A SOCIOLOGIA EVOLUTIVA Ricardo Ernesto Rose Jornalista, Graduado em Filosofia, Pós-graduado em Gestão Ambiental e Sociologia 1. A Sociologia Evolutiva 1. a) O que é a sociologia evolutiva e qual sua relação com a sociologia clássica? A sociologia evolutiva é ciência recente. Surgiu com este nome há cerca de trinta anos, como sucessora da sociobiologia. Esta nova área de estudos da sociologia tem sua base científica tanto nas ciências sociais, quanto nas biológicas e no neodarwinismo; a teoria da evolução de Darwin associada às descobertas genéticas de Mendel, chamada de síntese evolucionária moderna. A expressão foi proposta pelo biólogo Julian Huxley, em seu livro Modern Synthesis (Síntese Moderna) publicado em 1942. Outra disciplina associada à sociologia evolucionista é a psicologia evolucionista, igualmente fundamentada nos corolários teóricos do neodarwinismo e voltada para o estudo da mente humana. Ainda pouco conhecida no Brasil, a sociologia evolutiva – também por vezes titulada como sociologia evolucionista – é mais praticada nos Estados Unidos, onde se desenvolveu, mesmo assim de maneira ainda limitada. Contando atualmente com alguns estudiosos famosos, como os sociólogos Robert Boyd (Universidade da Califórnia), Peter Richerson (Universidade da Califórnia Davis) e William Wimsatt (Universidade de Chicago), a disciplina ainda não é amplamente difundida, inclusive entre os sociólogos americanos. Assim, foi somente em 2006 que a ASA – American Sociology Association (Associação Americana de Sociologia) criou uma seção regular chamada Evolution and Sociology (Evolução e Sociologia), contado àquela época com pouco mais de 300 membros associados. Trata-se, portanto, de uma disciplina 1 nova dentro da sociologia que, até onde pudemos pesquisar, ainda não tem uma rede regularmente estabelecida de especialistas no Brasil. Por motivos que desenvolveremos adiante, a sociologia evolutiva em grande parte ainda é encarada com desconfiança por muitos sociólogos, sendo incorretamente associada com a antiga biossociologia ou sociologia biológica, que por muitos sociólogos foi considerada um reducionismo científico. No Brasil, já Gilberto Freyre em seu grande trabalho Sociologia – Introdução ao estudo dos seus princípios, cuja primeira edição data de 1945, referia-se à relação dos estudos sociológicos com a biologia da seguinte maneira: A Sociologia, no seu primeiro esforço para firmar status de ciência, baseou-se quase exclusivamente sobre a Biologia, adotando-lhe a terminologia (organismo social, evolução, sobrevivência do mais apto) e por tal modo identificando o social com o biológico ou com o sócio-biológico que acabou por não restar quase lugar nenhum, em tal sociologia biológica, para o cultural, muito menos dentro do cultural, para o elemento histórico-biográfico a que acabamos de nos referir. Tentou-se a explicação do fato sociológico pelo fato biológico: do processo sociológico pelo processo biológico (FREYRE, p. 230, 1973 – negrito nosso). No segundo volume da mesma obra o sociólogo brasileiro ainda dedica todo um capítulo à sociologia biológica. Freyre escreve que no final do século XIX, falando sobre as origens da sociologia, esta ainda tinha forte influência da biologia, tomando dessa a terminologia e o que Freyre chama de “a filosofia predominante dos biólogos: a (filosofia) evolucionista”. Sobre a relação entre as duas ciências, o sociólogo brasileiro diz que os chamados sociólogos bioorganicistas querem “submeter à totalidade de fenômenos sociológicos e de cultura a processos biológicos e leis naturais”. No caso de Freyre e de outros sociólogos da primeira metade do século XX, devemos levar em conta que naquela época a teoria da evolução ainda não dispunha dos sólidos fundamentos experimentais que só adquiriu ao incorporar a teoria genética, transformando-se na síntese evolucionária moderna. Este avanço científico deu-se durante os anos 1930 e 1940 nos Estados Unidos e Inglaterra e lentamente se popularizou ao longo das décadas seguintes. Assim, antes disso, havia certo receio de que a sociologia fosse 2 influenciada em demasia pelo evolucionismo, transformando a ciência em uma sociologia biológica. Mesmo assim a teoria da evolução despertava o interesse de muitos sociólogos, que a utilizavam como método de trabalho em suas pesquisas, empregando o evolucionismo como base daquilo que o sociólogo Robert K. Merton chamou de “sistema global de teoria sociológica”. Os trabalhos desenvolvidos por estes estudiosos, no entanto, tiveram apenas um papel secundário na posterior estruturação do corpus doutrinário da sociologia. Até hoje as relações entre a sociologia evolutiva e a sociologia clássica ainda não estão claras. Se, por um lado, os sociólogos evolucionistas estão convencidos de trabalharem com uma nova ciência sobre bases científicas, por outro os sociólogos clássicos, em sua maioria, ainda encaram a sociologia evolucionista como um reducionismo ou, na melhor das hipóteses, uma biologia que toma emprestado expressões e temas da sociologia. “Porque de todas as ciências sociais, a sociologia é a disciplina mais resistente a um diálogo com a biologia e com a teoria evolutiva. Quanto mais nos aproximamos das especialidades centrais da sociologia, maior a resistência”, escreve o sociólogo André Luiz Ribeiro Lacerda. 1. b) Como se originou a Sociologia Evolutiva? As primeiras idéias da sociologia evolutiva tiveram sua origem nos anos 1950, quando o neodarwinismo começou a ser aplicado aos estudos das comunidades de símios antropomorfos – os orangotangos, gorilas, chimpanzés, bonobos e gibões –; as espécies de macacos mais aparentadas com o homem. Estudando estes animais em seus ambientes naturais e descrevendo suas organizações sociais, antropólogos, primatólogos e etólogos descobriram que havia muita similaridade entre as sociedades dos macacos e a humana. A partir dos anos 1960 a teoria neodarwinista já estava sendo utilizada em outras áreas do conhecimento, gerando grande quantidade de dados científicos nos campos da zoologia (Goodall), paleontologia e antropologia física (Leakey) e ecologia (Odum), entre outros. 3 Em 1975 o biólogo americano Edward Osborne Wilson lança Sociobiology – The new synthesis (Sociobiologia – A nova síntese), livro que reunia informações de recentes pesquisas sobre o comportamento animal e desenvolvia novas idéias sobre a seleção natural. No capítulo final de seu livro, Wilson faz uma projeção destes dados sobre as sociedades humanas, entrando no terreno da sociologia. Em relação a esta ciência Wilson escreve: Considere a perspectiva (futura) para a sociologia. Esta ciência está agora no estágio de história natural de seu desenvolvimento. Houve tentativas de construir um sistema, mas, como na psicologia, elas foram prematuras e não foram suficientes. Muito do que em sociologia é considerado atualmente teoria, é na realidade, classificação de fenômenos e conceitos, na maneira como é feito na história natural. O processo é de difícil análise, porque as unidades fundamentais são vagas, talvez inexistentes. As sínteses geralmente consistem em tediosas referências cruzadas de diferentes conjuntos de definições e metáforas elaboradas pelos mais imaginativos pensadores (WILSON, p. 574, 2000 – tradução e negrito nossos). Os conceitos apresentados na publicação se alinhavam com os trabalhos de biólogos e zoólogos famosos à época, como George Williams (1926-2010), William Hamilton (1936-2000), John Maynard Smith (1920-2004) e Robert Trivers (1943). Com seu trabalho, Wilson apresentou pela primeira vez ao grande público as teorias que especialistas já utilizavam há anos em seus laboratórios e blocos de anotações: de que grande parte do comportamento humano tinha também origem genética e não somente social. O assunto em si não era novo tendo já sido abordado por Charles Darwin no século XIX. No entanto a maneira como Wilson apresentou a teoria causou grande impacto à época. R. S. Machalek, do departamento de sociologia da Universidade do Wyoming escreve com relação aos objetivos práticos da sociobiologia: Quando aplicado ao estudo das sociedades humanas, o escopo da análise sociobiológica foi expandido, para incluir fenômenos sociais mais complexos e mais amplos, como sistemas familiares e de parentesco, sistemas de estratificação, padrões criminais e causadores do crime, relações étnicas, urbanização e industrialização, evolução social. A diversidade de sociedades humanas e de comportamentos sujeitos à análise evolucionista dos sociólogos contemporâneos continua a se expandir (Machalek, s/d – tradução e negrito nossos). 