpelavam a Jesus e seus discípulos.421
Em outro momento, Jesus critica de fato a tradição dos anciãos [para,dosin
tw/n presbute,rwn],422 no episódio do lavar as mãos antes da refeição (Mt 15,1-20).
De novo aponta para um questionamento dirigido diretamente aos fariseus. Na
verdade, também nesse mister não há na Mishná nenhum relato exigindo o lavar
as mãos, apenas aconselhando a fazê-lo.423 O dito de Jesus sobre o que entra e o
que sai da boca, e o que contamina ou não em 15,11, e explicado aos discípulos
nos v. 17-20, pode dar a entender que ele não se preocupou com as normas de
alimento da Lei (cf. Lv 11; Dt 14). Mas considerando o fato de que o problema
Deus, pois o rabino Simão ben Menasiá inicia o dito com a seguinte advertência: “Guardarás o
Sábado, porque ele santo para ti”. Jesus de Nazaré, p.169.
420
As diversas prescrições sobre o sábado no AT (por ex: Ex 16,23 – o relato fundante -; 20,10;
31,14s; Lv 23,3; Dt 5,12) são muito genéricas, e a tradição Oral organizou os diferentes modos
pelos quais uma pessoa pode transgredir o sábado – o Tratado Shabbat, que aparece na ordem
segunda da Mishná. Cf. COLLIN, M. e LENHARDT, P., A Torah oral dos fariseus, p.46 et.seq. e
149. Ver Também a excelente exposição de GARCIA, P.R., O Sábado do Senhor teu Deus, p.5094, onde ele diferencia três concepções a respeito do sábado: (1) como normatização para a vida
cotidiana; (2) em relação ao Cosmos, na concepção helenista; (3) como evento celestial, a partir de
Qumran, mas não exclusivamente. A nossa abordagem nos interessa a primeira concepção.
Também sobre a Mishná, Garcia dá alguns exemplos a respeito, p.168-172.
421
Cf. VERMES, A religião de Jesus, o Judeu, p.30. Cf. Também FLUSSER, Jesus, p.40. Contra
eles, porém, P.R. GARCIA, op.cit., p.140 et.seq. Ele interpreta que a quebra só se justifica
mediante a autoridade de Jesus, superior a de Davi, que também quebrou princípios da Lei, como
Jesus salientou ao lembrar do relato bíblico.
422
Sobre o assunto a respeito dos grupos antagônicos, ver cap.1.2.5.
423
Cf. o Tosefta Berakhot 5,13: “Lavar as mãos antes de uma refeição é aconselhável, a ablução
após a refeição é obrigatória”. Apud FLUSSER, D., Jesus, p.37. BORNKAMM,G., no entanto,
considera que no Judaísmo tardio, a exemplo do contemporâneo, a vida do judeu piedoso “era
regulada pela exigência da pureza ritual e pela proibição de entrar em contato com o que era
cultualmente impuro.” Jesus de Nazaré, p.170. MAZZAROLO, por outro lado, aponta que lavar as
mãos antes da refeição “tinha um sentido de purificação também das culpas”. Evangelho de São
Mateus, p.233.
116
não estava no tipo de alimento comido, e sim na maneira de comê-lo, conclui-se
que não há na fala de Jesus nada que contrarie diretamente a Lei.424
4.3.3.3.
Jesus e as leis morais
E quanto às denominadas leis morais? Sem dúvida, são delas que Jesus mais
se ocupa, e às quais dá interpretações mais fortes. Tanto as antíteses (5,21-48)
quanto outras orientações ou respostas de Jesus no tocante a aspectos da lei moral
(a questão familiar em Mt 12,50; 10,37; 8,21-22; bem como o divórcio em 19,312) parecem direta ou indiretamente relacionar-se com o decálogo – os
pronunciamentos associados a Moisés no monte Sinai.425 As antíteses tem, em sua
maioria, essa ligação conforme quadro abaixo:426
Antítese
Texto
Tema
Relação na Torá
Primeira
5,21-26
Homicídio
Ex 20,13
Segunda
5,27-30
Adultério
Ex 20,14
Terceira
5,31-32 (19,3-12)
Divórcio
Dt 24,1.3
Quarta
5,33-37
Juramento
Ex 20,7 / Lv 19,12
Quinta
5,38-42
Vingança
Ex 21,24 / Lv 24,20
Sexta
5,43-48
O amor ao próximo
Lv 19,18.34
Pelo quadro acima, percebe-se que, em três antíteses (1ª, 2ª e 4ª) Jesus
analisou leis diretamente do Decálogo. As demais são citadas de partes diversas
da Lei de Moisés, mas foram colocadas numa ordem que demonstra que o
objetivo de Jesus na observância da Lei é, acima de tudo, o amor ao próximo, o
qual deve reger o relacionamento entre as pessoas.427
Quanto às polêmicas sobre a lealdade familiar, está sempre em questão o
mandamento do decálogo sobre os pais, em Ex 20,12. Não há uma discussão
424
Cf. CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p. 406 et.seq. FLUSSER, op.cit, p.38 et.seq.
Na verdade ele aponta que “esse dito é compatível, na íntegra, com a postura legal judaica. O
corpo de uma pessoa não se torna ritualmente impuro mesmo que ele tenha comido animais
proibidos pela Lei de Moisés!”
425
Cf. VAUX, R.de., Instituições de Israel no Antigo Testamento, p.176.
426
Seguimos a divisão das antíteses de VOUGA, Jesus et la Loi, p.200-274. BARBAGLIO
considera que todas são autênticas, com exceção da terceira, que tem relação com o dito de Q em
Lc 16,18, de outro contexto. Os Evangelhos I, p.120 et.seq. Entretanto, THEISSEN considera que
apenas a 1ª, a 2ª e 4ª devem ter vindo do Jesus histórico. O Jesus Histórico. 389 et.seq.
427
ZUMSTEIN, J. Mateus o Teólogo, p.49 et.seq.
117
formal sobre o assunto, mas encontramos algumas situações que podem
transparecer um certo descaso para com a família. Quando um discípulo desejou
seguir Jesus, mas pediu para aguardar a morte dos pais, ele respondeu: “Segueme, e deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos” (8,21-22). Em seu
discurso de envio aos discípulos (cap. 10), ele adverte que o amor aos pais não
pode sobrepor-se ao amor por ele: “Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim
não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno
de mim” (10,37). Em outra ocasião, quando ensinava aos seus discípulos e foi dito
a ele que sua família o aguardava do lado de for da casa, ele disse: “Porque,
qualquer que fizer a vontade de meu Pai que está nos céus, este é meu irmão, e
irmã e mãe” (12,50). Como entender essa aparente distância e até mesmo certa
negligência para com a família?
Uma possibilidade pode ser a idéia apontada por Crossan, de que as famílias
ficariam divididas por causa de Jesus, e ele sabia disso, porque ele “romperá a
família hierárquica ou patriarcal pelo meio, ao longo do eixo de dominação e
subordinação.”428 Ou seja, a exemplo do que Jesus apontou na questão do
divórcio, não haverá mais relações de dominação entre pessoas, mesmo que na
família.429
Entretanto, uma das severas críticas de Jesus aos fariseus foi exatamente
sobre o descuido deles com os pais idosos, na controvérsia sobre descumprir
mandamentos (Mt 15,3ss). Em sua argumentação contra os fariseus, Jesus analisa
o fato dos fariseus se preocuparem deveras com esse tipo de ordenança legal,
esquecendo-se, no entanto, de guardar preceitos morais fundamentais. No caso,
exatamente de “honrar pai e mãe” (Ex 20,12) e a advertência de que “aquele que
amaldiçoar pai ou mãe seja punido de morte” (Dt5,16). O que os fariseus faziam
estava fundamentado no korban, uma oferta separada a Deus que não podia ser
utilizada de modo comum. O problema é que eles separavam aquilo que seria
destinado aos seus pais idosos; com isso, tornavam-se isentos de cumprir o
428
CROSSAN, O Jesus Histórico, p.337.
Na verdade, não há como negar a tensa relação de Jesus com sua própria família, pois em
algumas ocasiões transparece essa distância, como no texto de 12,50, e até mesmo hostilidade,
como no episódio de Nazaré (Mc 6,1-5). Mas é correto afirmar também que Jesus tinha uma
clareza da dificuldade de se manter laços familiares mediante o compromisso com sua vocação de
anunciador do reino de Deus. Cf. FLUSSER, Jesus, p.15 et.seq. THEISSEN chega a admitir uma
“ética a-familiar,” por conta do radicalismo itinerante. Sociologia da cristandade primitiva. P.39.
STEGEMANN, no entanto, questiona essa posição, pois “não tem validade geral”, e implicaria a
abandono apenas para o círculo mais chegado a Jesus. História social do protocristianismo, p.239.
429
118
mandamento. Mas Jesus desmascarou essa farsa e condenou-os por violar o
mandamento moral.430 A conclusão a que se chega é que Jesus só colocava a
família numa condição menor, quando se tratava de cumprir a missão confiada a
ele, de proclamar o reino de Deus.
Na verdade Jesus intensificou a lei do amor, ao ponto de renunciar a toda
violência, mesmo permitida pela Lei, e apontando para necessidade de amar o
inimigo, pois isso seria um sinal de uma justiça superior. Como afirma
Stegemann: “precisamente no assim chamado mandamento do amor ao inimigo
desdobram-se princípios contidos na Torá e que, de alguma forma, é possível falar
de uma superação da mesma.”431 Essa foi uma idéia que as comunidades
seguidoras de Jesus acolheram dele mesmo, não sendo jamais uma elaboração
posterior.432
Tendo em vista uma interpretação apropriada da Lei, Jesus a resumiu em
situações de debate e ensino. Os sumários representam a busca de uma síntese que
facilite e englobe toda a Lei, considerada como vontade de Deus, num único
grande mandamento. Isso também ocorria no Judaísmo, de acordo com famosa
história relacionada a dois grandes mestres: um gentio foi procurar Shammai e
pediu: “Faz de mim um prosélito, sob a condição de me ensinares toda a Torah
enquanto me mantenho sobre uma perna só.” Shammai o expulsou com um
bastão, e ele foi até Hillel, que o tornou prosélito, e o ensinou: “O que é odioso
para ti, não faças a teu próximo; isto é toda a Torah e o resto não passa de
comentário; vai e estuda.”433
Jesus fez resumo similar daquele de Hillel, quando declarou: “Portanto, tudo
o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-o também vós, porque esta é a
Lei e os Profetas.” (Mt 7,12), que também faz parte do Sermão do Monte. Outra
expressão que tem o mesmo objetivo está em Mt 22,34-40. Argüido sobre qual
430
Cf. MAZZAROLO, I., Evangelho de São Mateus, p.233 et.seq; CARTER, W., O Evangelho de
São Mateus, p.401 et.seq.
431
STEGEMANN, E., W.,História social do protocristianismo, p.242.
432
HORSLEY demonstra que essa idéia radical de amor ao inimigo já estava presente na tradição
Q, bem como em Marcos. Também Paulo trata do assunto. Sem dúvida, trata-se de um ensino
autêntico, ligado ao Jesus Histórico. A história apenas confirmou a veracidade desse ensino,
especialmente nos exemplos de Mahatma Gandhi e Martin Luther King. Jesus e o império, p.119
passim.
433
T.B. Shabbat 30b-31a. Citado apud COLLIN, M. e LENHARDT, J., A Torah Oral dos fariseus,
p.23. Também VERMES, G. A Religião de Jesus, o judeu, p.44.
119
seria o grande mandamento da Lei por um intérprete [nomiko.jÐ, Jesus respondeu
com uma síntese:
E Jesus disse-lhe: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua
alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o
segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois
mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas. (22,37-40)
Nos dois casos fica claro que se trata de uma síntese, tendo em vista a
conclusão, que cita a Lei e os Profetas. E qual é o sentido máximo da vontade de
Deus, expressa na Lei e nos Profetas, para Jesus? O amor e a misericórdia, que de
certa forma são indicados na perícope de 5,17-20, . 434
Assim, transparece na interpretação e atitudes de Jesus o desejo pela total
observância da Lei, a partir de uma busca pelos mandamentos que irão definir
toda a postura ética. Theissen aponta que essa ética está entre a Sabedoria e a
Escatologia. De um lado Jesus tem motivos sapienciais, pois em diversos
momentos utiliza elementos sapiências, “quando se refere à criação como passado
primevo ou como natureza presente”.435 De outro, vemos em Jesus motivos
escatológicos em sua ética, por causa do conceito – já trabalhado acima – de
“recompensa e castigo no novo mundo ou do Reino vindouro de Deus. A
escatologia propicia a motivação.”436
4.3.4.
Síntese sobre a análise de plerw/sai
O debate em torno do sentido de plerw/sai percorreu vários caminhos, seja
pelo sentido intrínseco do termo, seja por sua relação com o pressuposto
hebraico/aramaico, ou mesmo por uma interpretação aberta, ligada ao todo do
escrito de Mateus. É inegável que o dito foi colocado, ideologicamente, como
argumento para enfrentar os adversários da comunidade e suas acusações contra
uma possível anomia, sejam eles externos ou internos. Mas o dito não se resume a
essa esfera, pois tem dentro de si uma expressão cristológica que, considerada
como autêntica, revela muito da relação do próprio Jesus com a Lei. Nesse
sentido, tentar chegar ao substrato aramaico é relevante, mesmo não havendo
434
VERMES, G., A religião de Jesus, o judeu, p.35 passim;186.
MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.401.
436
Ibid., p.403. Cf. infra as análises sobre a escatologia na proclamação de Jesus.
435
120
nenhuma certeza plena de que vocábulo ele tenha usado. Seja como for, dois
aspectos se destacam para a compreensão de plerw/sai.
Primeiro, o fato de Jesus se comportar como judeu piedoso, e como tal não
ter uma atitude de rebeldia diante da Lei é muito claro. Seguindo esse raciocínio
somos levados a pensar que o cumprir dele está vinculado realmente às Escrituras
Hebraicas, especialmente a Lei e os Profetas, aos quais Jesus estava intimamente
relacionado. Mas esse cumprir não era realmente no sentido habitual, repetitivo,
que qualquer fariseu piedoso também seguiria. Em se tratando de Jesus, havia na
sua prática uma expressão mais profunda, que irrompia com o reino de Deus em
meio às pessoas, e assim anunciava o domínio pleno que a salvação de Deus traia
a todos, com o amor como centro da prática relacional.
Em segundo lugar, e interligado ao que afirmamos acima, não se pode
pensar no domínio de Deus sem pensar em seu juízo completo, o qual desde os
profetas manifestava a esperança de que os oprimidos alcançariam a misericórdia,
enquanto os opressores seriam destruídos. Pois é justamente com essa introdução
que começa o Sermão do Monte, quando Jesus afirma a herança do reino de Deus
para os pobres e mansos. Assim, o cumprir trás também uma idéia escatológica,
não somente no Jesus terreno, mas, sobretudo, no juízo que ainda se realizará. Ao
examinarmos o v.18, e sua afirmação sobre a terra e o céu, verificaremos a
exatidão dessa afirmação.
4.4.
Até que passem o céu e a terra: e[wj a'n pare,lqh| o` ouvrano.j kai. h` gh/
(v.18)
Até aqui a pesquisa nos tem levado a um entendimento de que Jesus foi um
judeu piedoso, e mais do que isso, como mestre foi também legislador. Mas de
igual modo percebemos que o dito de Mt 5,17-20 ganha uma dimensão
escatológica a partir da afirmação que tem sido interpretada como messiânica: “Eu
vim”. O versículo 18 demonstra ter a maior carga escatológica da perícope, e pode
auxiliar na compreensão do todo.
18
Em verdade vos digo: até que passem o céu e a terra, nem um iota (yod) ou um
pequeno sinal (qots) da Lei passará, sem que tudo aconteça.
4.4.1.
