da caneta ao computador ou entre filosofia e literatura

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DA CANETA AO COMPUTADOR OU ENTRE FILOSOFIA E LITERATURA
Benedito Nunes
I
Identificam-me como professor de Filosofia e Crítico literário. Nada oponho à primeira
qualificação. Mas serei realmente crítico literário? E se o for, de que modo, pergunta fundamental,
exerço a crítica literária? Só posso responder essa pergunta, informando antes o que é que escrevo e
como escrevo. Não sou nem poeta nem ficcionista. Exceto os pecadilhos juvenis de alguns versos,
contos e dois capítulos de romance, João Severo, imitação de O menino de Engenho, de José Lins do
Rego, escrevo, de preferência, ensaios literários e filosóficos, quando não comentários a livros
publicados, especialmente de poesia. Desde cedo interessei-me por essas duas alas, Filosofia e
Literatura, e nesta, de modo particular, pela criação poética. Datam de muito cedo certos escritos líterofilosóficos espelhando minha simpatia por Nietzsche. Eram coleções de aforismos em ordem numérica
natural, cépticos e atordoados, interrogadores e provocativos, com os quais tentava romper o cerco da
vida familial. Chamavam-se Confissões do Solitário:
1. ____"Para onde vai o homem, o dono do tempo, o dono do espaço? ...
2. ____"Para mim, só há uma tragédia: a do conhecimento.
3. ____ "Compreendereis
4. ____
Schopenhauer ouvindo Beethoven ..."
"Sob a ação da música, desaparece momentaneamente o choque dos contrários e só prevalece a
força do Espírito".
O alvo real desses dardos ofensivos era atingir a disciplina religiosa do catolicismo paroquial e
catequético dentro do qual passei a meninice e à sombra do qual comecei a escrever. Queria afrontar os
outros, excepcionalizando-me pela solidão que almejava conquistar. A reação clerical que esses brotos
nietzscheanos despertaram foi surpreendente. Sob pseudônimo, em artigo publicado no semanário
católico local da época, A Palavra, o arcebispo do Pará pedia contas de sua formação católica ao imaturo
autor que tais cogitações ameaçavam destruir, O orgulho dos meus dezenove anos, enfunado pela
atividade intelectual, que então exercia, impediu a transformação, às vezes ocorrida em minha vida, do
susto em temor. No entanto, as Confissões do Solitário apenas preludiaram quer quanto à origem, quer
quanto ao penoso esforço de elaboração, a procura de um modo próprio de escrever. Nietzsche era
naquele momento apenas o tempero da insurreição. Os reais fermentos de minha escrita que lhe
assegurariam timbre, altitude e extensão, vieram, sobretudo, da leitura de três autores, Miguel de
Unamuno, Blaise Pascal e Raymundo Farias Brito.
Entrei em contacto com o primeiro por um equivoco nada piedoso. Comprei A Agonia do Cristianismo
de Unamuno porque esse título me sugeriu arrasadora crítica da doutrina cristã. O quanto a ignorância
também pode ensinar-nos ! Aprendi nesse livro o embate entre a adesão da crença e a negação da
descrença. À meia luz dessa luta penetrei no conflito da Fé com a dúvida. "Fé que não duvida é fé
morta", escreve Unamuno. Queremos ter fé, queremos sobreviver e também queremos que Deus exista.
De Deus a Deus - um dos capítulos de O sentimento trágico da Vida_vai do Deus atestado pelo
raciocínio ao Deus vivido, capaz de assegurar nossa sobrevivência. E assim passei de A Agonia do
Cristianismo ao Sentimento trágico da Vida, do mesmo Unamuno. Depois do grande sobressalto dessa
última obra, caí em cheio no minado campo dos dilemas pascalianos. E entre as duas infinitudes, a do
alto e do baixo, a estelar e a terrena, a do todo e a do nada, a passagem do Anjo jansenista dos Pensées
de Blaise Pascal segredou-me: "Mais quelle consolation de jamais atteindre um consolateur?" Como
cético que sou, fiz a mim mesmo essa indagação pascaliana.