4 Sociobiology recebeu críticas negativas, tanto por parte de outros biólogos quanto do mundo acadêmico. Colegas de Wilson, como o paleontólogo Stephen Jay Gould e o geneticista Richard Lewontin, atacaram o conteúdo da publicação, classificando-a como “proponente da eugenia e do darwinismo social”, entre outras coisas. Sobre as críticas que caíram sobre o biólogo e sua obra, escreve o psicólogo evolucionista Steven Pinker: Também acusaram Wilson de discutir “as salutares vantagens do genocídio” e de fazer “instituições como a escravidão [...] parecerem naturais em sociedades humanas devido à sua existência universal no reino biológico”. Para o caso de a relação não estar suficientemente clara, um dos signatários escreveu em outro texto que “em última análise, foram os textos da sociobiologia [...] que forneceram a estrutura conceitual pela qual a eugenia foi transformada em prática genocida” na Alemanha nazista (PINKER, p. 159, 2004). Pinker toma a defesa de Wilson, admitindo que o biólogo tenha utilizado alguns dados imprecisos e elaborado raciocínios incorretos em partes do seu trabalho. Escreve que, no entanto, as críticas feitas a Wilson através de manifestos e até por livros (o biólogo Marshall Sahlins com Uso e abuso da biologia) não são justificadas. Todo o desenrolar dos ataques à sociobiologia, envolvendo alguns dos mais famosos biólogos americanos e ingleses (como Stephen Rose, Leon Kamin, Richard Dawkins, além dos já citados), bem como lances de falseamento de dados científicos, calúnia e difamação, são descritos em vários detalhes por Pinker em um capítulo de seu clássico Tábula Rasa – A negação contemporânea da natureza humana. Na obra o psicólogo rebate todas as críticas e demonstra que – ao contrário do que diziam os objetores da sociobiologia – o ser humano ao nascer não é uma tábula rasa, isto é, dispõe de um cérebro que já tem algum conteúdo preexistente, transmitido geneticamente. Os principais críticos da sociobiologia, termo que foi substituído pela expressão sociologia evolutiva a partir do final dos anos 1990, negam que caracteres adquiridos através da evolução e transmitidos pelos genes possam influenciar o comportamento social humano – alguns até ignoram completamente a existência destes caracteres, como o psicólogo Skinner. Argumentam que caso isso fosse possível, uma série de práticas consideradas desumanas, como o darwinismo social, seriam aceitáveis. A Enciclopédia 5 Stanford de Filosofia (Stanford Encyclopedia of Philosophy) escreve que os opositores da sociobiologia humana defendem que seus modelos são inadequados para serem aplicados ao comportamento humano, porque ignoram a contribuição da mente e da cultura; baseiam-se no determinismo genético e aprovam tacitamente o status quo. Sobre a confusão normalmente feita por aqueles que não conhecem a teoria da evolução e suas implicações, escreve o zoólogo Frans de Waal em Der Affe in uns – Warum wir sind, wie wir sind (O macaco em nós – por que somos como somos): Dado o popular uso e mau uso da teoria da evolução, quase não causa surpresa que o darwinismo e a seleção natural tenham se tornado sinônimo de competição desenfreada. Darwin mesmo era tudo menos um darwinista social. Ele acreditava, ao contrário, de que na natureza humana como também no ambiente natural a convivência teria seu lugar. (DE WAAL, p. 232, 2006 – tradução e negrito nossos). 1. c) Quais ciências e correntes de pensamento contribuíram para a formação da sociologia evolutiva? A sociologia evolutiva é produto intelectual do neodarwinismo e de pesquisas de campo em diversas áreas ligadas à biologia, etologia, genética, citologia e outras ciências afins. Para explicar as bases teóricas da sociologia evolutiva, abordaremos sucintamente: a) O neodarwinismo; e b) A psicologia evolutiva. O neodarwinismo: A teoria da evolução de Darwin surgiu em 1859, com a publicação de A origem das espécies. O cientista só lançou sua teoria depois de uma preparação de mais de 20 anos em pesquisas, precedida por uma viagem de estudos por todo o globo. Uma parte da teoria, o conceito de mutação ou transformação das espécies, já era conhecida e tida como provável por grande parte do público instruído do início do século XIX e até antes. O próprio avô de Darwin, Erasmus Darwin (1731-1802), já havia elaborado um esboço de uma teoria da mutação das espécies (Zoonomia, 1792) que teve considerável impacto no meio científico inglês da época. A grande inovação da teoria de 6 Darwin, portanto, foi explicar cientificamente como ocorria a evolução das espécies em todos os seus aspectos. Darwin estruturou sua teoria da seleção natural em torno dos seguintes pontos: a) As espécies evoluem através dos tempos. A geologia e a paleontologia, já na época de Darwin, provavam que no passado outros tipos de criaturas povoavam a Terra; b) Espécies aparentemente diversas têm um ancestral comum; fato comprovado por Darwin, tanto na pesquisa com animais domésticos quanto com espécies selvagens. A mais acalorada discussão sobre este ponto da teoria de Darwin foi com relação aos antepassados e à evolução do ser humano; c) A transformação evolutiva sempre acontece gradualmente (gradualismo) e nunca aos saltos (saltacionismo). Este aspecto da teoria de Darwin sempre foi motivo de críticas, inclusive de seus colegas, como Thomas H. Huxley. Tal parte da teoria da evolução, no entanto, começou a se provar verdadeira quando da elaboração da síntese evolucionista, com a ajuda da teoria genética. Mesmo assim o debate continua em nossos dias (Stephen Jay Gould e outros); d) A multiplicação das espécies resulta em grande diversidade. Darwin explicou este aspecto de sua teoria como sendo causado pelo isolamento geográfico de grupos pertencentes originalmente à mesma espécie. A comprovação final deste aspecto da teoria da evolução também ocorreu com a ajuda da teoria genética; e) A seleção natural, a parte mais inovadora e importante da teoria da evolução. Diz basicamente que dentro de uma grande variedade de indivíduos (a multiplicidade de espécies) ocorre um processo seletivo por mecanismos sexuais e de sobrevivência (acasalamento, ambiente, concorrência por alimento). Como resultado deste processo, apenas alguns indivíduos sobrevivem, que então transmitem suas características aos seus descendentes. Este ponto também ficou posteriormente provado, quando se 7 verificou que a transmissão das singularidades – e de eventuais mutações – ocorre através do gene. Segundo o biólogo alemão Ernst Mayr, a teoria da evolução passou por etapas distintas. A princípio aceita com entusiasmo, perdeu gradualmente sua força como teoria científica, porque muitos pontos de sua argumentação só puderam ser definitivamente provados no decorrer do século XX, notadamente após sua composição com a teoria genética. Sendo assim, coincidentemente na época da estruturação da sociologia no final do século XIX e início do século XX, a teoria da evolução exercia muito mais influência intelectual como filosofia e ideologia, do que como ciência. Nesta parte do texto faremos um parêntesis para esclarecer interpretações incorretas do neodarwinismo, quando aplicado ao estudo humano como na sociologia evolutiva. Por vezes a crítica se vale das expressões “a sobrevivência do mais apto” em seu sentido tendencioso, fora do contexto da teoria da evolução; e “darwinismo social”, numa acepção que não tem relação alguma com o pensamento de Darwin. O mal-entendido repetido ad nauseam, geralmente por aqueles que não conhecem o assunto, está baseado em fatos que ocorreram no final do século XIX. Nesta época o filósofo, biólogo e sociólogo inglês Herbert Spencer criou a expressão “a sobrevivência do mais apto” (Princípios de Biologia, 1864). Spencer, grande polímata, contribuiu em diversas áreas do conhecimento de sua época, tendo sido forte defensor do liberalismo econômico. Como cientista social e biólogo, sua interpretação da Origem das Espécies de Darwin era parcial, porque projetava incorretamente aspectos da teoria de Darwin sobre a sociedade inglesa da época, que apresentava grandes problemas sociais, comparáveis aos dos países em desenvolvimento atuais. Cientificamente, Spencer tinha fortes influências do lamarckismo – que dizia que o uso propicia o desenvolvimento ou desaparecimento dos órgãos –, teoria elaborada por Lamarck (1744-1824) e refutada cientificamente pela teoria da