121
O sentido de avmh.n
A tônica do v.18 é a expressão “até que passem o céu e a terra” [e[wj a'n
pare,lqh| o` ouvrano.j kai. h` gh/], mas a frase se inicia com avmh.n [heb. !mea;]) . O termo
vem da raiz
!ma,
e quer dizer “ser firme”, “seguro”, “válido”, e pode ser
entendido como “ser autêntico, verdadeiro”. É traduzido na LXX como ge,noito,
“assim seja”. Quando era proferida por Jesus, o “amém” no início da frase
intensifica a afirmação seguinte. Como comenta Bauer: “em português, a palavra
de Jesus soaria mais ou menos assim: ‘Digo-vos com toda a seriedade’, ou ‘Digovos de uma vez para sempre’.437 O uso do “Amém” dessa maneira não tem
paralelo na literatura rabínica, nem mesmo na literatura cristã posterior, onde
sempre tem o sentido responsorial. Para alguns evidencia as ipsissima vox Iesu,
especialmente pelos textos preservarem a forma hebraica da expressão.438 Outros,
inclusive, enxergam nessa expressão uma estreita relação com ditos de cunho
escatológico, vinculadas à pregação do reino, 439 outros que Jesus empregará mais
a fórmula em seu ensino para corrigir noções rabínicas que obscureceram a
interpretação apropriada da Lei, como acontece em cada exemplo das antíteses.440
Dentro do contexto dos diferentes ditos de Jesus em que ele introduz a
fórmula “Em verdade vos digo”, podemos concluir que o dito do v.18 é
messiânico, e Jesus afirma toda sua autoridade perante a Lei e os Profetas. Se
antes ele afirmou que tinha vindo para cumprir a Lei e os Profetas, agora ele
admite a permanência e a validade das Escrituras por um tempo determinado, mas
que ainda não se concretizou. O que é expresso de forma negativa no v.17, é
expresso de forma positiva e ampliada no v.18 através da fórmula de autoridade
“em verdade vos digo”. Tudo indica que o uso freqüente dessa fórmula em
Mateus reflete o uso na sinagoga, no ambiente da comunidade.441
437
BAUER, “Amém”, Dicionário Bíblico-Teológico, p.10. Esse termo aparece, inclusive, em
todos os quatro evangelhos, com maior freqüência em Mateus e João (onde sempre aparece
duplicado, como fórmula litúrgica). Cf. Também RUSCONI, Dicionário do Grego do NT, p.47,
que aponta essa expressão como uma afirmação solene, para apresentar sua autoridade.
438
JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento, p.77 et.seq. Por ser sempre seguida da expressão
le,gw u`mi/n (Digo-vos, ou te), a única analogia possível em termos de conteúdo seria a “fórmula do
oráculo”, expressa pelos profetas: “assim diz o SENHOR”, traduzido pela LXX como ou[twj le,gei
ku,rioj a partir do heb. hw"±hy> rm:ôa'-hKo.) Também BAUER, “Amém”, DBT, p.10.
439
Cf. GNILKA, J., Jesus de Nazaré, p.238.
440
CHARLES, J.D., “Do not suppose that I have come”, p.58.
441
CHARLES, J.D., “Do not suppose that I have come”, p.58. Contra essa idéia, no entanto,
JEREMIAS, J., Teologia do Novo Testamento, p.78 et.seq. Na verdade, todas as evidências
apontam que tanto a sinagoga quanto a igreja cristã utilizavam o Amém de forma responsorial.
122
Seu uso evidencia a autoridade de Jesus frente à comunidade, como mestre
verdadeiro, cujo ensinamento devia ser seguido de forma absoluta. Além disso,
aponta o respeito por tradições de ditos que tivessem início com esse termo,
mantendo a afirmação na língua original, apenas transliterando para o grego.442
De certa forma, deve-se pensar na dependência que Mateus deu a esse dito
com o v.17, pois da forma como foi montado, considerando que os dois ditos são
de fontes independentes (M e Q), o peso maior está na afirmação de que Jesus
veio cumprir a Lei, para só então Jesus afirmar a permanência da Lei em si
mesma. É Jesus interpretando-a e atualizando-a que a torna permanente, de
fato.443
Na continuação do dito, no entanto, está a chave de leitura da perícope no
tocante à questão escatológica. E uma questão que transparece no próprio dito: até
quando se dará a permanência da Lei e dos Profetas? Até que passem o céu e a
terra, ou até que tudo se cumpra? Caso ambos os termos tenham o mesmo sentido,
cabe a mesma resposta, mas caso se trate de dois aspectos futuros diferentes,
como se resolve essa equação escatológica? Para responder a esse ponto, vamos
analisar a seguir a escatologia do texto.
4.4.2.
A escatologia no dito: o sentido de e[wj a'n pare,lqh| o` ouvrano.j kai. h` gh/
A compreensão da dimensão escatológica no dito de Mt 5,17-20 depende,
em primeiro lugar, de diferenciar escatologia e apocalíptica, depois ver o quanto a
pregação de Jesus tinha sentido escatológico, para então analisar a escatologia no
texto específico.
4.4.2.1.
Diferenciando escatologia e apocalíptica
O conceito de escatologia é bastante amplo, mas veio a ser posteriormente
um elemento bastante marcante no pensamento religioso popular dos judeus
contemporâneos a Jesus.444
O núcleo do conceito de escatologia, de acordo com a síntese de Corrêa
Lima, M. de L. sobre as crenças do Antigo Testamento, é: a “referência a um
442
Cf. Ibid., p.78.
Cf. BARBAGLIO, G., Os Evangelhos I, p.19.
444
Cf. MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.269-276; STEGEMANN, História Social
do Protocristianismo, p.171-176; GRELOT, A esperança judaica no tempo de Jesus, p.120-125.
443
123
tempo futuro”, que iniciará uma situação completa e definitiva; a “pressuposição
de uma mudança qualitativamente significativa, que implica uma descontinuidade
histórica grande”, ou seja, algo tão novo e diferente do que existe agora que
somente Deus pode levar a efeito; e a “centralidade de Israel”, como centro dos
acontecimentos, mesmo quando outros povos ou o mundo criado são incluídos nas
profecias.445 Ela ainda complementa a síntese indicando que na escatologia
profética vétero-testamentária deve haver elementos de juízo – como ponto final
da situação de pecado e punição dos injustos – e salvação – como um estado
totalmente novo e não sujeito a mudanças ou perdas, com a consumação da
relação salvífica entre Deus e o povo.446
No período pós-exílico, no entanto, o pensamento a respeito do reinado de
Deus se torna de tal maneira absoluto que só pode ser compreendido a partir de
uma ruptura total com a história presente. Isso está presente em alguns textos
proféticos (Mq 4,1-4 par Is 2,2-4; Is 33,17-22; Is 25,6-8; Zc 14,9). Em torno dessa
idéia está o termo Reino de Deus que “poderia, portanto, evocar expectativas de
vitória sobre os gentios e o estabelecimento de um reino eterno de Israel”.447
A escatologia, que até o exílio era exclusividade de categorias proféticas,
passa no pós-exílio a ser compartilhado pelo que é considerado por muitos como
sucessor da profecia: a apocalíptica. Segundo a definição de Theissen,
“apocalíptica é a expectativa de um mundo novo contida em escritos secretos de
revelação”.448 Aspecto importante para nossa pesquisa é a relação com a Torá:
enquanto os textos secretos preparam a comunidade para o tempo final, a
obediência à Torá é que “confere o direito de pertencer a ele pela ressurreição dos
mortos.”449
Assim, o período pós-exílico viu surgir uma corrente religiosa judaica com
vasto material literário, o apocaliptismo judaico. Esse movimento influenciou a
revolta macabaica, deu origem à comunidade dos essênios, e alimentou as revoltas
da guerra Romano-Judaica e mais tarde a revolta de Bar Kochba. Foi de fato um
fator decisivo em movimentos de “protesto, renovação e libertação em formas
445
CORRÊA LIMA, M. de L. Salvação entre juízo, conversão e graça, p.55. Os trechos em aspas
são referências diretas do texto da autora.
446
Id. Ibid., p.60 et.seq.
447
Cf. MERZ, A. e THEISSEN, G., op.cit., p.271.
448
Id, Ibid., p.272.
449
Idem.
124
posteriores tanto do judaísmo como do cristianismo.”450 Ele fortaleceu antigos
valores e inseriu novos, típicos do período posterior ao helenismo na Palestina.
Os escritos apocalípticos não se definem meramente escatológicos. Antes,
há neles uma presença próxima da esperança de mudanças. Enquanto a
escatologia trata de um futuro incerto e muitas vezes distante, a apocalíptica trata
da questão do juízo e salvação como algo prestes a acontecer. Aí está a diferença
fundamental entre os dois pensamentos, que já é perceptível no livro de Daniel,
único representante canônico do apocaliptismo. Há uma relação entre escatologia
e apocalíptica, mas nem toda escatologia é apocalíptica. A escatologia é uma
projeção de esperanças, que influenciam a forma de pensar a realidade, enquanto a
apocalíptica se apresenta como forma de explicar a realidade tendo como base
uma ação direta da parte de Deus. A apocalíptica também se tornou
posteriormente uma categoria literária diferenciada de outras como a profética,
sapiencial e outras.451
Conforme
é
possível
perceber
nos
textos
apocalípticos
judaicos
extracanônicos, a escatologia está presente na apocalíptica, indicada como um
discurso concreto, onde o futuro vem para pôr fim a ordem presente, e, na história,
iniciar o transcendente e definitivo.452
Considerando o pano de fundo do Antigo Testamento e dos escritos
apocalípticos existentes nesse período, notamos que a mentalidade popular estava
mergulhada numa predisposição para a escatologia. Isso se apresenta tanto na
pregação de João Batista como de outros grupos estruturados na Palestina,
especialmente na Galiléia.453 Horsley também afirma essa possibilidade, tratando
dos movimentos populares e messiânicos do primeiro século: “todos esses vários
tipos de movimentos ocorreram durante um período da história judaica em que
450
KOESTER, H. Introdução ao Novo Testamento 1, p.232.
Cf. CROSSAN, J. D. Em busca de Jesus, p.118. Ele afirma textualmente: “O reino escatológico
ou eutópico representa a sublime perfeição da aliança, e o apocalíptico realiza-se no iminente
advento do reino escatológico”.
452
Cf. MERZ, A. e THEISSEN, G., op.cit., p.273. Como exemplo, ele cita o Testamento de Dã
10,10-13, em que Deus vence Belial; 1 QM VI, 6, que trata da vitória dos filhos da luz; Ascensão
de Moisés 10,1ss, sobre uma vitória em cima dos perseguidores do povo de Deus; e Oráculos
Sibilinos 3,767, que trata de uma concepção universalista do reinado de Deus.
453
Cf. STEGEMANN, E. W. e W. História social do protocristianismo, p.173 et.seq. Segundo os
autores é possível situar o apocaliptismo dentro dos círculos assideus, que por sua vez, deram
origem aos essênios e fariseus.
451
125
aparentemente estava bastante difundido o espírito apocalíptico, pelo menos em
épocas de tensão e de conflito.”454
4.4.2.2.
A escatologia em Jesus
Até que ponto Jesus trabalhou com essas crenças? O ponto de partida para
perceber isso não é o próprio Jesus, mas João Batista. Desde que os textos de
Qumran foram divulgados ficou muito claro que João Batista pertenceu a esse
universo apocalíptico.455 Sua mensagem anunciava o juízo iminente de Deus
sobre Israel, e a necessidade deste se converter de seus maus caminhos.456 E seu
ministério foi de tal forma contundente que perdurou para além de sua morte.
Muitos de seus discípulos continuaram seu ministério; alguns se juntaram ao
movimento de Jesus, mas outros se mantiveram separados (conforme podemos
perceber em diversos textos: Mc 2,18-19; At 18,1-7; Jo 1,35-40; Mt 11,7-11).457
O fato de discípulos de João aderirem ao seguimento de Jesus é um indício
de que a mensagem deste era, em muitos aspectos, similar à daquele. Apesar do
forte helenismo presente na Palestina, Jesus tem uma pregação inspirada na
apocalíptica, mas não influenciada pelo helenismo, assim como João.458 No
entanto, é importante frisar que Jesus não repetiu acriticamente a mentalidade
apocalíptica de seu tempo. Ele nem assumiu o papel de Profeta Escatológico, nem
uma messianidade aberta. E quando foi perguntado acerca da vinda do reino de
Deus, sobre o tempo em que se daria, respondeu: “O reino de Deus não vem com
aparência exterior. Nem dirão: Ei-lo aqui, ou: Ei-lo ali; porque eis que o reino de
Deus está entre vós.” (Lc 17,20-21). Sua evasiva desloca-o de um papel
meramente futurista.459
454
HORSLEY, R. Bandidos, Profetas e Messias, p. 212. No entanto, ele afirma a dificuldade de
termos acesso a evidência direta desse fenômeno junto a movimentos populares, porque as fontes
que temos, em especial Josefo, evitam propagar as idéias correntes do judaísmo palestinense.
CROSSAN também aponta para esse problema. Em busca de Jesus, p.152.
455
Cf. FLUSSER, Jesus, p.215 et.seq.
456
Cf. CROSSAN, J.D. op.cit. p.153.
457
Cf. KOESTER, Introdução ao Novo Testamento 2, p.84.
458
Cf. RICHARD. P., Apocalipse, reconstrução da esperança, p.41.
459
Cf. GRELOT, A esperança judaica no tempo de Jesus, p.122 et.seq.
126
Mas, sem dúvida, a pregação de Jesus está vinculada a uma mensagem
escatológica.460 Mesmo considerando a interpretação existencialista de Bultmann,
podemos citar sua clássica exposição:
O conceito predominante da pregação de Jesus é o do reinado de Deus (basilei,a
tou/ qeou/). Jesus anuncia sua irrupção imediatamente iminente, que se manifesta já
agora. O reinado de Deus é um conceito escatológico. Ele se refere ao governo de
Deus que põe termo ao atual curso do mundo, que destrói tudo o que é contrário a
Deus, tudo o que é satânico, tudo o que agora faz o mundo gemer, e, pondo desse
modo um fim a todo sofrimento e dor, estabelece a salvação para o povo de Deus
que espera pelo cumprimento das promessas proféticas. A vinda do reino de Deus é
um evento maravilhoso, que se realiza sem contribuição humana, unicamente por
iniciativa de Deus. Com essa pregação Jesus se encontra no contexto histórico da
expectativa judaica do fim e do futuro.461
Com respeito à iminência da vinda do reino de Deus, Vermes entende que
se havia em Jesus realmente essa expectativa, então essa convicção guiava todas
as suas ações, ensino e a própria natureza de sua devoção religiosa. Jesus, como
judeu piedoso, não tinha uma tranqüilidade escatológica – em que o futuro
estivesse garantido para o grupo fiel – mas sim um entusiasmo escatológico – que
exige ruptura total com o passado, colocando seu foco na ação do presente, e
pensando não em termos de uma fidelidade do grupo, mas individual.462
Flusser considera ainda que Jesus definiu a escatologia – que ele identifica
com a história da salvação - numa estrutura tripartida, em que aparecem a
escatologia realizada e a futura:
O primeiro período foi o “bíblico” que culminou com a carreira de João Batista. O
segundo teve início com seu próprio ministério, no qual o reino do céu irrompia. O
460
Sobre os diferentes pontos de vista a respeito da escatologia, MERZ, A. E THEISSEN, G.,
op.cit., p.265-302; STAUDINGER, “Reino de Deus”, Dicionário Bíblico Teológico, p.364-368.
Recentemente, vários autores retomaram a perspectiva de uma escatologia futura para a mensagem
de Jesus, a partir da idéia da vinda do Messias e da relação escatologia-apocalíptica. Ver Também
a discussão sobre a interpretação acerca da vinda do reino de Deus, ZABATIERO, “basilei,a”,
Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.2036-2045.
461
BULTMANN, R., Teologia do Novo Testamento, p.41. Concordam com essa perspectiva
JEREMIAS, J., Teologia do Novo Testamento, p.166; MEIER, Um judeu marginal, p.77 et.seq.
