A SOCIOLOGIA EVOLUTIVA

Propaganda
A SOCIOLOGIA EVOLUTIVA
Ricardo Ernesto Rose
Jornalista, Graduado em Filosofia, Pós-graduado em Gestão Ambiental e
Sociologia
1. A Sociologia Evolutiva
1. a) O que é a sociologia evolutiva e qual sua relação com a sociologia
clássica?
A sociologia evolutiva é ciência recente. Surgiu com este nome há cerca
de trinta anos, como sucessora da sociobiologia. Esta nova área de estudos da
sociologia tem sua base científica tanto nas ciências sociais, quanto nas
biológicas e no neodarwinismo; a teoria da evolução de Darwin associada às
descobertas genéticas de Mendel, chamada de síntese evolucionária moderna.
A expressão foi proposta pelo biólogo Julian Huxley, em seu livro Modern
Synthesis (Síntese Moderna) publicado em 1942. Outra disciplina associada à
sociologia evolucionista é a psicologia evolucionista, igualmente fundamentada
nos corolários teóricos do neodarwinismo e voltada para o estudo da mente
humana.
Ainda pouco conhecida no Brasil, a sociologia evolutiva – também por
vezes titulada como sociologia evolucionista – é mais praticada nos Estados
Unidos, onde se desenvolveu, mesmo assim de maneira ainda limitada.
Contando atualmente com alguns estudiosos famosos, como os sociólogos
Robert Boyd (Universidade da Califórnia), Peter Richerson (Universidade da
Califórnia Davis) e William Wimsatt (Universidade de Chicago), a disciplina
ainda não é amplamente difundida, inclusive entre os sociólogos americanos.
Assim, foi somente em 2006 que a ASA – American Sociology Association
(Associação Americana de Sociologia) criou uma seção regular chamada
Evolution and Sociology (Evolução e Sociologia), contado àquela época com
pouco mais de 300 membros associados. Trata-se, portanto, de uma disciplina
1
nova dentro da sociologia que, até onde pudemos pesquisar, ainda não tem
uma rede regularmente estabelecida de especialistas no Brasil.
Por motivos que desenvolveremos adiante, a sociologia evolutiva em
grande parte ainda é encarada com desconfiança por muitos sociólogos, sendo
incorretamente associada com a antiga biossociologia ou sociologia biológica,
que por muitos sociólogos foi considerada um reducionismo científico. No
Brasil, já Gilberto Freyre em seu grande trabalho Sociologia – Introdução ao
estudo dos seus princípios, cuja primeira edição data de 1945, referia-se à
relação dos estudos sociológicos com a biologia da seguinte maneira:
A Sociologia, no seu primeiro esforço para firmar status de
ciência, baseou-se quase exclusivamente sobre a Biologia,
adotando-lhe a terminologia (organismo social, evolução,
sobrevivência do mais apto) e por tal modo identificando o
social com o biológico ou com o sócio-biológico que acabou
por não restar quase lugar nenhum, em tal sociologia
biológica, para o cultural, muito menos dentro do cultural, para
o elemento histórico-biográfico a que acabamos de nos referir.
Tentou-se a explicação do fato sociológico pelo fato
biológico: do processo sociológico pelo processo
biológico (FREYRE, p. 230, 1973 – negrito nosso).
No segundo volume da mesma obra o sociólogo brasileiro ainda dedica
todo um capítulo à sociologia biológica. Freyre escreve que no final do século
XIX, falando sobre as origens da sociologia, esta ainda tinha forte influência da
biologia, tomando dessa a terminologia e o que Freyre chama de “a filosofia
predominante dos biólogos: a (filosofia) evolucionista”. Sobre a relação entre as
duas ciências, o sociólogo brasileiro diz que os chamados sociólogos
bioorganicistas querem “submeter à totalidade de fenômenos sociológicos e de
cultura a processos biológicos e leis naturais”.
No caso de Freyre e de outros sociólogos da primeira metade do século
XX, devemos levar em conta que naquela época a teoria da evolução ainda
não dispunha dos sólidos fundamentos experimentais que só adquiriu ao
incorporar a teoria genética, transformando-se na síntese evolucionária
moderna. Este avanço científico deu-se durante os anos 1930 e 1940 nos
Estados Unidos e Inglaterra e lentamente se popularizou ao longo das décadas
seguintes. Assim, antes disso, havia certo receio de que a sociologia fosse
2
influenciada em demasia pelo evolucionismo, transformando a ciência em uma
sociologia biológica. Mesmo assim a teoria da evolução despertava o interesse
de muitos sociólogos, que a utilizavam como método de trabalho em suas
pesquisas, empregando o evolucionismo como base daquilo que o sociólogo
Robert K. Merton chamou de “sistema global de teoria sociológica”. Os
trabalhos desenvolvidos por estes estudiosos, no entanto, tiveram apenas um
papel secundário na posterior estruturação do corpus doutrinário da sociologia.
Até hoje as relações entre a sociologia evolutiva e a sociologia clássica
ainda não estão claras. Se, por um lado, os sociólogos evolucionistas estão
convencidos de trabalharem com uma nova ciência sobre bases científicas, por
outro os sociólogos clássicos, em sua maioria, ainda encaram a sociologia
evolucionista como um reducionismo ou, na melhor das hipóteses, uma
biologia que toma emprestado expressões e temas da sociologia. “Porque de
todas as ciências sociais, a sociologia é a disciplina mais resistente a um
diálogo com a biologia e com a teoria evolutiva. Quanto mais nos aproximamos
das especialidades centrais da sociologia, maior a resistência”, escreve o
sociólogo André Luiz Ribeiro Lacerda.
1. b) Como se originou a Sociologia Evolutiva?
