DA CANETA AO COMPUTADOR OU ENTRE FILOSOFIA E LITERATURA Benedito Nunes I Identificam-me como professor de Filosofia e Crítico literário. Nada oponho à primeira qualificação. Mas serei realmente crítico literário? E se o for, de que modo, pergunta fundamental, exerço a crítica literária? Só posso responder essa pergunta, informando antes o que é que escrevo e como escrevo. Não sou nem poeta nem ficcionista. Exceto os pecadilhos juvenis de alguns versos, contos e dois capítulos de romance, João Severo, imitação de O menino de Engenho, de José Lins do Rego, escrevo, de preferência, ensaios literários e filosóficos, quando não comentários a livros publicados, especialmente de poesia. Desde cedo interessei-me por essas duas alas, Filosofia e Literatura, e nesta, de modo particular, pela criação poética. Datam de muito cedo certos escritos líterofilosóficos espelhando minha simpatia por Nietzsche. Eram coleções de aforismos em ordem numérica natural, cépticos e atordoados, interrogadores e provocativos, com os quais tentava romper o cerco da vida familial. Chamavam-se Confissões do Solitário: 1. ____"Para onde vai o homem, o dono do tempo, o dono do espaço? ... 2. ____"Para mim, só há uma tragédia: a do conhecimento. 3. ____ "Compreendereis 4. ____ Schopenhauer ouvindo Beethoven ..." "Sob a ação da música, desaparece momentaneamente o choque dos contrários e só prevalece a força do Espírito". O alvo real desses dardos ofensivos era atingir a disciplina religiosa do catolicismo paroquial e catequético dentro do qual passei a meninice e à sombra do qual comecei a escrever. Queria afrontar os outros, excepcionalizando-me pela solidão que almejava conquistar. A reação clerical que esses brotos nietzscheanos despertaram foi surpreendente. Sob pseudônimo, em artigo publicado no semanário católico local da época, A Palavra, o arcebispo do Pará pedia contas de sua formação católica ao imaturo autor que tais cogitações ameaçavam destruir, O orgulho dos meus dezenove anos, enfunado pela atividade intelectual, que então exercia, impediu a transformação, às vezes ocorrida em minha vida, do susto em temor. No entanto, as Confissões do Solitário apenas preludiaram quer quanto à origem, quer quanto ao penoso esforço de elaboração, a procura de um modo próprio de escrever. Nietzsche era naquele momento apenas o tempero da insurreição. Os reais fermentos de minha escrita que lhe assegurariam timbre, altitude e extensão, vieram, sobretudo, da leitura de três autores, Miguel de Unamuno, Blaise Pascal e Raymundo Farias Brito. Entrei em contacto com o primeiro por um equivoco nada piedoso. Comprei A Agonia do Cristianismo de Unamuno porque esse título me sugeriu arrasadora crítica da doutrina cristã. O quanto a ignorância também pode ensinar-nos ! Aprendi nesse livro o embate entre a adesão da crença e a negação da descrença. À meia luz dessa luta penetrei no conflito da Fé com a dúvida. "Fé que não duvida é fé morta", escreve Unamuno. Queremos ter fé, queremos sobreviver e também queremos que Deus exista. De Deus a Deus - um dos capítulos de O sentimento trágico da Vida_vai do Deus atestado pelo raciocínio ao Deus vivido, capaz de assegurar nossa sobrevivência. E assim passei de A Agonia do Cristianismo ao Sentimento trágico da Vida, do mesmo Unamuno. Depois do grande sobressalto dessa última obra, caí em cheio no minado campo dos dilemas pascalianos. E entre as duas infinitudes, a do alto e do baixo, a estelar e a terrena, a do todo e a do nada, a passagem do Anjo jansenista dos Pensées de Blaise Pascal segredou-me: "Mais quelle consolation de jamais atteindre um consolateur?" Como cético que sou, fiz a mim mesmo essa indagação pascaliana. Não posso deixar de mencionar o Farias Brito de A Finalidade do Mundo. Os três volumes desse tratado do admirável autodidata brasileiro em Filosofia, hão de ter contribuído para o meu desempenho filosófico em língua portuguesa. Afinal é nessa língua que tenho que fazer Filosofia. Farias Brito ensinou-me a usar filosoficamente o idioma, permitindo que nele incutisse acentos vários_da interrogação