Ele chega a afirmar: “há dez ou vinte anos não teria sido necessário repisar os ensinamentos de
Jesus sobre um reino escatológico futuro. (...) Em anos recentes, alguns estudiosos têm
questionado o ponto de vista segundo o qual Jesus pregava a respeito de um reino escatológico que
haveria de chegar em breve.” P.79. Uma pesquisa que ignora essa perspectiva é a de CROSSAN,
J.D., O Jesus Histórico, onde ele conceitua escatologia como “negação do mundo em geral, que
pode incluir desde a escatologia apocalíptica (...), passando pelos seus modelos místicos e
utópicos, até chegar às possibilidades ascéticas, libertárias ou anarquistas.” P.274.
462
VERMES, G., A religião de Jesus, o judeu, p.175. Ele explica a origem do termo entusiasmo
escatológico: “a expressão é uma tradução livre do ‘entusiasmo da presença escatológica’
(Enthusiasmus eschatologischer Gegenwärtigkeit) de Martin Buber, cunhado em Zwei
Glaubesweisen (1959) em Werke I (1962), 707.” p.174. J. ROLOFF aponta essa expectativa como
uma marca de Mateus e sua comunidade. A Igreja no Novo Testamento, p.176
127
terceiro período será inaugurado com o advento do Filho do Homem e do Último
Julgamento, num tempo futuro que é desconhecido por todos.463
Se considerarmos as exposições acima, chegaremos à conclusão que a
pregação de Jesus não somente é escatológica, como também está alinhada aos
valores judaicos relativos às profecias de salvação.464 Mas, até que ponto o dito de
Mt 5,17-20, e especialmente a expressão “até que passem o céu e a terra” se
coaduna com o conceito de escatologia que foram apontados? Até que ponto é um
dito escatológico?
4.4.2.3.
A escatologia no dito
Para fazer essa análise a respeito da escatologia no dito, vamos nos ater
temporariamente ao versículo 18 em si, desconectado da perícope, ou seja,
perceber um pouco de seu sentido a partir de seu material original, a fonte Q. O
pesquisador B. L. Mack analisou o material de Q numa perspectiva diferente das
demais, tentando chegar a um grupo social e religioso definido: a “comunidade de
Q”.465 O material de Q foi dividido pela pesquisa em três camadas: a mais antiga
(Q1), a intermediária, que mostra uma mudança ideológica na comunidade (Q2), e
a mais recente, que é feita de acréscimos nas demais, na mesma linha ideológica
de Q2 (Q3).
Para Mack, Mateus pode ter feito parte da comunidade de Q, e elaborou seu
material a partir dos ensinos de Q em diálogo com o já conhecido evangelho de
Marcos. Mas Mateus deu uma nova dinâmica na história de Jesus, também por
meio de material exclusivo, e pelo qual ele projetou um Jesus mestre, conectado
com as grandes tradições de Israel, e o mais importante, com ensinamentos que
463
FLUSSER, D. op.cit. p.218. Essa distinção também é indicada por KÜMMEL, Síntese
Teológica do Novo Testamento, p.53-60; e MERZ, A. e THEISSEN, G. op.cit., p.298 et.seq.
464
Mesmo considerando que “as crenças populares não eram, à época, de forma alguma
uniformes, em matéria de escatologia e messianismo”. GRELOT, P., A esperança judaica no
tempo de Jesus, p.125.
465
MACK, O livro de Q, p.117 passim. A tese do autor, baseado na análise dos ditos de Q de
Kloppenborg, parte da pressuposição que o material de Q hoje nos evangelhos de Mt e Lc era
originariamente um documento que já continha elementos redacionais, e que pode ser dividido em
três camadas, sendo a mais antiga Q1, e assim por diante. O estudo dessa camada mais antiga
concluiu se tratar de uma comunidade de indigentes, que criticavam duramente a ordem social
vigente, mas não tinham nenhuma pretensão escatológica, nem se articulavam em termos
apocalípticos. As camadas mais recentes, no entanto, inseriram a figura de João, e elementos
típicos da mentalidade popular em termos apocalípticos. Assim, tudo indica que passados alguns
anos da experiência original, a comunidade mais primitiva de seguidores de Jesus se uniu a
comunidades mais ortodoxas do ponto de vista de crenças e expectativas. Os evangelhos seriam
reflexos dessa segunda experiência, e não da comunidade original seguidora de Jesus, apontado
como filósofo cínico, segundo a análise do material de Q1.
128
“captavam as melhores intenções das normas éticas judaicas baseadas na Torá, e
tornavam-nas acessíveis até para os gentios.”466
Em relação à perícope, Mack assume uma posição mais ortodoxa: Mateus
teria inserido material de Q em blocos distintos, juntamente com material próprio.
O Sermão do Monte foi um desses blocos, onde trabalhou a questão da Lei. Sobre
isso Mack sintetiza:
O ponto de comparação entre a lei e os ensinamentos de Jesus é que o ensinamento
de Jesus atinge o cerne daquilo que a lei de Moisés pretendia. Para Mateus, a
devoção apropriada era uma questão de atitude, perfeição de espírito e controle da
vontade. Mateus tinha lido Q e desejava que seus leitores compreendessem as
sentenças de Q como instruções sobre as intenções éticas da lei judaica. Ele achava
que os ensinamentos de Jesus funcionavam de modo a resolver a confusão
provocada pelo fim do segundo estado templário, validando a lei de Moisés como
aquilo que permaneceu constante enquanto o resto desabava. Mateus dizia que
Jesus “cumpria” as promessas e as previsões da épica de Israel.467
Contra essa visão de Mack encontramos Oporto, que também analisou Q e
demonstrou que já na primeira metade do século XX a fonte Q começava a ser
vista como um documento que, existindo ou não em forma literária, influenciou
Mateus e Lucas em suas composições do Evangelho. Mas as diferenças entre Q de
Mt e de Lc podem ser explicadas inclusive com a possibilidade de várias versões
do documento.468
Passemos a análise do dito sobre o céu e a terra do v.18469, a partir do lugar
onde Mack e Oporto o situaram no documento Q, para tentar chegar ao nosso
objetivo de identificar ou não uma interpretação escatológica para o verso. Mack
coloca o dito como “regras para a comunidade”470, e o insere na camada de Q3.
Considerando que essa camada segue a mesma linha ideológica de Q2, na análise
de Mack, e que essas duas camadas estão marcadas por pensamento apocalíptico
466
Ibid., p.176 et.seq. Pelo fato do evangelho de Mateus ter se destacado na Igreja Antiga, Mack
considera que Mateus “sepultou Q na imagem fictícia de Jesus como sábio judeu.” P.179.
467
Ibid.,, p.178. A análise de Mack parte da premissa do texto como construção de Mateus, na
linha de Overman e outros. Só esse aspecto já nos coloca em perspectivas diferentes em relação ao
texto.
468
OPORTO, Ditos primitivos de Jesus, p.14 passim. Segundo ele, hoje se trabalha com a hipótese
de que o documento Q tenha existido em forma escrita, sem se menosprezar o valor da tradição
oral, que é anterior a ele.
469
Na verdade, ambos seguem mais a ordem lucana dos disto de Q. Isso foi feito pelo fato de se
considerar que Lucas respeitou mais suas fontes – em termos de ordem do texto – do que Mt. É
possível constatar isso comparando Mt, Mc e Lc, onde este é muito mais fiel à fonte de Mc que o
primeiro. Assim, por dedução, acredita-se que Lc tenha respeitado a ordem do documento Q, se
considerarmos também que existiu esse documento manuscrito. Ibid., p.26 et.seq.
470
Cf. MACK, O livro de Q, p.98.
129
misturado ao movimento da sabedoria, temos então um indício de um dito
escatológico.
Oporto insere na seção “o reino de Deus está dentro de vós (Q 16,1317,21)”471, e não diferencia camadas literárias entre os ditos. Para ele esse dito faz
parte de um grupo cujo núcleo comum é voltado para os de dentro da
comunidade. A partir de alguns critérios de análise do bloco,472 a conclusão de
Oporto é que “destaca-se a radicalidade da opção por Deus, que exclui todo tipo
de compromisso com este mundo e fundamenta um comportamento novo.”473
Podemos afirmar que essa interpretação é escatológica? Talvez sim, considerando
que o não compromisso com esse mundo nos levaria a uma expectativa de outro,
futuro.
A conclusão até aqui é que, analisando a expressão “até que passem o céu e
a terra” dentro da perspectiva do documento Q, ele tem um caráter escatológico
sem, no entanto, deixar isso evidente. A escatologia nesse caso parece ser um
pano de fundo, o cenário contextual – seja da pregação de Jesus, seja da
comunidade de Mateus – como afirmado acima. Será que a exegese desse dito,
feita à luz da perícope, nos ajuda a afirmar seu caráter escatológico? Vejamos a
partir de uma análise literária, dentro do contexto do evangelho como um todo.
O verbo ge,nhtai é usado com freqüência em Mateus, além de 5,18. Aparece
com o sentido de “tornar-se” ou “tornar” em 10,25; 18,13; 23,15; 23,26; 24,32;
“tiver” em 18,12; “nascer” em 21,19; “aconteça” ou “acontecer” em 24,20; 24,21;
24,34; “suceder” em 26,5. Considerando o conteúdo das passagens, o texto de
24,34 é o que mais tem relação com 5,18.474 Em ambos os textos aparece a
expressão “até (sem) que tudo aconteça”.475 [e[wj a'n pa,nta (tau/ta) ge,nhtaiÅ]. O
471
CF. OPORTO, op.cit., p.43.
OPORTO explica os critérios desse modo: “os estudos redacionais de Q descobriram uma série
de recursos que serviram para agrupar e relacionar ditos ou composições originalmente
independentes. Esses recursos podem ser formais, como a repetição do mesmo esquema, a
colocação de certos elementos no início ou no final de uma seção etc.; ou de conteúdo, como a
aparição recorrente de alguns temas (...).” Ibid., p.31.
473
Ibid., p.44.
474
Cf. apontado pela sinopse de BENOIT, P., BOISMARD, M. F., Synopse des quatre evangiles.
Curioso é que o verbo ge,nhtai está sempre numa fala de Jesus, com exceção de 26,5, quando as
autoridades usam esse verbo.
475
Que é a tradução para 5,18 também em nossa exegese, cf. vimos na análise textual e tradução.
A dificuldade, na exegese, está no doublé de “até que”, cf. discussão em TRILLING, W., El
verdadeiro Israel, p.241 et.seq.
472
130
fato de 24,34 estar inserido num discurso profético, com aspectos escatológicos,
fortalece em grande parte a idéia da escatologia em 5,18.476
O verso seguinte também tem um conteúdo muito próximo de 5,18: é a
afirmação de que “o céu e a terra passarão, mas a minha palavra não passará” [o`
ouvrano.j kai. h` gh/ pareleu,setai( oi` de. lo,goi mou ouv mh. pare,lqwsinÅ]. Esse dito
afirma a autoridade de Jesus e sua palavra, de forma que as palavras de Jesus são
permanentes como a própria Lei, e tem correlação de termos com o v.18, no verbo
[pare,lqh|], que pode ser traduzido por “passar por”, “vir”, “transcorrer”.477 Isso
indica a garantia de que as profecias irão valer pelo tempo que for necessário.478
O dito sobre a validade da Lei e dos Profetas tem ainda uma correlação com
outro texto de Mateus, em 11,13: “Porque todos os profetas e a lei profetizaram
até João” [pa,ntej ga.r oi` profh/tai kai. o` no,moj e[wj VIwa,nnou evprofh,teusan\].479
Esse texto indica o fato da Lei e os Profetas terem sua validade até a chegada de
João, seja pelo cumprimento, seja porque ele representa o fim do tempo
profético.480 Para tanto é preciso que toda a Lei, e cada aspecto dela tenha valor.
Mas, como conciliar o fato de que nem um pequeno “iota” vai perder seu
valor, se o próprio Jesus faz uma revisão da Lei (de acordo com as antíteses de
476
Cf. BANKS, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.235 et.seq. A dificuldade está em
torno da expressão “essa geração” [h` genea. au[th] que será testemunha dessas coisas. Se
considerarmos a geração de Jesus, então o sermão profético nem mesmo deve ser encarado como
escatológico, quando muito contendo elementos apocalípticos (cf. vv.27-31). A maneira de ver
realmente como dito escatológico dependeria de uma interpretação dessa geração como a
humanidade como um todo. A verdade é que no sermão presente (passado, na verdade, se
pensarmos na destruição de Jerusalém ocorrida antes da redação do evangelho) e futuro estão em
tensão nesse texto. Ver BARBAGLIO, G., Os Evangelhos I, p.347 passim, esp.358-359; No
entanto, CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.596, interpreta como sendo a geração do
tempo de Jesus, mesmo considerando que o sermão trate de passado, presente e futuro (p.581),
como Também. MATEOS e CAMACHO, O evangelho de Mateus, p.274. Para eles a geração de
Jesus viu a inauguração do reino de Deus, e a profecia tem o sentido de trazer esperança, não
medo. Com isso ganha o caráter de texto apocalíptico, não escatológico. J. MALDONADO
considera um hebraísmo que significa o gênero humano. Comentario a los cuatro Evangelios,
p.439.
477
Cf. RUSCONI, C., Dicionário do Grego do NT, p.357.
478
VERMES, G., O Evangelho Autêntico de Jesus, p.342. Ele entende que a “admoestação sobre
cronologias escatológicas e sinais premonitórios, também pertence ao núcleo da mensagem
autêntica de Jesus.” Esse dito consta em todos os sinóticos, e nos remonta a Is 40,8: “Seca-se a
erva, e cai a flor, porém a palavra de nosso Deus subsiste eternamente”. FLUSSER considera que
essa afirmação em Mt 24,34-35 seria a original e a as expressões em 5,17 e 18 foram inseridas lá
por Mateus, devido sua aparência “externa” com 24,34-35. Jesus, p.50.
479
Cf. VERMES, op.cit., p.401. Ele relaciona esse dito com o sermão profético Mt 24, “Minha
palavras não passarão”, ou seja, Mt veria no ensino de Jesus a nova Torá, com duração
permanente. Também verificar uma possível contradição, por conta da pressão da parte não
judaica da comunidade, quando se compara com Mt 11,13: “Porque todos os profetas e a lei
profetizaram até João”.
480
Cf. CARTER, W. O Evangelho de São Mateus, p.327. et.seq.; FLUSSER, Jesus, p.111 et.seq.
131
21-48)? Para entender bem o sentido do v.18, é preciso explicá-lo pelo seu
precedente, e não pelo seguinte. O dito do v.17 não trata de acréscimos ou
adições, mas de aperfeiçoamento, ou seja, um desenvolvimento.481 Mateus
trabalha com a forma alterada de Lucas, o qual apontou para a permanência
absoluta da Lei. Ao citar o iota e o til, fica claro que está pensando em termos de
redação e conteúdo. Para ele a interpretação do v. 18 depende do sentido do v.17,
por causa da partícula “porque” [ga,r].482
Banks prefere considerar o centro do dito na expressão “nem um yod nem
um qots (til)”, que mostra a continuidade da validade da Lei nos menores
detalhes.483 Essa validade, porém, está atrelada às duas cláusulas temporais que
antecedem e seguem ao ponto central. Por isso o centro do versículo está na
expressão “até que passem o céu e a terra”. Muitos consideram deve ser
interpretada como uma expressão idiomática que na verdade significa “nunca”.
Para outros, como uma expressão que indica que a Lei só vale durante a presente
era. Mas nenhuma das duas interpretações sintetiza totalmente o sentido da
expressão; como demonstra a análise feita a partir do paralelo de Lc 16,17, é uma
figura de retórica que demonstra o quão difícil é que a Lei perca sua validade.484
Por isso, há quem afirme que se trata de uma escatologia “oculta” no sermão
do monte, como Bornkamm: “as exigências de Jesus trazem em si mesmas ‘as
coisas últimas’, sem que precisem obter sua validade e urgência da candência dos
quadros apocalípticos. Elas próprias conduzem até os limites deste mundo, mas
não descrevem seu fim.”485
Quem também trata da expressão como figura de linguagem é Charles, para
quem as declarações de Jesus em 5,18-19 empregam a hipérbole. O uso de termos
que apontam para detalhes atende a certas expectativas das escolas rabínicas, onde
o estudo se dá pelas minúcias. Colocando em termos apocalípticos, a passagem
dos céus e da terra (cf. Mt 24, onde ele se manifesta), Jesus afirma a natureza
481
LAGRANGE, Évangile selon Saint Matthieu, p. 95. Ela completa, comparando a Lei com uma
semente. A Lei muda da mesma forma como uma semente muda, quando uma pequena molécula
dela se modifica, e gera o fruto. Nenhum de seus elementos deve cair antes que a obra de Deus
seja concluída. Não se trata de uma defesa dos mandamentos de forma exterior, seja o menor
deles, mas é o princípio novo que regula o todo. Não há nada na Lei, que tenha um propósito de
conclusão, e que deva permanecer até o fim do mundo.