Não posso deixar de mencionar o Farias Brito de A Finalidade do Mundo. Os três volumes desse
tratado do admirável autodidata brasileiro em Filosofia, hão de ter contribuído para o meu desempenho
filosófico em língua portuguesa. Afinal é nessa língua que tenho que fazer Filosofia. Farias Brito
ensinou-me a usar filosoficamente o idioma, permitindo que nele incutisse acentos vários_da
interrogação do espanhol Unamuno ao timbre dramático de Pascal, sempre percorridos por uma corrente
de alta voltagem poética, que reencontraria nas últimas páginas do primeiro volume de A Finalidade do
Mundo quando Farias Brito confere a Deus a identidade da Luz. Eis a passagem:
"Em toda parte existe a luz; por toda parte é a luz que dirige a marcha das coisas. A luz é como um
imenso oceano, envolvendo tudo o que existe; e em verdade é dentro da luz que movem-se os mundos.
Tudo vem, pois, em confirmação desta idéia, a mais simples, a mais clara e a mais fecunda de todas: é a
luz o Deus verdadeiro e único. Deus torna-se assim manifesto e visível, permanente e eterno. E pode-se
verdadeiramente dizer dele que não tem corpo, mas enche o espaço, que não pode ser tocado mas existe
em toda parte. E não tem forma, mas compreende e desenha todas as formas.."( A Finalidade do
Mundo,vol.l, p.305-306). Farias Brito, sem se aperceber, transitava da Filosofia para a Poesia, nessa
passagem glosada nos versos de Marco Luchesi: "dentro da luz/nos movemos! agimos e estamos! / é
dentro da luz / que tudo se passa / é pela luz que tudo se explica / trata-se de um corpo / de um
fenômeno / observado na natureza / é figura / traçada pela luz..". A Poesia despontando na e da
Filosofia.
Não há dúvida de que os assuntos por mim escolhidos, como aquele que forneceu o tema do meu
primeiro longo ensaio, publicado ainda na imprensa local_O Cotidiano e a Morte em Ivan Ilicht,
motivado pela conhecida novela de Tolstoi_favoreciam a apreciação desse despontar_como o inverso,
da Filosofia despontando na e da Poesia_de que tenho feito um dos temas essenciais de meus escritos.
Mas até que esse duplo tema se delineasse, haveria um grande caminho a percorrer, o qual passaria
por diferentes autores, filósofos como Hegel, Husserl, Heidegger, Nicolai Hartmann, Sartre, e poetas
como Fernando Pessoa, CDA, Mário Faustino, Paul Valéry, Rike, Eliot. É um caminho trabalhoso, que
se concretiza, para cada um deles, antes das versões definitivas sob a forma de livro, em exercícios
preparatórios: anotações, resumos, roteiros, traçados à mão, em cadernos de feitios e tamanhos vários.
Há autores privilegiados com mais de um caderno, a exemplo de Husserl e sua Fenomenologia, e de
Heidegger com a sua interpretação fenomenológica própria, etc.
O caminho de que falo, para voltarmos ao nosso assunto, poderia ser descrito como a seguinte
trajetória: da Grafia aos Dígitos ou do Manual ao Digital. Diria também: Da Caneta ao Computador,
indo da Filosofia à Literatura e voltando da Literatura para a Filosofia.
II
No começo foi a escrita manual. Raramente escrevia diretamente à máquina, O processo era deveras
complicado. Ditava os originais manuscritos a uma pessoa amiga, que os datilografava. Acontece que
tenho letra ruim, não caligráfica. Assim, os originais, no meu afã de sempre melhorar a qualidade das
frases, eram muito riscados. A leitura deles se tornava difícil até para mim. Muitas vezes empacava no
ditado, minha paciente amiga à espera.
Como se isso não bastasse, corrigia eu à mão o trabalho depois de datilografado, entrelinhando-o, e
fora das linhas acrescentando outras emendas por meio de setas. Minha prestante amiga, uma de minhas
melhores alunas de Filosofia, tinha de novamente recopiar o escrito. Que corvéia para ela, libertada,
afinal, pelo advento do computador! Mas antes da presença dessa máquina serviçal, que não demorei a
adotar, já tinha elaborado quase todos os meus livros, incluindo o mais extenso e complicado, Passagem
para o poético (Filosofia e poesia em Heidegger), pelo velho método manudatiloscritico.
As correções quase obsessivas por mim feitas durante a prevalência do velho método, e que lhe
dificultavam a execução, vinham de uma exigência de clareza que me impusera, depois que meu amigo
Mário Faustino, sempre de uma franqueza fraternal, observara-me pessoalmente e em cartas, que o nível
de consideração de meus artigos e ensaios, publicados no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil,
era alto e bom, em contraste com a tendência ao obscuro e ao contorcido neles infiltrado. "Sê claro e
direto", insistia ele. Não medi esforços para isso. O computador, que libertou minha colaboradora,
também me libertou no sentido de que me deixou à vontade e sempre disponível para trabalhar visando
ao ideal de claritas na escrita.