As primeiras idéias da sociologia evolutiva tiveram sua origem nos anos
1950, quando o neodarwinismo começou a ser aplicado aos estudos das
comunidades
de
símios
antropomorfos
–
os
orangotangos,
gorilas,
chimpanzés, bonobos e gibões –; as espécies de macacos mais aparentadas
com o homem. Estudando estes animais em seus ambientes naturais e
descrevendo suas organizações sociais, antropólogos, primatólogos e etólogos
descobriram que havia muita similaridade entre as sociedades dos macacos e
a humana. A partir dos anos 1960 a teoria neodarwinista já estava sendo
utilizada em outras áreas do conhecimento, gerando grande quantidade de
dados científicos nos campos da zoologia (Goodall), paleontologia e
antropologia física (Leakey) e ecologia (Odum), entre outros.
3
Em 1975 o biólogo americano Edward Osborne Wilson lança
Sociobiology – The new synthesis (Sociobiologia – A nova síntese), livro que
reunia informações de recentes pesquisas sobre o comportamento animal e
desenvolvia novas idéias sobre a seleção natural. No capítulo final de seu livro,
Wilson faz uma projeção destes dados sobre as sociedades humanas,
entrando no terreno da sociologia. Em relação a esta ciência Wilson escreve:
Considere a perspectiva (futura) para a sociologia. Esta ciência
está agora no estágio de história natural de seu
desenvolvimento. Houve tentativas de construir um sistema,
mas, como na psicologia, elas foram prematuras e não
foram suficientes. Muito do que em sociologia é considerado
atualmente teoria, é na realidade, classificação de fenômenos
e conceitos, na maneira como é feito na história natural. O
processo é de difícil análise, porque as unidades fundamentais
são vagas, talvez inexistentes. As sínteses geralmente
consistem em tediosas referências cruzadas de diferentes
conjuntos de definições e metáforas elaboradas pelos mais
imaginativos pensadores (WILSON, p. 574, 2000 – tradução e
negrito nossos).
Os conceitos apresentados na publicação se alinhavam com os
trabalhos de biólogos e zoólogos famosos à época, como George Williams
(1926-2010), William Hamilton (1936-2000), John Maynard Smith (1920-2004)
e Robert Trivers (1943). Com seu trabalho, Wilson apresentou pela primeira
vez ao grande público as teorias que especialistas já utilizavam há anos em
seus laboratórios e blocos de anotações: de que grande parte do
comportamento humano tinha também origem genética e não somente social.
O assunto em si não era novo tendo já sido abordado por Charles Darwin no
século XIX. No entanto a maneira como Wilson apresentou a teoria causou
grande impacto à época. R. S. Machalek, do departamento de sociologia da
Universidade do Wyoming escreve com relação aos objetivos práticos da
sociobiologia:
Quando aplicado ao estudo das sociedades humanas, o
escopo da análise sociobiológica foi expandido, para
incluir fenômenos sociais mais complexos e mais amplos,
como sistemas familiares e de parentesco, sistemas de
estratificação, padrões criminais e causadores do crime,
relações étnicas, urbanização e industrialização, evolução
social. A diversidade de sociedades humanas e de
comportamentos sujeitos à análise evolucionista dos
sociólogos contemporâneos continua a se expandir (Machalek,
s/d – tradução e negrito nossos).
4
Sociobiology recebeu críticas negativas, tanto por parte de outros
biólogos quanto do mundo acadêmico. Colegas de Wilson, como o
paleontólogo Stephen Jay Gould e o geneticista Richard Lewontin, atacaram o
conteúdo da publicação, classificando-a como “proponente da eugenia e do
darwinismo social”, entre outras coisas. Sobre as críticas que caíram sobre o
biólogo e sua obra, escreve o psicólogo evolucionista Steven Pinker:
Também acusaram Wilson de discutir “as salutares vantagens
do genocídio” e de fazer “instituições como a escravidão [...]
parecerem naturais em sociedades humanas devido à sua
existência universal no reino biológico”. Para o caso de a
relação não estar suficientemente clara, um dos signatários
escreveu em outro texto que “em última análise, foram os
textos da sociobiologia [...] que forneceram a estrutura
conceitual pela qual a eugenia foi transformada em prática
genocida” na Alemanha nazista (PINKER, p. 159, 2004).
Pinker toma a defesa de Wilson, admitindo que o biólogo tenha utilizado
alguns dados imprecisos e elaborado raciocínios incorretos em partes do seu
trabalho. Escreve que, no entanto, as críticas feitas a Wilson através de
manifestos e até por livros (o biólogo Marshall Sahlins com Uso e abuso da
biologia) não são justificadas. Todo o desenrolar dos ataques à sociobiologia,
envolvendo alguns dos mais famosos biólogos americanos e ingleses (como
Stephen Rose, Leon Kamin, Richard Dawkins, além dos já citados), bem como
lances de falseamento de dados científicos, calúnia e difamação, são descritos
em vários detalhes por Pinker em um capítulo de seu clássico Tábula Rasa – A
negação contemporânea da natureza humana. Na obra o psicólogo rebate
todas as críticas e demonstra que – ao contrário do que diziam os objetores da
sociobiologia – o ser humano ao nascer não é uma tábula rasa, isto é, dispõe
de um cérebro que já tem algum conteúdo preexistente, transmitido
geneticamente.
Os principais críticos da sociobiologia, termo que foi substituído pela
expressão sociologia evolutiva a partir do final dos anos 1990, negam que
caracteres adquiridos através da evolução e transmitidos pelos genes possam
influenciar
o
comportamento
social
humano
–
alguns
até
ignoram
completamente a existência destes caracteres, como o psicólogo Skinner.
