O pano de fundo cultural do Romantismo

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TEXTO EXTRAÍDO DA OBRA DE HENRI F. ELLENBERGER
(PARA A DISCIPLINA DE EPISTEMOLOGIA DA PSICOLOGIA)
[Tradução de César Rey Xavier]
O Pano de Fundo Cultural do Romantismo:
O Romantismo originou-se na Alemanha e lá atingiu o ápice de seu
desenvolvimento entre 1800 e 1830 até declinar, embora tenha se difundido
amplamente pela França, Inglaterra e outras nações.
Seu impacto foi de tal
magnitude que deixou resquícios sobre a vida cultural européia por todo o século
XIX. Em seu senso estrito, o Romantismo aplicou-se a alguns grupos licenciosa e
vagamente conectados de poetas, artistas e filósofos do início do século XIX. Em
seu senso mais amplo, aplicou-se a um vasto movimento que se expressou sob
uma bem caracterizada perspectiva a respeito da vida.
O Romantismo foi freqüentemente considerado como sendo uma reação
cultural ao Iluminismo. Enquanto este último proclamava os valores da razão e da
sociedade, o Romantismo tinha o culto do irracional e do individual. Tendências
místicas, as quais haviam sido postas de lado pelo Iluminismo, estavam agora
[novamente] na pauta do dia. Uma teoria política considerou o Romantismo como
sendo um movimento de renovação nacional, afim com o princípio das
nacionalidades. Este movimento foi mais forte na Alemanha do que em qualquer
outro lugar [daí alguns se referirem a ele como o “Romantismo alemão”], como
resultado de circunstâncias políticas desafortunadas que lá vinham prevalecendo
por séculos [...] O Romantismo devolveu para a Alemanha o sentimento de sua
própria identidade nacional [que na ocasião se encontrava dividida e fragmentada
em uma multiplicidade de pequenos estados soberanos], contribuindo, assim, para
sua renovação política. Brunschwig relacionou o surgimento do Romantismo ao
desequilíbrio demográfico na Alemanha por volta do fim do século XVIII.
A
população urbana da Alemanha aumentou consideravelmente e uma nova
geração de burgueses e intelectuais, privados de oportunidades profissionais e
deparando-se com um presente sombrio, adotaram uma mentalidade irracional,
numa atitude de volta ao passado remoto ou ao futuro remoto, e viviam em
constante expectativa por milagres na religião, na medicina, no amor, na ocupação
e na vida diária.
Quaisquer que sejam as explicações acerca de sua origem, uma série de
aspectos do Romantismo são essenciais:
1 – Acima de tudo estava seu profundo sentimento pela natureza, em
contraste com o Iluminismo, o qual estava centrado ao redor do Homem e
encontrava sua expressão em um verso bastante citado [...] [que dizia]: “o
autêntico estudo da humanidade é o homem”.
O Romantismo olhava para a
natureza com um sentimento de profunda reverência, com Einfühlung (sentimento
para com, ou empatia), com um anseio por penetrar em suas profundezas no
sentido de descobrir a verdadeira relação do homem com a natureza.
Este
sentimento pela natureza foi demonstrado na poesia lírica romântica bem como
nas especulações da filosofia da natureza. Ademais, este podia até mesmo ser
encontrado no interesse dos fisiologistas acerca do ritmo e periodicidade no
organismo humano e seu relacionamento com os movimentos cósmicos.
2 – Por detrás da natureza visível, o romântico buscava penetrar nos
segredos do “fundamento” (Grund)1 da natureza, os quais ele considerava serem
ao mesmo tempo o fundamento de sua própria alma. Os meios para se alcançar
aquele fundamento não repousavam apenas no intelecto mas também no Gemüt2,
isto é, na mais íntima qualidade da vida emocional.
Daí, o interesse que foi
manifestado pelo Romantismo para com todas as manifestações do inconsciente:
sonhos, caráter, doença mental, parapsicologia, os poderes ocultos do destino, e
seus interesses pela psicologia de animais.
Daí [não admira que] também
estivessem atentos ao folclore e contos populares, bem como à expressão
espontânea de caráter popular.
