dissertação (versão preliminar) - Associação de Leitura do Brasil

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REPENSANDO A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE LÍNGUA PORTUGUESA: UM
RELATO DE EXPERIÊNCIA
Margarete Feresin Gomes (Mestranda – UNESP- Araraquara)
Meu objetivo para este trabalho é provocar uma reflexão sobre a possível dificuldade de
implantação e aplicação, em sala de aula, dos documentos oficiais (Proposta Curricular de Língua
Portuguesa - PCLP e Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs)1, tomando por base a formação do
professor.
Partindo da idéia de que a memória e a reflexão são de extrema importância na vida do ser
humano, e que um homem não sabe o que ele é se não for capaz de sair das suas determinações atuais
(BOSI, 1994), parto, primeiramente, do relato da minha própria formação, tanto universitária quanto em
serviço, bem como das dificuldades encontradas para o ingresso e permanência no curso de mestrado,
para auxiliar-me na análise subseqüente.
1- DA FORMAÇÃO UNIVERSITÁRIA À ENTRADA NA PESQUISA
Com relação à minha formação universitária, durante os três anos de curso, no que diz respeito
ao estudo de língua, Joaquim Mattoso Câmara Júnior, com Estrutura da Língua Portuguesa, Celso
Ferreira da Cunha, com Gramática da Língua Portuguesa, e Adriano da Gama Kury, com Lições de
Análise Sintática, foram a referência, na disciplina de Língua Portuguesa.
Quanto à Lingüística, tive contato somente com Ferdinand de Saussure, a partir do segundo
ano. Seus conceitos me foram apresentados em formas de perguntas que deveriam ser respondidas com
recorrência a uma apostila, que continha comentários sobre os conceitos defendidos pelo Autor.
Com relação à disciplina Prática de Ensino, disciplina cursada no segundo ano, as exigências
para a conclusão da mesma consistiram em: estágio de observação – 30 horas; estágio de recuperação
– 30 horas; fundamentação teórica - 29 horas e estágio de regência – l hora. O cumprimento do estágio
de observação se deu com minha presença na sala de uma professora que lecionava nos dias indicados
para a realização do estágio. As aulas eram fundamentadas no uso do livro didático. Quanto ao estágio
de recuperação, solicitei à professora que selecionasse alguns alunos que apresentavam dificuldades
para que pudesse trabalhar com eles, fornecendo-lhes atividades de reforço durante as trinta horas.
Na disciplina de Didática, obtive algumas idéias de Piaget, que não ultrapassaram oito páginas
de caderno universitário.
Vale ressaltar que não tive contato com a disciplina Metodologia de Pesquisa que, dentre outros
objetivos, introduz o graduando aos passos de elaboração do trabalho acadêmico (anteprojeto de
pesquisa e monografia).
Estava, dessa forma, habilitada para exercer a prática docente e ingressar no magistério, que
se deu em 19862.
Nesse período, a SEE-SP, almejando implantar reformas para a renovação do ensino de Língua
Portuguesa, elabora a PCLP3. Para tanto, convocou um professor de cada Delegacia de Ensino (DE) 4,
que na época foram nomeados monitores, para, após reunir-se com a equipe da Coordenadoria de
Documentos lançados pela Secretaria de Estado da Educação – SEE - do Estado de São Paulo, cuja implantação
participei como professora de Língua Portuguesa, na rede pública, desde 1986.
2 Em minha dissertação, descrevo essa formação com mais detalhes. O que, aqui, trago são apenas algumas
considerações para servir de subsídios à minha análise.
3 Vale ressaltar que, durante os quinze anos em que estive no magistério, a PCLP foi reeditada por várias vezes sem
nenhuma modificação.
4 Delegacias de Ensino eram, e são até a presente data, órgãos regionais da SEE-SP que têm um determinado
número de escolas sob sua jurisdição.
1
Ensino e Normas Pedagógicas (CENP) 5, repassar-nos as orientações recebidas para a divulgação do
documento. Essas orientações, denominadas orientações técnicas, aconteciam na escola ou na própria
Delegacia de Ensino. Tais orientações se estenderam durante os primeiros oito anos da minha carreira
docente.
A partir do nono ano, passei a atuar em outra região do estado, onde as orientações técnicas
eram menos freqüentes, constatação, essa, que me despertou a entrar na pesquisa, pois julgava-me, por
haver participado dessas orientações técnicas, conhecedora e aplicadora da PCLP.
Para tanto, tomei uma questão que dizia respeito a um trabalho desenvolvido por uma
professora dessa região com relação ao ensino de gramática e produção de textos 6 e parti para a
pesquisa, alegando que tal trabalho não havia sido desenvolvido de acordo com a PCLP, que propõe
que, das atividades de linguagem à descrição gramatical, trabalhe-se com atividades lingüísticas,
epilingüísticas e metalingüísticas.
Nesse momento, para dedicar-me totalmente à pesquisa, era necessário afastar-me das minhas
atividades docentes, mas não pude recorrer ao afastamento específico para o curso de mestrado por não
ser efetiva, no cargo, há três anos. Esse empecilho levou-me a requerer um outro afastamento,
concedido, ao professor, para o mesmo poder tratar de assuntos particulares, pelo período de dois anos.
Nesse tipo de afastamento, há prejuízos de vencimentos e das demais vantagens do cargo. Não era o
que queria, mas era o único que o estado me oferecia, naquele momento.