Argumentam que caso isso fosse possível, uma série de práticas consideradas
desumanas, como o darwinismo social, seriam aceitáveis. A Enciclopédia
5
Stanford de Filosofia (Stanford Encyclopedia of Philosophy) escreve que os
opositores da sociobiologia humana defendem que seus modelos são
inadequados para serem aplicados ao comportamento humano, porque
ignoram a contribuição da mente e da cultura; baseiam-se no determinismo
genético e aprovam tacitamente o status quo. Sobre a confusão normalmente
feita por aqueles que não conhecem a teoria da evolução e suas implicações,
escreve o zoólogo Frans de Waal em Der Affe in uns – Warum wir sind, wie wir
sind (O macaco em nós – por que somos como somos):
Dado o popular uso e mau uso da teoria da evolução, quase
não causa surpresa que o darwinismo e a seleção natural
tenham se tornado sinônimo de competição desenfreada.
Darwin mesmo era tudo menos um darwinista social. Ele
acreditava, ao contrário, de que na natureza humana como
também no ambiente natural a convivência teria seu lugar. (DE
WAAL, p. 232, 2006 – tradução e negrito nossos).
1. c) Quais ciências e correntes de pensamento contribuíram para a
formação da sociologia evolutiva?
A sociologia evolutiva é produto intelectual do neodarwinismo e de
pesquisas de campo em diversas áreas ligadas à biologia, etologia, genética,
citologia e outras ciências afins. Para explicar as bases teóricas da sociologia
evolutiva, abordaremos sucintamente: a) O neodarwinismo; e b) A psicologia
evolutiva.
O neodarwinismo:
A teoria da evolução de Darwin surgiu em 1859, com a publicação de A
origem das espécies. O cientista só lançou sua teoria depois de uma
preparação de mais de 20 anos em pesquisas, precedida por uma viagem de
estudos por todo o globo. Uma parte da teoria, o conceito de mutação ou
transformação das espécies, já era conhecida e tida como provável por grande
parte do público instruído do início do século XIX e até antes. O próprio avô de
Darwin, Erasmus Darwin (1731-1802), já havia elaborado um esboço de uma
teoria da mutação das espécies (Zoonomia, 1792) que teve considerável
impacto no meio científico inglês da época. A grande inovação da teoria de
6
Darwin, portanto, foi explicar cientificamente como ocorria a evolução das
espécies em todos os seus aspectos.
Darwin estruturou sua teoria da seleção natural em torno dos seguintes
pontos:
a) As espécies evoluem através dos tempos. A geologia e a paleontologia, já
na época de Darwin, provavam que no passado outros tipos de criaturas
povoavam a Terra;
b) Espécies aparentemente diversas têm um ancestral comum; fato
comprovado por Darwin, tanto na pesquisa com animais domésticos quanto
com espécies selvagens. A mais acalorada discussão sobre este ponto da
teoria de Darwin foi com relação aos antepassados e à evolução do ser
humano;
c) A transformação evolutiva sempre acontece gradualmente (gradualismo) e
nunca aos saltos (saltacionismo). Este aspecto da teoria de Darwin sempre foi
motivo de críticas, inclusive de seus colegas, como Thomas H. Huxley. Tal
parte da teoria da evolução, no entanto, começou a se provar verdadeira
quando da elaboração da síntese evolucionista, com a ajuda da teoria genética.
Mesmo assim o debate continua em nossos dias (Stephen Jay Gould e outros);
d) A multiplicação das espécies resulta em grande diversidade. Darwin explicou
este aspecto de sua teoria como sendo causado pelo isolamento geográfico de
grupos pertencentes originalmente à mesma espécie. A comprovação final
deste aspecto da teoria da evolução também ocorreu com a ajuda da teoria
genética;
e) A seleção natural, a parte mais inovadora e importante da teoria da
evolução. Diz basicamente que dentro de uma grande variedade de indivíduos
(a multiplicidade de espécies) ocorre um processo seletivo por mecanismos
sexuais e de sobrevivência (acasalamento, ambiente, concorrência por
alimento). Como resultado deste processo, apenas alguns indivíduos
sobrevivem,
que
então
transmitem
suas
características
aos
seus
descendentes. Este ponto também ficou posteriormente provado, quando se
7
verificou que a transmissão das singularidades – e de eventuais mutações –
ocorre através do gene.
Segundo o biólogo alemão Ernst Mayr, a teoria da evolução passou por
etapas distintas. A princípio aceita com entusiasmo, perdeu gradualmente sua
força como teoria científica, porque muitos pontos de sua argumentação só
puderam ser definitivamente provados no decorrer do século XX, notadamente
após sua composição com a teoria genética. Sendo assim, coincidentemente
na época da estruturação da sociologia no final do século XIX e início do século
XX, a teoria da evolução exercia muito mais influência intelectual como filosofia
e ideologia, do que como ciência.
Nesta
parte
do
texto
faremos um
parêntesis para
esclarecer
interpretações incorretas do neodarwinismo, quando aplicado ao estudo
humano como na sociologia evolutiva. Por vezes a crítica se vale das
expressões “a sobrevivência do mais apto” em seu sentido tendencioso, fora do
contexto da teoria da evolução; e “darwinismo social”, numa acepção que não
tem relação alguma com o pensamento de Darwin. O mal-entendido repetido
ad nauseam, geralmente por aqueles que não conhecem o assunto, está
baseado em fatos que ocorreram no final do século XIX. Nesta época o filósofo,
biólogo e sociólogo inglês Herbert Spencer criou a expressão “a sobrevivência
do mais apto” (Princípios de Biologia, 1864). Spencer, grande polímata,
contribuiu em diversas áreas do conhecimento de sua época, tendo sido forte
defensor do liberalismo econômico. Como cientista social e biólogo, sua
interpretação da Origem das Espécies de Darwin era parcial, porque projetava
incorretamente aspectos da teoria de Darwin sobre a sociedade inglesa da
época, que apresentava grandes problemas sociais, comparáveis aos dos
países em desenvolvimento atuais. Cientificamente, Spencer tinha fortes
influências do lamarckismo – que dizia que o uso propicia o desenvolvimento
ou desaparecimento dos órgãos –, teoria elaborada por Lamarck (1744-1824) e
refutada cientificamente pela teoria da evolução. Spencer uniu sua visão
deturpada de Darwin às suas posições de política social e econômica –
defendendo a eliminação da ajuda aos pobres e atuando como arauto de um
intransigente laissez-faire econômico – e acabou fazendo muitos adversários
intelectuais e inimigos políticos. Esta posição de Spencer foi chamada por seus
8
opositores à época de “darwinismo social” – talvez mirando em um alvo, mas
querendo acertar outro. Depois disso, na década de 1930, o darwinismo social
reapareceu ligado a movimentos políticos direitistas, confundindo a idéia de
progresso ininterrupto com evolução. Nessa linha de raciocínio, um indivíduo
mais adaptado é aquele que ocupa uma posição social ou econômica superior,
ou seja, os pobres são como são porque são evolutivamente mal-sucedidos.