E por aí se vê como a máquina também pode bem servir ao homem. O que era duro e fatigante _
transpor períodos, riscar, refazer _ tornou-se agradável mister executado à feição e rapidamente, pelo, às
vezes desobediente bichinho eletrônico, na falta de suficiente capacidade minha para bem conduzi-lo.
Eis aí o que escrevo e como escrevo. A crítica literária, onde estaria?
III
Estaria talvez nas resenhas, publicadas em Colóquio/Letras, na década de 70,
exemplificadamente, entre outros, O Tetraneto d'El-Rei, romance de Haroldo Maranhão, Dedo-Duro,
contos de João Antonio, as novelas Água Viva e A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, as poesias de
Haroldo de Campos (Xadrez de estrelas, Signantia quase Céu) e alguns livros de Filosofia (Gerd
Bornheim, Sartre, Merleau-Ponty, Le Visible et l’Invisible). Mas nas resenhas literárias dava sempre
realce a um quinhão de Filosofia. E nas filosóficas quase sempre não deixava de ressaltar uma parcela
do literário ou do especificamente poético. Focalizei essas relações entrecruzadas no ensaio Filosofia e
Poesia _ uma transa.
Transa, transação, entrelaçamento e não incorporação. A incorporação da Poesia pela Filosofia
era o ponto de vista clássico. Afirmando a superioridade do conhecimento conceptual da Filosofia sobre
a Poesia, como mera ficção, o ponto de vista clássico admitia a incorporação da última pela primeira. Na
filosofia hegeliana, que de certo modo representa esse ponto de vista, o conhecimento conceptual
superaria a poesia. Os românticos passaram ao extremo oposto: contrariando a tradição clássica,
adotaram a idéia da incorporação da Filosofia pela Poesia.
"Quanto mais poético, mais verdadeiro", dizia Novalis. Assim, a poesia alcançava uma verdade
superior à da Ciência e à da Filosofia. Precisamos não esquecer que os mesmos românticos alemães, que
se reconheciam devedores da Critica do Juízo de Kant, da Teoria da Ciência de Fichte, e do
Bildungsroman de Goethe, Wilhelm Meister, participaram da elaboração do idealismo germânico.
Idealismo e romantismo se uniram na adoção da liberdade do ideal, acima do real e na direção do suprasensível, tanto quanto a noção de gênio uniria a Divina Comédia aos dramas de Shakespeare e Calderón,
exemplares todos de uma só "literatura universal", fundada na reflexividade do Eu defendida por Fichte.
Essa mesma reflexividade do sujeito, que se auto-produz produzindo o real, e da qual decorre a intuição
intelectual, aplicar-se-ia à poesia romântica, definida num aforismo de Friedrich Schlegel como
"universal e progressiva". De acordo com o mesmo aforismo, tal poesia estaria ligada à Filosofia por
efeito da mesma atividade do Eu, graças à intuição intelectual, rejeitada por Kant, e que forma os
objetos no ato de concebê-los. "Toda arte deve tomar-se ciência e toda ciência tomar-se arte; Filosofia e
Poesia devem unir-se", dizia Schlegel em outro aforismo.
Esse nexo justificaria as obras de mão dupla, a poesia filosófica e a Filosofia poética, os poetasfilósofos e os filósofos-poetas, um Lucrécio (De rerum naturae), um Dante (A Divina Comédia), um
Goethe (Fausto I a Fausto 11), um Schelling (Sistema do Idealismo Transcendental) e um Novalis
(Enciclopédia filosófica). Para Coleridge, que distinguiu, em sua Biographia Literária, a imaginação
(imagination), capaz de elevar-se ao supra-sensível, da simples fantasia (fancy), que oscila entre coisas
sensíveis diversas, Shakespeare era o poeta filósofo e Platão o filósofo-poeta. No entanto, Keats chamou
ao poeta de camaleão, mudando com a própria obra em que se transmuda.
Na verdade, se há uma transa, uma transação entre Filosofia e Poesia, isso se deve ao
desenvolvimento histórico de ambas, de certo modo convergente, depois que a literatura começou a
viger em sua significação moderna, ascendendo como Literatura, segundo exprimiu Michel Foucault em
Les Mots et les Choses.