Essa constatação revela as primeiras dificuldades que encontrei para poder estender minha
formação, dentre outras relacionadas às próprias exigências para o ingresso e permanência na pósgraduação (leitura de textos em segunda língua, disciplinas que comportam uma diversidade de
correntes lingüísticas, elaboração de texto acadêmico), por ser oriunda da formação que demonstrei.
2- DA ENTRADA NA PESQUISA AO ABANDONO DO PROJETO INICIAL
Com o ingresso no mestrado, porém, resolvi abandonar o projeto inicial de pesquisa porque fui
percebendo que, tanto as idéias contidas na PCLP, quanto nos PCNs, mesmo tendo tido orientações
técnicas para trabalhar com o material, não me eram acessíveis pela própria elaboração dos
documentos, principalmente no que diz respeito às atividades lingüísticas, epilingüísticas e
metalingüísticas, e pela minha formação, tanto universitária quanto em serviço, que me impossibilitava o
entendimento dos conteúdos constantes nesses documentos.
Nesse momento, tratarei mais especificamente de alguns aspectos relacionados à minha
formação universitária que me levam a afirmar que a mesma não me poderia possibilitar a leitura dos
documentos oficiais, conforme passo a demonstrar.
Com relação a Câmara Júnior (1983), por mais que suas idéias tivessem me mostrado uma
gramática descritiva que fazia, em vários momentos, oposição à gramática normativa7, seus estudos8 não
me proporcionaram outra forma de análise que excedesse o vocábulo.
5
Órgão criado em 1976 para estabelecer uma sistemática no processo de implantação curricular da SEE-SP. É
composta por equipes técnicas responsáveis pelo apoio pedagógico às ações de capacitação em serviço dos
profissionais de ensino que fazem parte da rede estadual.
6 Dados que constam na pesquisa de mestrado. Não farei a exposição dos mesmos, nesse momento, por não
considerá-los relevantes ao assunto que quero tratar neste texto.
7 Como exemplo, apresento uma análise que Câmara Júnior faz com relação à flexão de gênero em português,
alegando ser exposta de uma maneira incoerente e confusa pelas gramáticas tradicionais. O Autor afirma que é
comum lermos nas nossas gramáticas que mulher é o feminino de homem. Diz que a “descrição exata é dizer que o
substantivo mulher é sempre feminino, ao passo que outro substantivo, a ele semânticamente relacionado, é sempre
do gênero masculino” e que na “descrição da flexão de gênero em português não há lugar para os chamados ‘nomes
que variam em gênero por heteronímia’. Para Câmara Júnior, a flexão de gênero é uma só, com pouquíssimos
alomorfes: acréscimo do sufixo flexional a com a supressão da vogal temática, quando ela existe no singular (Ex.
lob(o) + a = loba). Da mesma sorte, afirmar que galinha, perdiz e imperatriz são femininos de galo, perdigão e
imperador, respectivamente, é confundir flexão de gênero com derivação: “As divisões das nossas gramáticas a
respeito do que chamam inadequadamente ‘flexão de gênero’ são inteiramente descabidas e perturbadoras na exata
descrição gramatical”. (Câmara Júnior, 1983, p. 89).
Segundo Ilari (1992, p. 14-15),
...ensinar Lingüística nos cursos de Letras não é passar receitas prontas
para os problemas de análise sintática, nem expor magistralmente teorias
e modelos prestigiosos junto à própria comunidade dos lingüistas; menos
apropriada ainda seria a discussão programática dos objetivos da
Lingüística, da subdivisão de suas disciplinas ou o confronto das escolas.
A contribuição da Lingüística no curso de Letras, para Ilari, faz-se imprescindível, quando se
tem o objetivo de preparar o futuro professor para compreender a atividade de fala de seus alunos e
propiciar-lhe a oportunidade de analisar fatos da língua com rigor e sem preconceitos.
O Autor afirmou, ainda, que
o estudante e o professor devem adotar em relação aos fatos da língua, a mesma atitude do
cientista natural: levantar hipóteses intuitivas dar a essas hipóteses uma formulação exata, inferir suas
conseqüências e confrontá-las com os fatos, para uma confirmação sempre provisória ou uma refutação.
Segundo o Autor, se realizadas, a inferência e confrontação muitas das explicações da
gramática tradicional podem até ser confirmadas. Para Ilari, o importante é que o estudante perceba a
precariedade de qualquer posição dogmática. Se se partir desse pressuposto, a Lingüística teria, assim,
um papel importante na formação do professor, pois introduz um elemento de participação ativa na
análise da língua, que o habilitará a reagir de maneira crítica com relação às opiniões correntes e lhe
permitirá, em sua vida profissional, avaliar com independência os recursos didáticos disponíveis e as
observações e as dificuldades de seus alunos.
Nesse sentido, os estudos de Câmara Júnior (1983) não me proporcionaram tal contribuição, ou
seja, analisar fatos com rigor e sem preconceitos, uma vez que o próprio Câmara Júnior, embora
considere outras modalidades lingüísticas, parece indicar um favoritismo pela variedade usada pelas
classes ditas cultas com a afirmação de que “ela visa a servir de ponto de partida para a gramática
normativa no ensino escolar” (p.18), e também pela sua escolha em descrever a língua portuguesa tal
como é usada pelas classes ditas cultas num registro formal, alegando ser adequada às situações sociais
mais importantes. Percebo, assim, um certo rigor, e talvez até um preconceito, de Câmara Júnior com
relação às outras modalidades lingüísticas.