Este determinismo reducionista nada tem a ver com a teoria da evolução.
Este foi um dos motivos pelos quais havia grande cuidado entre os
primeiros sociólogos em não deixar que a “filosofia dos biólogos” (o
evolucionismo, nas palavras de Gilberto Freyre) influenciasse as bases da
sociologia. Provavelmente também foi a razão de outros expoentes do
pensamento sociológico, como Durkheim, Simmel, Weber, e Talcott-Parsons,
entre outros, pouco ou em nada se referiram ao evolucionismo darwiniano.
Atualmente, com o acúmulo de dados da geologia, paleontologia,
biologia, ecologia, etologia, entre outras ciências, o conhecimento científico
permite dar uma forma mais elaborada e científica à teoria da evolução. Ponto
importante é que esta não é teleológica, isto é, não se prevê um objetivo na
teoria da evolução; a evolução (transmutação segundo Darwin) age
aleatoriamente através dos genes. O que atualmente se conhece como “teoria
do desenho inteligente”, hipótese de que a evolução é dirigida (por Deus) e de
que tem um objetivo determinado, não tem fundamento científico. A ciência
prova que toda a evolução ocorre por acaso, baseada em mutações
apresentadas pelos indivíduos, que as transmitem aos seus descendentes.
Estas transformações fazem com que as espécies atualmente existentes se
desenvolvam gradualmente em outras. Estas, se sobreviverem às condições
ambientais, terão igualmente grande variedade de descendentes, dos quais
novamente só sobreviverão alguns, que terão que se adaptar e sobreviver no
ambiente novo – o exemplo de um mar, que ao longo de milhões de anos vai
secando e se transformando em um deserto como o Saara, permite imaginar o
quanto espécies têm que se adaptar para sobreviver. A teoria da evolução,
apesar de bem fundamentada por Darwin, possuía uma grande lacuna. Devido
ao total desconhecimento da teoria genética, não era possível demonstrar
9
como se dava o processo de seleção e como as mutações aleatórias eram
transmitidas aos descendentes. Sobre este ponto escreve Mayr:
A dificuldade começa com a descrição exata do processo de
seleção. Depois de ter descoberto seu novo princípio, Darwin
buscou uma terminologia apropriada e pensou tê-la encontrado
com o termo “seleção” (1859), que os criadores de animais
utilizavam para seu estoque reprodutor. No entanto, como
Herbert Spencer e depois Alfred Russel Wallace o alertaram,
não existe na natureza um agente, que, como os criadores,
“selecione o melhor de todos”. Em lugar disso, os beneficiários
da seleção são os indivíduos que restam depois que os menos
aptos foram eliminados. A seleção natural, portanto, é um
processo de “eliminação não aleatória”. A frase de Spencer,
“sobrevivência do mais apto”, foi de todo legítima, desde
que o termo “mais apto” seja apropriadamente definido
(Mayr, 1963: 199) como sucesso reprodutivo (ibidem, p. 156,
2005 – negrito nosso).
Com a redescoberta da teoria genética no início do século XX,
esquecida desde a morte do monge e biólogo Gregor Mendel (1822-1884), os
biólogos se deram conta de que o gene seria o componente que faltava para
explicar uma grande quantidade de fatos da biologia, previstos na teoria da
evolução. Hoje, quanto mais evoluem as pesquisas na área da genética,
microbiologia e biotecnologia, tanto mais fica fundamentada a exatidão da
teoria da evolução.
A psicologia evolutiva:
Já em Principles of Psychology (Princípios de Psicologia, 1890), o
psicólogo e filósofo americano William James, influenciado pela teoria
evolução, afirmava que a menos que tenha rudimentos de conhecimento inato,
a mente humana não poderia incorporar a imensa quantidade de fatos e
conhecimentos que absorvia. Contrariando a moda do empirismo que imperava
na filosofia e ciência da época, James afirmava que os seres humanos
dispunham de tendências inatas, que não provinham somente da experiência,
mas do processo darwiniano de seleção natural. Escreve sobre William James
o biólogo Matt Ridley:
William James afirmava que os seres humanos tinham mais
instintos que os outros animais, e não menos. “O homem
possui todos os impulsos que têm [as criaturas inferiores],
e muitas outras além destas (...) Será observado que
nenhum outro mamífero, nem mesmo o mico, mostra um leque
10
tão amplo deles”. Ele afirmou que era falso opor o instinto à
razão (RIDLEY, p. 56, 2003 – negrito nosso).
As idéias de James contribuíram para a criação da psicologia
funcionalista e chegaram a fazer escola com seu discípulo William McDougall.
O funcionalismo, no entanto, foi eclipsado por outras escolas de psicologia ao
longo do século XX, como a escola behaviorista ou comportamentalista, de
orientação empirista. Esta, fortemente representada em todas as ciências
humanas, foi gradativamente adquirindo hegemonia, transformando-se na base
teórica da psicologia.