evolução. Spencer uniu sua visão deturpada de Darwin às suas posições de política social e econômica – defendendo a eliminação da ajuda aos pobres e atuando como arauto de um intransigente laissez-faire econômico – e acabou fazendo muitos adversários intelectuais e inimigos políticos. Esta posição de Spencer foi chamada por seus 8 opositores à época de “darwinismo social” – talvez mirando em um alvo, mas querendo acertar outro. Depois disso, na década de 1930, o darwinismo social reapareceu ligado a movimentos políticos direitistas, confundindo a idéia de progresso ininterrupto com evolução. Nessa linha de raciocínio, um indivíduo mais adaptado é aquele que ocupa uma posição social ou econômica superior, ou seja, os pobres são como são porque são evolutivamente mal-sucedidos. Este determinismo reducionista nada tem a ver com a teoria da evolução. Este foi um dos motivos pelos quais havia grande cuidado entre os primeiros sociólogos em não deixar que a “filosofia dos biólogos” (o evolucionismo, nas palavras de Gilberto Freyre) influenciasse as bases da sociologia. Provavelmente também foi a razão de outros expoentes do pensamento sociológico, como Durkheim, Simmel, Weber, e Talcott-Parsons, entre outros, pouco ou em nada se referiram ao evolucionismo darwiniano. Atualmente, com o acúmulo de dados da geologia, paleontologia, biologia, ecologia, etologia, entre outras ciências, o conhecimento científico permite dar uma forma mais elaborada e científica à teoria da evolução. Ponto importante é que esta não é teleológica, isto é, não se prevê um objetivo na teoria da evolução; a evolução (transmutação segundo Darwin) age aleatoriamente através dos genes. O que atualmente se conhece como “teoria do desenho inteligente”, hipótese de que a evolução é dirigida (por Deus) e de que tem um objetivo determinado, não tem fundamento científico. A ciência prova que toda a evolução ocorre por acaso, baseada em mutações apresentadas pelos indivíduos, que as transmitem aos seus descendentes. Estas transformações fazem com que as espécies atualmente existentes se desenvolvam gradualmente em outras. Estas, se sobreviverem às condições ambientais, terão igualmente grande variedade de descendentes, dos quais novamente só sobreviverão alguns, que terão que se adaptar e sobreviver no ambiente novo – o exemplo de um mar, que ao longo de milhões de anos vai secando e se transformando em um deserto como o Saara, permite imaginar o quanto espécies têm que se adaptar para sobreviver. A teoria da evolução, apesar de bem fundamentada por Darwin, possuía uma grande lacuna. Devido ao total desconhecimento da teoria genética, não era possível demonstrar 9 como se dava o processo de seleção e como as mutações aleatórias eram transmitidas aos descendentes. Sobre este ponto escreve Mayr: A dificuldade começa com a descrição exata do processo de seleção. Depois de ter descoberto seu novo princípio, Darwin buscou uma terminologia apropriada e pensou tê-la encontrado com o termo “seleção” (1859), que os criadores de animais utilizavam para seu estoque reprodutor. No entanto, como Herbert Spencer e depois Alfred Russel Wallace o alertaram, não existe na natureza um agente, que, como os criadores, “selecione o melhor de todos”. Em lugar disso, os beneficiários da seleção são os indivíduos que restam depois que os menos aptos foram eliminados. A seleção natural, portanto, é um processo de “eliminação não aleatória”. A frase de Spencer, “sobrevivência do mais apto”, foi de todo legítima, desde que o termo “mais apto” seja apropriadamente definido (Mayr, 1963: 199) como sucesso reprodutivo (ibidem, p. 156, 2005 – negrito nosso). Com a redescoberta da teoria genética no início do século XX, esquecida desde a morte do monge e biólogo Gregor Mendel (1822-1884), os biólogos se deram conta de que o gene seria o componente que faltava para explicar uma grande quantidade de fatos da biologia, previstos na teoria da evolução. Hoje, quanto mais evoluem as pesquisas na área da genética, microbiologia e biotecnologia, tanto mais fica fundamentada a exatidão da teoria da evolução. A psicologia evolutiva: Já em Principles of Psychology (Princípios de Psicologia, 1890), o psicólogo e filósofo americano William James, influenciado pela teoria evolução, afirmava que a menos que tenha rudimentos de conhecimento inato, a mente humana não poderia incorporar a imensa quantidade de fatos e conhecimentos que absorvia. Contrariando a moda do empirismo que imperava na filosofia e ciência da época, James afirmava que os seres humanos dispunham de tendências inatas, que não provinham somente da experiência, mas do processo darwiniano de seleção natural. Escreve sobre William James o biólogo Matt Ridley: William James afirmava que os seres humanos tinham mais instintos que os outros animais, e não menos. “O homem possui todos os impulsos que têm [as criaturas inferiores], e muitas outras além destas (...) Será observado que nenhum outro mamífero, nem mesmo o mico, mostra um leque 10 tão amplo deles”. Ele afirmou que era falso opor o instinto à razão (RIDLEY, p. 56, 2003 – negrito nosso). As idéias de James contribuíram para a criação da psicologia funcionalista e chegaram a fazer escola com seu discípulo William McDougall. O funcionalismo, no entanto, foi eclipsado por outras escolas de psicologia ao longo do século XX, como a escola behaviorista ou comportamentalista, de orientação empirista. Esta, fortemente representada em todas as ciências humanas, foi gradativamente adquirindo hegemonia, transformando-se na base teórica da psicologia. Em toda a sua história, a psicologia nunca chegou a estabelecer um pensamento único sobre os seus pressupostos básicos em relação ao empirismo ou funcionalismo (nativismo). Assim, uma das grandes dificuldades é a construção de uma história desta ciência. Usualmente tem se descrito o desenvolvimento da psicologia em uma seqüência cronologicamente ordenada – porém não logicamente correta –, no que se refere à análise dos problemas e tentativas de soluções. No entanto, as posições com relação aos fundamentos desta ciência, mesmo entre seus precursores – com exceção de William James e alguns outros – nunca chegaram a ser claras. Desenvolveram-se assim várias teorias sobre o funcionamento da mente, sem que fosse dada grande importância à maneira como operaria o substrato de todo o sistema: o cérebro. A maior parte dos autores encarava este órgão como uma massa de certa maneira amorfa, dotada de algumas propriedades, que, no entanto, pouca influência tinha no funcionamento da mente – exceção seja feita a casos de malformação, acidentes ou doenças, que já eram conhecidos desde a Antiguidade e afetavam a atuação da mente. Referindo-se ao pensamento de Wilhelm Wundt (1832-1920), um dos fundadores da psicologia, em relação à maneira como este encarava sua ciência, escreve o filósofo José Antonio Damásio Abib: Para Wundt, a psicologia como ciência é psicologia empírica. E, como tal, interpreta a experiência psíquica a partir da própria experiência psíquica; deduz os processos psíquicos de outros processos psíquicos; faz uma interpretação causal de processos psíquicos com base em outros processos psíquicos; não recorre a substratos diferentes destes processos, tais como mente-substância ou processos e atributos da matéria para explicá-los (ADIB, p. 197, 2009 – negrito nosso). 