do espanhol Unamuno ao timbre dramático de Pascal, sempre percorridos por uma corrente de alta voltagem poética, que reencontraria nas últimas páginas do primeiro volume de A Finalidade do Mundo quando Farias Brito confere a Deus a identidade da Luz. Eis a passagem: "Em toda parte existe a luz; por toda parte é a luz que dirige a marcha das coisas. A luz é como um imenso oceano, envolvendo tudo o que existe; e em verdade é dentro da luz que movem-se os mundos. Tudo vem, pois, em confirmação desta idéia, a mais simples, a mais clara e a mais fecunda de todas: é a luz o Deus verdadeiro e único. Deus torna-se assim manifesto e visível, permanente e eterno. E pode-se verdadeiramente dizer dele que não tem corpo, mas enche o espaço, que não pode ser tocado mas existe em toda parte. E não tem forma, mas compreende e desenha todas as formas.."( A Finalidade do Mundo,vol.l, p.305-306). Farias Brito, sem se aperceber, transitava da Filosofia para a Poesia, nessa passagem glosada nos versos de Marco Luchesi: "dentro da luz/nos movemos! agimos e estamos! / é dentro da luz / que tudo se passa / é pela luz que tudo se explica / trata-se de um corpo / de um fenômeno / observado na natureza / é figura / traçada pela luz..". A Poesia despontando na e da Filosofia. Não há dúvida de que os assuntos por mim escolhidos, como aquele que forneceu o tema do meu primeiro longo ensaio, publicado ainda na imprensa local_O Cotidiano e a Morte em Ivan Ilicht, motivado pela conhecida novela de Tolstoi_favoreciam a apreciação desse despontar_como o inverso, da Filosofia despontando na e da Poesia_de que tenho feito um dos temas essenciais de meus escritos. Mas até que esse duplo tema se delineasse, haveria um grande caminho a percorrer, o qual passaria por diferentes autores, filósofos como Hegel, Husserl, Heidegger, Nicolai Hartmann, Sartre, e poetas como Fernando Pessoa, CDA, Mário Faustino, Paul Valéry, Rike, Eliot. É um caminho trabalhoso, que se concretiza, para cada um deles, antes das versões definitivas sob a forma de livro, em exercícios preparatórios: anotações, resumos, roteiros, traçados à mão, em cadernos de feitios e tamanhos vários. Há autores privilegiados com mais de um caderno, a exemplo de Husserl e sua Fenomenologia, e de Heidegger com a sua interpretação fenomenológica própria, etc. O caminho de que falo, para voltarmos ao nosso assunto, poderia ser descrito como a seguinte trajetória: da Grafia aos Dígitos ou do Manual ao Digital. Diria também: Da Caneta ao Computador, indo da Filosofia à Literatura e voltando da Literatura para a Filosofia. II No começo foi a escrita manual. Raramente escrevia diretamente à máquina, O processo era deveras complicado. Ditava os originais manuscritos a uma pessoa amiga, que os datilografava. Acontece que tenho letra ruim, não caligráfica. Assim, os originais, no meu afã de sempre melhorar a qualidade das frases, eram muito riscados. A leitura deles se tornava difícil até para mim. Muitas vezes empacava no ditado, minha paciente amiga à espera. Como se isso não bastasse, corrigia eu à mão o trabalho depois de datilografado, entrelinhando-o, e fora das linhas acrescentando outras emendas por meio de setas. Minha prestante amiga, uma de minhas melhores alunas de Filosofia, tinha de novamente recopiar o escrito. Que corvéia para ela, libertada, afinal, pelo advento do computador! Mas antes da presença dessa máquina serviçal, que não demorei a adotar, já tinha elaborado quase todos os meus livros, incluindo o mais extenso e complicado, Passagem para o poético (Filosofia e poesia em Heidegger), pelo velho método manudatiloscritico. As correções quase obsessivas por mim feitas durante a prevalência do velho método, e que lhe dificultavam a execução, vinham de uma exigência de clareza que me impusera, depois que meu amigo Mário Faustino, sempre de uma franqueza fraternal, observara-me pessoalmente e em cartas, que o nível de consideração de meus artigos e ensaios, publicados no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, era alto e bom, em contraste com a tendência ao obscuro