Em toda a sua história, a psicologia nunca chegou a estabelecer um
pensamento único sobre os seus pressupostos básicos em relação ao
empirismo ou funcionalismo (nativismo). Assim, uma das grandes dificuldades
é a construção de uma história desta ciência. Usualmente tem se descrito o
desenvolvimento da psicologia em uma seqüência cronologicamente ordenada
– porém não logicamente correta –, no que se refere à análise dos problemas e
tentativas de soluções. No entanto, as posições com relação aos fundamentos
desta ciência, mesmo entre seus precursores – com exceção de William James
e alguns outros – nunca chegaram a ser claras. Desenvolveram-se assim
várias teorias sobre o funcionamento da mente, sem que fosse dada grande
importância à maneira como operaria o substrato de todo o sistema: o cérebro.
A maior parte dos autores encarava este órgão como uma massa de certa
maneira amorfa, dotada de algumas propriedades, que, no entanto, pouca
influência tinha no funcionamento da mente – exceção seja feita a casos de
malformação, acidentes ou doenças, que já eram conhecidos desde a
Antiguidade e afetavam a atuação da mente. Referindo-se ao pensamento de
Wilhelm Wundt (1832-1920), um dos fundadores da psicologia, em relação à
maneira como este encarava sua ciência, escreve o filósofo José Antonio
Damásio Abib:
Para Wundt, a psicologia como ciência é psicologia empírica.
E, como tal, interpreta a experiência psíquica a partir da
própria experiência psíquica; deduz os processos
psíquicos de outros processos psíquicos; faz uma
interpretação causal de processos psíquicos com base em
outros processos psíquicos; não recorre a substratos diferentes
destes processos, tais como mente-substância ou processos e
atributos da matéria para explicá-los (ADIB, p. 197, 2009 –
negrito nosso).
11
O
mesmo
vale
para
outro
expoente
da
psicologia
–
mais
especificamente psicanálise –, Sigmund Freud. Apesar de estar envolvido
desde o princípio de sua carreira com a pesquisa psicológica estudando a
histeria com o psiquiatra Charcot (1825-1893), Freud nunca estabeleceu uma
posição em relação ao empirismo ou funcionalismo. Winograd em Freud e a
Filogenia Anímica, escreve que:
Freud aderiu às idéias de Darwin e participava dos esforços
para demonstrar os caminhos da evolução. Porém seu
darwinismo não o impediu de fazer uso de outras teorias
evolutivas, o que custou críticas severas à psicanálise
(WINOGRAD, 2007).
Diferentemente de James, ao que parece, Freud nunca tentou associar
sua teoria da mente aos pressupostos do evolucionismo – provavelmente por
metodologia de trabalho.
Escreve Ripley que o pensamento que imperou por muito tempo na
psicologia (e em outras áreas como a sociologia e a antropologia) tinha como
característica o que é conhecido como tábula rasa. A expressão latina que
literalmente quer dizer “tábua raspada” e é utilizada no sentido de “folha em
branco”, foi inicialmente empregada pelo filósofo inglês John Locke (16321704) em seu Ensaio Acerca do Entendimento Humano. Considerado o
principal expoente do empirismo inglês e o ideólogo do liberalismo, Locke dizia
que o homem nascia com a mente em branco, sem idéias inatas; ao contrário
do que diziam filósofos anteriores como Descartes (1596-1650) e Malebranche
(1638-1715). Para estes, o ser humano já vinha ao mundo munido de conceitos
como “Justiça”, “Bem”, “Deus” e vários outros, colocados em sua alma pela
divindade. Locke, ao contrário, dizia que tais idéias o homem adquiria ao longo
da vida, através do processo de interação com seu ambiente, formando desta
maneira sua personalidade. O princípio da tabula rasa, associado ao
empirismo, permeou toda a filosofia ocidental até praticamente o século XX, e
ao mesmo tempo exerceu forte influência sobre todo o desenvolvimento do
pensamento científico, culminando com o início da psicologia e da sociologia,
na segunda metade do século XIX.
Mas, havia algumas vozes que destoavam deste coro de unanimidades.
Charles Darwin em sua obra A expressão das emoções no homem e nos
animais (1872), fez uma descrição das várias expressões faciais e corporais de
12
diversos tipos de animais, de acordo com a emoção que sentiam. Em seguida
mostrou as reações dos macacos, para então descrever pormenorizadamente
(documento por fotografias da época) as diferentes expressões gestuais e
faciais dos seres humanos, quando estavam sentindo as mais variadas
emoções. O objetivo de Darwin, evidentemente, foi mostrar que existe uma
ligação entre as expressões e reações humanas e as dos outros animais. De
seu trabalho conclui Darwin:
Pelo que sabemos, apenas uns poucos movimentos
expressivos, como aqueles aos quais acabamos de fazer
referência, são aprendidos individualmente; isto é, foram
realizados consciente e voluntariamente nos primeiros anos de
vida com algum objetivo definido, ou por imitação, tornando-se
depois habituais. A grande maioria dos movimentos
expressivos, inclusive os mais importantes, é inata ou
hereditária, como vimos; eles não podem ser dependentes da
vontade do indivíduo. Entretanto, todos aqueles incluídos sob
nosso primeiro princípio foram de início desempenhados
voluntariamente com um objeto definido, a saber, fugir de
alguma ameaça aliviar um sofrimento ou satisfazer um desejo
(DARWIN, p. 299-300, 2012 – negrito nosso).
A partir da década de 1920, com a diminuição da influência do
funcionalismo de William James, o behaviorismo e o comportamentalismo, de
origem empirista, passam a dominar não só a psicologia (com John B. Watson
e B. F. Skinner), mas também a antropologia (Franz Boas), a psicanálise
(Sigmund Freud) e a sociologia (Émile Durkheim, que foi aluno de Wundt e
exerceu grande influência teórica sobre Freud).