Isto também explica o entusiasmo pelo
magnetismo. Este princípio [refere-se ao Grund], também chamado de o lado
obscuro da natureza, continha os símbolos universais bem como as sementes das
coisas que chegam a ser. O estudo sistemático dos mitos e símbolos foi iniciado
por pensadores tais como Christian Gottlieb Heyne, Friedrich Schlegel, Creuzer e
Schelling, para os quais estes não eram meros equívocos históricos ou conceitos
abstratos, mas forças vitais e realidades.
3 – Em terceiro, estava o sentimento por “tornar-se” (Werden3). Enquanto
o Iluminismo acreditava na razão eterna e em sua fixa [e regular] manifestação na
forma do progresso da humanidade, o Romantismo sustentava que todos os seres
originavam-se a partir de princípios seminais, os quais desenvolviam-se nos
indivíduos, nas sociedades, nações, línguas e culturas. A vida humana não era
apenas um longo período de maturidade seguindo um curto período de
1
2
Grund, que significa: motivo, razão, causa, solo, chão, terreno, base, fundamento, fundo.
Gemüt, que significa: índole, natureza, gênio, mentalidade, ânimo.
imaturidade, mas um processo espontâneo de desdobramento, uma série de
metamorfoses (as quais C. G. Jung viria mais tarde a chamar de individuação). O
Bildungsroman, novelas descrevendo o processo de desenvolvimento intelectual e
emocional de um indivíduo, tornou-se uma forma favorita de literatura e
provavelmente inspirou psiquiatras a escrever histórias de caso em conexão com
o conjunto da história de seus pacientes.
4 – O Romantismo estava envolvido com nações e culturas em particular,
não apenas com a sociedade em geral.
Os românticos alemães não apenas
restauraram a língua e a cultura alemã ao seu merecido lugar, como também
estudaram avidamente um grande número de outras culturas com seus folclores,
contos populares, mitos, literatura e filosofias.
Sua Einfühlung no sentido de
outras culturas é melhor demonstrada na surpreendente perfeição de suas
traduções de autores estrangeiros, em que os poetas românticos foram bem
sucedidos, por exemplo, em fazer de Shakespeare um poeta da nação alemã.
Friedrich Schlegel proclamou, “uma pessoa verdadeiramente livre e educada deve
estar apta a sintonizar consigo própria à vontade, filosófica ou filologicamente,
crítica ou poeticamente, histórica ou retoricamente, para o antigo ou para o
moderno, ao estilo de quem afina um instrumento, a qualquer tempo e em
qualquer nível”.
Novalis também pensava que “a pessoa perfeita deve viver
igualmente em vários lugares e em várias pessoas”.
5 – O Romantismo trouxe um novo sentimento pela história, esforçando-se
por invocar, como não poderia deixar de ser, o espírito de séculos passados. Foi
3
Werden, que significa: tornar-se, transformar-se, vir a ser, ficar.
dito que o Romantismo alcançou Einfühlung com todo e qualquer possível período
histórico, à única exceção do Iluminismo.
Contudo, sua predileção tendia na
direção dos tempos medievais, os quais são redescobertos, em muito, do mesmo
modo que a Renascença havia redescoberto a antigüidade greco-romana.
6 – Em contraste ao Iluminismo, o Romantismo deposita uma forte ênfase
sobre a noção de indivíduo.
Em 1800, em seu Monólogos, Schleiermacher
destacou a absoluta singularidade de cada indivíduo, um conceito sustentado por
todos os românticos. O conceito tipicamente romântico de Weltanschauung (visão
de mundo) indica um estilo específico de percepção do mundo, particular a uma
nação, a um período histórico ou a um indivíduo. De acordo com Max Scheler,
aquele termo foi cunhado por Wilhelm von Humboldt, quem proclamava que a
ciência de um certo período estava sempre inconscientemente determinada por
sua Weltanschauung. Enquanto o Iluminismo havia tido a tendência de considerar
a sociedade como praticamente um produto da vontade humana, quando não
artificial, ou como o produto de um contrato social, o Romantismo considerava a
vida comum como um dado natural e independente da vontade do homem. Os
românticos freqüentemente trabalhavam ou viviam juntos como dois amigos, dois
irmãos, irmão e irmã, ou em pequenos grupos de amigos que se encontravam em
intervalos regulares para trocar visões e idéias.