Para exemplificar a proposta de Ilari, tomo como exemplo uma constatação de Perini ( 2000, p.
18-19) que tem a ver com a relação entre a ortografia e a pronúncia. Perini alega que a pronúncia da
primeira vogal da palavra tomate é u independente da classe social ou nível de escolarização. Para nos
convencermos de tal afirmação, Perini sugere que se vá a um mercado e fique de tocaia junto a uma
banca de legumes e verifique quantas pessoas perguntam o preço do tumate e quantas pessoas
perguntam o preço do tomate.
Porém, segundo o Autor, alguns professores de português continuam negando isso e insistem
em dizer que a pronúncia é com o. Para Perini, “eles não podem ter chegado a essa conclusão
observando os fatos, pois estes não a sustentam”; os mesmos “foram levados a acreditar que o “certo” é
pronunciar como se escreve (sempre que possível)” e não querem ouvir e, por conseguinte, não ouvem o
u de tomate.
Esses professores, a que se refere Perini, provavelmente, não tiveram a possibilidade de,
conforme aponta Ilari, levantar hipóteses e confrontá-las com os fatos para uma confirmação ou uma
refutação, mantendo um certo rigor e preconceito.
Dessa forma, pode-se considerar que Câmara Júnior, embora fizesse em vários momentos de
Estrutura da Língua Portuguesa, oposição à gramática tradicional, a meu ver, identifica-se com os
pressupostos da mesma, na medida em que mostra seu favoritismo pela norma culta no ensino escolar,
alegando ser ela adequada às situações mais importantes. Além do mais, para o Autor, a gramática
8
Os estudos de Câmara Juniores foram direcionados às formas mínimas da língua, identificando, em uma parte, o
quadro fonológico de português culto do Rio de Janeiro, e, em outra parte, uma análise do sistema morfológico,
apresentando uma proposta de classificação de vocábulos formais, com especial atenção à identificação dos
morfemas e do sistema de flexão em português.
descritiva pode escolher seu campo de atuação, mas se ela tem em vista o ensino escolar, a descrição
não tomará por base uma modalidade popular ou remotamente regional, partirá do uso falado e escrito
considerado culto. Vale-se das palavras do francês Ernest Tonnelat: o ensino escolar ‘tem de assentar
necessariamente numa regulamentação imperativa’. (p. 15).
Também não é possível concordar com Câmara Júnior (p. 16) quando o mesmo afirma que o
domínio da norma culta possibilita a clareza e a eficiência da capacidade de comunicação do indivíduo.
Tem razão Britto (1997, p. 131) quando afirma que “muito mais do que o domínio da norma, é o acesso à
informação que pode garantir, para os casos em que ela se faz necessária, maior eficiência
comunicativa”.
Dessa forma, se alicerçada pelos meus estudos universitários, meu discernimento com relação
a esse assunto ficaria comprometido, comprometendo, também, de certa forma, o entendimento da
PCLP, que se mostra aderir a conceitos diferentes de Câmara Júnior:
A escola deve desenvolver desde o primeiro ano de alfabetização a
sensibilidade das crianças em relação às variedades lingüísticas e
colocar a
nu os preconceitos sociais que privilegiam umas e
estigmatizam outras. Desde as primeiras expressões (como ‘nóis num
vai’, ‘vô ponhá isso aí’), as primeiras grafias (como ‘cadeira’, ‘cortá’,
‘mulé’), a criança vai aprendendo que se trata de expressões e formas
tão expressivas quanto quaisquer outras e que a modalidade padrão é
uma alternativa e não a linguagem única em que pode manifestar-se
(PCLP, 1998, p. 23)
Sendo assim, a Lingüística que tomei contato não me propiciou a contribuição imprescindível a
que sugere Ilari: confrontar fatos da língua com rigor e sem preconceitos. Além do mais, havia a forte
presença, no próprio curso, dos estudos tradicionais de Celso Ferreira da Cunha, via Gramática da
Língua Portuguesa, que indicavam, em alguns pontos, sentido contrário àquilo que Câmara Júnior
pregava9, não se fazendo uma reflexão entre as duas posições apresentadas e nem buscando uma
confrontação com os fatos da língua para uma confirmação ou refutação.
No que diz respeito ao ensino da metalinguagem, tais conceitos só foram mostrados a mim, sob
o ponto de vista da gramática tradicional. Adriano da Gama Cury e Celso Cunha incorporam algumas
incoerências apontadas pelos descritivistas, que sugerem que se analise a língua em seu uso e
funcionamento (PERINI, 2000, p. 20), cuja visualização só me foi possível com o ingresso na pósgraduação. Apresento algumas delas.
Com relação à definição de sujeito, tanto Cunha quanto Cury, definem-no de forma a cometer
as incoerências apontadas pelos descritivistas.
Para Cury (1972, p. 18-20), sujeito é “o termo que exprime o ser de quem se diz alguma coisa”.
Qual seria a noção de ser para o Autor, quando o mesmo considera brancura como sujeito em A larga
brancura celeste era gloriosa? Se considerar brancura como sujeito, partindo do pressuposto de que o
termo é um ser, teria que considerar, também, como sujeito o termo gota de sangue em Há uma gota de
sangue em cada poema, oração, essa, considerada, pelo Autor, sem sujeito. Será que gota de sangue,
não é um ser de quem se diz alguma coisa, tal qual brancura? Por que considerar Há uma gota de
sangue em cada poema, como oração sem sujeito?