Em 1958, analisando um trabalho sobre a linguagem (Comportamento
Verbal, 1957) do psicólogo Burrhus F. Skinner – o maior expoente do
behaviorismo à época – o linguísta Noam Chomsky defendeu a tese de que era
impossível uma criança aprender as regras da linguagem somente através de
exemplos da experiência, fato já intuído por James setenta anos antes.
Afirmava que a criança deveria ter as regras inatas, pelas quais o vocabulário
da linguagem é fixado. Para o linguísta, as gramáticas gerativas das línguas
individuais são variações de um único padrão, que Chomsky denominou de
gramática universal. Sobre esta descoberta, escreve Matt Ridley em Genome –
The autobiography of a species (Genoma – A autobiografia de uma espécie):
13
Estudando a maneira como os seres humanos falam, Chomsky
concluiu de que há similaridades na base de todas as línguas,
o que prova a existência de uma gramática universal humana.
Todos nós sabemos como usá-la, embora raramente
estejamos cônscios desta habilidade. Isto deve significar, de
que parte do cérebro humano vem equipada por seus
genes com uma habilidade especializada para aprender
línguas. Simplesmente, o vocabulário não pode ser inato, ou
nós todos falaríamos uma só invariável língua. Mas talvez uma
criança, ao adquirir o vocabulário de sua sociedade nativa,
insira estas palavras em um jogo de regras mentais inatas
(RIDLEY, p. 93, 1999 – tradução e negrito nossos).
Muitos psicólogos evolucionistas consideram a teoria de Chomsky como
uma das primeiras confirmações de uma estrutura cerebral inata, mostrando
que já nascemos com certas capacidades mentais herdadas. Chomsky
atualizou sua teoria em 1984, com a teoria de princípios e parâmetros.
Atualmente, apesar de diversos críticos da teoria (Dell Hynes, Dan Everett e
outros), esta ainda não foi definitivamente refutada.
Grande parte dos psicólogos e psiquiatras considera que se estruturas
cerebrais herdadas existem, estas são irrelevantes para o estudo da ciência
psicológica. Entretanto, atualmente já existem outras disciplinas como a
neurologia, que vem avançando na pesquisa da mente e também trabalham
com a hipótese de que esta contenha informações preexistentes. O
neurologista português Antonio Damásio em Der Spinoza-Effekt – Wie Gefühle
unser Leben bestimmen (O efeito Spinoza – Como sentimentos determinam
nossa vida) faz uma análise da influência dos sentimentos no comportamento
humano. Para o cientista, os sentimentos e as emoções são reações do corpo
sobre o cérebro e demonstra que desde o nascimento não há maneira de
separar um do outro. Sobre a questão da mente do tipo tabula rasa, escreve o
autor:
Aqui eu talvez devesse complementar minha discussão com
mais esclarecimentos. Quando eu digo que a mente é formada
por idéias, que de uma ou de outra maneira são
representações do corpo no cérebro, facilmente se poderia
chegar à idéia de que o cérebro é uma folha em branco, que
virgem e intocado aguarda que o corpo lhe inscreva sinais.
Nada poderia ser mais errado. O cérebro não principia como
tabula rasa. Já no início de sua existência, ele dispõe do
conhecimento, como o organismo deve ser “acionado”, ou
seja, como o processo vital deve ser dirigido e como um
grande número de acontecimentos do mundo exterior deve
14
ser dominado. (DAMASIO, p. 238-239, 2003 – tradução e
negrito nossos).
Outro autor originário da neurologia, o neurocientista David Eagleman,
ainda vai mais longe e dá uma autonomia muito maior ao cérebro; não só em
relação ao fato de conter informações preexistentes, mas até quanto ao próprio
controle que temos desse órgão durante nosso tempo de vida. Eagleman
escreve quanto ao aspecto funcionalista do cérebro:
O cérebro é um sistema complexo, mas isto não significa que
seja incompreensível. Nossos circuitos neurais foram gravados
pela seleção natural para resolver problemas que nossos
ancestrais enfrentaram durante a história evolutiva de nossa
espécie. Seu cérebro foi moldado por pressões evolutivas,
assim como seu baço e os olhos. E o mesmo ocorreu com
a consciência. A consciência se desenvolveu porque era
vantajosa, mas vantajosa apenas de forma limitada
(EAGLEMAN, p. 14, 2012 – itálico do autor, negrito nosso)
Em todo seu livro Incógnito – As vidas secretas do cérebro o autor
desenvolve a teoria – fundamentada por inúmeros fatos científicos – de que
nosso controle sobre o cérebro, nossa mente, é muito menor do que
imaginávamos. O cérebro escreve Eagleman, já é geneticamente dotado de um
programa de funcionamento, e nossa mente consciente em muitas ocasiões é
apenas um coadjuvante desnecessário de nossas ações – fato que não pode
ser o resultado de aprendizado, interações sociais ou experiências. Apesar de
este não ser o tema da obra, o livro de Eagleman é um forte argumento
científico contra na crença da tábula rasa:
A primeira lição que aprendemos no estudo de nossos circuitos
é simples: a maior parte do que fazemos e sentimos não está
sob nosso controle consciente. A vasta selva de neurônios
opera seus próprios programas. O você consciente – o eu
que ganha a vida quando você acorda pela manhã – é a
menor parte do que se revela de seu cérebro. Embora
sejamos dependentes do funcionamento do cérebro em nossa
vida interior, ele cuida de seus próprios negócios. A maior parte
de suas operações está acima do espaço de segurança da
mente consciente. O eu simplesmente não tem o direito de
entrar. (EAGLEMAN, p. 14, 2012 – itálico do autor, negrito
nosso).