482
TRILLING, W., El verdadeiro Israel, p.242 et.seq.
483
Cf. Também VERMES, A religião de Jesus, o Judeu, p.26; FITZMEYER, Comentário Bíblico
“San Jerônimo”, p.185.
484
BANKS, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.233 et.seq.
485
BORNKAMM, G., Jesus de Nazaré, p.183.
132
duradoura do padrão ético. Além disso, os menores aspectos da obrigação ética
permanecem, falando em termos apocalípticos, até que o novo céu e terra
apareçam. Por que, aos olhos de Mateus, Jesus é tão duro quanto aos menores
detalhes da Lei como permanentes? E por que essa preocupação assemelha-se a
noções legais contemporâneas?
O discurso hiperbólico utiliza exageros para
causar efeito, e o efeito é para enfatizar durabilidade.486
Por isso, as duas partes do versículo que expressam uma possível
escatologia não podem se referir ao mesmo assunto, pois se assim fosse seria uma
redundância no texto. Não deve ser interpretado também como “até que tudo seja
realizado”, seja pela realização das profecias, seja pela observância da Lei.
Mesmo os pequenos traços devem responder à vontade de Deus, que tem a
intenção da Lei como uma grande unidade.487 A interpretação pode estar
vinculada ao princípio do “amor e mutualismo”, que tornam a Lei válida e
permanente.488
A favor da escatologia no texto, pode-se pensar que mesmo a morte e a
ressurreição não revogaram a Lei. O Sentido então é escatológico, pois aponta
para uma consumação final, “até que a terra e o céu passem.”489 Entretanto, alguns
apontam que há uma dificuldade no texto no tocante à repetição de expressões; e
por isso não seria possível pensar como uma expressão escatológica, mas como o
cumprimento de toda a vontade de Deus em Jesus Cristo.490
Contra ela, no entanto, Charles comenta que muitos interpretam as palavras
“até que tudo aconteça” à luz do interesse escatológico de Mateus em outras
partes, como se tratasse da morte e ressurreição, à Igreja, ou à Parousia. A
linguagem apocalíptica nos obriga, no entanto, a entender “tudo” em termos da
validade permanente e não escatológica da história da salvação.491
486
CHARLES, “Do not suppose that I have come”, p.58.
LAGRANGE, M., Évangile selon Saint Matthieu, p.95. Quanto à segunda cláusula temporal,
“até que tudo aconteça”, Banks aponta três formas de serem interpretadas: (a) como evento
escatológico que põe fim a essa era; (b) a realização da Lei ou da vontade de Deus; (c) o
cumprimento das Escrituras do AT na pessoa e obra de Cristo.
488
Cf. OVERMAN, A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.94.
489
Cf. MARGUERAT, D., Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.129.
490
BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.147; 70. Essa interpretação concorda
com Sab de Salomão 18,4, Baruc 4,1.4; Esdras 9,37, que falam da força permanente da Lei, sem
haver nos textos aspectos de escatologia. J. GNILKA lembra que “uma antiga determinação
cristológica identifica Jesus com a Sabedoria divina”. Jesus de Nazaré, p.239.
491
CHARLES, J.D. “Do not suppose that I have come”, p. 58.
487
133
Para Kümmel, no entanto, a expressão “eu vim”, e o dito contextualizado no
Sermão do Monte aponta para o fato de Jesus saber bem o significado de sua
vinda e, em geral, perceber sua missão em termos escatológicos, no plano da
salvação.492
Barth justifica sua posição, afirmando que Mateus adota a idéia do sacrifício
de Cristo e o interpreta como a graça está na verdade estabelecendo o juízo, a
justiça de Deus. Em sua vida e morte Jesus cumpriu obedientemente toda justiça,
aqui para Mateus a Lei não pode ser abolida. Ele realiza isso também por meio de
seu ensino, e sua atitude como o servo humilde, que cumpre toda justiça no lugar
dos pecadores, ao mesmo tempo em que intenta estabelecer o juízo de Deus.
Nesse caso vale também a premissa dualista juízo/salvação das profecias do
Antigo Testamento.493
Numa linha intermediária, Vermes entende que, considerando a idéia de
Jesus sobre a vinda do reino – de forma iminente – e como ele desprezava
preocupações por tempos e épocas494, dando maior importância ao valor do tempo
vivido hoje495, a observância da Lei é fundamental para manter a fidelidade a
Deus. Nesse sentido, “o que ele se esforçou em enfatizar era a devoção interior
para o devoto individual do Reino do céu. Em resumo, ele adotou, intensificou e
tentou corajosamente injetar no judaísmo do povo comum o magnífico
ensinamento profético da religião do coração.”496 Seria essa uma escatologia
realizada, ou uma expectativa escatológica iluminando o presente?
Do ponto de vista da comunidade, Barth entende que Mateus está
preocupado em responder ao grupo conservador da comunidade em sua defesa da
Lei. Assim, é uma luta que permanece, mesmo com as mudanças e dificuldades
enfrentadas após os anos 70 d.C. Transparece então que o evangelista foi
envolvido nessa luta contra os que desejavam abolir a Lei, em oposição com
aqueles que achavam que ele devia enfatizar a validade da Lei.
A pergunta pelo motivo da Lei existir cabe nesse contexto, e Mateus
consegue fazê-la, numa perspectiva cristológica. O mesmo não se dá no judaísmo,
pois ele pode perguntar por que o mundo foi criado e pode responder: por causa
492
KÜMMEL, W.G., Síntese teológica do Novo Testamento, p.77; 92.
BARTH, G. op.cit., p.149.
494
Cf. Lc 17,20; Lc 12,16-21.
495
Cf. Mt 6,33ss; Lc 12,31.
496
VERMES, G., A religião de Jesus, o Judeu, p.177 et.seq.
493
134
da Lei; mas ele não pergunta por que a Lei existe. A resposta de Mateus é: ela é
um instrumento da execução escatológica da vontade de Deus, que é a obra de
Cristo. Isto é, apesar da Lei apontar para a vontade de Deus, ela não é o mesmo
que a vontade de Deus, que é realizada através da obra de Cristo; a vontade de
Deus é superior à Lei como objetivo, a Lei serve a ela. 497
Ao comentar a cláusula temporal do dito “até que tudo aconteça”, Vermes
aponta que considerada separadamente, essa expressão pode indicar simplesmente
a “natureza continuamente obrigatória da Torá”, e assim as necessidades da Igreja
palestina estariam resolvidas. De outro lado, pensando na Igreja gentia, a
interpretação dessa cláusula está interligada a Mt 11,13: “Porque todos os profetas
e a lei profetizaram até João.” Assim também se deveria interpretar o v.17, como
cumprimento das profecias. No entanto, contrariando uma ou outra possibilidade,
o fato é que em Jesus a Lei tinha sentido duradouro, e o dito, sendo autêntico,
retrata uma religiosidade fiel aos valores tradicionais israelita, em especial a
Torá.498
4.4.3.
Síntese conclusiva sobre a escatologia no dito
Da forma como a perícope se apresenta em Mt 5,17-20, deve ser
considerado escatológico? Em nossa opinião a perícope é mais do que figura de
linguagem, e deve ser entendido no sentido escatológico sim, tomando por base
alguns aspectos já apontados anteriormente:
§ O versículo 18, proveniente de Q, faz parte de uma camada mais
elaborada, que tem o pensamento escatológico como base teológica.
§ O comportamento novo que se exige da comunidade tem como horizonte
a entrada no reino dos Céus, que faz parte da escatologia futura da pregação de
Jesus.
§ A idéia de afirmar a passagem dos céus e da terra está diretamente ligada
à passagem do tempo presente, deste éon. Jesus tinha essa mentalidade
escatológico-apocalíptica de dois éons, o agora e o futuro.
497
BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.148. Cf. Gênesis Rabba, § 1. “R.
Bannaah said: the world and what it contains was created only for the sake of the law.” G.N.
STANTON chega a se posicionar sobre o assunto, entendendo que, caso se leia “até que tudo se
cumpra”, se referindo a Jesus, então o que não se pode deixar de cumprir são as palavras de Jesus e
não a Lei. A Gospel for a new People, p.300.
498
VERMES, A religião de Jesus, o Judeu, p.26 et.seq.
135
§ A validade da Lei no dito está vinculada a cláusulas temporais, que
indicam na verdade sua eternidade.
§ Mateus também compartilha dessa idéia escatológica. Não dá a ela
apenas uso metafórico, mas pensa em termos futuros, pois associa-a à vinda do
Filho do Homem, que julgará a toda a humanidade (especialmente os capítulos 24
e 25).
§ Além disso, o cumprimento pessoal de Jesus de todos os aspectos da
vontade divina e da Lei que a expressa não encerrou o tempo presente, a história
atual, indicando uma reserva escatológica no texto.
§ Concluindo, a Igreja, comunidade de Cristo no mundo, continua a
observância da vontade de Deus – a Lei – como antecipação e condição para a
participação no reino dos Céus que cumprirá efetivamente a palavra de Jesus.
4.5.
O menor e o maior no reino dos Céus: evla,cistoj kai, me,gaj evn th/| basilei,a|
tw/n ouvranw/n (v.19)
Depois de afirmar a escatologia no texto, que indica a validade permanente
da Lei, temos um dito em que Jesus se dirige aos discípulos e seu compromisso
com o ensino e prática da Lei. O v.19 – material exclusivo de M – continua a idéia
central da perícope, e tanto pode ser analisado em relação direta com o v.18, por
seu conteúdo, 499 quanto em relação ao v.17, por sua estrutura antitética.500
19
Portanto, qualquer um que violar o menor dos mandamentos, mesmo que
insignificante, e assim ensinar às pessoas, será chamado o menor no reino dos
céus; aquele que observar e ensinar, será chamado o maior no reino dos céus.
A estrutura do dito é diferente dos demais. R. Bultmann já apontou que o
dito faz parte do conjunto de palavras jurídicas e regras da comunidade, e o v. 19
demonstra claramente que o sentido de “anular” e “cumprir” do v.17 está
diretamente relacionado à prática concreta da comunidade.501 Por outro lado,
Bultmann considera que o v. 19 forma, junto com o v.10, uma grande introdução
499
Cf. BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.65s. LAGRANGE, M., Évangile
selon Saint Matthieu, p.95.
500
JEREMIAS, J., Teologia do NT, p.47. A questão literária e redacional foi pontuada no cap. 2,
por isso aqui trabalharemos somente com as conclusões, com o objetivo de interpretar o sentido do
texto.
501
BULTMANN, L’historie de la tradition synoptique, p.176.
136
para as antíteses, a partir de fontes diversas.
502
W. Trilling considera que o v.19
forma uma unidade com o v.18, e assim se ente e explica melhor. Ou o v.19 foi
escrito para comentar o v.18, ou o v.18, em sua forma atual, pode ser considerado
uma unidade de tradição fechada.503 O dito tem uma estrutura jurídica bastante
forte, e que encontram fundamento na tradição de Mateus, bem como em sua
redação. Um exemplo é 12,32, um dito que combinou a tradição de Mc (Mc 3,29)
com a fonte Q (Lc 12,10), e se tornou um refrão colocado harmonicamente. Da
mesma forma as sentenças sobre o “atar” e “desatar” (16,19; 18,18), o que indica
que a forma de pensamento que está por trás do dito é tipicamente judaicorabínica.504
A quem o dito foi dirigido, já que sua linguagem é bastante concreta e
prática? Há várias maneiras de se interpretar a questão. O dito pode ter sido
colocado visando os helenistas, talvez o próprio Paulo,505 ou ter sido criado no
conflito entre a Igreja judeu-cristã e setores da Igreja que mostraram descaso com
a Lei, em sua observância mais estrita. Seria uma posição mais conservadora da
comunidade, que coloca em Jesus a normativa de prática.506 Outra possibilidade é
dele fazer a distinção entre a comunidade de Mateus (que guarda e ensina os
mandamentos) e a liderança judaica (que viola e ensina, cf. 23,3.23). A
comunidade cumpre quando aplica os princípios de amor e misericórdia,
ensinados e praticados por Jesus.507 Ou ser dirigida a setores que tiveram uma
atitude mais liberal em relação à Lei de Moisés, e que foram entendidos como
negligentes pela comunidade judeu-cristã da Palestina, à qual Mateus se
reporta.508
502
Ibid., p.546. Esse material está unido a um grupo de palavras de natureza um tanto diversa.
Trata-se das que não exprimem, de maneira alguma, uma tomada de posição em relação à Lei
vétero-testamentária, mas que contém prescrições para a comunidade cristã, cf. op.cit. p.176.
503
TRILLING, W., El verdadeiro Israel, p.257 et.seq. No entanto, el aponta que os resultados da
pesquisa realizada até hoje não falam a favor de nenhuma das duas interpretações.
504
Ibid., p.258.
505
BULTMANN, R. Teologia do Novo Testamento, p.98.
506
BARBAGLIO, G., Os Evangelhos I, p.119. Para que não se entenda de forma puramente
legalista, o v.20 clareia o sentido dessa observância por parte dos discípulos.
507
OVERMAN, A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.94; ZUMSTEIN, J.,
Mateus o Teólogo, p.48.
508
LAGRANGE, M., Évangile selon Saint Matthieu, p.95 et.seq. Mas para isso v. 19 deve tratar
de mandamentos específicos, e não da Lei como um todo. Como Também Trilling, que avalia que
ordem de obedecer, e ensinar, a todos os mandamentos demonstra que há uma unidade em todos, e
expressam a vontade de Deus. Assim, é uma resposta a uma doutrina mais liberal, que não
considerava determinados preceitos da Lei obrigatórios. TRILLING, W., El verdadeiro Israel,
p.258 et.seq. Também BORNKAMM, G., Jesus de Nazaré, p.167.
137
R. Banks, a favor da idéia de setores internos da comunidade, considera que
o dito tem por alvo um determinado grupo “carismático” de judeu-cristãos para
quem ele escreveu. Existe uma forte possibilidade, nesse caso, de que Mateus
tenha interpretado e aplicado o dito de 5,19 de um modo similar. O melhor modo
de entender o “menor dos mandamentos” é pensar nas orientações concretas de
Jesus para a comunidade, a partir de sua própria prática. Assim, o contexto
original do dito seria o próprio ministério de Jesus, o qual, com sua interpretação e
atitude em relação à Lei, deixou o exemplo para os seus discípulos, que deveriam
segui-lo completamente.509
P. Bonnard, por outro lado, considera que v.19 repete e intensifica o v.18, o
qual tem relação com Lc 16,17. A dificuldade está em enquadrar o próprio Jesus
nessa ordenança, pois é possível ver no evangelho o fato dele não observar as
menores prescrições legais vétero-testamentárias de forma meticulosa, sobretudo
aquelas referentes ao sábado e à pureza ritual. Por isso alguns supõem que o dito
de fato se origine de setores judaizantes da comunidade (crentes fiéis à Lei de
acordo com o ensino rabínico ou fariseu) que Mateus integrou no texto. Disso se
compreende que é uma maneira de ver a Lei tipicamente rabínica, e sublinhar a
sua permanente e absoluta autoridade, mas a partir da interpretação de Jesus, e que
o dito do v.18 “até que tudo aconteça”, nem se refere à morte de Jesus na cruz,
nem ao pleno cumprimento dos discípulos, mas ao fim do mundo.510 As diferentes
análises demonstram que havia conflitos internos na comunidade, especialmente
pela forma como deviam se relacionar com a Lei, considerada por muitos como
ultrapassada, depois que Jesus se manifestou.