Ainda com relação à definição de sujeito apresentada por Cury, o mesmo classifica ninguém
como sujeito simples da oração Ninguém reparou em mim, mas, como sujeito indeterminado a oração
9
Quando, por um lado, a figura de Câmara Júnior indicava-me que não se deveria considerar mulher, galinha,
imperatriz e perdiz como femininos de homem, galo, imperador e imperatriz, respectivamente, conforme já apontei,
por outro lado a figura de Cunha (1983, p. 201, grifos meus) apontava-me a seguinte definição: “os substantivos que
designam pessoas e animais costumam “flexionar”-se em gênero, isto é, tem geralmente uma forma para indicar os
seres do sexo masculino e outra para indicar os do sexo feminino” e apresenta, por meio de um quadro, que o
feminino de homem é mulher, tal qual aluna feminino de aluno e galinha feminino de galo. Parece, assim, que a
definição de flexão para Cunha é diferente daquela defendida por Câmara Júnior. Cunha, por meio do emprego de
isto é, define que flexão de gênero ocorre quando se tem, geralmente, uma forma para indicar os seres do sexo
masculino e outra para indicar os do sexo feminino, admitindo, assim, a flexão em todos os sentidos, diferentemente
de Câmara Júnior que faz ressalvas a esse respeito.
Pediram silêncio, sob o pressuposto de que “muitas vezes não se pode, ou não se deseja, ou não se
interessa indicar o sujeito de uma oração”. Será que em Ninguém reparou em mim, também não há a
intenção de não se indicar o ser de quem se diz alguma coisa?
O mesmo acontece com Cunha (1983, p. 137-138)). O Autor define sujeito como “o termo de
quem se faz uma declaração” e apresenta quem como sujeito de Quem te pôs tão taciturno? Qual a
declaração que se faz do termo quem nessa oração?
Um outro aspecto que também causa questionamento é com relação à predicação verbal. Cury
define os verbos intransitivos da seguinte forma:
Intransitivos são os verbos que podem conter em si toda a significação do predicado sem
acréscimo de ‘objeto’. São habitualmente intransitivos:
a)- os verbos de fenômenos naturais: chover, ventar, morrer, acontecer, cair, surgir, acordar,
dormir, brilhar, girar, etc;
b)- certos verbos de ação, que exprimem fatos causados por um ser capaz de executá-los, um
AGENTE: brincar, trabalhar, correr, voar, etc.:
‘As crianças brincam’, ‘Os pássaros voam’;
c)- verbos de movimento ou situação: chegar, partir, ir, seguir, vir, morar, estar, ficar, etc.:
‘Moro no Rio de Janeiro’, ‘Fiquei em casa’. (CURY, 1972., p. 24, grifos do autor)
Embora o Autor, ao classificar tal predicação, não se mostre totalmente taxativo por usar, na
definição, o termo habitualmente e o modalizador podem, usa o artigo os no início da definição:
intransitivos são os verbos [...]. Parece-me que esse os, pela função que ocupa no enunciado, pode
particularizar, estreitar, fechar a predicação dos verbos apresentados como exemplo 10, negando a eles a
possibilidade de apresentarem-se como transitivos em orações, tais como: A criança dormiu um sono
tranqüilo, O pássaro voou um vôo bombástico, em que um sono tranqüilo e um vôo bombástico integram
o sentido de dormiu e voou. Sendo assim, dormir e voar não podem ser considerados estritamente
intransitivos.
Com esse procedimento, a gramática tradicional não se preocupa em classificar seus termos
dentro do contexto e do uso em que são proferidos. Apresenta, assim, uma análise da língua de forma
estática, um aparato aspecto-modal estabilizado, não levando em conta seu dinamismo. Há necessidade
de se considerar esse dinamismo, pois muitas das frases dependem da informação extralingüística para
adquirirem seu real significado ou até mesmo, a mudança de contexto altera esse significado de maneira
fundamental.
Como exemplo, tomemos a frase explicitada por Perini (2000): Você sabe onde fica a
biblioteca?. A princípio, poderia ser entendida como uma pergunta e o ouvinte poderia responder
simplesmente sim e diálogo estaria pronto. Mas o problema é que essa frase, conforme aponta Perini, é
uma pergunta em determinadas circunstâncias, mas em outras pode ser outra coisa. Seria interpretada
como uma pergunta, e teria como resposta sei, quando, por exemplo, quero devolver um livro e preciso
da informação de onde fica o local de devolução. Mas, se eu estiver no corredor com cara de perdido e
dissesse a alguém Você sabe onde fica a biblioteca?, não seria absolutamente uma pergunta, mas sim
um pedido de informação e equivale a Por favor, me diga onde fica a biblioteca. Sendo assim, se
apresentássemos a alguém essa frase sem especificarmos o contexto em que foi proferida e
perguntarmos se se trata de uma pergunta ou um pedido de informação, a pessoa não teria condições de
responder.
Dessa forma, o ensino das categorias sintáticas que me foi concedido, na graduação, baseouse, principalmente, nos pressupostos da gramática tradicional, não considerando, na classificação, a
língua em seu uso e funcionamento, estudo que tomei contato somente na pós-graduação.
Essas descobertas me levaram a supor a que se refere a proposta dos PCNs (1998, p. 28-29):
“deve-se ter claro, na seleção dos conteúdos de análise lingüística, que a referência não pode ser a
gramática tradicional”. Vale ressaltar que, para mim, tal proposta apresenta-se de forma intuitiva, no
documento, ou seja, critica a gramática tradicional para que o próprio interlocutor intua o procedimento a
ser adotado.