e ao contorcido neles infiltrado. "Sê claro e direto", insistia ele. Não medi esforços para isso. O computador, que libertou minha colaboradora, também me libertou no sentido de que me deixou à vontade e sempre disponível para trabalhar visando ao ideal de claritas na escrita. E por aí se vê como a máquina também pode bem servir ao homem. O que era duro e fatigante _ transpor períodos, riscar, refazer _ tornou-se agradável mister executado à feição e rapidamente, pelo, às vezes desobediente bichinho eletrônico, na falta de suficiente capacidade minha para bem conduzi-lo. Eis aí o que escrevo e como escrevo. A crítica literária, onde estaria? III Estaria talvez nas resenhas, publicadas em Colóquio/Letras, na década de 70, exemplificadamente, entre outros, O Tetraneto d'El-Rei, romance de Haroldo Maranhão, Dedo-Duro, contos de João Antonio, as novelas Água Viva e A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, as poesias de Haroldo de Campos (Xadrez de estrelas, Signantia quase Céu) e alguns livros de Filosofia (Gerd Bornheim, Sartre, Merleau-Ponty, Le Visible et l’Invisible). Mas nas resenhas literárias dava sempre realce a um quinhão de Filosofia. E nas filosóficas quase sempre não deixava de ressaltar uma parcela do literário ou do especificamente poético. Focalizei essas relações entrecruzadas no ensaio Filosofia e Poesia _ uma transa. Transa, transação, entrelaçamento e não incorporação. A incorporação da Poesia pela Filosofia era o ponto de vista clássico. Afirmando a superioridade do conhecimento conceptual da Filosofia sobre a Poesia, como mera ficção, o ponto de vista clássico admitia a incorporação da última pela primeira. Na filosofia hegeliana, que de certo modo representa esse ponto de vista, o conhecimento conceptual superaria a poesia. Os românticos passaram ao extremo oposto: contrariando a tradição clássica, adotaram a idéia da incorporação da Filosofia pela Poesia. "Quanto mais poético, mais verdadeiro", dizia Novalis. Assim, a poesia alcançava uma verdade superior à da Ciência e à da Filosofia. Precisamos não esquecer que os mesmos românticos alemães, que se reconheciam devedores da Critica do Juízo de Kant, da Teoria da Ciência de Fichte, e do Bildungsroman de Goethe, Wilhelm Meister, participaram da elaboração do idealismo germânico. Idealismo e romantismo se uniram na adoção da liberdade do ideal, acima do real e na direção do suprasensível, tanto quanto a noção de gênio uniria a Divina Comédia aos dramas de Shakespeare e Calderón, exemplares todos de uma só "literatura universal", fundada na reflexividade do Eu defendida por Fichte. Essa mesma reflexividade do sujeito, que se auto-produz produzindo o real, e da qual decorre a intuição intelectual, aplicar-se-ia à poesia romântica, definida num aforismo de Friedrich Schlegel como "universal e progressiva". De acordo com o mesmo aforismo, tal poesia estaria ligada à Filosofia por efeito da mesma atividade do Eu, graças à intuição intelectual, rejeitada por Kant, e que forma os objetos no ato de concebê-los. "Toda arte deve tomar-se ciência e toda ciência tomar-se arte; Filosofia e Poesia devem unir-se", dizia Schlegel em outro aforismo. Esse nexo justificaria as obras de mão dupla, a poesia filosófica e a Filosofia poética, os poetasfilósofos e os filósofos-poetas, um Lucrécio (De rerum naturae), um Dante (A Divina Comédia), um Goethe (Fausto I a Fausto 11), um Schelling (Sistema do Idealismo Transcendental) e um Novalis (Enciclopédia filosófica). Para Coleridge, que distinguiu, em sua Biographia Literária, a imaginação (imagination), capaz de elevar-se ao supra-sensível, da simples fantasia (fancy), que oscila entre coisas sensíveis diversas, Shakespeare era o poeta filósofo e Platão o filósofo-poeta. No entanto, Keats chamou ao poeta de camaleão, mudando com a própria obra em que se transmuda. Na verdade, se há uma transa, uma transação entre Filosofia e Poesia, isso se deve ao desenvolvimento histórico de ambas, de certo modo convergente, depois que a literatura começou a viger em sua significação moderna, ascendendo como