O sentido do “menor mandamento” pode nos ajudar a perceber o grau de
dificuldade experimentado pela comunidade. Sem dúvida demonstra um conflito
entre observar e ensinar e fazer o oposto. Aqui são os mestres de ensino que são
colocados em evidência. “A tarefa dos mestres é assegurar a realização das
Escrituras como cumpridas por Jesus.”511 Ele considera o sentido de “violar”
equivalente ao de “anular”, mas o acento aqui está em mandamentos específicos,
como os das antíteses (5,21-48), bem como de outros demonstrados por Jesus –
509
BANKS, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.239 et.seq.
BONNARD, P., L’Évangile selon Saint Matthieu, p.61 et.seq.
511
CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.192.
510
138
honrar aos pais (15,3-4) cumprir o decálogo (19,17-19) e o maior de todos, o
mandamento do amor, a Deus e ao próximo (22,36-40).512
A contraposição entre grande-pequeno e a diferenciação entre preceitos
“graves” e “leves” e também a correspondência de medida entre o cumprimento
dos mandamentos e a hierarquia no reino dos céus indica que não pode haver
crítica nem descuido em relação à Lei. A frase contem alusões a um sitz im Leben
concreto, não muito claro no v.17. Para D. Marguerat, o significado de “menores
mandamentos” [mi,an tw/n evntolw/n] tem a ver com uma distinção halákica que os
rabinos faziam entre o menor e o maior mandamento, instituindo uma hierarquia
entre eles. O que determina a diferença é o grau de esforço para cumprir o
mandamento ou que tenha uma recompensa escatológica menor. Dessa forma,
Marguerat considera que Mt retoma a questão do “iota ou um pequeno sinal”, que
são os corolários da Lei.513 Os preceitos graves envolviam questões éticas, com
isso preceitos “leves” ou “graves” eram diferenciados de acordo com a dificuldade
do cumprimento.514 Caso o v.19 se refira realmente à Lei de forma estrita (sem um
ponto de modificação), então ele deve ser visto como um dito muito conservador,
um tanto deslocado do contexto de 17,18 e 20.515
G. Barth afirma que Mateus clarifica que a congregação é ordenada a fazer:
em primeiro lugar, em sua interpretação da Lei e em segundo na exigência por
imitação. Mas qual é a relação de uma com a outra? É o que indica 19,21: “Disselhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e
terás um tesouro no céu; e vem, e segue-me.”, bem como a conclusão das
antíteses: “Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos
céus.” (5,48). Há uma exigência de perfeição na prática individual, que será
resultado da interpretação correta das Escrituras – a partir da interpretação dada
por Jesus – e da prática correta – como imitação de Jesus. Nisso está o seguimento
de Cristo, que é a mesma coisa que o radical cumprimento da Lei, e se dá
especialmente por uma prática do amor e misericórdia na mesma medida que
512
Ibid., p.192 et.seq.
MARGUERAT, M., Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.132 et.seq. Cf. a análise sobre
o iota e o pequeno sinal no cap.2, na análise textual.
514
Cf. BILLERBECK, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch I, p.901ss;
TRILLING, W., El verdadeiro Israel, p.260; FITZMEYER, J., Comentario Bíblico San Jerônimo,
p.186; BANKS, R. “Matthew’s understanding of the Law”, p.239 , que também pensou no
Decálogo como fonte da avaliação dos maiores e menores mandamentos. Porém o temo evlaci,stwn
não permite pensar dessa forma.
515
Cf. STANTON, G.N. A gospel for a new people, p.300 et.seq.
513
139
Jesus ensinou e praticou.516 A comunidade é chamada a um agir justo que deve
estar conectado ao ensinar, ao procedimento do discípulo, que é justo porque
ensina a justiça, e que faz com que outras pessoas se tornem justas.517
D. Marguerat analisa ainda que a forma aponta para o direito sagrado, no
sentido de deliberar sobre o lugar dos menores mandamentos da Lei, e revelara o
juízo no reino dos Céus, para quem negligenciá-los. O verbo lu,ein significa
“declarar não válido”, como uma autorização para a transgressão, enquanto
dida,skein designa um ensinamento incitando os crentes a não mais considerar
como normativos os mandamentos de menor importância. “Fazer e ensinar:
também para ao judaísmo estas duas modalidades de observância da Lei
constituem uma unidade indissolúvel.”518
J. Fitzmeyer entende que são os fariseus que praticam e ensinam a não
observância da Lei. O fato de Jesus não ter observado as prescrições tradicionais
acerca do sábado e das normas de pureza levítica foi sempre motivo de
controvérsia. Jesus demonstra que não recomenda aos discípulos aquilo que ele
mesmo não observa, por isso a ordenança está submetida à interpretação de Jesus,
que revelou a lei perfeita e completa.519 Flusser dá um passo mais concreto na
interpretação: o sentido do menor dos mandamentos não se refere às questões
rituais, mas o que tange o relacionamento humano. Isso se harmoniza com a idéia
do cumprir o grande mandamento – amar a Deus e ao próximo – como
cumprimento de toda a Lei e os Profetas.520
Mas há uma grave advertência para quem anular qualquer desses
mandamentos. E como entender essa advertência? As implicações de “perder”,
“anular” ou “relaxar” um dos “menores” mandamentos – e ensinar aos outros –
são consideráveis. Envolvem uma perda de “posição” no “reino dos céus” (5,19).
Em outra parte do Evangelho de Mateus, Jesus emprega a noção de “posição” no
reino dos céus, de acordo com o tema da retribuição divina (conf. Mt 18,4; 20,16;
e especialmente, 23,2-12).521
516
BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.102 et.seq.
Cf. BONNEAU, op.cit., p.212. Nesse sentido o autor relaciona a ação do justo com a do
profeta.
518
MARGUERAT, D., Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.132 et.seq.. Mas, como
aparece em Mt 23,3, Mateus dá primazia à ação sobre o ensinamento.
519
FITZMEYER, J., Comentario Bíblico”San Jerônimo”, I, p.186.
520
FLUSSER, Jesus, p.65.
521
CHARLES, “Do not suppose that I have come”, p.58 Em Mt 18 Mateus usa mikrw/n alternando com paidi,a - designa os cristãos, que precisam da graça divina e da salvação que é dada
517
140
Carter entende que o fato do castigo – ser chamado mínimo no reino dos
Céus – estar na passiva do futuro aponta para o julgamento de Deus. É ele quem
ai designar os grandes e os pequenos. Isso não indica exclusão, pois não diz que
ficarão “de fora” (como em 13,41s.49s; 25,31-46), mas aponta para recompensas
no reino futuro que podem ser dadas ou não a cada um. Na segunda parte, a
premissa positiva é reforçada, pois aqueles que praticarem e ensinarem os
mandamentos do modo como o foram por Jesus, serão grandes no reino.522
Contra essa posição, porém, Marguerat aponta a dificuldade do versículo,
que está em entender a hierarquia do menor no reino dos Céus. Parece ser uma
idéia dos círculos judeu-cristãos preocupados com a questão da Lei, engajados em
promover a comunhão eclesial, ao mesmo tempo em que condenam os
adversários. A infração provocaria apenas uma medida de desqualificação no
reino e não sua total exclusão. Mas isso está em desacordo com o pensamento
rabínico, e parece ser uma idéia estranha ao ambiente de Mateus.523 A partir do
contexto dos v.18 e 20, outra interpretação se torna necessária: a ênfase não está
na moderação do julgamento, mas nas terríveis conseqüências da negligência na
observância dos mandamentos. Aqui se estabelece a correlação entre a prática e o
juízo escatológico; a condenação estará sobre o transgressor, mesmo do menor
dos mandamentos. Isso responde, de certo modo, aos rabinos judeus que
ensinavam a considerar um mandamento maior ou menor que os demais,
desconsiderando o todo da Lei.524 Da mesma forma, Bonnard entende que as
expressões “menor” ou “maior” não exprimem a idéia de hierarquia no reino dos
Céus, mas são expressões judaicas que designam a exclusão ou participação no
Reino.525
Quanto a expressão utilizada por Mateus – “reino dos céus” [basilei,a tw/n
ouvranw/n] - tem o mesmo sentido de “reino de Deus” em Mc e Lc, e se deve a
por ele. Ou seja, de um modo geral, mikrw/n se refere positivamente ao grupo, pois para entrar no
reino dos Céus é preciso ser como uma criança (18,3) e mais: o que for pequeno como uma criança
será grande no reino (18,4), um paradoxo nos moldes de Jesus. Do mesmo modo, as bemaventuranças apontam positivamente para os pobres, os famintos, os mansos, os que choram. Cf.
BARTH, “Matthew’s understanding of the Law”, p.122.
522
CARTER, O Evangelho de São Mateus, p.192 et.seq. Como Também LAGRANGE, Èvangile
selon Saint Matthieu, p.95 et.seq. O juízo para a negligência não é ficar de fora totalmente, mas ser
pequeno no reino dos Céus.
523
MARGUERAT, Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.134. Ele cita o Abot 2,1: “Sois
aussi attentif à un commandement léger qu’à un commandement supérieur, parce que tu ne sais
pas quelle recompense será donnée aux commandements.”
524
MARGUERAT, Le jugement dans l’Évangile de Matthieu, p.135.
525
BONNARD, L’Évangile selon Saint Matthieu, p.62.
141
peculiaridades lingüísticas e teológicas. Esse termo está mais próximo do
ambiente semita - o ambiente original de Mateus - do que do helênico – ambiente
de Mc e Lc. Nos sinóticos “reino dos céus/de Deus” é um conceito escatológico,
considerando não apenas o futuro, pois Jesus já se manifestou para realizar a
vontade de Deus, e apontou para a consumação plena no futuro. É uma
escatologia em vias de realização.526
A salvação na basilei,a estabelece uma nova ordem das coisas, e a cidadania
é constituída pelos pecadores (Mt 9,13), que devem agora ter uma nova atitude
misericordiosa (Mt 5,48; 7,12). Mas há também posição e hierarquia na basilei,a,
e havia na comunidade de Mateus a recorrência no tema. Até entre os discípulos
havia disputas sobre quem seria o maior, às quais Jesus didaticamente mostrava a
nova lógica do reino (cf. Mt 10, 20-28).527 A comunidade vivia também sob essa
expectativa.528
4.6.
A justiça como plenitude da Lei: dikaiosu,nh plei/on (v.20)
O versículo que encerra a perícope é considerado por muitos como uma
introdução às antíteses529, mas de qualquer modo, complementa o conteúdo de 1720, e contém elementos comuns a todo o Sermão do Monte, bem como ao
evangelho de Mateus em geral. Um dos elementos de ligação se trata dos grupos
antagonistas à comunidade de Mateus, que refletem os adversários de Jesus em
seu próprio ministério. Por outro lado, há um reforço na idéia de cumprir a justiça,
acima dos escribas e fariseus, para que possam entrar no reino dos Céus.
20
Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e
fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus.
526
ZABATIERO, “basilei,a”, Dicionário Internacional de Teologia do NT, p.2035; 2045.
O relato paralelo de Mc 10, 33-45, mostra que foram Tiago e João quem pediram a Jesus para
se assentarem a sua direita e esquerda no reino. Mateus pode ter colocado a pergunta na boca da
mãe deles para minimizar o fato, tendo em vista a importância de ambos para as igrejas cristãs
palestinenses, o que só vem fortalecer a historicidade do relato. Cf. análise de FABRIS, Os
Evangelhos I, p.309.
528
Cf. MERZ, A. e THEISSEN, G., O Jesus Histórico, p.295. Ele comenta: “Os desejos de
posição, respeito e status entram nos sonhos escatológicos dos homens. Por isso é digno de nota
que Jesus tenha dado apenas um conteúdo concreto ao Reino de Deus: ele apresenta a salvação
escatológica como uma grande ceia.”
529
BULTMANN, L’historie de la tradition synoptique, p.176; BANKS, “Matthew’s
understanding of the Law”, p.242; Alguns pensam na perícope toda com esta função:
FITZMEYER, Comentario Bíblico Tomo III NT, I, p.187; PARISI, “Giustizia superiore e fede
‘estroversa’. La morale sociale da ‘un punto de vista’ della Scrittura”, p.51
527
142
4.6.1.
A controvérsia com os escribas e fariseus
O dito abre com a expressão “porque vos digo que” [le,gw ga.r u`mi/n o[ti],
que tem certa correlação com a expressão “em verdade vos digo” do v.18.530 A
conjunção “porque” [ga.r] indica a ligação redacional com os versículos
antecedentes, mesmo tendo origem diferente dos demais.531
As diretrizes da comunidade, além de enfrentar diferentes pontos de vista
internos quanto à validade da Lei, enfrentavam dificuldades externas provenientes
de outros grupos judaicos, e suas respectivas interpretações da Lei. No primeiro
capítulo já vimos a configuração desses grupos de acordo com fontes históricas e
outras evidências - especialmente os escribas e os fariseus -; agora nos interessa
apontar a controvérsia deles com Jesus, a partir do v.20, bem como da forma
como Mateus os retratou.
Que Jesus teve conflitos com alguns setores do judaísmo, está claro pelos
testemunhos nos sinóticos, tanto da tradição de Mc, quanto da tradição de Q.
Mateus reproduz ambas as tradições e acrescenta ainda material extra que, sem
dúvida, acirrou os ânimos de ambos os lados. Há diversos motivos provocadores
de conflitos com os fariseus, descritos no Evangelho: o fato de Jesus se associar
com pecadores; o desvio dos discípulos em seguir os preceitos que
regulamentavam a alimentação, a pureza e a guarda do sábado532, conforme
apresentado acima. A inserção desse dito junto com os demais sobre a Lei atende
à tendência de Mateus em criticar os oponentes religiosos.533 A liberdade de Jesus
diante da Tradição dos Pais e da própria Lei foi o principal motivo da controvérsia
com os fariseus e escribas: isso é mostrado nos conflitos no sábado (12,1-14, e
par).534 Mesmo assim, é bom salientar que Jesus os considerava “intérpretes
oficiais da lei bíblica e a quem se deve obediência (Mt 23,2-3).”535
530
J. JEREMIAS conjetura a possibilidade do dito original ter começado com Amém, mas ter-se
perdido depois para essa formulação menos intensa. Estudos no Novo Testamento, p.141.
531
Cf. BANKS, R. op.cit., p.241; TRILLING, W. El verdadeiro Israel, p.262.
532
Cf. GARCIA, P.R. O Sábado do Senhor teu Deus, p.125. Para ele, associar os fariseus aos
rabinos – ou judaísmo rabínico – é uma incorreção, pois necessariamente um não corresponde ao
outro. Por isso, a exemplo de Jacob Neusner, Garcia chama o judaísmo do período de Mateus de
Judaísmo Formativo.
533
BANKS, R., “Matthew’s understanding of the Law”, p.241.
534
Cf. BORNKAMM, G., Jesus de Nazaré, p.167.
535
SALDARINI, A., Fariseus, escribas e saduceus, p.177.; cf. Também FLUSSER, D., Jesus,
p.46.
143
J. Jeremias distingue os dois grupos: “os escribas são os mestres da teologia,
que se formaram depois de anos de estudo; os fariseus, ao contrário, não são
teólogos, e sim grupos de leigos piedosos.”536 Para ele, a citação de escribas e
fariseus em 5,20 mostra uma estrutura tripartida no Sermão que está diretamente
relacionada ao sentido do termo “justiça”: dos teólogos, dos leigos piedosos e dos
discípulos de Jesus, considerando sua interpretação sobre os escribas e fariseus
citada acima.537
Com efeito, após a introdução (5,3-19) e o enunciado do tema (5,20), a primeira
parte do Sermão mostra a controvérsia entre Jesus e os teólogos sobre a
interpretação da Escritura (as seis grandes antíteses de Mt 5,21-48: “Eu, porém, vos
digo...”). Na segunda parte, á à justiça dos fariseus que Jesus se opõe e,
efetivamente, a esmola, a observância das três horas de oração e o jejum
caracterizam esses piedosos grupos de leigos (6,1-18). A última parte expõe a nova
justiça dos discípulos de Jesus (6,19-7,27). O tema desta didaquê tripartida é,
portanto, o comportamento cristão em oposição ao dos seus contemporâneos
judeus.538
G. Bornkamm, no entanto, entende que o dito do v.20 usa os escribas e
fariseus com exemplo, mas não são eles o alvo primário da perícope como um
todo.539 Talvez a idéia fosse demarcar um exemplo negativo para assegurar o
comportamento da comunidade. É o que aponta G. Barbaglio:
No v.20, passa-se a determinar o comportamento subjetivo em relação à palavra
normativa de Deus, revelada plenamente por Cristo. A práxis farisaica e rabínica
resulta radicalmente inadequada. Os discípulos são chamados a uma obediência
que, por extensão e intensidade, lhe seja superior. Trata-se de uma condição
necessária para entrar no Reino da salvação final.540
Tudo indica que a exposição de Jesus tem como objetivo o comportamento
dos discípulos, mas sem dúvida, da mesma forma, ao menos como Mateus
organizou o Sermão, trata da forma como a comunidade irá contrapor as atitudes
dos escribas e fariseus.541
Como visto acima, sempre que Jesus se posicionava em questões referentes
à Lei, Mateus colocava num contexto de polêmica com os fariseus e escribas.