No relacionamento entre os
sexos, os românticos demandavam, acima de tudo, por uma qualidade espiritual e
emocional e detestavam a idéia iluminista do casamento da razão. Em 1799,
Friedrich Schlegel levantou bastante controvérsia com sua novela autobiográfica
Lucinde, na qual ele exaltava a noção do amor duradouro – amor romântico –
como sendo uma fusão de paixão física e atração espiritual. [...]
À semelhança dos movimentos culturais precedentes, o Romantismo
produziu seu tipo ideal de homem.
Suas principais características eram uma
extrema sensibilidade, capacitando ao homem “sentir por dentro” a Natureza e
“sentir com” outros homens, uma rica vida interior, acreditar no poder da
inspiração, intuição, e espontaneidade, e na importância atribuída à vida
emocional. Os românticos foram algumas vezes criticados pela sua tendência ao
entusiasmo fácil e sentimentalismo.
Porém, Friedrich Schlegel e os primeiros
românticos [também] apontaram para a virtude da “ironia”, no senso romântico do
termo, uma atitude irreverente na direção dos próprios sentimentos [...]
Entretanto, sempre ocorria que o homem e a mulher românticos fossem afligidos
com aquele mal-estar do qual Schlegel deu uma imagem em Lucinde -
uma
Sehnsucht4, um anseio por algo indefinível e extraordinário, o herói, em contínua
inquietação, perambulando incertamente ao redor, levando uma vida errante que o
conduz, por fim, até a beira de um colapso. Muitos românticos foram realmente
impacientes e estiveram em falta com uma auto-disciplina, dando o melhor de
seus talentos à improvisação e às conversas, deixando para trás trabalhos não
acabados.
Alguns morreram prematuramente, fosse por doença física como
Novalis, fosse por doença mental como Hölderlin [...]
Quando se fala a respeito do Romantismo, normalmente se associa esta
expressão à literatura, ou à musica e às artes; mas na Alemanha o Romantismo
4
Sehnsucht, que significa: saudade, nostalgia, anseio, desejo ardente.
também impregnou-se na filosofia, na ciência e na medicina. Em vista de sua
particular importância no que tange aos desenvolvimentos posteriores da
psiquiatria dinâmica, nós devemos lançar um olhar mais acurado sobre as
implicações do Romantismo nestas esferas [ou seja, nas da ciência, filosofia,
medicina e psicologia].
Filosofia da natureza e filosofia romântica:
Uma específica escola de pensamento, a chamada Naturphilosophie
(filosofia da natureza) foi fundada como um desdobramento do romantismo
alemão através do filósofo Friedrich Wilhelm von Schelling (1775-1854) e incluiu
tanto cientistas quanto filósofos entre seus partidários.
O ponto de partida da filosofia de Schelling era a asserção de que a
natureza e o espírito brotavam [ou emergiam] do absoluto e constituíam uma
unidade indissolúvel. “A natureza é espírito visível, o espírito é natureza invisível”.
Portanto, a natureza não pode ser compreendida apenas em termos de conceitos
mecânicos e físicos, mas, isto sim, precisa também ser compreendida nos termos
da leis espirituais subliminares, para as quais a filosofia da natureza se dedica e
se esforça por elucidar. Na natureza visível, o mundo orgânico emerge a partir de
um princípio espiritual comum, a alma do mundo (Weltseele5), a qual estando fora
de si mesma e mediante uma série de gerações produzia sucessivamente a
matéria, a natureza viva e a consciência no homem. A natureza orgânica e os
vários reinos do mundo vivente diferiam por meio de seus graus de perfeição, mas
eles obedeciam às mesmas leis. Portanto, as leis que governavam um dos reinos
5
Também conhecida por anima mundi, ou ainda, por anima terrae.
bem poderiam ser descobertas através da exploração de outros reinos e do uso
da analogia, esta a varinha de condão da filosofia romântica.
FONTE:
ELLENBERGER, Henri F. The discovery of the unconscious : the history and
evolution of dynamic psychiatry. USA, Basic Books, 1970. pp.199 – 203.
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