10
A esse respeito, tomo Neves (2000, p. 393). Segundo a Autora, o artigo definido singular determina um substantivo
comum particularizando um indivíduo dentre os demais indivíduos da espécie.
Ainda com relação às idéias de Câmara Júnior, e também às de Saussure, elas pressupõem
que “a função fundamental da língua é a comunicação”, (CÂMARA JÚNIOR, 1983, p. 23).
Por meio de leituras, percebi que essa função atribuída à língua levanta dúvidas: se a língua é
instrumento de comunicação, como fica, então, a comunicação que se dá por meios não-lingüísticos? A
língua não é instrumento porque instrumento a gente usa e deixa de lado e com a língua isso não
acontece. Além do mais, “falar de instrumento, é pôr em oposição o homem e a natureza”; a linguagem
está na natureza do homem, que não a fabrica: “não atingimos nunca o homem separado da linguagem e
não o vemos nunca inventando-a”. É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como
sujeito, a subjetividade se dá pela linguagem. (BENVENISTE, 1976, p. 285).
Travaglia (1996, p. 22) comenta que, na concepção de língua como instrumento de
comunicação, a língua é vista como um código, ou seja, como um conjunto de signos que se combinam
segundo regras.
Câmara Júnior (p. 25) mostra-se incorporar tal procedimento quando faz recorrência à
afirmação de Bloomfield, abaixo explicitada, para mostrar que ela pode simplificar a descrição de muitos
paradigmas de variação:
‘O processo da descrição nos conduz a apresentar cada elemento morfológico numa forma
teórica básica’ (grifo no original) ‘e em seguida a estabelecer os desvios dessa forma básica que
aparecem quando o elemento se combina com outros elementos. Partindo das formas básicas e
aplicando certas regras, ‘na ordem em que as damos, chega-se finalmente às formas dos vocábulos
como são na realidade enunciados’
O Autor mostra aderir a tal procedimento quando, após valer-se das palavras de Bloomfield,
acima citadas, afirma: “No correr do presente livro, teremos ocasião de aplicar essa técnica mais de uma
vez”. (p. 26)
Tanto é verdade, que, para exemplificar essa técnica, ou seja, a de que na formação do
vocábulo se estabelece regras, o Autor faz recorrência aos vocábulos latinos leon e homin, que no
nominativo, mostram-se como leo e homo e no genitivo como leonis e hominis. Tal exemplo é para
mostrar que a recorrência à formação do genitivo em leonis e hominis,deu-se porque se estabeleceu
duas regras: a)- a nasal final é suprimida no moninativo com nomes neutros; e b)- quando a vogal final for
suprimida no nominativo, a vogal i breve, ficando no final, passa para o longo. O Autor ressalta, também,
que a formação do vocábulo com base em sua forma teórica básica pode contrapor-se à gramática
tradicional, que simplesmente aponta que o genitivo dos vocábulos ora se faz com inis, ora com onis,
sem um princípio que regule a escolha.
Com relação a Saussurre, seus conceitos, adquiridos por meio de perguntas que deveriam ser
respondidas com recorrência a uma apostila, apontaram-me que, para que a comunicação seja efetivada,
existe um código virtual que deve ser dominado pelo falante e é necessário que esse código seja
utilizado pelo menos por duas pessoas, de maneira semelhante, preestabelecida, convencionada. Dessa
maneira, o falante tem em sua mente uma mensagem a transmitir a um ouvinte, ou seja, informações que
quer que cheguem a outro. Para isso, ele a coloca em código (codificação) e a remete para o outro
através de um canal (ondas sonoras ou luminosas). O outro recebe os sinais codificados e os transforma
de novo em mensagem (informações). É a decodificação.
Dessa forma, a língua é vista de forma isolada de sua utilização, não considerando os
interlocutores e a situação de uso como determinantes das unidades e regras que constituem a língua,
afastando o indivíduo falante do processo de produção, do que é social e histórico da língua. Possenti
(2000, p. 49) comenta: “o estruturalismo exclui o papel do falante no sistema lingüístico, define a língua
como meio de comunicação, não há interlocutores, o que há são emissores, receptores, codificadores e
decodificadores”.
Sendo assim, meu curso universitário, via Câmara Júnior e Saussurre, apenas me possibilitou a
visão de língua como instrumento de comunicação. O mesmo poderia ter-me proporcionado estudos
posteriores, uma vez que, em 1984, ano de início do curso, estudos que apresentavam uma outra
concepção de língua já estavam sendo divulgados.
Para mim, até então, ensinar gramática era apenas ensinar as regras de concordância, as
classificações sintáticas e morfológicas oferecidas por Cunha e Cury, embora as leituras à PCLP (1998,
p. 16-17), que hoje percebo não me serem inteligíveis, considerassem, no aspecto constitutivo da língua,
outras regras que não fossem aquelas relacionadas às regras do “falante culto” e sim à dimensão
discursiva ou pragmática da linguagem, à dimensão semântica e dimensão gramatical.
De qualquer forma, conforme afirma Ilari (1992, p.10), se se admitir que o objetivo do professor
de Português é ampliar a capacidade de comunicação, expressão e integração pela linguagem dos
atingidos pelo seu trabalho, tem-se que pensar o ensino de Letras dando enfoque às disciplinas tais
como Fonética, Fonologia, Psicolingüística, Sociolingüística e Análise do Discurso, que apresentam uma
forte intersecção com outras mais técnicas, como a Sintaxe e a Semântica, mobilizando todos os
recursos metodológicos e descritivos de nossa ciência.