Por seu lado, a Filosofia empenhou-se, desde o séc. XIX, com a Filosofia da Vida (Simmel,
Dilthey) e, no século XX, com a Filosofia das Formas Simbólicas (Ernst Cassirer e Suzanne Langer), na
descoberta dos elementos pré-teóricos da experiência humana, isto é, anteriores à dominância do
conhecimento científico, tais como a linguagem, a arte e o mito.
De sua parte, a Poesia, desde, pelo menos, Charles Baudelaire, inclinou-se à valorização dos
aspectos baixos, vulgares, racionalmente incontroláveis, da mesma experiência humana, denunciados
por sentimentos explícitos, como o tédio (spleen), a angústia e o desespero.
IV
Maria Zambrano, num livro, talvez único, sob o título de Filosofia e Poesia (Fondo de Cultura
Econômica, l996) escreve que poesia é encontro, dom, descoberto por uma espécie de Graça, e que a
Filosofia é busca e exigência guiada por um método. Mas é também preciso considerar que a poesia,
na fase moderna do pensamento, passa a buscar-se a si mesma, guiada por uma exigência de
conhecimento. Na busca de si mesma, demanda a sua própria essência e torna-se, freqüentemente
Poesia da poesia. A exigência de conhecimento coloca-a no limite da Filosofia enquanto Metafísica.
A Poesia como dom, seja como Mito ou como linguagem poética, é a entrada ou o limiar da
Filosofia. O confronto entre as duas tem gerido o meu interesse de crítico e se manifesta
indiretamente em livros meus, como Passagem para o Poético (Poesia e Filosofia em Heidegger)
João Cabral de Melo Neto (Col. Poetas modernos do Brasil), O Drama da Linguagem (Sobre Clarice
Lispector), O Tempo na Narrativa, No Tempo do Niilismo e outros ensaios, Crivo de Papel e, no
mais velho de todos, O Dorso do Tigre.
Assim, sou crítico numa acepção mais ampla, que acompanha o uso da palavra Crítica em Kant.
Seja na Critica da Razão Pura, seja na Crítica da Razão Prática ou na Crítica do juízo, Kant pretendeu
estabelecer as condições do conhecimento _ condições subjetivas, como o sentimento de prazer
desinteressado, gerando a experiência estética, como a manifestação da vontade autônoma,
determinando o domínio mora1, e como a idéia de finalidade, sem a qual é impossível conceber a ordem
da Natureza. Ser crítico literário seria poder estabelecer as condições preliminares da existência do texto
literário, sem esquecer a existência do texto filosófico com o qual aquele se confronta. Daí o empenho
que me leva a passar da Literatura à Filosofia e voltar da Filosofia à Literatura, tal como o ir e vir de
uma para outra, de maneira inevitável, concebida por Antonio Machado, sob a aparência heteronímica
de um professor de Retórica, Juan de Mairena: "Hay hombres, decia mi maestro, que van de la Poética a
la Filosofia; otros que van de la Filosofia a la Poética. Lo inevitable es ir de lo uno a lo outro, en esto
como en todo (Juan de Mairena, Sentencias, Donaires, Apuntes e Recuerdos de um professor apócrifo).
Assim, Antonio Machado, Fernando Pessoa, Rainer Maria Rilke, Paul Valéry e Mallarmé, foram, como
poetas, na direção da Filosofia; Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, Gaston Bachelard e PaulRicouer,
seguiram, como filósofos, empós da Poesia.
Antonio Machado conheceu, como Fernando Pessoa, o fenômeno da heteronímia; assumiram
ambos personalidades poéticas diferentes. Rilke poetou tendo por horizonte uma Filosofia da Natureza,
à maneira de Schelling. Valéry também filosofou, mas o horizonte dele foi o ideal de poesia pura. Sartre
nunca tentou a poesia, ao contrário de Heidegger. No entanto logrou dar-lhe uma descrição
fenomenológica. Merleau-Ponty focalizou-a pondo em tela a distinção de Saussure entre langue e
parole. Gaston Bachelard experimentou sistematizar as essencialidades poéticas por meio dos quatro
elementos primários da Natureza (ar, terra, água, fogo).
Em que pese o fato de que nem a Literatura nem a Filosofia são visadas do mesmo modo por uns
e por outros, a idéia de trânsito no aforismo citado do apócrifo escritor Juan de Mairena, tem a virtude
de colocar-nos no cerne do debate sobre o nexo da Filosofia com a Poesia _ aqui significando esta o
princípio ativo da literatura, como diria Paul Valéry, e aquela o caráter reflexivo do pensamento
racional. "Lo inevitable es ir de lo uno a lo outro, en esto como en todo".