536
JEREMIAS, J., Estudos no Novo Testamento, p.99.
BULTMANN define os escribas como “simultaneamente teólogos, educadores do povo e
juristas.” Teologia do Novo Testamento, p.49
538
Idem, p.100.
539
BORNKAMM, G., op.cit., p.167.
540
BARBAGLIO, G., Os Evangelhos I, p.119. TRILLING acrescenta: “su autoridad entra en
conflicto con la autoridad de la cadena de tradición rabínica y a la vez la substituye, porque es
algo definitivo”. EL verdadeiro Israel, p.257.
541
CARTER, W., O Evangelho de São Mateus, p.193. Ele comenta: “O objetivo de Jesus,
completando e interpretando a vontade de Deus previamente revelada, é a justiça/retidão, a
realização da vontade salvífica de Deus por seus seguidores (ver 3,15; 5,6.10). Esta obra está
definida contra a dos escribas e fariseus.”
537
144
Também é possível encontrar os escribas e fariseus questionando as palavras e
atitudes de Jesus, sempre de forma negativa.542 De acordo com a classificação de
Berger,543 citamos abaixo o quadro das narrativas - somente em MT, seja a partir
de Mc, da fonte Q, de fonte própria – consideradas controvérsias entre Jesus e os
seus oponentes:
Perícope
Situação/tema
Grupo antagônico
9,10-13
9,14-17
12,1-8
12,9-14
12,22-32
12,38-42
13,53-58
15,1-19
16,1-4
16,5-12
17, 24-27
19,1-12
21,14-17
21,23-27
22,15-22
Comer com os publicanos e “pecadores”
A questão do jejum
A questão de colher espigas no sábado
A cura no sábado
Jesus e belzebu
A recusa do sinal
O profeta em sua pátria
A questão da pureza
Outra vez a recusa de sinal
O fermento dos grupos antagônicos
O imposto do Templo
A questão do divórcio
A aclamação das crianças
A autoridade de Jesus
O imposto de César
22,23-33
22,34-40
22,41-46
Sobre a ressurreição
O principal mandamento
Sobre o filho de Davi
Fariseus
Discípulos de João
Fariseus
Fariseus
Fariseus
Escribas e Fariseus
Povo de Nazaré
Escribas e Fariseus
Fariseus e Saduceus
Fariseus e Saduceus
Cobradores de Impostos
Fariseus
Sacerdotes e escribas
Sacerdotes e anciãos
Discípulos dos fariseus e
Herodianos
Saduceus
Fariseu, Intérprete da Lei
Fariseus
O quadro544 nos mostra, de forma bastante clara, que o grupo ao qual Mt
mais se refere são os fariseus545. Das 18 passagens selecionadas, eles são citados
12 vezes, sendo 2 vezes com os escribas (12,38-42; 15,1-19) e 2 vezes com os
saduceus (16,1-4; 5-12). Em outra ocasião são citados com os herodianos (22,1522). O que aparentemente é um contra-senso histórico – a aliança entre os fariseus
e seus rivais, os saduceus – é explicada por alguns como provável, considerando
que ambos os grupos tenham se unido para enfrentar um adversário comum. Essa
542
MINCATO, R. “Os fariseus e Jesus: uma releitura”, p.52 et.seq.
BERGER, K., Formas literárias do Novo Testamento, p.77-78. Ele amplia a classificação de
DIBELIUS, Die Formgeschichte des Evangeliums, p.247. Um aspecto curioso levantado por
Bultmann é que, segundo sua análise das controvérsias, os interlocutores dos diálogos de disputa
originalmente não eram pessoas ou grupos definidos. Somente num estágio mais avançado, a
tradição os caracterizou como fariseus ou escribas. BULTMANN, L’historie de la tradition
synoptique, p.71.
544
Por motivos didáticos excluímos da lista relatos em que a controvérsia é interna, entre os
próprios discípulos (como em 19,13-15; 20,20-28; 26,6-13), ou quando não estava bem definida a
origem do questionamento (como em 12,46-50; 18,1-5; 19,16-30).
545
SALDARINI comenta que Mateus altera, em várias passagens, o grupo antagonista, de escribas
para fariseus. As outras passagens onde isso acontece são: 9,34 e 12,24. Fariseus, escribas e
saduceus na sociedade palestinense, p.173 passim.
543
145
união já aparece em João Batista (Mt 3,7-10), e também quando vão interpelar
Jesus, não a respeito da Lei - assunto que gerava entre eles mesmos muita
discrepância - , mas a respeito dos sinais de Jesus como Messias (16,1-12). Depois
do fato, Jesus admoesta os discípulos sobre o fermento dos dois grupos: fariseus e
saduceus.546
No tocante à relação “escribas e fariseus” não há muitos pontos de contato
entre eles, a não ser no fato de ambos questionarem Jesus sobre aspectos da Lei e
da prática. Mesmo assim, há muito mais citações para os fariseus do que para os
escribas. A. Saldarini comenta que “normalmente os escribas são omitidos e os
fariseus acrescentados nas passagens onde existe confronto com Jesus. Os fariseus
são vistos por Mateus como opositores mais ativos de Jesus do que os escribas.
Embora os escribas permaneçam como adversários, o papel deles é restrito, tanto
como contestadores de Jesus, quanto como líderes de Jerusalém.”547
Em relação à disputa sobre a Lei com os fariseus, nos relatos de
controvérsia, há um entendimento de que, em Mt 12,1-8, Cristo determina o
centro de gravidade da Torá, indica o lugar do qual ela deve ser lida, e revela o
sentido último que testemunha dele. A controvérsia surgiu como uma nova
disputa confessional, não entre os judeu-cristãos helenistas e os conservadores,
mas entre a comunidade de Mt contra o judaísmo farisaico. Ambos concordam
com a validade da Lei, mas discordam quando se trata de sua interpretação, por
causa da Lei. 548
Sobre Mt 12,9-14, F. Vouga aponta os temas dominantes são os mesmos da
perícope anterior. Também aqui o problema é com a tradição sinagogal549. Mas F.
Vouga entende que a polêmica contra a sinagoga não mais, segundo a redação de
546
CARTER, O Evangelho de São Mateus, p.135 et.seq.; SALDARINI, op.cit., p.179 et.seq., que
também comenta: “Mateus usa os grupos principais do judaísmo – os fariseus e os saduceus –
como símbolos de falsos mestres, em conflito com Jesus”.
547
SALDARINI, A., op.cit., p.176.
548
Cf. VOUGA, F., Jesus et la Loi, p.48. Também J. COMBLIN, “As linhas básicas do Evangelho
segundo Mateus”. Ele afirma: “o Evangelho se opõe às tradições humanas dos escribas e fariseus,
assim com à confusão que fazem entre lei divina e tradições humanas. (...) Dessa maneira, Mateus
já ataca a maneira como os escribas e fariseus aplicam a Lei. Ele ataca também diretamente a
concepção da Lei e de justiça que adotaram.” P.24
549
Sobre a sinagoga, W. CARTER faz uma interessante análise. Quando Mateus trata do episódio
em que Herodes sabe do nascimento do Messias (2,1ss), ele afirma que foram “reunidos”
[sunagagw.n] os sacerdotes e escribas. Carter comenta: “O verbo reuniu é a forma verbal de
‘sinagoga’, uma instituição da qual Jesus será distanciado (‘a sinagoga deles’, 4,23; 9,35; 12,9;
13,54; 23,34) e que receberá consistentemente má reputação (p.ex., 6,2.5; 10,17; 23,6) (...) Seu uso
aqui representa a oposição da aliança a Deus e Jesus como os típicos mas condenados
comportamentos dos centros de poder.”O Evangelho de São Mateus, p.113.
146
Mt, é um debate real. Antes, os opositores de Jesus pertencem a um judaísmo do
qual os destinatários de Mt estão distantes, e aponta para um movimento judeucristão palestinense de língua aramaica, que testemunha a bondade de Deus, à
margem ou contra a obediência farisaica da Lei.550 J. Roloff comenta que os
escribas e fariseus conhecem “o centro inequívoco, da vontade de Deus na lei,
qual
seja,
o
mandamento
do
amor,
esquivando-se,
porém,
do
seu
cumprimento.”551
Quanto aos escribas, Mateus é bem mais tolerante em relação a eles. É bem
verdade que eles são apresentados, de um modo geral, como questionadores de
Jesus (“E eis que alguns dos escribas diziam entre si: Ele blasfema.” 9,3). Mas Mt
procura mostrar Jesus com muito mais prestígio junto ao povo do que os escribas
(cf. o final do Sermão do Monte, “Porquanto os ensinava como tendo autoridade;
e não como os escribas.”7,29). Provavelmente essa falta de autoridade dos
escribas esteja em conexão com a advertência de Jesus em 23,3: “Todas as coisas,
pois, que vos disserem que observeis, observai-as e fazei-as; mas não procedais
em conformidade com as suas obras, porque dizem e não fazem”.552
A marca da tolerância de Mateus quanto aos escribas está na parábola do
escriba, em Mt 13.52: “E ele disse-lhes: Por isso, todo o escriba instruído acerca
do reino dos céus é semelhante a um pai de família, que tira do seu tesouro coisas
novas e velhas.” Os discípulos de Jesus eram conclamados a serem como um
escriba, interpretando a Lei, mas dentro do critério do reino dos Céus. Sobre isso
Brown comenta:
O argumento aqui mostra que nem toda a interpretação e aplicação estão erradas.
Jesus e os discípulos se ocupam com elas. Estão erradas, no entanto, quando
deixam de ressaltar o verdadeiro significado da lei, e quando substituem a palavra
de Deus pela tradição humana.553
Na verdade, muito já se disse que o retrato descrito a respeito dos fariseus –
bem com dos escribas – no evangelho é um tanto distorcido, anedótico até, para
550
VOUGA, F., Jesus et la Loi, p.63.
ROLLOF, J., A Igreja no Novo Testamento, p.174. GNILKA, no entanto, lembra que mesmo os
fariseus em si não formavam um grupo homogêneo, conf Também vimos anteriormente. Só para
citar as mais importantes, no tempo de Jesus havia a escola de Hillel e a de Shammai, cada uma
tentando estabelecer sua interpretação da Lei como a mais autêntica. Jesus de Nazaré, p.248.
552
Cf. SALDARINI, A., Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense, p.171 et.seq.
Também CHARLES, que comenta: “Absurdly scrupulous in their tithing on mint, anise and
cumin, which were used for medicinal as well as culinary purposes, Pharisees neglected the more
“weighty” matters of social ethics—e.g., justice and mercy (23:23-24). The result was an ethical
monstrosity in and of itself.”, “Do not Suppose that I come”, p.58 et.seq.
553
BROWN, “lu,w”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p.1980.
551
147
reforçar a superioridade de Jesus frente aos seus adversários.554 Mesmo assim, é
incorreto afirmar que o evangelho de Mateus seja anti-semita, apesar das severas
críticas presentes em passagens exclusivas, especialmente o cap.23, usado por
muitos como exemplo de anti-semitismo. Na verdade, o que está em jogo é autopreservação do grupo diante da oposição da sinagoga, e a fé em Jesus como o
intérprete da Lei por excelência.555 Por isso, sempre vamos ter que relativizar o
grau de oposição que eles realmente fizeram a Jesus.556
4.6.2.
O sentido da justiça superior: perisseu,sh| u`mw/n h` dikaiosu,nh plei/on
“Justiça” – heb. qdc, gr. dikaiosu,nh - é um termo que designa no AT uma
relação conectiva: entre o jurídico e o salvífico; entre Deus e os homens. Aponta
para uma conduta relacionada com a comunidade, de fidelidade a ela, regulamenta
o relacionamento entre as pessoas, por isso tem estreita relação com a
“misericórdia/amor” [dsx].557
No NT há diversos conceitos para “justiça”, todos vinculados ao sentido
semita de relação, ação concreta, e não ao sentido grego de um ideal de virtude.558
Paulo foi quem mais tratou do assunto, numa perspectiva um pouco diferente
daquela de Mateus.559 Mas depois de Paulo, Mateus é quem mais utiliza o termo.
Na verdade, nos evangelhos, “justiça” [dikaiosu,nh] é um termo tipicamente
mateano – aparece sete vezes em Mt (Mt 3,15; 5,6.10.20; 6,1.33; 21,32) e apenas
554
Mesmo considerando os aspectos apontados por FLUSSER, Jesus, p.44 et.seq., sobre a rejeição
que os fariseus sofriam por parte de diversos grupos judaicos, conf. capítulo 1.
555
Cf. a análise de HAGNER, D., “Matthew: Apostate, Reformer, Revolutionary?, p.206 et.seq.
Também CARTER, W., O Evangelho de Jesus, p.54 passim. Ele comenta: “Crucial para
compreender a comunidade (grandemente) judaica de Mateus comprometida com Jesus, é o
reconhecimento de estar envolvida numa luta local no interior de uma sinagoga por seu lugar em
uma tradição comum. (...) A audiência de Mateus é dessa forma uma grupo judeu em tensão com a
comunidade da sinagoga ainda configurada por e comprometida com as tradições judaicas
comuns.” P.63.
556
J. GNILKA Também faz essa advertência. Jesus de Nazaré, p.265 ets.seq.
557
OTTO, “Justiça (AT)”, Dic Bib Teo, p.222 et.seq.
558
KERTELGE, “Justiça (NT)”, Dic Bib Teo, p.224.
559
Essa diferença foi analisada, por ex, por ZUMSTEIN. Ele levanta a questão, que muitos
também relacionam, de que conceito de justiça em Mateus e Paulo é diferente. Enquanto para este,
a justiça se apresenta na forma como Deus justifica o pecador, que a recebe pela fé, Mateus indica
que o crente, ao cumprir a Lei, pode aspirar à justiça, cujo caminho foi apontado por Jesus no
Sermão do Monte. Mateus o Teólogo, p.43. Ver Também a discussão levantada por BARTH,
“Matthew’s understanding of the Law”, p.159 et.seq.
148
uma vez nos outros sinópticos (Lc 1,75).560 É um tema central no Sermão do
Monte, pois aparece ali cinco vezes.561
Quanto ao sentido de “justiça” para a compreensão de 5,17-20, Carter
comenta que há várias maneiras de interpretá-lo562. Analisando o termo, porém,
entende que a melhor maneira de compreender a “justiça” – ele denomina
“justiça/retidão” - leva em conta que Deus age como justo ao agir em
conformidade com a Aliança na qual se comprometeu de salvar o povo (cf. 51,14;
65,5; Is 46,13; 51,5-8). Em contrapartida, o povo de Deus é justo na medida em
que se mantém fiel às exigências da aliança. Ou seja, para haver justiça plena, é
preciso haver o agir de Deus de forma salvífica, ao mesmo tempo em que os
homens cumprem suas exigências.563 Isso se dá, de forma especial, no relato do
batismo de Jesus, e esse seria o sentido de “cumprir toda a justiça” de 3,15.564
Com esse ato, Jesus se tornou o “modelo e fundamento possibilitador”565 de uma
justiça superior. O texto de 21,32 tem relação com 3,15. Nele, Jesus afirma que
“João veio a vós no caminho da justiça”, numa disputa a respeito de sua
autoridade com os “príncipes dos sacerdotes e os anciãos do povo” (cf. v.23).