11 O mesmo vale para outro expoente da psicologia – mais especificamente psicanálise –, Sigmund Freud. Apesar de estar envolvido desde o princípio de sua carreira com a pesquisa psicológica estudando a histeria com o psiquiatra Charcot (1825-1893), Freud nunca estabeleceu uma posição em relação ao empirismo ou funcionalismo. Winograd em Freud e a Filogenia Anímica, escreve que: Freud aderiu às idéias de Darwin e participava dos esforços para demonstrar os caminhos da evolução. Porém seu darwinismo não o impediu de fazer uso de outras teorias evolutivas, o que custou críticas severas à psicanálise (WINOGRAD, 2007). Diferentemente de James, ao que parece, Freud nunca tentou associar sua teoria da mente aos pressupostos do evolucionismo – provavelmente por metodologia de trabalho. Escreve Ripley que o pensamento que imperou por muito tempo na psicologia (e em outras áreas como a sociologia e a antropologia) tinha como característica o que é conhecido como tábula rasa. A expressão latina que literalmente quer dizer “tábua raspada” e é utilizada no sentido de “folha em branco”, foi inicialmente empregada pelo filósofo inglês John Locke (16321704) em seu Ensaio Acerca do Entendimento Humano. Considerado o principal expoente do empirismo inglês e o ideólogo do liberalismo, Locke dizia que o homem nascia com a mente em branco, sem idéias inatas; ao contrário do que diziam filósofos anteriores como Descartes (1596-1650) e Malebranche (1638-1715). Para estes, o ser humano já vinha ao mundo munido de conceitos como “Justiça”, “Bem”, “Deus” e vários outros, colocados em sua alma pela divindade. Locke, ao contrário, dizia que tais idéias o homem adquiria ao longo da vida, através do processo de interação com seu ambiente, formando desta maneira sua personalidade. O princípio da tabula rasa, associado ao empirismo, permeou toda a filosofia ocidental até praticamente o século XX, e ao mesmo tempo exerceu forte influência sobre todo o desenvolvimento do pensamento científico, culminando com o início da psicologia e da sociologia, na segunda metade do século XIX. Mas, havia algumas vozes que destoavam deste coro de unanimidades. Charles Darwin em sua obra A expressão das emoções no homem e nos animais (1872), fez uma descrição das várias expressões faciais e corporais de 12 diversos tipos de animais, de acordo com a emoção que sentiam. Em seguida mostrou as reações dos macacos, para então descrever pormenorizadamente (documento por fotografias da época) as diferentes expressões gestuais e faciais dos seres humanos, quando estavam sentindo as mais variadas emoções. O objetivo de Darwin, evidentemente, foi mostrar que existe uma ligação entre as expressões e reações humanas e as dos outros animais. De seu trabalho conclui Darwin: Pelo que sabemos, apenas uns poucos movimentos expressivos, como aqueles aos quais acabamos de fazer referência, são aprendidos individualmente; isto é, foram realizados consciente e voluntariamente nos primeiros anos de vida com algum objetivo definido, ou por imitação, tornando-se depois habituais. A grande maioria dos movimentos expressivos, inclusive os mais importantes, é inata ou hereditária, como vimos; eles não podem ser dependentes da vontade do indivíduo. Entretanto, todos aqueles incluídos sob nosso primeiro princípio foram de início desempenhados voluntariamente com um objeto definido, a saber, fugir de alguma ameaça aliviar um sofrimento ou satisfazer um desejo (DARWIN, p. 299-300, 2012 – negrito nosso). A partir da década de 1920, com a diminuição da influência do funcionalismo de William James, o behaviorismo e o comportamentalismo, de origem empirista, passam a dominar não só a psicologia (com John B. Watson e B. F. Skinner), mas também a antropologia (Franz Boas), a psicanálise (Sigmund Freud) e a sociologia (Émile Durkheim, que foi aluno de Wundt e exerceu grande influência teórica sobre Freud). Em 1958, analisando um trabalho sobre a linguagem (Comportamento Verbal, 1957) do psicólogo Burrhus F. Skinner – o maior expoente do behaviorismo à época – o linguísta Noam Chomsky defendeu a tese de que era impossível uma criança aprender as regras da linguagem somente através de exemplos da experiência, fato já intuído por James setenta anos antes. Afirmava que a criança deveria ter as regras inatas, pelas quais o vocabulário da linguagem é fixado. Para o linguísta, as gramáticas gerativas das línguas individuais são variações de um único padrão, que Chomsky denominou de gramática universal. Sobre esta descoberta, escreve Matt Ridley em Genome – The autobiography of a species (Genoma – A autobiografia de uma espécie): 13 Estudando a maneira como os seres humanos falam, Chomsky concluiu de que há similaridades na base de todas as línguas, o que prova a existência de uma gramática universal humana. Todos nós sabemos como usá-la, embora raramente estejamos cônscios desta habilidade. Isto deve significar, de que parte do cérebro humano vem equipada por seus genes com uma habilidade especializada para aprender línguas. Simplesmente, o vocabulário não pode ser inato, ou nós todos falaríamos uma só invariável língua. Mas talvez uma criança, ao adquirir o vocabulário de sua sociedade nativa, insira estas palavras em um jogo de regras mentais inatas (RIDLEY, p. 93, 1999 – tradução e negrito nossos). Muitos psicólogos evolucionistas consideram a teoria de Chomsky como uma das primeiras confirmações de uma estrutura cerebral inata, mostrando que já nascemos com certas capacidades mentais herdadas. Chomsky atualizou sua teoria em 1984, com a teoria de princípios e parâmetros. Atualmente, apesar de diversos críticos da teoria (Dell Hynes, Dan Everett e outros), esta ainda não foi definitivamente refutada. Grande parte dos psicólogos e psiquiatras considera que se estruturas cerebrais herdadas existem, estas são irrelevantes para o estudo da ciência psicológica. Entretanto, atualmente já existem outras disciplinas como a neurologia, que vem avançando na pesquisa da mente e também trabalham com a hipótese de que esta contenha informações preexistentes. O neurologista português Antonio Damásio em Der Spinoza-Effekt – Wie Gefühle unser Leben bestimmen (O efeito Spinoza – Como sentimentos determinam nossa vida) faz uma análise da influência dos sentimentos no comportamento humano. Para o cientista, os sentimentos e as emoções são reações do corpo sobre o cérebro e demonstra que desde o nascimento não há maneira de separar um do outro. Sobre a questão da mente do tipo tabula rasa, escreve o autor: Aqui eu talvez devesse complementar minha discussão com mais esclarecimentos. Quando eu digo que a mente é formada por idéias, que de uma ou de outra maneira são representações do corpo no cérebro, facilmente se poderia chegar à idéia de que o cérebro é uma folha em branco, que virgem e intocado aguarda que o corpo lhe inscreva sinais. Nada poderia ser mais errado. O cérebro não principia como tabula rasa. Já no início de sua existência, ele dispõe do conhecimento, como o organismo deve ser “acionado”, ou seja, como o processo vital deve ser dirigido e como um grande número de acontecimentos do mundo exterior deve 14 ser dominado. (DAMASIO, p. 238-239, 2003 – tradução e negrito nossos). Outro autor originário da neurologia, o neurocientista David Eagleman, ainda vai mais longe e dá uma autonomia muito maior ao cérebro; não só em relação ao fato de conter informações preexistentes, mas até quanto ao próprio controle que temos desse órgão durante nosso tempo de vida. Eagleman escreve quanto ao aspecto funcionalista do cérebro: O cérebro é um sistema complexo, mas isto não significa que seja incompreensível. Nossos circuitos neurais foram gravados pela seleção natural para resolver problemas que nossos ancestrais enfrentaram durante a história evolutiva de nossa espécie. Seu cérebro foi moldado por pressões evolutivas, assim como seu baço e os olhos. E o mesmo ocorreu com a consciência. A consciência se desenvolveu porque era vantajosa, mas vantajosa apenas de forma limitada (EAGLEMAN, p. 14, 2012 – itálico do autor, negrito nosso) Em todo seu livro Incógnito – As vidas secretas do cérebro o autor desenvolve a teoria – fundamentada por inúmeros fatos científicos – de que nosso controle sobre o cérebro, nossa mente, é muito menor do que imaginávamos. O cérebro escreve Eagleman, já é geneticamente dotado de um programa de funcionamento, e nossa mente consciente em muitas ocasiões é apenas um coadjuvante desnecessário de nossas ações – fato que não pode ser o resultado de aprendizado, interações sociais ou experiências. Apesar de este não ser o tema da obra, o livro de Eagleman é um forte argumento científico contra na crença da tábula rasa: A primeira lição que aprendemos no estudo de nossos circuitos é simples: a maior parte do que fazemos e sentimos não está sob nosso controle consciente. A vasta selva de neurônios opera seus próprios programas. O você consciente – o eu que ganha a vida quando você acorda pela manhã – é a menor parte do que se revela de seu cérebro. Embora sejamos dependentes do funcionamento do cérebro em nossa vida interior, ele cuida de seus próprios negócios. A maior parte de suas operações está acima do espaço de segurança da mente consciente. O eu simplesmente não tem o direito de entrar. (EAGLEMAN, p. 14, 2012 – itálico do autor, negrito nosso). Para finalizar estes comentários sobre as diversas teorias que formam as diferentes correntes psicológicas, é preciso ressaltar o fato de que nunca houve e há cada vez menos consenso sobre o campo próprio da pesquisa 15 psicológica. Até hoje ainda não existe uma idéia comum sobre