Literatura, segundo exprimiu Michel Foucault em Les Mots et les Choses. Por seu lado, a Filosofia empenhou-se, desde o séc. XIX, com a Filosofia da Vida (Simmel, Dilthey) e, no século XX, com a Filosofia das Formas Simbólicas (Ernst Cassirer e Suzanne Langer), na descoberta dos elementos pré-teóricos da experiência humana, isto é, anteriores à dominância do conhecimento científico, tais como a linguagem, a arte e o mito. De sua parte, a Poesia, desde, pelo menos, Charles Baudelaire, inclinou-se à valorização dos aspectos baixos, vulgares, racionalmente incontroláveis, da mesma experiência humana, denunciados por sentimentos explícitos, como o tédio (spleen), a angústia e o desespero. IV Maria Zambrano, num livro, talvez único, sob o título de Filosofia e Poesia (Fondo de Cultura Econômica, l996) escreve que poesia é encontro, dom, descoberto por uma espécie de Graça, e que a Filosofia é busca e exigência guiada por um método. Mas é também preciso considerar que a poesia, na fase moderna do pensamento, passa a buscar-se a si mesma, guiada por uma exigência de conhecimento. Na busca de si mesma, demanda a sua própria essência e torna-se, freqüentemente Poesia da poesia. A exigência de conhecimento coloca-a no limite da Filosofia enquanto Metafísica. A Poesia como dom, seja como Mito ou como linguagem poética, é a entrada ou o limiar da Filosofia. O confronto entre as duas tem gerido o meu interesse de crítico e se manifesta indiretamente em livros meus, como Passagem para o Poético (Poesia e Filosofia em Heidegger) João Cabral de Melo Neto (Col. Poetas modernos do Brasil), O Drama da Linguagem (Sobre Clarice Lispector), O Tempo na Narrativa, No Tempo do Niilismo e outros ensaios, Crivo de Papel e, no mais velho de todos, O Dorso do Tigre. Assim, sou crítico numa acepção mais ampla, que acompanha o uso da palavra Crítica em Kant. Seja na Critica da Razão Pura, seja na Crítica da Razão Prática ou na Crítica do juízo, Kant pretendeu estabelecer as condições do conhecimento _ condições subjetivas, como o sentimento de prazer desinteressado, gerando a experiência estética, como a manifestação da vontade autônoma, determinando o domínio mora1, e como a idéia de finalidade, sem a qual é impossível conceber a ordem da Natureza. Ser crítico literário seria poder estabelecer as condições preliminares da existência do texto literário, sem esquecer a existência do texto filosófico com o qual aquele se confronta. Daí o empenho que me leva a passar da Literatura à Filosofia e voltar da Filosofia à Literatura, tal como o ir e vir de uma para outra, de maneira inevitável, concebida por Antonio Machado, sob a aparência heteronímica de um professor de Retórica, Juan de Mairena: "Hay hombres, decia mi maestro, que van de la Poética a la Filosofia; otros que van de la Filosofia a la Poética. Lo inevitable es ir de lo uno a lo outro, en esto como en todo (Juan de Mairena, Sentencias, Donaires, Apuntes e Recuerdos de um professor apócrifo). Assim, Antonio Machado, Fernando Pessoa, Rainer Maria Rilke, Paul Valéry e Mallarmé, foram, como poetas, na direção da Filosofia; Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, Gaston Bachelard e PaulRicouer, seguiram, como filósofos, empós da Poesia. Antonio Machado conheceu, como Fernando Pessoa, o fenômeno da heteronímia; assumiram ambos personalidades poéticas diferentes. Rilke poetou tendo por horizonte uma Filosofia da Natureza, à maneira de Schelling. Valéry também filosofou, mas o horizonte dele foi o ideal de poesia pura. Sartre nunca tentou a poesia, ao contrário de Heidegger. No entanto logrou dar-lhe uma descrição fenomenológica. Merleau-Ponty focalizou-a pondo em tela a distinção de Saussure entre langue e parole. Gaston Bachelard experimentou sistematizar as essencialidades poéticas por meio dos quatro elementos primários da Natureza (ar, terra, água, fogo). Em que pese o fato de que nem a Literatura nem a Filosofia são visadas do mesmo modo por uns e por outros, a idéia de trânsito no aforismo citado do apócrifo escritor Juan de Mairena, tem a virtude de colocar-nos no