O trânsito configura um nexo de transação. Segundo Pierre Macherey, em seu À quoi pense la
littératue? (PUF, 1990), a Filosofia pode, em certas condições, produzir literatura (peut "faire de la
litterature") e a literatura pode produzir Filosofia ("faire de la Philosophie). Mas os poetas não
deixariam de ser poetas indo à Filosofia nem os filósofos deixariam de ser filósofos indo à Poética.
Entre as duas não haveria conversão mútua. Nem a Filosofia transforma-se em Poesia e nem a Poesia
transforma-se em Filosofia. Estamos diante do que W. Marshall Urban chamou de paradoxo da
literatura,
em
Language
and
Reality
(Macmillan,
l951).
É aceitável o dito de Novalis de que quanto mais poético, mais verdadeiro? Podemos admiti-lo.
Mas a verdade poética não é literal. Constituindo uma linguagem simbólica, ela é uma linguagem
figurada. Se não for, deixa de ser poesia. Ela pode nos dar toda uma filosofia. Pode ser até, como
Coleridge pensava, uma metafísica encoberta, como cadeia de significados latentes interpretáveis. "A
transição à Metafísica é inevitável, mas não é o poeta, como poeta, que vai fazê-la, explica Marshall
Urban. E só pode falar em sentido figurativo, para ser fiel à sua própria forma simbólica. Pois que
precisamente é nesta forma simbólica que é dado um aspecto da rea1idade, que não pode ser expressado
de outra maneira. Não é verdade que o que quer que seja expressado simbolicamente possa ser melhor
expressado de maneira literal. Porque não há expressão literal, somente outra forma de símbolo"
(Urban,op.cit.,pg.500).
A singularidade da posição de Heidegger acerca das relações entre Filosofia e Poesia está em
economizar a noção de símbolo no tratamento da linguagem. Linguagem é antes de mais nada
discurso, e discurso remonta à experiência grega do logos _ o falar uns com os outros sobre algo,
que nos coloca, de imediato em situação dialogante. Heidegger tomaria de Hölderlin os versos : “Do
momento em que somos um diálogo e podemos ouvir-nos uns aos outros(...)". Porque podemos falar
e porque falando dialogamos, temos a capacidade de dicção poética, de dizer aquilo que permanece,
de fundá-lo, portanto, pela palavra_mas já a palavra posta fora do circuito verbal da comunicação
cotidiana, tomando-se por meio de uma tonalidade afetiva, de um mood, antes de qualquer
conhecimento, uma franquia do nosso ser ao existente, ou seja, na terminologia de Heidegger, uma
abertura ao mundo. A linguagem, então, dispensada de sua função simbólica, é o quadro da criação
poética, da poiesis, fundando o ser que permanece, dentro qual as palavras, recarregadas de novas
potências, como o sagrado, trazem o sobressalto das origens.
"A poesia é fundação do ser pela palavra e na palavra. O que permanece jamais é criado do
efêmero. O simples não se deixa extrair do complicado. A medida não se encontra no imenso".
(Erliiuterung Holderlin Dichter,p.41).
Mas fundando o ser e desvelando o sagrado, a poesia, que para Heidegger excede a literatura,
mantem o homem, momentaneamente liberado do ser-em-comum que nos interliga, na correlação semiiluminada de uma clareira, a habitação humana, em que se entrelaçam o céu e a terra, o homem e os
deuses, os mortais e os imortais. Toda palavra poética, que nomeia invocando e evocando, lembrando o
que precisa ser lembrado_ “a Poesia é o fervor pensante da recordação" (Vortráge und
Aufsätze,v.2,pll)_também celebra, na forma de canto, aquilo que nomeia.
Note-se, porém, que, para Heidegger, a Filosofia não é mais hoje, como já o foi no seu início, um
modo privilegiado do dizer. Esse modo passa à Poesia. O filósofo procurou, em sua derradeira fase, um
pensamento que à Poesia se aliasse, alijando de si a tradição filosófica que teria sido absolvida pela
Metafísica, e compusesse, com aquela primeira, uma prática meditante, uma nova espécie de pensar.