o conceito de comportamento e as relações – biológicas e psicológicas – entre a sociedade humana e animal. Para alguns especialistas como Jacques Cosnier, autor de Clefs pour la psychologie (Chaves para a psicologia, 1971), a psicologia não seria mais uma ciência que estuda o comportamento, mas que se ocupa dos processos intercomunicativos, com raízes na biologia e na linguística. Cosnier considera que a fase comportamentalista da psicologia estaria ultrapassada, dada a impossibilidade de superar o hiato entre teoria e prática. Assim, seguindo a linha argumentativa de Cosnier, daqui para frente a discussão na psicologia parece ser clara: é possível continuar com as práticas comportamentalistas, atuando na ponta final do sistema (exteriorizada pelo comportamento humano); ou pode-se enveredar por técnicas que também levem em consideração o substrato genético do cérebro e da mente – fato mais que demonstrado por diferentes correntes da psicologia e aprofundado cada vez mais pela neurologia. Especialmente nos Estados Unidos, despontaram nos últimos trinta anos vários especialistas em diversas áreas influenciados pela sociobiologia. Em sua maior parte, tais profissionais atuam nos campos da biologia, antropologia, psicologia, filosofia e sociologia, utilizando-se, sob diversas formas, do ferramental teórico da psicologia evolutiva. Walter Neves, biólogo, antropólogo e arqueólogo brasileiro, responsável pelo estudo de Luzia – o esqueleto humano mais antigo do continente americano – escreve o seguinte sobre a psicologia evolutiva no prefácio ao livro A pré-história da mente, de Steven Mithen: A psicologia evolutiva tem crescido muito no exterior e grande parte dos profissionais envolvidos nessa abordagem é formada por antropólogos, tendo se tornado, na verdade, uma nova subárea da antropologia evolutiva. Esta última, para ser praticada em nível aceitável, requer que os profissionais envolvidos tenham uma grande erudição sobre o fenômeno humano no espaço e no tempo. Requer, também, que esses profissionais acreditem, ainda que apenas parcialmente, que é possível identificar as relações de causa e efeito no comportamento social humano [...] (NEVES in MITHEN, p. 10, 2002). 16 Por um lado a maior parte dos sociólogos e psicólogos ainda considera a mente um mecanismo de aprendizado geral, sem qualquer conteúdo prévio ao nascermos. O conhecimento e as idiossincrasias comportamentais são adquiridos através da interação cultural. De acordo com esta teoria da mente, a biologia tem um papel secundário, quase irrelevante. No entanto, muitos antropólogos chegaram à conclusão que como melhor hipótese de trabalho, a mente deve ser encarada como um sistema de módulos, com diferentes funções. Segundo essa concepção do formato da mente, nosso cérebro levou milhões de anos para evoluir e para desenvolver suas capacidades. Esta é a hipótese da psicologia evolutiva, teoria formulada pela primeira vez no início da década de 1980, pelo filósofo e cientista cognitivo americano Jerry Fodor. Nos anos 1990 foi desenvolvida pelo antropólogo John Tooby e pela psicóloga Leda Cosmides. Segundo a psicologia evolucionista, a constituição biológica tem uma forte influência em nossa maneira de pensar. A mente é formada por vários sistemas cognitivos especializados, cada qual dedicado a um tipo específico de comportamento. Os autores da psicologia evolutiva comparam a mente a um canivete suíço com várias lâminas, uma para cada função. Por isso, ao nascermos, nosso cérebro já está de certa maneira preparado – devido aos sistemas cognitivos especializados – a enfrentar o mundo. Em um artigo escrito em 2010, descrevi as principais características da psicologia evolutiva da seguinte maneira (baseado no texto original dos autores Evolutionary Psychology: a primer): A psicologia evolutiva, segundo Cosmides e Tooby, estuda: 1) Cérebros; 2) Como cérebros processam informações; 3) Como os programas de processamento de informações do cérebro geram comportamento. Se assumirmos que a psicologia é um ramo da biologia, várias ferramentas poderão ser aplicadas à psicologia. Os cinco princípios básicos, utilizados como métodos pela psicologia evolutiva, são: 1º Princípio: O cérebro é um sistema físico, que atua como um computador. Seus circuitos são projetados para gerar comportamento que seja apropriado às nossas circunstâncias ambientais. O cérebro é um sistema físico, cuja operação é governada unicamente pelas leis da química e da física. Sua função é processar informações, ou seja, é um computador feito de componentes à base de carbono. Nesta estrutura, neurônios são conectados uns os outros, de uma maneira altamente organizada e são por sua vez conectados aos 17 circuitos neurais, que percorrem o corpo humano. Receptores sensórios são conectados a neurônios, que transmitem informação ao cérebro. Em suma, os circuitos do cérebro são projetados para gerar movimento, respondendo às informações do ambiente. A função do cérebro, este computador “molhado”, é gerar comportamento que seja apropriado às circunstâncias encontradas pelo restante do corpo no ambiente. 2º Princípio: O sistema neurônico e neural foi projetado pela seleção natural, para resolver problemas que nossos ancestrais enfrentaram durante a história evolutiva de nossa espécie. Nossos circuitos neurais formaram-se para resolver problemas adaptativos, ou seja, como o organismo sobrevive: o que come, de quem é presa, com quem se acasala, com quem se associa, como se comunica, e assim por diante. 3º Princípio: A consciência é apenas a ponta do iceberg; a maior parte do que ocorre no cérebro permanece desconhecido. Como resultado, nossa experiência consciente pode nos iludir e fazer-nos pensar que a estrutura da mente é mais simples do que parece. A maior parte dos problemas que experimentamos como fáceis de resolver são difíceis – requerem um circuito neural bastante complexo. A complexidade do funcionamento da mente humana é muito grande. Podemos apresentar grandes generalizações, que, todavia não explicam como a estrutura efetivamente funciona. 4º Princípio: Diferentes circuitos neurais são especializações para resolver diferentes problemas de adaptabilidade. Segundo a psicologia evolutiva, temos todos estes circuitos neurais especializados, porque o mesmo mecanismo raramente é capaz de atender diferentes necessidades de adaptação, como escutar, enxergar, sentir raiva, medo, náusea, etc. Consequentemente, o cérebro deve ser composto de grandes grupos de circuitos, com diferentes subcircuitos, especializados para resolver diferentes desafios. 5º Princípio: Nosso moderno crânio abriga uma mente da Idade da Pedra. A seleção natural levou muito tempo para produzir suas mudanças e construir novos circuitos em nossos cérebros. Quase 99% do tempo de existência de nossa espécie despendemos como caçadores-coletores. Nossos ancestrais viviam em pequenos grupos nômades, com poucas dúzias de indivíduos, obtendo seu alimento diário – quando disponível – caçando animais e colhendo plantas. Desta forma, a chave para entender o funcionamento da mente moderna é compreender que seus circuitos não foram projetados para problemas diários de um cidadão moderno – foram desenvolvidos para problemas diários de nossos ancestrais caçadores-coletores. Isto, todavia, não quer dizer que nossa mente não tenha mecanismos de aprendizado, capazes de permitir que criemos novos ambientes e nos adaptemos a eles (ROSE, 2010 – negrito nosso). 