Percebe-se, assim, que, com as disciplinas vistas nos três anos de Letras, não tomei contato
com as disciplinas que Ilari acredita serem relevantes para quando se tem o objetivo de, com o ensino de
Língua Portuguesa, ampliar a capacidade de expressão, comunicação e integração pela linguagem. Se
vistas, proporcionar-me-iam um melhor entendimento da concepção de língua adotada pelos documentos
oficiais, a língua como forma de interação:
A linguagem é um trabalho construtivo, um processo coletivo de
que resulta, em uma longa história, o sistema lingüístico e comunicativo
utilizado em uma comunidade É, assim, na interação que a criança se
exercita na atividade constitutiva da linguagem. (PCLP., 1998, p. 16)
Homens e mulheres interagem pela linguagem tanto numa
conversa informal, entre amigos, ou na redação de uma carta pessoal,
quanto na produção de uma crônica, uma novela, um poema um relatório
profissional. Cada uma dessas práticas se diferencia historicamente e
depende das condições da situação comunicativa, nestas incluídas as
características sociais dos envolvidos na interlocução. (PCNs, 1998,
p.20)11.
De qualquer forma, segundo Travaglia (1996, p. 23), na concepção de língua como forma de
interação estariam incluídas correntes e teorias, tais como: Lingüística Textual, Análise do Discurso,
Análise da Conversação, Semântica Argumentativa e todos os estudos de alguma forma ligados à
Pragmática, correntes que não tive acesso na graduação.
Por meio de leituras, fui percebendo em que essas correntes estavam embasadas e como elas
trabalham com a linguagem, o que me possibilitou um melhor entendimento daquilo que os documentos
oficiais se referem.
Observemos alguns exemplos que mostram claramente como os adeptos dessa concepção
trabalham com a linguagem. Não exigem nome, classificação, dão ênfase à interpretação do sentido e do
efeito de humor criado dentro do contexto apresentado:
(UF. UBERLÂNDIA)- ‘Dois meninos falam de suas aspirações e um deles diz:
- Eu sonho ganhar vinte mil por mês, como meu pai
- Teu pai ganha vinte mil por mês?
- Não ele também sonha ganhar.’
Na anedota acima, o humor se estabelece pela ocorrência de uma sentença que permite duas
interpretações.
a)- Transcreva a sentença em que ocorre a possibilidade de dupla interpretação.
b)- Dê as duas interpretações possíveis.
c)- Reescreva a sentença, desfazendo a dupla interpretação (RESUMÃO – anglo/ISTO É).
(FUVEST)- Em nossa última conversa, dizia-me o grande amigo que não esperava viver muito
tempo, por ser um ‘cardisplicente’
- O quê?
11
Abro uma ressalva para apontar que, sob essa perspectiva, os PCNs não inovaram, pois as idéias contidas neles
já se faziam presentes na PCLP, conforme observa-se na primeira citação.
- Cardisplicente. Aquele que desdenha do próprio coração.
Entre um copo e outro de cerveja, fui ao dicionário.
- ‘Cardisplicente’ não existe, você inventou – triunfei.
- Mas se eu inventei, como é que não existe?
Conforme sugere o texto, ‘cardisplicente’ é:
a)- um jogo fonético curioso, mas arbitrário.
b)- palavra técnica constante de dicionários especializados.
c)- um neologismo desprovido de indícios de significação.
d)- uma criação de palavras pelo processo de composição.
e- termo erudito empregado para criar um efeito cômico. (RESUMÃO – anglo/ISTO É)
Dessa forma, a Lingüística deixa de priorizar a análise em nível de frase, encaminhando-se ao
discurso e, àquilo que é fundamental no ensino de língua, o texto, esquecido pela preocupação com o
ensino de determinada teoria gramatical e sua respectiva metalinguagem e com a valorização absoluta
de apenas uma modalidade lingüística no ensino.
Nessa linha de pensamento, “a língua não está de antemão pronta, dada como um sistema de
que o sujeito se apropria para usá-la segundo suas necessidades específicas do momento da interação,
mas que o próprio processo interlocutivo, na atividade de linguagem, a cada vez a (re) constrói”. (Geraldi,
1997, p. 6)
Nessa proposta, conforme afirma Geraldi (1997), há um deslocamento de papéis do professor e
aluno. Eles passam a assumir a posição de interlocutores. Parte-se da idéia que só se aprende uma
língua, na medida em que, operando com ela, comparam-se expressões, transformando-as,
experimentando novos modos de construção e assim, investindo as formas lingüísticas de significação.
Sendo assim, o que o indivíduo faz ao usar a língua não é tão-somente traduzir ou exteriorizar
um pensamento, ou transmitir informações a outrem, mas realizar ações, agir, atuar sobre o interlocutor
(ouvinte/leitor). A linguagem, nessa concepção, é um lugar de interação humana, de interação
comunicativa pela produção de efeitos de sentido entre interlocutores, em uma dada situação de
comunicação e em um contexto sócio-histórico e ideológico. Os usuários da língua ou interlocutores
interagem enquanto sujeitos que ocupam lugares sociais e “falam” e “ouvem” desses lugares de acordo
com formações imaginárias que a sociedade estabeleceu para tais lugares sociais. O diálogo, nessa
concepção, é que caracteriza a linguagem.