Aqui “justiça” representa a obediência de João ao mandato de Deus e sua
pregação pelo arrependimento, e a qual meretrizes e publicanos aderiram.566
De um modo geral, Mt usa o termo “justo” para quem vive e age de acordo
com a vontade de Deus, e o agrada. Isso está relacionado aos justos e profetas do
AT (em 13,17 e 23,29.35), como para pessoas contemporâneas a Jesus (como
560
Cf, BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.138 et.seq.
MARTIN, B.L., “Matthew on Christ and the Law”, p.60.
562
CARTER, W., op.cit., p.143. “(1) Alguns argumentam que o termo sempre se refere à atividade
salvífica de Deus. (2) Alguns sugerem que sempre se refere a homens realizando a exigência de
Deus. (3) Outros sugerem que ambos os elementos estão presentes: dom divino e ação humana. (4)
Ainda outros argumentam que os usos são inconsistentes e necessitam ser determinados caso por
caso”. G. BARBAGLIO entende que “justiça”, “no primeiro evangelho, quer dizer fidelidade nova
e radical à vontade de Deus.” Os Evangelhos (1), p.91; Cf. PARISI, S. “Mt 5,17-20: giustizia
superiore e fede ‘estroversa’.” P.57 et.seq; TRILLING, W. El verdadeiro Israel, p. 263 et.seq.;
BARTH, G., “Matthew’s understanding of the Law”, p.139 et.seq.; TASKER, R.V.G. Matthew:
An Introduccion and Commentary, p.67 et.seq.
563
Cf. BULTMANN. R., Teologia do Novo Testamento, p.49.
564
CARTER. W., O Evangelho de São Mateus, p.143; MARGUERAT, D. Le jugement dans
l’Évangile de Matthieu, p.136 et.seq.; BORNKAMM, G., “End-Expectation and Church in
Matthew”, p.36 et.seq. Nesse texto ele afirma a necessidade do Messias cumprir a plena vontade
de Deus na terra, desde que foi proclamado como “Filho de Deus”; G. BARTH acrescenta a idéia
de “dom escatológico” para a justiça cumprida por Jesus, e como apontado acima, se deu pela sua
humilhação de se colocar no mesmo nível dos pecadores. “Matthew’s understanding of the Law”,
p.140.
565
ROLOFF, J., A Igreja no Novo Testamento, p.175.
566
Cf. MARGUERAT, D. Le jugement, p.292 passim.
561
149
José, em1,19), e ainda para os fiéis escatológicos, que seguiram a Jesus e se
apresentarão a ele no fim (25,37.46).567 Por outro lado, pode-se pensar que a ética
exigida a partir da justiça é inteiramente encarada a partir da perspectiva do juízo.
Quando a justiça humana está vinculada à vontade divina, sanciona o juízo de
Deus.568
Nesse último sentido esta a importância do substantivo “justiça”, pois para
entrar no reino dos Céus, é preciso ter a “justiça superior”569, que supera a dos
escribas e fariseus. É onde o Sermão do Monte demonstra ter um centro temático:
a prática de uma justiça que exceda qualquer outra, que não seja baseada nos
ensinos de Jesus.570 Como Bornkamm comenta:
Isto se torna claro justamente nas antíteses do Sermão da Montanha. Nelas, a
exigência de Deus se torna extremamente simples. (...) “...as antíteses mostram que
Jesus já considerou a mentalidade como ação; ela têm por objetivo a obediência até
à ação concreta: ‘Quem ouvir estas minhas palavras e as puser em prática...!’.571
Assim, o v.20 aprofunda o apelo à obediência total. Mas de forma polêmica,
pois a justiça exigida é a total obediência à Lei, conf. demonstrado nos v.17-19. A
originalidade de Mt, para Zumstein, está no “comportamento de acordo com a
vontade de Deus que abre as portas da salvação. A ética torna-se a única via que
conduz à aprovação divina.”572 Sobre isso Overman comenta:
Em nenhum ponto o comportamento e a resposta dos membros da comunidade de
Mateus recebem mais atenção e ênfase do que no Sermão da Montanha. Aqui,
Mateus dá destaque aos “testes de “comportamento” para falsos profetas da
comunidade (7,15-23). A noção distintiva em Mateus de “conhecer alguém por
seus frutos” é uma maneira pela qual enfatiza repetidamente certos
comportamentos e ações para o verdadeiro seguidor de Jesus. A parábola dos
construtores sensato e insensato também destaca a conexão entre ouvir e fazer
567
KERTELGE, “Justiça (NT)”, Dic Bib Teo, p.225.
MARGUERAT, D., Le jugement, p.138. Ele complementa: “La justice n’est pas envisageane en
dehors de la Torah, une justice ‘meilleure’ que celle des scribes et pharisiens encore moins qu’une
autre.” P.138 et.seq.
569
Cf. MAZZAROLO, I., Evangelho de São Mateus, p.87; Outras possibilidades: “Justiça
melhor”, BORNKAMM, Jesus de Nazaré, p.175; “Justiça/retidão superior”, CARTER, O
Evangelho de São Mateus, p.193; “Obediência/observância”, BARBAGLIO, G., Os Evangelhos I,
p.118; “Fidelidade”, CAMACHO e MATEUS, O Evangelho de Mateus, p.64.,
570
Cf. BORNKAMM, G.,Jesus de Nazaré, p.175 et.seq.
571
Ibid., p.178 et.seq. THEISSEN analisa que essa prática, de renúncia à violência e amor ao
próximo “não se fundamentam no relacionamento com Deus, mas também no relacionamento com
outras pessoas. Inegavelmente, o distinguir-se de outros grupos é um importante impulso para a
concretização dessa exigências.” Sociologia da cristandade primitiva, p.103.
572
ZUMSTEIN, J., Mateus o Teólogo, p.42. Banks afirma que o sentido da justiça deve ser
entendido em termos de “conduta” e do modo como é utilizada, e por isso fica melhor no sentido
quantitativo do que qualitativo. Esse sentido é enfatizado tanto no v.19 quanto nas perícopes das
antíteses (21-48), bem como é a perspectiva geral do Sermão do Monte. BANKS: “Matthew’s
understanding of the Law”, p.242
568
150
(7,24ss). (...) Quando Mateus fala em justiça no Sermão da Montanha, ele se refere
ao comportamento e às ações esperados dos membros da comunidade.573
E qual é o agir esperado? É um agir a partir da exigência de uma justiça
absolutamente nova, que exceda em muito a justiça dos escribas e fariseus, e por
isso seja mais perfeita.574 O dito apresenta o verbo perisseu,w, que significa
“abundar”, “ser a mais”, “sobrar”.575 É um verbo muito utilizado na linguagem
paulina,576 mas que Mt também usa algumas vezes: duas vezes com sentido de
advertência para os discípulos (Mt 13,12; Mt 25,29) e uma vez como crítica aos
fariseus (12,34). Também aparece nas duas narrativas da multiplicação dos pães,
em 14,20 e 15,37, ao descrever a abundância de alimentos, mesmo após a partilha.
O dito de 13,12 fala sobre dar e tirar, inserido dentro da explicação sobre a
parábola do semeador: “Porque àquele que tem, se dará, e terá em abundância;
mas àquele que não tem, até aquilo que tem lhe será tirado.” Vem de Marcos, e
aponta para o perigo da pessoa conhecer os mistérios do reino e não corresponder
a eles. Da mesma forma, em 25,29, em outra parábola (dos talentos) Jesus adverte
sobre “enterrar” o dom entregue a cada um: “Porque a qualquer que tiver será
dado, e terá em abundância; mas ao que não tiver até o que tem ser-lhe-á tirado.”;
pode se referir àqueles que ouviram o Evangelho e não o tomaram com convicção,
antes se fecharam à sua proposta.577 Nos dois ditos, o resultado de quem acolheu e
viveu é a abundância [perisseuqh,setai]. Quem não o fez, perderá até o que não
tem (seria uma falsa justiça?).
Já o dito de 12,34 é uma severa crítica dirigida aos fariseus: “Raça de
víboras, como podeis vós dizer boas coisas, sendo maus? Pois do que há em
abundância no coração, disso fala a boca.” Está inserido numa perícope de Q578,
mas é material exclusivo de Mateus, pois essa afirmação não consta da paralela.
Ao mesmo tempo, Nestlé-Aland aponta que é paralela de Mt 7,15-20, uma palavra
dirigida aos discípulos, advertindo-os dos “falsos profetas” [yeudoprofhtw/n], que
não dão bons frutos.579 O verso seguinte dessa perícope é muito revelador: “Nem
573
OVERMAN, A., O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo, p.98.
LAGRANGE, M. Évangile selon Saint Matthieu, p.96.
575
RUSCONI, C. “perisseu,w”, Dicionário do grego do NT, p.370.
576
Cerca de 25 vezes, em várias formas verbais, como em Fp 1,9.26; 1 Co 14,12; 2 Co 8,7s; 9,8;
15,58; Cl 2,7; etc.
577
Cf. MAZZAROLO, Evangelho de Mateus, p.203; CARTER, O Evangelho de São Mateus,
p.365.
578
Paralelo em Lc 6,43-45.
579
NESTLÉ-ALAND, Synopsis of the Four Gospels, p.62.
574
151
todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz
a vontade de meu Pai, que está nos céus.” (7,21), pois aponta claramente o critério
para entrar no reino dos Céus: seguir ao Senhor e praticar seus mandamentos. E
aqui retornamos ao princípio de 5,20.
Em 5,20, o adjetivo plei/on - “cheio”, “numeroso” – se junta a perisseu,sh,
dando a este uma intensidade afirmativa, por isso se traduz “exceder em
muito”.580 É essa expressão que vai determinar a medida da justiça que os
discípulos terão que praticar: superior a dos grupos contemporâneos que se
arrogam como intérpretes da Lei.581 Jesus valorizou as exigências do Decálogo,
mas propõe uma vivência nova, com uma ótica renovada; as antíteses demonstram
como ele tratou da essência da Lei que deveria ser praticada.582 Sem isso há um
enfático “de modo nenhum” [ouv mh.] que aponta para a impossibilidade de se
entrar no reino dos Céus.583
Mas, como analisou L. Goppelt, não é um mero acumular de atos isolados
de justiça que darão esse resultado, que é o motivo de fracasso dos fariseus,
segundo Mt. “Trata-se de uma total dedicação a Deus e ao próximo, dedicação
essa que determina inteiramente o relacionamento entre ambos.”584 Essa
exigência, vinda do próprio Jesus, foi acolhida por Mateus de maneira irresoluta, e
certamente dirigida vida de sua comunidade.585
Considerando o que apontamos aqui, não é de se admirar que o ensino sobre
a justiça superior tenha, em sua essência, uma idéia escatológica. Ou seja, a
recompensa pela fidelidade aos ensinos de Jesus não se dará nesse mundo, mas no
580
RUSCONI, C., “perisseu,w”, “plei/oj”, Dicionário do Grego do Novo Testamento, p.370, 376;
RIENECKER, Chave Lingüística do NT Grego, p.10
581
TRILLING, W., EL verdadeiro Israel, p.264.
582
PARISI, S. “Mt 5,17-20: giustizia superiore e fede ‘estroversa’.” P.54. F. V. FILSON
acrescenta: “The gospel brings mercy, comfort, and divine help, but it does not cancel the demand
of God for faithful and complete obedience to his will. A commentarya on the Gospel according to
St. Matthew, p.84.
583
Cf. JEREMIAS, J., Estudos no Novo Testamento, p.100; Também STANTON, A Gospel for a
new People, p.322.;
584
GOPPELT, Teologia do Novo Testamento, p.457. Paralelamente, Lucas trabalha esse tema na
Parábola do “Bom” Samaritano (Lc 10,30-37), a qual aponta para o verdadeiro cumprimento do
amor ao próximo: servir a qualquer pessoa necessitada de uma ajuda concreta. Não importa quem
o faça, será esse que demonstrará amor ao próximo. Em Mateus o samaritano estaria cumprindo a
justiça superior.
585
Cf. KÜMMEL, Síntese Teológica do Novo Testamento, p.165. Ele comenta: “houve pelo
menos círculos na comunidade primitiva que praticavam uma adesão conseqüente à observância
tradicional das leis, exigindo comportamento semelhante de todos os adeptos do Cristo
ressurrecto.” Podemos pensar que a comunidade de Mateus é herdeira ou foi formada a partir
desse “setores”. Cf. STANTON, A Gospel for a new people, p.50.
152
reino dos Céus. O final do Sermão do Monte ilustra a exigência de Jesus em
forma de advertência para a comunidade. Na perícope de 7,21-23, consta o
seguinte: “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas
aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus.” (v.21) Há uma relação
direta entre o agir segundo a vontade de Deus e o entrar no reino dos Céus.
Segundo a perícope, o que determina a entrada é a prática do amor, que não é
citado textualmente, mas está subjacente ao tema, tendo em vista, que elementos
como a prática do exorcismo, da profecia e da realização de milagres não
qualificam ninguém como tendo feito a vontade de Deus.586
É a respeito da comunidade, em última análise, que pairam as principais
advertências do texto de 5,17-20. Sua prática deve ser de tal modo no mundo que
brilhe intensamente (5,16) e seja reconhecida por todos como prática da justiça.587
No final do evangelho de Mateus (28, 19-20), como proposta de continuidade,
está de novo a dupla exigência de praticar e ensinar. A obediência exigida aos
discípulos é também estendida a todos os que aderirem à fé pelo batismo, os quais
serão ensinados de acordo com a orientação do mestre. Ele por sua vez, continuará
presente na Igreja, seja pela sua pessoa, seja pelos seus ensinos sendo vivenciados
pela comunidade.588 Sobre isso, J. Roloff comenta: “A dimensão escatológica da
igreja, o seu pertencimento ao reino dos céus, manifesta-se visivelmente diante do
mundo na sua prática da vontade de Deus.”589 De forma escatológica a Igreja,
hoje, manifesta a justiça superior, em busca da perfeição, como Jesus solicitou:
“Sede vós pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus.” (5,48).
Assim, pode-se dizer que “justiça e perfeição são dois aspectos da mesma
coisa”.590 Ou seja, assumindo na vida a ética do amor que Jesus ensinou e
praticou.
586
MAZZAROLO, I., Evangelho de Mateus, p.123. Sobre a justiça comenta: “Os que procedem
sem lei é porque fabricam e agem segundo suas leis próprias, alteram a ética e a justiça para obter
ganhos da iniqüidade (Is 10,1-2; Mq 3,1-3).” Também BARBAGLIO, G. Os Evangelhos (1), p143
et.seq. completa, a respeito do amor: “Não o carisma, mas o amor é a sua verdadeira carteira de
identidade, que será reconhecida pelo Senhor como condição para o ingresso no Reino.” P.144.
587
Cf. MALDONADO, J. Comentario a los cuatro evangelios, p.247.
588
Cf. BARBAGLIO, 418 et. seq.
589
ROLOFF, A Igreja no Novo Testamento, p.175; cf. Também BARTH. “Matthew´s
understanding of the Law”, p.150. P. BONNARD afirma sobre a escatologia presente na exigência
de Jesus: “c’est dasn cette atmosphère de joie eschatologique et de fidélité miraculeuse qu’il faut
replacer cer versets et ceux qui suivent (21-48). L’Évangile selon saint Matthieu, p.62.
590
GOPPELT, Teologia do Novo Testamento, p.456. Ou, no dizer de GNILKA: “a suma da ética
de Jesus é o amor.” Jesus de Nazaré, p.223.
153
5.
Conclusão
Jesus é a personalidade mais importante da história ocidental, mesmo para
quem não é cristão confesso ou teólogo. Mesmo assim, sua relação com seu
ambiente judaico é algo estudado com profundidade há apenas algumas décadas.