18 1. d) Em que pressupostos científicos se baseia a estrutura teórica da sociologia evolutiva? Fizemos uma breve apresentação, ressaltando os pontos mais importantes das duas principais bases teóricas da sociologia evolutiva: o neodarwinismo e a psicologia evolutiva. Esta última efetivamente é uma conseqüência, em sua teoria e prática, da sociobiologia de Wilson. Cabe ressaltar, que em nossa metodologia de análise da questão, consideramos que é exatamente a psicologia evolutiva, com seus pressupostos teóricos sobre o funcionamento da mente, que trará os argumentos e as fundamentações científicas para uma abordagem da sociologia sob o aspecto do neodarwinismo. Pesa ainda sobre a psicologia evolutiva a imagem de ser um reducionismo e para alguns um determinismo genético. No entanto, se isto fosse efetivamente assim, as próprias descobertas da psicologia, antropologia, paleontologia, genética, neurologia e demais ciências refutariam esta teoria. É muito provável, como acontece com todas as teorias – principalmente aquelas envolvendo os seres vivos – que muitos pontos daqueles defendidos por Cosmides e Tooby venham a ser revistos; é a prática do próprio processo científico. No entanto, é pouco provável que certos fatos básicos da psicologia evolutiva sejam negados, mesmo no futuro. Dificilmente poderá se provar o contrário de que, assim como todos os outros animais, também nascemos com certos instintos e condicionamentos. Apesar de várias pesquisas estarem em andamento nesta área, será tarefa da psicologia no futuro analisar o grau de influência dos genes sobre as emoções, comportamentos e idéias dos indivíduos. Como escreve Steven Pinker: Significa apenas que os sistemas hereditários de aprendizado, sentimento e pensamento, possuem uma organização que, no ambiente onde evoluíram nossos ancestrais, terá conduzido, em média, a maiores chances de sobrevivência e reprodução (PINKER, p. 84, 2004). Nunca, evidentemente, será possível explicar a complexa realidade da vida – e principalmente da experiência humana – baseado somente em uma 19 teoria genética e algumas outras conseqüências práticas e teóricas. O que como corolário também quer dizer que nem todos os aspectos da vida humana são produtos do gene; a cultura também tem um papel importante. Quanto a esta questão, que os cientistas americanos chamam de dilema nature and nurture (algo como “qualidades inatas versus experiência”), escreve o zoólogo Matt Ridley: Devo me repetir para ser absolutamente claro. Não há nada de factualmente errado em afirmar que os seres humanos são capazes de aprender, ou que podem ser condicionados a associar estímulos, ou a reagir a recompensas e punições ou qualquer outro aspecto da teoria do aprendizado. Esses são fatos verdadeiros e tijolos essenciais na parede que estou construindo. Mas não se segue daí que os seres humanos não têm instintos, e menos ainda que os seres humanos sejam incapazes de aprender se têm instintos. As duas coisas podem ser verdadeiras (RIDLEY, p. 240, 2003). 2. A proposta da sociologia evolutiva 2. a) Alguns aspectos da sociologia clássica Nesta parte do trabalho apontaremos algumas características da sociologia clássica e as compararemos com a sociologia evolutiva. O objetivo de nossa argumentação é demonstrar que a sociologia evolutiva é uma nova disciplina na sociologia clássica, que não pretende – e nem pode – suplantá-la, mas que tem condições de atuar na pesquisa sociológica com uma teoria básica específica, o neodarwinismo. O principal instrumento que esta nova disciplina utiliza é a psicologia evolutiva, não necessariamente em seu formato atual, já que também esta psicologia está em fase de construção, como toda ciência. Em nossa abordagem, consideramos importantes as seguintes palavras de Lacerda: Vista a partir das especialidades estruturalmente sociológicas, as áreas centrais dominadas por generalistas que zelam pela tradição da teoria sociológica, a teoria evolutiva não pode ajudar na explicação do comportamento social humano. Para sociólogos não faz sentido pensarmos os comportamentos sociais humanos em termos de causas últimas. A teoria da evolução é aceita para explicar nossa anatomia só até o pescoço. Para um sociólogo tradicional, o comportamento social humano é moldado inteiramente pelo processo de 20 socialização, que é um processo exclusivamente sociocultural. O advento da psicologia evolucionista nos anos de 1990 ajudou a popularizar explicações do comportamento social humano que conjugam causas últimas com causas próximas, mas a sociologia continua como a última trincheira contra as explicações neodarwinistas do comportamento humano (LACERDA, pag. 2, 2009 – negrito nosso). Inicialmente abordaremos alguns tópicos em relação à sociologia clássica, baseados em textos de sociólogos conhecidos. Em relação à sociologia clássica, trataremos: a) Seus pressupostos teóricos básicos; b) Sua metodologia de pesquisa; c) Seus principais objetos de pesquisa. Com relação aos pressupostos básicos da sociologia observamos que esta ciência não dispõe de um corpo unitário de premissas teóricas básicas; uma teoria unificada na qual se acomodam os tijolos teóricos com os quais se constroem as metodologias e seus objetos de pesquisa. Sobre isso, escreve o sociólogo americano Robert K. Merton: A predileção dos sociólogos do século XIX em desenvolver cada um seu “próprio sistema” de sociologia – e que se manifesta ainda hoje em certos setores – significa que os mesmos são elaborados, tipicamente, como sistemas opostos de pensamento, mais do que consolidados num produto cumulativo (MERTON, p. 37, 1970 - negrito nosso). Esse aspecto dos estudos sociológicos, caracterizando a falta de uma base na qual os autores possam desenvolver seu sistema, dá mais força à interpretação de que a sociologia não é uma ciência unificada. O sociólogo André Luiz Ribeiro de Lacerda, referindo-se ao surgimento da sociobiologia e à reação na área da sociologia, relata que o acontecimento provocou aumento das críticas em relação à natureza do conhecimento sociológico clássico. Se anteriormente Merton já desaprovava a falta de uma linha-mestra na ciência (como vimos no texto acima), a celeuma só acabou aumentando. Nos anos 1970, Gouldner (o sociólogo americano Alvin W.Gouldner, 1920-1980) diagnosticou uma crise na sociologia ocidental. Uma crise teórica e metodológica que se manifestou na fragmentação da disciplina. A recepção hostil que a sociobiologia recebeu no mainstream foi contrabalanceada pela simpatia de alguns sociólogos, que se manifestaram e continuam a se manifestar, intensificando críticas à sociologia e ampliando o diagnóstico de Merton e Gouldner (LACERDA, p.160, 2009 – itálico e negrito nosso). 21 Merton, por seu lado, não tem ilusões a respeito de uma teoria unificada permeando os estudos sociológicos, já que escreve: As páginas seguintes levam a admitir que essa procura por um sistema global de teoria sociológica, no qual as observações sobre todos os aspectos do comportamento, da organização e da mudança social, encontrariam prontamente seu lugar preordenado, têm o mesmo desafio estimulante e as mesmas promessas insignificantes daqueles sistemas filosóficos que procuravam tudo abarcarem e que caíram num merecido esquecimento (MERTON, p. 57, 1970 – negrito nosso). Merton neste comentário praticamente nega a possibilidade de uma teoria científica básica na sociologia. Na filosofia, Merton parece estar se referindo aos grandes pensadores sistemáticos, como Aristóteles, Tomás de Aquino e, especialmente, Georg W. F. Hegel, cujo sistema tinha a pretensão de encampar e explicar toda a realidade humana. Mas isto já seria esperar demais de uma ciência humana como a sociologia, que se propõe a explicar e não só interpretar, como a filosofia. Merton até faz referência a alguns sociólogos, como Comte e Spencer, que tentaram construir sistemas abrangentes. Outros, como Gumplowicz (1838-1909), Ward (1841-1913) e Giddings (1855-1931), experimentaram elaborar um arcabouço teórico que se destinava “a guiar a investigação de problemas sociológicos específicos, dentro de uma estrutura provisória e evolutiva”, segundo Merton. Na praxis sociológica, entrementes, não existe uma teoria central, como a teoria tectônica das placas na geologia e geografia ou a teoria da oferta e demanda na economia. Com relação à metodologia na sociologia, ainda nos baseamos em Merton, em seu clássico Sociologia – Teoria e Estrutura: A condição das ciências físicas e biológicas permanece muito diferente das ciências sociais e da sociologia em particular. Se o físico, como tal, não tem necessidade de impregnar-se dos Princípios de Newton, e o biólogo, como tal, não precisa ler e reler A origem das espécies de Darwin, o sociólogo, mais como sociólogo do que como historiador da sociologia, tem amplos motivos para estudar os trabalhos de Weber, Durkheim e Simmel e até mesmo para remontar, ocasionalmente, às obras de Hobbes, Rousseau, Condorcet, e Saint Simon (Ibidem, p, 48 – negrito nosso). Em mais este aspecto a sociologia se aproxima de ciências como a filosofia, a psicologia e a história. O cerne do aprendizado se dá através da 22 leitura dos clássicos da disciplina, descobrindo os modelos de trabalho intelectual estabelecidos pelos fundadores; Comte (1798-1857), Marx (18181883), Weber (1864-1920), Durkheim (1858-1917), Tönnies (1855-1936), Simmel (1859-1918), Talcott-Parsors (1902-1979), Mannheim (1893-1947) e muitos outros. Tudo aliado à observação empírica e um ceticismo metodológico, a fim de eliminar