Para finalizar estes comentários sobre as diversas teorias que formam
as diferentes correntes psicológicas, é preciso ressaltar o fato de que nunca
houve e há cada vez menos consenso sobre o campo próprio da pesquisa
15
psicológica. Até hoje ainda não existe uma idéia comum sobre o conceito de
comportamento e as relações – biológicas e psicológicas – entre a sociedade
humana e animal. Para alguns especialistas como Jacques Cosnier, autor de
Clefs pour la psychologie (Chaves para a psicologia, 1971), a psicologia não
seria mais uma ciência que estuda o comportamento, mas que se ocupa dos
processos intercomunicativos, com raízes na biologia e na linguística. Cosnier
considera que a fase comportamentalista da psicologia estaria ultrapassada,
dada a impossibilidade de superar o hiato entre teoria e prática. Assim,
seguindo a linha argumentativa de Cosnier, daqui para frente a discussão na
psicologia
parece
ser
clara:
é
possível
continuar
com
as
práticas
comportamentalistas, atuando na ponta final do sistema (exteriorizada pelo
comportamento humano); ou pode-se enveredar por técnicas que também
levem em consideração o substrato genético do cérebro e da mente – fato mais
que demonstrado por diferentes correntes da psicologia e aprofundado cada
vez mais pela neurologia.
Especialmente nos Estados Unidos, despontaram nos últimos trinta anos
vários especialistas em diversas áreas influenciados pela sociobiologia. Em sua
maior parte, tais profissionais atuam nos campos da biologia, antropologia,
psicologia, filosofia e sociologia, utilizando-se, sob diversas formas, do
ferramental teórico da psicologia evolutiva. Walter Neves, biólogo, antropólogo
e arqueólogo brasileiro, responsável pelo estudo de Luzia – o esqueleto
humano mais antigo do continente americano – escreve o seguinte sobre a
psicologia evolutiva no prefácio ao livro A pré-história da mente, de Steven
Mithen:
A psicologia evolutiva tem crescido muito no exterior e grande
parte dos profissionais envolvidos nessa abordagem é formada
por antropólogos, tendo se tornado, na verdade, uma nova
subárea da antropologia evolutiva. Esta última, para ser
praticada em nível aceitável, requer que os profissionais
envolvidos tenham uma grande erudição sobre o fenômeno
humano no espaço e no tempo. Requer, também, que esses
profissionais acreditem, ainda que apenas parcialmente, que é
possível identificar as relações de causa e efeito no
comportamento social humano [...] (NEVES in MITHEN, p. 10,
2002).
16
Por um lado a maior parte dos sociólogos e psicólogos ainda considera
a mente um mecanismo de aprendizado geral, sem qualquer conteúdo prévio
ao nascermos. O conhecimento e as idiossincrasias comportamentais são
adquiridos através da interação cultural. De acordo com esta teoria da mente, a
biologia tem um papel secundário, quase irrelevante. No entanto, muitos
antropólogos chegaram à conclusão que como melhor hipótese de trabalho, a
mente deve ser encarada como um sistema de módulos, com diferentes
funções. Segundo essa concepção do formato da mente, nosso cérebro levou
milhões de anos para evoluir e para desenvolver suas capacidades.
Esta é a hipótese da psicologia evolutiva, teoria formulada pela primeira
vez no início da década de 1980, pelo filósofo e cientista cognitivo americano
Jerry Fodor. Nos anos 1990 foi desenvolvida pelo antropólogo John Tooby e
pela psicóloga Leda Cosmides. Segundo a psicologia evolucionista, a
constituição biológica tem uma forte influência em nossa maneira de pensar. A
mente é formada por vários sistemas cognitivos especializados, cada qual
dedicado a um tipo específico de comportamento. Os autores da psicologia
evolutiva comparam a mente a um canivete suíço com várias lâminas, uma
para cada função. Por isso, ao nascermos, nosso cérebro já está de certa
maneira preparado – devido aos sistemas cognitivos especializados – a
enfrentar o mundo. Em um artigo escrito em 2010, descrevi as principais
características da psicologia evolutiva da seguinte maneira (baseado no texto
original dos autores Evolutionary Psychology: a primer):
A psicologia evolutiva, segundo Cosmides e Tooby, estuda: 1)
Cérebros; 2) Como cérebros processam informações; 3) Como
os programas de processamento de informações do cérebro
geram comportamento. Se assumirmos que a psicologia é um
ramo da biologia, várias ferramentas poderão ser aplicadas à
psicologia. Os cinco princípios básicos, utilizados como
métodos pela psicologia evolutiva, são:
1º Princípio: O cérebro é um sistema físico, que atua como
um computador. Seus circuitos são projetados para gerar
comportamento que seja apropriado às nossas circunstâncias
ambientais. O cérebro é um sistema físico, cuja operação é
governada unicamente pelas leis da química e da física. Sua
função é processar informações, ou seja, é um computador
feito de componentes à base de carbono. Nesta estrutura,
neurônios são conectados uns os outros, de uma maneira
altamente organizada e são por sua vez conectados aos
17
circuitos neurais, que percorrem o corpo humano. Receptores
sensórios são conectados a neurônios, que transmitem
informação ao cérebro. Em suma, os circuitos do cérebro são
projetados para gerar movimento, respondendo às informações
do ambiente. A função do cérebro, este computador “molhado”,
é gerar comportamento que seja apropriado às circunstâncias
encontradas pelo restante do corpo no ambiente.
2º Princípio: O sistema neurônico e neural foi projetado pela
seleção natural, para resolver problemas que nossos
ancestrais enfrentaram durante a história evolutiva de nossa
espécie. Nossos circuitos neurais formaram-se para resolver
problemas adaptativos, ou seja, como o organismo sobrevive:
o que come, de quem é presa, com quem se acasala, com
quem se associa, como se comunica, e assim por diante.
3º Princípio: A consciência é apenas a ponta do iceberg; a
maior parte do que ocorre no cérebro permanece
desconhecido. Como resultado, nossa experiência consciente
pode nos iludir e fazer-nos pensar que a estrutura da mente é
mais simples do que parece. A maior parte dos problemas que
experimentamos como fáceis de resolver são difíceis –
requerem um circuito neural bastante complexo. A
complexidade do funcionamento da mente humana é muito
grande. Podemos apresentar grandes generalizações, que,
todavia não explicam como a estrutura efetivamente funciona.