Saber gramática, sob essa orientação, como se observou nos exemplos, não depende de
escolarização ou de quaisquer processos de aprendizado sistemático, mas da atuação e
amadurecimento progressivo na própria atividade lingüística, contrapondo-se à gramática tradicional e
até mesmo à gramática descritiva, que, embora considere a situação de uso como determinante para a
classificação das unidades que compõem a língua, não deixa de taxionomizá-la, abstrai a língua de seu
contexto, trabalha com um sistema formal abstrato, retira frases usadas em variedades lingüísticas e
descreve sua forma e função, pois se o ensino de gramática visar ao uso da língua, é perfeitamente
previsível que o tratamento predominantemente formal em sala não cumpra seu papel 12.
Com relação ao texto, a PCLP (1998, p, 18) aponta:
Estamos aqui usando a palavra “texto” para significar todo trecho falado ou escrito que constitui
um todo unificado e coerente dentro de uma determinada situação discursiva. Assim, o que define texto
não é sua extensão (pode eventualmente ser só uma palavra, uma frase, um diálogo, períodos
correlacionados na escrita), mas o fato de que é uma unidade de sentido em relação a uma situação.
Sob essa perspectiva, o objetivo do ensino de língua portuguesa, é o de procurar desenvolver
no aluno, a competência textual, ou seja, a capacidade de, em situações de interação comunicativa,
produzir e compreender textos considerados bem formados, e avaliar a boa ou má formação de um texto
dado, o que equivaleria mais ou menos a ser capaz de dizer se uma determinada seqüência lingüística
dada é ou não um texto. Tal competência é adquirida, segundo esses estudos, quando se propicia ao
aluno o contato com o maior número possível de situações de interação comunicativa dentro da língua
em uso.
12
Percebe-se, assim, que os documentos oficiais trazem em seu bojo uma diversidade de correntes lingüísticas, com
pressupostos que se diferem.
A corrente que deu base a essas idéias sugere que para que um texto alcance seu objetivo é
necessário que ele seja estudado em seu contexto, uma vez que o que as pessoas têm a dizer umas às
outras não são palavras nem frases isoladas, como estuda a gramática tradicional, “são textos escritos
ou falados dotados de unidade sócio-comunicativa, semântica e formal”. (COSTA VAL, 1991, p. 3)
Geraldi, ao propor uma prática pedagógica centrada no tripé “produção de textos”, “leitura de
textos” e “análise lingüística”, afirma que centrar o ensino na produção de textos é tomar a palavra do
aluno como indicador dos caminhos que necessariamente deverão ser trilhados. Descarta-se a
perspectiva de que se possa ver a linguagem como um objeto exterior ao sujeito. Ela é constitutiva do
sujeito e é através do trabalho de cada membro que ela se constitui e a comunicação torna-se possível.
Em direção à definição de texto apresentada acima, podemos correlacioná-la com a definição
de enunciado, proposta por Mikhail Bakhtin, ou seja, o que Bakhtin chama de enunciado, a PCLP
apresenta como texto. Observe:
Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam,
estão sempre relacionadas, com a utilização da língua./.../ A utilização da
língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e
únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade
humana. (BAKHTIN, 1992, p. 279)
A PCLP e os PCNs
aderem outras idéias de Bakhtin, tais como o dialogismo, a
heterogeneidade discursiva, os gêneros do discurso, que somente me foram acessíveis após as leituras
realizadas na pós-graduação. Observe:
...numa verdadeira situação dialógica a fala de um é retomada,
modificada, acrescida e transformada pelo outro: não pode ser somente
eco ou repetição porque a participação do interlocutor desaparece e a
estrutura dialógica se anula, instaurando um monólogo onde a voz que
fala é apenas a do outro [...] Poderíamos dizer que a criança, nessa
atividade de tomar a linguagem como objeto de suas próprias operações,
passa a “elaborar” sua própria gramática. (PCLP, 1998, p. 20).
A produção de discursos não aparece no vazio. Ao contrário,
todo discurso se relaciona, de alguma forma, com os que já foram
produzidos. Nesse sentido, os textos, como resultantes da atividade
discursiva, estão em constante e contínua relação uns com os outros,
ainda que, em sua linearidade, isso não explicite. (PCNs, 1998, p. 21)
Para compreender o que a PCLP e os PCNs estão se referindo, eu teria que ter tido acesso, ou
em minha formação universitária ou em minha formação em serviço, ao princípio do dialogismo proposto
por Bakhtin. Para o Autor, o discurso não é individual porque se constrói entre pelo menos dois
interlocutores e porque mantém relações com outros discursos. Nenhuma palavra é neutra, mas
inevitavelmente carregada, ocupada, habitada, atravessada pelos discursos nos quais viveu sua
existência socialmente sustentada. Bakhtin prega que somente o Adão mítico, abordando com sua
primeira fala um mundo não posto em questão, estaria em condições de ser ele próprio produtor de um
discurso isento do que já foi dito na fala do outro.
O dialogismo de Bakhtin se fundamenta na negação da possibilidade de conhecer o sujeito fora
do discurso que ele produz. O sujeito de constrói não só pela determinação do Outro, mas pelo esforço
para se diferenciar das formas desse outro que o reformula completamente.
...pela linguagem se expressam idéias, pensamentos e intenções, se estabelecem relações
interpessoais anteriormente inexistentes e se influencia o outro, alterando suas representações da
realidade e da sociedade e o rumo de suas (re)ações. (PCNs., 1998, p, 20)
Partindo desse pressuposto, estabelece-se que o sujeito perde seu papel de centro e é
substituído por diferentes vozes que fazem dele um sujeito histórico e ideológico que projeta discursos,
numa interação viva: “a língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é
também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua”. (BAKHTIN, 1992, p. 282).