os aspectos “incontroláveis” do processo de investigação. Assim, é através dos clássicos, os libri fecondatori (livros fecundadores) segundo o escritor Salvemini, que o pesquisador também poderá identificar um bom problema sociológico a ser estudado. Em outras palavras: seguem-se os mestres, mesmo sabendo que estes tinham opiniões diferentes e às vezes divergentes. Ainda sobre o método sociológico, escreve Merton a título de recomendação para os futuros profissionais: A teoria sociológica se pretende progredir de modo significativo, deve prosseguir nestes planos interconexos, 1) desenvolvendo teorias especiais das quais possam derivar hipóteses que permitam ser investigadas empiricamente e, 2) evolvendo (e não revelando repentinamente) um esquema conceptual progressivamente mais geral, adequado a consolidar grupos de teorias especiais. Concentrar-nos exclusivamente em teorias especiais traz-nos o risco de ficarmos envolvidos em hipóteses específicas que explicam aspectos limitados do comportamento, organizações e mudanças sociais, mas que permanecem mutuamente inconsistentes (Ibidem, p. 63). Para finalizar este subcapítulo sobre a sociologia clássica, cabe discutir ainda sobre quais seriam os objetos de estudo da sociologia. Neste caso, existem várias orientações genéricas. Não entraremos em detalhes, apenas mencionaremos algumas interpretações de sociólogos famosos. Para Augusto Comte, considerado tradicionalmente o fundador da ciência sociológica, a sociologia deve-se concentrar no estudo da ordem e do progresso social. Émile Durkheim, considerado o sistematizador da ciência, ensina que o objeto de estudo da sociologia são os fatos sociais, os quais difíceis de serem estudados têm como características a generalidade, a exterioridade e a coercitividade. Como amostras de fatos sociais, Durkheim cita as leis e as religiões. Como exemplo desta metodologia, citamos um trecho de seu As regras do pensamento sociológico: 23 Conseguimos, então, representar-nos, de um modo preciso, o domínio da sociologia. Este só compreende um determinado grupo de fenômenos. Um fato social reconhece-se pelo poder de coerção externa que exerce ou o suscetível de exercer sobre os indivíduos; e a presença desse poder se reconhece, por sua vez, pela existência de uma sanção determinada ou pela resistência que o fato opõe a qualquer iniciativa individual que tende a violá-la. (DURKHEIM, p. 37-38, 2002). Outra figura precursora da sociologia, como o alemão Max Weber, afirma sinteticamente que o objeto de estudo da sociologia são as conexões e a significação das manifestações culturais por trás dos fatos sociais. Weber assim define os objetivos da sociologia: A ciência social que nós pretendemos praticar é uma ciência da realidade. Procuramos compreender a realidade da vida que nos rodeia e na qual nos encontramos situados naquilo que tem de específico; por um lado, as conexões e significação cultural das suas diversas manifestações na sua configuração atual, e por outro, as causas pelas quais se desenvolveu historicamente assim e não de outro modo (WEBER apud COHN, p. 88, 1989). Dadas as características da sociologia clássica em relação à teoria, à metodologia e aos objetos de pesquisa expostos acima, concluímos que a sociologia evolutiva, sem querer substituir a sociologia clássica como já escrevemos, tem todas as condições de ocupar seu espaço na pesquisa sociológica brasileira. 2. b) Quais são os diversos campos de pesquisa da sociologia evolutiva? Neste ponto do estudo comentamos alguns temas que já estão sendo pesquisados pela sociologia evolutiva. As questões – que colocamos na forma de tópicos – são resultado de nossas pesquisas e análises, realizadas no decorrer da preparação deste trabalho. A) A origem da linguagem: este talvez o primeiro grande problema que separa a sociologia clássica da sociologia evolutiva. Para a maior parte dos sociólogos clássicos, a pergunta nem se apresenta. Em Durkheim a questão da linguagem não existe; toda a cultura é classificada como “maneiras de agir e de sentir que apresentam notável propriedade de existir fora das consciências”. O mesmo vale para a maior parte dos outros sociólogos que não se ocuparam do assunto, por colocarem o tema fora da área da sociologia. Com relação à 24 origem da linguagem escreve o biólogo alemão Ulrich Kull, também seguidor da linha clássica: Não é improvável que no caso do homem tenha havido um aumento do tamanho do cérebro e com isso a capacidade de raciocínio e sua relação com os aspectos sociais. A importância das características sociais no homem tem sua origem no forte desenvolvimento da linguagem, já que esta tem como função a comunicação (KULL, p. 158, 1979 – tradução nossa). Esta é a resposta mais comum que encontramos depois de pesquisar em diversas fontes. A origem da linguagem explica a cultura, que explica mais linguagem, e assim por diante: linguagem cultura mais linguagem mais cultura... Na prática o processo evidentemente não é linear, mas dialético. Entretanto, poucos se colocaram a questão se a capacidade de aprendizado da linguagem – e outros aspectos da vida – não poderia ser um fato de adaptação evolutiva, gravado nos genes. Nesse caso, somos os descendentes daqueles indivíduos que em seu grupo tiveram mais capacidade de absorver e processar todo tipo de informação, transmitindo esta capacidade (evidentemente não a informação!) aos seus descendentes. Com a interação natureza inata/experiência (nature/nurture) a cultura espiritual e material das sociedades – influenciando por sua vez também os indivíduos – se desenvolveu cada vez mais. Os indícios apresentados pela genética já são em tão grande número, que não é mais possível admitir que apenas características físicas, como a propensão a desenvolver tipos de doenças e outros fatores fisiológicos, tenham origens genéticas, sendo apenas nosso cérebro imune a este processo. Não se trata, afirmamos mais uma vez, de um determinismo, mas de tendências mais ou menos acentuadas, de acordo com fatores ambientais. “Não há um único fenômeno nem um único processo no mundo vivo que não seja parcialmente controlado por um programa genético contido no genoma. Não há uma única atividade, em qualquer organismo, que não seja afetada pelo tal programa” (Mayr, 2005). B) O desenvolvimento da cultura material e espiritual influenciada por fatores genéticos: a evolução da cultura e da tecnologia já encontra diferentes 25 interpretações na sociologia clássica. No entanto, com o desenvolvimento das ciências, identificamos diversos aspectos, para os quais uma abordagem sociológica clássica não é suficiente. O Jornal da Fundep, sob o título de Freud explica? publicou reportagem sobre pesquisas realizadas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), no programa de pós-graduação em Neurociências. Nesta universidade está em andamento um programa sobre Neuroimunologia, coordenado pelo professor Antonio Lúcio Teixeira Junior, do Departamento de Clínica Médica, que demanda conhecimentos das áreas de Psiquiatria, Neurologia, Biologia Celular e Molecular e Imunologia. Segundo o professor, “é possível ilustrar a importância da interdisciplinaridade com pesquisas em Neuroimunologia, que visam elucidar como processos inflamatórios são capazes de influenciar o comportamento humano”. Segundo o professor, há evidências de que infecções viróticas como a gripe, provocam mudanças na conduta das pessoas. No futuro, a equipe pretende desenvolver um modelo capaz de delinear a relação entre os sistemas imunológicos e nervosos, o que pode trazer alternativas para o tratamento de males como a depressão, que possui proporções endêmicas. Desta reportagem podemos concluir que fatores genéticos podem influir no aparecimento de doenças – a depressão muito provavelmente tem origens genéticas – que por sua disseminação têm consequências sociais. Neste caso o sociólogo evolutivo pode pesquisar temas como: a depressão era comum no passado da humanidade, que tipo de reações provocou nos indivíduos e nas sociedades? O que significa tal fato sob o aspecto evolutivo e quais suas consequências atuais? Ainda acrescentaremos à lista outras quatro questões que, segundo Lacerda (conforme Crippen, 2006) estão sendo estudadas pelos sociólogos evolucionistas: 1 – Como o comportamento funciona? Quais são as causas próximas? 2 – Qual é a ontogenia (descrição da origem e desenvolvimento de um organismo) do comportamento? Como ele se desenvolve ao longo do curso da história de vida do organismo? 