Os estudos levados a efeito desde o início do século vinte, no entanto,
possibilitaram uma maior compreensão da mensagem de Jesus em seu próprio
contexto sócio-cultural. O principal aspecto para que se pudesse ampliar tal
conhecimento foi o estudo de textos judaicos contemporâneos a Jesus, e a análise
da estrutura social de seu tempo. História e análise social caminhando juntas para
tentar completar o quadro que os evangelhos canônicos apenas apontam.
Nesse sentido a presente pesquisa procurou perceber qual é a relação de
Jesus com a Lei e os Profetas, e como a atitude dele foi compreendida e
vivenciada pela comunidade de Mateus, que tem profundas raízes no Judaísmo.
Havia na pesquisa, então, alguns aspectos fundamentais que precisavam ser
discutidos: a compreensão geral sobre a Lei e os Profetas entre os judeus do
primeiro século; e a compreensão particular de Jesus sobre o assunto.
Para realizar a tarefa foi destacada a perícope de Mt 5,17-20, dentro do
conjunto dos evangelhos sinóticos, como sendo a que melhor representava essa
relação e expressava tanto o pensamento de Jesus como a resposta da comunidade
às exigências feitas por ele, em seu próprio Sitz im Leben. O estudo do evangelho
de Mateus tem demonstrado que ele é, ao mesmo tempo, um texto cristão, com
conteúdo eclesiástico bastante marcante e até exclusivo (o único evangelho que
usa o termo “igreja” [evkklhsi,a]), e um texto próximo da cultura judaica, por
diversos aspectos, dentre eles o apoio incondicional à Lei e o uso do ensino de
Jesus de forma bastante próxima dos mestres judeus. A comunidade de Mateus
154
era composta de cristãos-judeus que seguiam a Jesus, mas desejavam manter-se
fiéis às raízes judaicas as quais estavam ligados, seja na Antioquia ou na Galiléia.
Ao mesmo tempo, a comunidade de Mateus vivia a crise da destruição do
templo (70 d.C.), e o antagonismo de outros grupos, os quais desejavam fortalecer
a identidade de seu grupo nesse ambiente. Assim, é provável que o evangelho de
Mateus tenha surgido como resposta documental para setores internos – pessoas
que não concordavam com o estilo judaico da comunidade – e externos – os
grupos judeus antagônicos. Para que essa resposta fosse convincente e forte o
suficiente, era necessário que fosse fundamentada nos ensinos do próprio Jesus, o
líder por excelência do grupo.
Quanto aos grupos antagônicos, os mais citados no evangelho são os
fariseus e os escribas, dois grupos que se fortaleceram após o declínio do grupo
sacerdotal, por conta da destruição do templo. Mas eram grupos polêmicos,
criticados não só por Jesus (e ainda mais por Mateus), como também por outros
grupos contemporâneos, que nada tem a ver com a propaganda protocristã do
primeiro século.
A análise da perícope de Mt 5,17-20 levou em conta essas premissas gerais,
e metodologicamente, utilizou várias abordagens, que se concatenam no corpo da
própria pesquisa. Como metodologia para a exegese, foram utilizados
principalmente o método histórico-crítico, que ajudaram a perceber como o dito
foi construído redacionalmente na forma como se apresenta na perícope. Ficou
patente que os v.18-19 formam uma unidade interna aos v.17,20, que se tornam
uma moldura. Quanto à dependência nessa estrutura, no entanto, tanto se pode
afirmar a primazia de 17,20 como ditos mais antigos, quanto o contrário.
A partir dessa análise percebemos que, apesar da exclusividade do dito em
Mateus, e de sua mão redacional claramente verificável, a perícope é uma junção
de tradições antigas que vem de fonte exclusiva (M) na maior parte, e da fonte
comum a Lucas (Q) no caso do versículo 18.
Por outro lado, ficou claro que essa perícope não está isolada no todo do
evangelho, mas forma um conjunto com sentido e objetivo coerente. Do ponto de
vista contextual, de fato, introduz a seção seguinte do Sermão do Monte, onde são
colocadas as antíteses (5,21-48), e mais adiante as normas de comportamento da
comunidade (6,1-7,12). É possível estabelecer, assim, uma relação temática entre
o v.17, com 5,21-48 (o pleno cumprimento da Lei), e o v.20 com 6,1-7,12
155
(praticar a justiça superior). Como confirmação de ambos os motivos, a
declaração de que a Lei continuará valendo (v.18), e que ensinar e praticar essa
Lei seria a condição para entrar no reino dos Céus (v.19).
As principais questões que se colocaram frente ao tema e ao texto tem a ver
com a autenticidade do dito, o fundamento judaico do dito, e se o conteúdo dele é
escatológico ou não.
Quanto à autenticidade, há uma corrente que a questiona e outra que a
defende. Para os que a questionam, o princípio é simples: Jesus não foi um
questionador ferrenho do Antigo Testamento e da cultura judaica, e a comunidade
faz afirmações como sendo de Jesus que intensificam essa relação. Para que possa
sobreviver, a comunidade coloca na boca de Jesus a defesa da Lei, coisa que o
próprio Jesus nunca fez (Bultmann). Mesmo assim, essa corrente concorda que
Jesus de fato teve papel de escriba, e como tal, teve autoridade para interpretar as
leis à medida que julgava necessário (Bornkamm). Mas é possível que o grupo
antagônico fosse de “dentro” e não de “fora”. Ou seja, alguns afirmam que o
embate se dava no interior da comunidade, na discussão sobre seguir ou não a Lei.
Assim, a perícope aponta para um grupo conservador dentro da própria
comunidade de Mateus (Barth, Fabris, Gnilka, e outros).
A corrente que defende a autenticidade segue uma linha de raciocínio a
partir da análise literária em si. Para ela, o dito expressa uma base aramaica que
demonstra a autoridade de Jesus e tinha correlação com ditos comuns da Galiléia
contemporânea a Jesus (J.Jeremias). Para outros, no entanto, em oposição à
corrente que não aceita o dito como autêntico, faltam provas que possam afirmar
veementemente que ele é inautêntico (Kümmel). E por esse motivo interpretam o
dito como autêntico, considerando como mais importante o sentido que ele tem,
do que a discussão sobre a autenticidade em si. Para esses, o sentido do dito é o
fato que Jesus rompe com tradições consideradas infiéis à Lei, por conta da
casuística da tradição dos anciãos. A comunidade teria resgatado tradições sobre
Jesus e a Lei que em geral foram ignoradas (Banks, Mateos e Camacho, Ladd,
Martin). Por isso, alguns chegam a ter uma certa imparcialidade sobre o assunto
(Theissen, Stanton, Carter). De um modo geral, o que essa corrente defende é que
o fato do dito ser exclusivo de Mateus não significa automaticamente que não
possa ser autêntico.
156
Por isso foi necessário fazer uso da criteriologia proposta pela third quest, a
terceira onda de pesquisas a respeito do Jesus Histórico. Essa criteriologia é
também passível de análise crítica, mas foi adequada para a presente pesquisa.
Para o estudo da perícope de Mt 5,17-20 se leva em conta o fato de Jesus ter
realmente utilizado o ensino como a principal forma de proclamar a mensagem,
mesmo que não a tenha colocado por escrito ou sistematizado. Foram utilizados
os
critérios
da
Múltipla
Atestação,
da
Plausibilidade
Histórica,
do
Constrangimento, da Rejeição e da Execução e o Critério do Estilo de Jesus.
Seguindo esses passos, chegou-se à conclusão que há fortes indícios para
considerar o dito como autêntico. Os principais motivos foram: a estreita relação
com seu mundo judaico, o estilo do dito, que aponta para categorias aramaicas, e
o fato de que a Igreja não seguiu essa postura de fato, ou seja, foi exclusiva de
Jesus.
No tocante ao substrato judaico do dito, duas abordagens ajudaram a
compreender a relação de Jesus com a Lei e suas exigências para seus seguidores.
Por um lado, a análise temática a respeito do assunto permitiu verificar que não é
possível pensar Jesus fora de seu contexto sócio-cultural. Ele foi realmente um
judeu observante da Torá, manteve os costumes de seu povo e tinha uma piedade
baseada nas antigas tradições israelitas. No entanto, Jesus teve autoridade, como
profeta, como mestre, e como intérprete da Lei, que o qualificou a interpretar os
preceitos que contrariavam premissas fundamentais da vontade de Deus. Aliás, foi
na busca por cumprir a vontade de Deus que Jesus cumpriu a Lei. Não como um
fim em si mesmo, mas como um princípio para a vida.
Considerando esse sentido, ficou constatado que Jesus questionou certas
interpretações por parte de grupos judeus contemporâneos, especialmente os
escribas e os fariseus. Questões como o Sábado e a pureza levítica, interpretados
casuisticamente, foram revistos por Jesus, que se colocou acima de tradições
humanas. Por outro lado, certos preceitos do Decálogo, que permitiam violência
ou eram vagos nas implicações práticas, foram intensificados por ele. Jesus
proibiu a vingança, além de outras atitudes que tornavam o próximo objeto do
desejo egoísta daqueles que tentavam distorcer a Lei. A conclusão coerente a que
se chega é que Jesus levou o cumprimento da Lei ao nível de uma ética
inigualável para seu tempo. A ética do amor a Deus e ao próximo como pleno
cumprimento da vontade de Deus (cf. Mt 22,34-40).
157
A outra maneira como foi percebido esse substrato judaico se deu pela
análise semântica dos ditos, agora partindo da premissa que são autênticos. Jesus
utiliza expressões de forte cunho messiânico (o “Vegw,” enfático), que marcaram
muitas das suas falas. A idéia do cumprimento é muito mateana, mas é atestada
paralelamente em textos rabínicos que, de alguma forma, polemizam não com
Mateus, mas com Jesus591. O termo grego plerw/sai - “cumprir” - demonstra que
há vários sentidos que podem ser aplicados ao dito, mas o principal deles é o
cumprimento da vontade salvífica de Deus, que aponta para a Lei não como fim
em si mesma, mas orientadora para uma prática voltada para o amor.
Outro termo que auxiliou na percepção da raiz judaica é o avmh.n, considerado
por alguns como a verdadeira voz de Jesus nos evangelhos (J.Jeremias). O termo
tem dois aspectos de importância para a nossa pesquisa. (1) Evidencia a
autoridade de Jesus frente à comunidade, como mestre verdadeiro, cujo
ensinamento devia ser seguido de forma absoluta. (2) Aponta o respeito por
tradições de ditos que tivessem início com esse termo, mantendo a afirmação na
língua original, apenas transliterando para o grego.
Por fim, o termo “justiça” - dikaiosu,nh - tem em Mateus relação de
significação com o qdc do Antigo Testamento, ao contrário de uma idéia helênica
de justiça. Jesus afirmou a justiça dentro do imaginário judaico, o qual se refere às
atitudes concretas que uma pessoa irá realizar a partir da instrução (Torá) que terá
recebido. O conceito helênico trata do termo a partir de um ideal, ao contrário do
dito de Jesus. Isso é relevante pelo fato de se perceber que a perícope de Mt 5,1720 não trata de um ideal a ser alcançado, como foi interpretado no passado, mas
de uma prática vivencial concreta, que deve ser regida pelo princípio do amor.
Esses três termos em particular são indícios de que há um substrato
aramaico ao texto, o que pode significar duas coisas: ou a comunidade de Mateus
tem suas bases na língua aramaica, ou a maior parte do material de ditos de
Mateus vem do próprio Jesus. Nesse segundo caso, o que se percebe é a busca da
comunidade em manter-se fiel ao projeto original de Jesus, que é uma releitura da
forma como a Lei estava sendo interpretada e vivenciada. Mas, qual é o fim da
fidelidade à Lei, e até quando irá durar sua validade? Essas perguntas, que
591
Como o caso do Shabbat 116a, citado no capítulo 3, que diz, em tom irônico: “Eu não vim para
tirar algo da lei de Moisés Antes vim para acrescentar à lei de Moisés”.
158
provavelmente surgiram na vivência da comunidade, são respondidas de uma
maneira que dá margem à compreensão do dito como sendo escatológico.
Essa é a terceira grande questão de nossa pesquisa. A perícope deve ser
entendida como escatológica no seu todo, ou apenas em partes? Ou ainda, ela tem
elementos escatológicos de fato ou não? Tratar da perspectiva escatológica,
conquanto não seja o centro da discussão nesse caso, é importante para entender
especialmente dois trechos: “até que passem o céu e a terra”, e “não entrarão no
reino dos Céus”, além da idéia de “pequeno” e “grande” no reino.
Considerando que Jesus compartilhou com seus contemporâneos o conceito
básico de escatologia, vinculado a antigas tradições proféticas, teremos
sumariamente a idéia de uma referência a um tempo futuro, que superará a
situação atual. Ou seja, se deve pensar em termos de uma descontinuidade
histórica, entre o agora e o futuro, como algo que só poderia ser realizado por
Deus. Ao mesmo tempo, Jesus lidou com o novo conceito popular de apocalíptica,
em que o futuro chega para encerrar a presente ordem, instaurando uma ordem
transcendente e divina.
Nossa pesquisa verificou que o dito de Mateus tem realmente um cunho
escatológico, somado a uma característica de hipérbole, própria do ensino de
Jesus. A escatologia no dito tem por objetivo alertar a comunidade, fazê-la
vigilante na observância da Lei, de acordo com os ensinos de Jesus, que deveriam
ser repassados e praticados continuamente. Ditos similares em Mateus (por
exemplo, em 13,12 ou 25,29) colocam o ensino numa perspectiva de futuro, a
partir da prática da justiça superior, realizada no cotidiano, mas com vistas a algo
maior, transcendente, o reino dos Céus. Ou, como se percebe na literatura
apocalíptica judaica anterior a Jesus, a observância da Lei no tempo presente
garante a participação no reino futuro.
Por isso a prática da Lei não pode ser confundida com atos isolados de
justiça contados de forma linear, mas de uma dedicação completa ao cumprimento
da vontade salvífica de Deus, da mesma forma que Jesus. Essa justiça superior –
em relação às demais interpretações da Lei, opostas a de Jesus – tem na lei do
amor o máximo de seu cumprimento. Essa idéia do amor como cumprimento
pleno da Lei está indicada tanto na base judaica da pesquisa quanto em sua base
escatológica. É a expressão visível da perfeição divina, que só pode ser realizada
pela comunidade de seguidores de Jesus.
159
Assim, nossa pesquisa aponta para o fato de que a relação entre Jesus e a
Lei está centrada na ética do amor, e nas exigências concretas que essa ética
pressupõe. Para Jesus, significou vivenciar o amor de forma intensa, responder
por ele, responsabilizar-se pelo próximo, mesmo que este seja incapaz de
corresponder. E fez isso até a morte, não de forma isolada, mas como ápice de sua
entrega pelo próximo, pois sua vida o impeliu a isso. Cumpriu toda a Lei, e assim
cumpriu toda a vontade salvífica de Deus. Para a comunidade de Mateus,
representou perseverança na perseguição, solidariedade para com os aflitos que
também se sentiam desprotegidos e incapazes de praticar a justiça.
Não sabemos ao certo o que aconteceu com a comunidade de Mateus, se foi
absorvida pelas comunidades gentílicas no processo de construir uma igreja
“católica”, ou se simplesmente se isolou em seu projeto de um “novo” Israel, a
ponto de deixar de existir como grandeza comunitária. Mas o fato é que a firmeza
doutrinária pela qual a comunidade vivia deve servir de exemplo para as
comunidades cristãs atuais. Se há um acento teológico que deve ser trazido para
nossa prática hoje é a convicção de ensinar e praticar – grandezas que devem
existir unidas, e nunca separadas – a Lei segundo a interpretação de Jesus. O
ensino sem a prática é igual ao farisaísmo condenado em Mt 23,2-3; a prática sem
o ensino será como não plantar quando se tem a semente à mão: em pouco tempo
esta deixará de existir.
Mas, sem dúvida, a grande prática cotidiana que é exigida por Jesus tem a
ver com a ética do amor. É ela que deve orientar cada atitude e todo o ensino que
o seguidor de Jesus deseja realizar. Qual um escriba, iniciado no reino dos Céus, é
o discípulo de Jesus, o qual analisa sempre o que é “novo” e o que é “velho”,
mediante o ensino do amor.
160
6.
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