cerne do debate sobre o nexo da Filosofia com a Poesia _ aqui significando esta o princípio ativo da literatura, como diria Paul Valéry, e aquela o caráter reflexivo do pensamento racional. "Lo inevitable es ir de lo uno a lo outro, en esto como en todo". O trânsito configura um nexo de transação. Segundo Pierre Macherey, em seu À quoi pense la littératue? (PUF, 1990), a Filosofia pode, em certas condições, produzir literatura (peut "faire de la litterature") e a literatura pode produzir Filosofia ("faire de la Philosophie). Mas os poetas não deixariam de ser poetas indo à Filosofia nem os filósofos deixariam de ser filósofos indo à Poética. Entre as duas não haveria conversão mútua. Nem a Filosofia transforma-se em Poesia e nem a Poesia transforma-se em Filosofia. Estamos diante do que W. Marshall Urban chamou de paradoxo da literatura, em Language and Reality (Macmillan, l951). É aceitável o dito de Novalis de que quanto mais poético, mais verdadeiro? Podemos admiti-lo. Mas a verdade poética não é literal. Constituindo uma linguagem simbólica, ela é uma linguagem figurada. Se não for, deixa de ser poesia. Ela pode nos dar toda uma filosofia. Pode ser até, como Coleridge pensava, uma metafísica encoberta, como cadeia de significados latentes interpretáveis. "A transição à Metafísica é inevitável, mas não é o poeta, como poeta, que vai fazê-la, explica Marshall Urban. E só pode falar em sentido figurativo, para ser fiel à sua própria forma simbólica. Pois que precisamente é nesta forma simbólica que é dado um aspecto da rea1idade, que não pode ser expressado de outra maneira. Não é verdade que o que quer que seja expressado simbolicamente possa ser melhor expressado de maneira literal. Porque não há expressão literal, somente outra forma de símbolo" (Urban,op.cit.,pg.500). A singularidade da posição de Heidegger acerca das relações entre Filosofia e Poesia está em economizar a noção de símbolo no tratamento da linguagem. Linguagem é antes de mais nada discurso, e discurso remonta à experiência grega do logos _ o falar uns com os outros sobre algo, que nos coloca, de imediato em situação dialogante. Heidegger tomaria de Hölderlin os versos : “Do momento em que somos um diálogo e podemos ouvir-nos uns aos outros(...)". Porque podemos falar e porque falando dialogamos, temos a capacidade de dicção poética, de dizer aquilo que permanece, de fundá-lo, portanto, pela palavra_mas já a palavra posta fora do circuito verbal da comunicação cotidiana, tomando-se por meio de uma tonalidade afetiva, de um mood, antes de qualquer conhecimento, uma franquia do nosso ser ao existente, ou seja, na terminologia de Heidegger, uma abertura ao mundo. A linguagem, então, dispensada de sua função simbólica, é o quadro da criação poética, da poiesis, fundando o ser que permanece, dentro qual as palavras, recarregadas de novas potências, como o sagrado, trazem o sobressalto das origens. "A poesia é fundação do ser pela palavra e na palavra. O que permanece jamais é criado do efêmero. O simples não se deixa extrair do complicado. A medida não se encontra no imenso". (Erliiuterung Holderlin Dichter,p.41). Mas fundando o ser e desvelando o sagrado, a poesia, que para Heidegger excede a literatura, mantem o homem, momentaneamente liberado do ser-em-comum que nos interliga, na correlação semiiluminada de uma clareira, a habitação humana, em que se entrelaçam o céu e a terra, o homem e os deuses, os mortais e os imortais. Toda palavra poética, que nomeia invocando e evocando, lembrando o que precisa ser lembrado_ “a Poesia é o fervor pensante da recordação" (Vortráge und Aufsätze,v.2,pll)_também celebra, na forma de canto, aquilo que nomeia. Note-se, porém, que, para Heidegger, a Filosofia não é mais hoje, como já o foi no seu início, um modo privilegiado do dizer. Esse modo passa à Poesia. O filósofo procurou, em sua derradeira fase, um pensamento que à Poesia se aliasse, alijando de si a tradição filosófica que teria sido absolvida pela Metafísica, e compusesse, com aquela primeira, uma prática meditante, uma nova espécie de pensar. V