26 3 – Qual é a função do comportamento? Qual é a sua contribuição para a sobrevivência e o sucesso reprodutivo do organismo? 4 – Como o comportamento evoluiu no contexto do ambiente ancestral do organismo? Com referência à diferença de abordagem entre a sociologia clássica e a sociologia evolutiva, completamos este capítulo com as palavras do sociólogo zoólogo alemão Rupert Riedel: Afirmava o behaviorismo (comportamentalismo): “O comportamento é conseqüência do meio”; toma um posicionamento oposto a sociobiologia: “Todo comportamento é uma conseqüência da herança genética”. Ali afirmam os de esquerda: “Culpa pelo teu comportamento é somente o meio”. Ali afirmam os de extrema direita: “Culpa pelo teu comportamento é somente tua herança genética”. Ambas as posições querem justificar um mundo sem responsabilidades e por isso desumano. Ainda bem que em suas conseqüências radicais as duas idéias estão erradas (RIEDL, p. 53, 1987). 3. Estudo de caso: a sociologia evolutiva e o estudo da religião Uma área onde houve grande desenvolvimento na utilização do arcabouço teórico do neodarwinismo e da psicologia evolutiva foi na antropologia social, especificamente nos estudos da religião. Resumidamente, a visão neodarwinista diz que assim como qualquer outro órgão ou função do corpo humano, a mente também tem um efeito de seleção natural e de contribuição para a evolução – lembrando que nunca utilizamos a palavra evolução no sentido de melhoria, mas apenas de melhor adaptabilidade ao ambiente, aumentando as chances de sobrevivência do indivíduo. Produto da mente, a religião é estudada pela psicologia, antropologia e sociologia evolutivas, vendo nela uma atividade humana que também tem ou tinha a função de contribuir para a melhor sobrevivência da espécie (com foco nos indivíduos). Importante lembrar que estas ciências não se preocupam com a existência ou não de Deus – já que isto é tema para a filosofia e a teologia – mas apenas com os eventuais efeitos da crença na evolução humana. 27 Com relação ao papel da religião como instrumento da seleção natural, existem duas orientações teóricas básicas. A primeira, afirma que a religião é realmente produto da evolução e confere vantagem adaptiva aos seus praticantes. A outra visão é que a crença é produto secundário da evolução da mente humana, sem que tivesse sido selecionada por proporcionar qualquer vantagem evolutiva. Fato é que a crença em deus ou deuses incorpóreos, crença na vida além-túmulo, crença em orações e ritos para mudar o curso dos eventos humanos, tem sido encontrado em todas as culturas. Para a maior parte dos estudiosos ainda não está clara a função da religião sob a perspectiva evolucionista. Segundo reportagem no jornal The New York Times, em seu recente livro In Gods we trust: the evolutionary landscape (Nós confiamos nos deuses: a paisagem evolucionária) o antropólogo Scott Atran escreve: “Imagine qualquer outro animal que toma ferimento por saúde, grande por pequeno, rápido por lento ou morto por vivo. É pouco provável que tal espécie possa sobreviver”. Assim, Atran procurou outra explicação: se a crença religiosa não era um processo adaptivo, talvez estivesse associada com outra necessidade que, esta sim, era adaptiva. Uma teoria que tenta explicar a origem da crença em seres supranaturais como prática secundária de outro processo adaptivo é a da “detecção do agente”. Segundo ela, nossos antepassados provavelmente tinham que se precaver contra qualquer movimento, sombra, barulho; em suma, qualquer “agente” ameaçador, mesmo que não tivessem visto nada de maneira nítida. Uma sobra na savana poderia, ou não, ser um predador. Assim, fugir à primeira impressão poderia significar a diferença entre continuar vivo ou virar almoço de uma hiena. Na caverna escura, a impressão de ter visto um “agente” – talvez um urso – e se precaver com fogo e lanças, também poderia ser a diferença entre a vida e a morte. Milhares e milhares de anos dessa prática condicionaram nosso cérebro a ver coisas, “agentes” onde não os havia. Experimentos efetuados pelos psicólogos Heider e Simmel nos anos 1940 chegaram a conclusões que permitem comprovar esta teoria. Deste comportamento adaptivo, provavelmente presente em nossos antepassados mais primitivos e pré-humanos, pode ter se desenvolvido a crença em seres não presentes; espíritos, deuses e outros. 28 Outra hipótese que explicaria a crença no sobrenatural é do psicólogo Justin Barrett, que em 2004 escreveu um artigo intitulado Why would anyone believe in God? (Por que alguém acreditaria em Deus?). Barrett argumenta que um dos motivos para a crença seria a necessidade de encontrar um causador para os fatos que nos afetam, tanto na nossa vida, quanto na natureza. Precisamos precaver-nos da chuva, do calor sufocante, das secas e carestia. Deste tipo de comportamento adaptivo (correr para um abrigo, procurar água ou alimento), fortemente entranhado em nossos genes, derivou a pergunta sobre a origem destes fatos; da fome, da sede, do medo. Com isso, deuses e outras potências seriam fortes candidatos para ocupar esta função na mente dos nossos ancestrais. Uma terceira teoria chama-se “teoria da mente” e já é conhecida da psicologia. Em sua formulação básica diz que toda a nossa vida social está baseada no fato de que sabemos o que outros pensam e que podemos antecipar ações e fazer com que acreditem o que queremos. Trata-se de uma constatação de como qualquer ser humano, mesmo o membro de uma tribo primitiva, se comporta socialmente. O passo seguinte é a assunção de que os mortos ou um deus poderiam ter este tipo de mente. Assim, poderíamos “saber” o que esta divindade espera de nós e o que dela poderíamos esperar, de acordo com nosso comportamento. Depois do aparecimento dos espíritos e deuses através de processos iguais ou semelhantes aos descritos, os humanos passariam a associar estas entidades com outros tipos de comportamento que poderiam conferir vantagens adaptivas ao grupo: paz de espírito, coesão social, transformação de sentimentos sociais – compaixão com os fracos, respeito pelos mais fortes ou mais velhos, espírito de cooperação, sentimento de equidade. Segundo pesquisas recentes, grande parte destes sentimentos já estava presentes entre chimpanzés e bonobos (De Waal, Taylor, Lewis-Williams). Outra visão científica do surgimento da crença no sobrenatural coloca o problema de forma diferente. Para esta linha de pensamento, representada principalmente pelos antropólogos – entre eles Steven Mithen e David LewisWilliams – alterações genéticas aleatórias no cérebro, provocaram na mente 29 fenômenos diversos. Mithen, por exemplo, se refere a um “big-bang” da cultura humana, ocorrido há 35-40 mil anos, quando ocorreu um repentino desenvolvimento na arte, religião e linguagem. Lewis-Williams segue aproximadamente a mesma linha de pesquisa, afirmando que a religião apareceu antes como sentimento do sagrado em certos indivíduos, que depois foi transformado em outras funções sociais (arte, religião, instituições, entre outros). Sem dúvida, a religião posteriormente teve uma função primordial na organização das primeiras sociedades organizadas agrárias. O antropólogo Joseph Campbell em seu clássico As máscaras de Deus dá à religião o papel de organizadora das primeiras cidades-estado da Suméria, em cerca de 3.200 A.C. Atualmente, os movimentos religiosos assumiram outras funções e têm influência na política e nos grandes movimentos sociais. Apesar de tudo, no entanto, a religião não perde sua atratividade como fenômeno humano antiquíssimo, sempre presente e como matéria de estudo para compreensão da natureza humana. Bibliografia ABIB, José Antonio Damásio. Epistemologia pluralizada e história da psicologia. Scientia Studia, São Paulo, v. 7 n. 2 p. 195-208. 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678- 31662009000200002> Acesso em 10/03/2012. CAMPBELL, Joseph. As máscaras de Deus. São Paulo: Palas Athena, 2005. COHN, Gabriel (org.) Weber. São Paulo: Editora Ática, 1989. COSMIDES, Leda, TOOBY John. Evolutionary Psychology: a primer. Center for Evoltionary Psychology. Janeiro de 1997. Disponível em < http://www.psych.ucsb.edu/research/cep/primer.html > Acesso em 15/02/2012. DAMASIO, Antonio R. Der Spinoza-Effekt. (O efeito Spinoza) München: Ullstein Heyne List, 2003. 30 DARWIN, Charles. A expressão das emoções no homem e nos animais. São Paulo: Editora Schwarcz, 2012. DE WAAL, Frans. 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