V
Imaginemos, agora, que Filosofia e Poesia pudessem transar de fato, como se houvesse entre elas
um regime lúdico, dirigido por algum Magister Ludi, à semelhança daquele inventado por Hermann
Hesse no Jogo das Contas de Vidro (Glassenperlenspiel), permitindo que uma dispusesse da outra, que
entrassem em contacto real como instâncias de mútuo poder valorativo. Que faria uma pela outra?
Qual o programa da Filosofia para a Poesia? Nada mais do que tentar compreendê-la, e
compreendendo-a, interpretá-la. De cada vez o pensamento postula a necessidade de compreendê-la
como se a interrogasse. Mas a Filosofia não pode refazê-la ou ultrapassá-la. A ela se cola, adere ao seu
indevassável horizonte. Nesse sentido, não pode haver Filosofia da Poesia, porque a Poesia é o limite da
Filosofia. Ela começa quando a Filosofia acaba. E também, novo paradoxo, ela é o limiar da Filosofia.
A Filosofia nasce como filha póstuma da Poesia, como se esta, associada ao Mito, acabasse para a
Filosofia poder começar.
E a Poesia, o que pode fazer pela Filosofia?
Se pudesse, se tivesse poder, ensinaria a Filosofia a ser Arte. Seria a executora do projeto de Fernando
Pessoa ou de Álvaro de Campos, tentando fazer da Metafísica, "metafísicas várias e engraçadas, mas
sem lhes ligar intenção alguma de verdade". Investindo o possível no real, a poesia haveria de
encaminhar a Filosofia para o inexpressável, para longe do literal, e, portanto, tentando poetizá-la, para
torná-la de novo poesia, afim de poder mostrar pela palavra o que o raciocínio não demonstra _ afim de
mostrar o que há e não dizer o que é.
Na verdade, nem uma ensina à outra quando se unem e se entrosam historicamente nas ocasiões em que
isso pôde ocorrer, por exemplo, na Idade Média com a Divina Comédia, na Idade Moderna com o
Fausto de Goethe e em tempos recentes com as Elegias de Duino, de Rainer Maria Rilke, e os 4
quartets, de T.S. Elliot.
Na Divina Comédia, as sanções do Inferno, o castigo dos pecadores condenados pela férrea
justiça divina, a libertadora ascensão das almas do Purgatório para o Céu e a Bem-aventurança celeste,
anunciada pela eterna e pura luminosidade; a busca demoníaca do conhecimento em Fausto I,
confinando com o Mal causado a outrem; as metamorfoses do Fausto II, mágico, Imperador de mando
absoluto, planejando a vida de todos, como drama da cultura Ocidental; a procura, na Segunda Elegia de
Duino, "de uma terra fecunda, que seria nossa entre rio e rocha"_ tudo isso vai converter-se em símbolo
do transitório no Eterno e do Eterno no transitório. “Tudo que passa é apenas símbolo'' (Alles
Vergänglische ist nur ein Gleichnis). Como ensina o Fausto II, a Filosofia e a Poesia entram na vida
individual e coletiva?
A Filosofia pode comensurar a vida individual cognoscitiva e eticamente. A mesma medida é
capaz de dar à vida coletiva, por meio do ensino, do intercâmbio de idéias na vida acadêmica. Mas a
Poesia, que não busca senão a si mesma, que não fornece diretivas, que pode partir da negação do
conhecimento e da negação ética, que não escolhe entre o Beme o Mal, que contem o negativo, pode
desnortear o homem, aguçar seus conflitos. Ela voa aonde quer. Parte do individuo e volta para ele. Não
entra no coletivo. Não é uma força social. Não se faz grupalmente. Se chega ao coletivo, é por meio da
leitura em voz alta agindo sobre as pessoas que a voz ritmada alcança. Só atinge o membro da
coletividade capaz de recriá-la individualmente.
A Poesia pode suprir, em alguns casos, o objetivo racional da busca filosófica por um ato de
visão intuitiva. Sem a Poesia, que fornece a ponta aguda da imagem, essa busca se torna árida, sem
perspectiva de renovamento. Se as duas se unissem, como se unem as águas na terra e as nuvens no céu,
cada qual poderia, agindo sobre cada indivíduo ou sobre muitos, de per si contribuir para renovar o
conhecimento, recriar eticamente a vida e atualizar, em cada época, as melhores possibilidades
humanas. A Filosofia tornar-se-ia poética e a Poesia, como diz algures o poeta Paul Celan, o lugar, o
topos da Utopia.
Belém, 12 de fevereiro, 2007.
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