Imaginemos, agora, que Filosofia e Poesia pudessem transar de fato, como se houvesse entre elas um regime lúdico, dirigido por algum Magister Ludi, à semelhança daquele inventado por Hermann Hesse no Jogo das Contas de Vidro (Glassenperlenspiel), permitindo que uma dispusesse da outra, que entrassem em contacto real como instâncias de mútuo poder valorativo. Que faria uma pela outra? Qual o programa da Filosofia para a Poesia? Nada mais do que tentar compreendê-la, e compreendendo-a, interpretá-la. De cada vez o pensamento postula a necessidade de compreendê-la como se a interrogasse. Mas a Filosofia não pode refazê-la ou ultrapassá-la. A ela se cola, adere ao seu indevassável horizonte. Nesse sentido, não pode haver Filosofia da Poesia, porque a Poesia é o limite da Filosofia. Ela começa quando a Filosofia acaba. E também, novo paradoxo, ela é o limiar da Filosofia. A Filosofia nasce como filha póstuma da Poesia, como se esta, associada ao Mito, acabasse para a Filosofia poder começar. E a Poesia, o que pode fazer pela Filosofia? Se pudesse, se tivesse poder, ensinaria a Filosofia a ser Arte. Seria a executora do projeto de Fernando Pessoa ou de Álvaro de Campos, tentando fazer da Metafísica, "metafísicas várias e engraçadas, mas sem lhes ligar intenção alguma de verdade". Investindo o possível no real, a poesia haveria de encaminhar a Filosofia para o inexpressável, para longe do literal, e, portanto, tentando poetizá-la, para torná-la de novo poesia, afim de poder mostrar pela palavra o que o raciocínio não demonstra _ afim de mostrar o que há e não dizer o que é. Na verdade, nem uma ensina à outra quando se unem e se entrosam historicamente nas ocasiões em que isso pôde ocorrer, por exemplo, na Idade Média com a Divina Comédia, na Idade Moderna com o Fausto de Goethe e em tempos recentes com as Elegias de Duino, de Rainer Maria Rilke, e os 4 quartets, de T.S. Elliot. Na Divina Comédia, as sanções do Inferno, o castigo dos pecadores condenados pela férrea justiça divina, a libertadora ascensão das almas do Purgatório para o Céu e a Bem-aventurança celeste, anunciada pela eterna e pura luminosidade; a busca demoníaca do conhecimento em Fausto I, confinando com o Mal causado a outrem; as metamorfoses do Fausto II, mágico, Imperador de mando absoluto, planejando a vida de todos, como drama da cultura Ocidental; a procura, na Segunda Elegia de Duino, "de uma terra fecunda, que seria nossa entre rio e rocha"_ tudo isso vai converter-se em símbolo do transitório no Eterno e do Eterno no transitório. “Tudo que passa é apenas símbolo'' (Alles Vergänglische ist nur ein Gleichnis). Como ensina o Fausto II, a Filosofia e a Poesia entram na vida individual e coletiva? A Filosofia pode comensurar a vida individual cognoscitiva e eticamente. A mesma medida é capaz de dar à vida coletiva, por meio do ensino, do intercâmbio de idéias na vida acadêmica. Mas a Poesia, que não busca senão a si mesma, que não fornece diretivas, que pode partir da negação do conhecimento e da negação ética, que não escolhe entre o Beme o Mal, que contem o negativo, pode desnortear o homem, aguçar seus conflitos. Ela voa aonde quer. Parte do individuo e volta para ele. Não entra no coletivo. Não é uma força social. Não se faz grupalmente. Se chega ao coletivo, é por meio da leitura em voz alta agindo sobre as pessoas que a voz ritmada alcança. Só atinge o membro da coletividade capaz de recriá-la individualmente. A Poesia pode suprir, em alguns casos, o objetivo racional da busca filosófica por um ato de visão intuitiva. Sem a Poesia, que fornece a ponta aguda da imagem, essa busca se torna árida, sem perspectiva de renovamento. Se as duas se unissem, como se unem as águas na terra e as nuvens no céu, cada qual poderia, agindo sobre cada indivíduo ou sobre muitos, de per si contribuir para renovar o conhecimento, recriar eticamente a vida e atualizar, em cada época, as melhores possibilidades humanas. A Filosofia tornar-se-ia poética e a Poesia, como diz algures o poeta Paul Celan, o lugar, o topos da Utopia. Belém, 12 de fevereiro, 2007.