Esse conceito de dialogismo proposto por Bakhtin tem sua importância fundamental no ensino
quando se propõe que haja entre professor e aluno um certo diálogo na aprendizagem. O professor não
pode trazer suas verdades como sendo verdades absolutas. É preciso dar voz ao aluno, ouvir o que ele
tem a dizer, estabelecer um diálogo, sendo “impossível propor atividades de comunicação e expressão
numa situação ‘social’ de sala de aula autoritária, repressiva, inteiramente esvaziada de uma relação
humana e de vida” (PCLP., 1998, p. 21). Dessa forma, a fala de um é retomada, modificada, acrescida, e
transformada pelo outro, deixando de ser eco ou repetição, tanto aluno quanto professor vão
constituindo-se cada vez mais pela linguagem. Está aí a importância do dialogismo, proposto por Bakhtin.
Percebe-se, assim, que o entendimento dos documentos oficiais, com a formação universitária
a que fui submetida, apresenta-se comprometido, uma vez que, conforme apresentei, não tomei contato,
na graduação, com as referidas teorias que tratam a língua como forma ou processo de interação e nem
com correntes que apontam uma metalinguagem diferente da gramática tradicional.
Parece-me, também, que o governo tem consciência da má formação do professor. Chego a
pensar dessa forma quando leio o último parágrafo da carta endereçada aos professores pelo ministro da
Educação, Paulo Renato Souza, nos PCNs. (1998, p. 5). Os termos apoio e formação me intrigam:
Esperamos que os Parâmetros Curriculares Nacionais sirvam de apoio às discussões e ao
desenvolvimento do projeto educativo de sua escola, à reflexão sobre a prática pedagógica, ao
planejamento de suas aulas, à análise e seleção de materiais didáticos e de recursos tecnológicos e, em
especial, que possam contribuir para sua formação e atualização profissional. (grifos meus)
A meu ver, o documento denuncia, de forma indireta, a formação deficiente do professor. Um
professor bem formado precisaria de apoio, auxílio? Afinal, porque formar professores que o próprio
sistema dera por habilitado? (GERALDI, 1997, p. XIX).
Esse retorno à minha própria formação fez-me perceber que minha prática pedagógica adotou
todas as concepções de linguagem. Alguns projetos que desenvolvi (“correio escolar”, “jornal”, “teatro na
sala de aula”) parecem ser direcionados à concepção de língua como forma de interação, pois
propunham atividades que permitiam aos alunos uma língua viva, mas, fugindo disso, adotava no
restante das aulas a concepção de língua como expressão do pensamento, ao aplicar exercícios de
classificação, categorização, segundo a gramática tradicional. Não sabia que existia a possibilidade de se
trabalhar com a própria gramática, tendo como pressuposto a concepção de língua como forma de
interação, conforme demonstrei alguns exemplos neste trabalho.
Em meio a todas essas descobertas e questionamentos da minha própria formação, um
problema surge: não podia mais continuar afastada das minhas funções docentes pelo artigo 202. O
prazo havia se esgotado. Tinha que voltar a trabalhar. Como precisava de tempo para dedicar-me aos
estudos e dar andamento à pesquisa, foi preciso solicitar a minha exoneração do Serviço Público a partir
do dia 16.09.02, de forma a garantir a continuidade da pesquisa, pois conforme afirma Charlot (2002, p.
103), “é impossível assumir, ao mesmo tempo, os dois papéis: o de professor e o de pesquisador /.../
pesquisar é desenvolver um olhar, é assumir uma postura, um olhar que não é o da ação. E não
podemos fazer as duas coisas ao mesmo tempo”. Além do mais, a pesquisa requer do pesquisador muita
disponibilidade e tempo para estudo, demanda que torna-se impossível se o professor estiver na ativa.
Foi uma decisão muito difícil, mas não poderia abandonar a pesquisa após tantas descobertas.
Há uma grande contradição entre o discurso do governo, e o que ocorre na prática. O mesmo denuncia,
de forma indireta, por meio dos PCNs que o professor é mal formado, mas cria obstáculos para que o
educador possa descobrir novos caminhos.
Conforme afirma Geraldi (1997, p., XX),
Para o sistema escolar é mais importante que seus agentes – principalmente dos graus
inferiores de ação – se tenham por incompetentes para melhor cumprirem o papel de inculcação da
ideologia da incompetência.
Diria, até esse momento, que a reflexão que estou fazendo sobre as minhas experiências
vividas estão se fazendo muito importantes, porque, não só estou amadurecendo com as descobertas e
com as alegrias, mas também com meus sofrimentos, conduzindo-me, assim, à compreensão de meu
fazer pedagógico.
Espero, dessa forma, que as experiências aqui relatadas, que demonstram um possível
distanciamento entre as propostas curriculares implantadas pelo governo e sua aplicabilidade em sala de
aula, mediadas pela formação universitária do professor, contribuam, de alguma forma, com o debate
sobre a formação de professores de Língua Portuguesa em todos os níveis.
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ciclos do ensino fundamental – língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998.
SÃO PAULO (Estado) Secretaria da Educação. Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas.
Proposta curricular para o ensino de língua portuguesa: 1º grau. 4 ed. São Paulo: SE/CENP, 1998.
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