4º
Princípio:
Diferentes
circuitos
neurais
são
especializações para resolver diferentes problemas de
adaptabilidade. Segundo a psicologia evolutiva, temos todos
estes circuitos neurais especializados, porque o mesmo
mecanismo raramente é capaz de atender diferentes
necessidades de adaptação, como escutar, enxergar, sentir
raiva, medo, náusea, etc. Consequentemente, o cérebro deve
ser composto de grandes grupos de circuitos, com diferentes
subcircuitos, especializados para resolver diferentes desafios.
5º Princípio: Nosso moderno crânio abriga uma mente da
Idade da Pedra. A seleção natural levou muito tempo para
produzir suas mudanças e construir novos circuitos em nossos
cérebros. Quase 99% do tempo de existência de nossa
espécie despendemos como caçadores-coletores. Nossos
ancestrais viviam em pequenos grupos nômades, com poucas
dúzias de indivíduos, obtendo seu alimento diário – quando
disponível – caçando animais e colhendo plantas. Desta forma,
a chave para entender o funcionamento da mente moderna é
compreender que seus circuitos não foram projetados para
problemas diários de um cidadão moderno – foram
desenvolvidos para problemas diários de nossos ancestrais
caçadores-coletores. Isto, todavia, não quer dizer que nossa
mente não tenha mecanismos de aprendizado, capazes de
permitir que criemos novos ambientes e nos adaptemos a eles
(ROSE, 2010 – negrito nosso).
18
1. d) Em que pressupostos científicos se baseia a estrutura teórica da
sociologia evolutiva?
Fizemos uma breve apresentação, ressaltando os pontos mais
importantes das duas principais bases teóricas da sociologia evolutiva: o
neodarwinismo e a psicologia evolutiva. Esta última efetivamente é uma
conseqüência, em sua teoria e prática, da sociobiologia de Wilson. Cabe
ressaltar, que em nossa metodologia de análise da questão, consideramos que
é exatamente a psicologia evolutiva, com seus pressupostos teóricos sobre o
funcionamento da mente, que trará os argumentos e as fundamentações
científicas
para
uma
abordagem
da
sociologia
sob
o
aspecto
do
neodarwinismo.
Pesa ainda sobre a psicologia evolutiva a imagem de ser um
reducionismo e para alguns um determinismo genético. No entanto, se isto
fosse efetivamente assim, as próprias descobertas da psicologia, antropologia,
paleontologia, genética, neurologia e demais ciências refutariam esta teoria. É
muito provável, como acontece com todas as teorias – principalmente aquelas
envolvendo os seres vivos – que muitos pontos daqueles defendidos por
Cosmides e Tooby venham a ser revistos; é a prática do próprio processo
científico. No entanto, é pouco provável que certos fatos básicos da psicologia
evolutiva sejam negados, mesmo no futuro. Dificilmente poderá se provar o
contrário de que, assim como todos os outros animais, também nascemos com
certos instintos e condicionamentos. Apesar de várias pesquisas estarem em
andamento nesta área, será tarefa da psicologia no futuro analisar o grau de
influência dos genes sobre as emoções, comportamentos e idéias dos
indivíduos. Como escreve Steven Pinker:
Significa apenas que os sistemas hereditários de aprendizado,
sentimento e pensamento, possuem uma organização que, no
ambiente onde evoluíram nossos ancestrais, terá conduzido,
em média, a maiores chances de sobrevivência e reprodução
(PINKER, p. 84, 2004).
Nunca, evidentemente, será possível explicar a complexa realidade da
vida – e principalmente da experiência humana – baseado somente em uma
19
teoria genética e algumas outras conseqüências práticas e teóricas. O que
como corolário também quer dizer que nem todos os aspectos da vida humana
são produtos do gene; a cultura também tem um papel importante. Quanto a
esta questão, que os cientistas americanos chamam de dilema nature and
nurture (algo como “qualidades inatas versus experiência”), escreve o zoólogo
Matt Ridley:
Devo me repetir para ser absolutamente claro. Não há nada de
factualmente errado em afirmar que os seres humanos são
capazes de aprender, ou que podem ser condicionados a
associar estímulos, ou a reagir a recompensas e punições ou
qualquer outro aspecto da teoria do aprendizado. Esses são
fatos verdadeiros e tijolos essenciais na parede que estou
construindo. Mas não se segue daí que os seres humanos não
têm instintos, e menos ainda que os seres humanos sejam
incapazes de aprender se têm instintos. As duas coisas podem
ser verdadeiras (RIDLEY, p. 240, 2003).
2. A proposta da sociologia evolutiva
2. a) Alguns aspectos da sociologia clássica
Nesta parte do trabalho apontaremos algumas características da
sociologia clássica e as compararemos com a sociologia evolutiva. O objetivo
de nossa argumentação é demonstrar que a sociologia evolutiva é uma nova
disciplina na sociologia clássica, que não pretende – e nem pode – suplantá-la,
mas que tem condições de atuar na pesquisa sociológica com uma teoria
básica específica, o neodarwinismo. O principal instrumento que esta nova
disciplina utiliza é a psicologia evolutiva, não necessariamente em seu formato
atual, já que também esta psicologia está em fase de construção, como toda
ciência. Em nossa abordagem, consideramos importantes as seguintes
palavras de Lacerda:
Vista a partir das especialidades estruturalmente sociológicas,
as áreas centrais dominadas por generalistas que zelam pela
tradição da teoria sociológica, a teoria evolutiva não pode
ajudar na explicação do comportamento social humano. Para
sociólogos não faz sentido pensarmos os comportamentos
sociais humanos em termos de causas últimas. A teoria da
evolução é aceita para explicar nossa anatomia só até o
pescoço. Para um sociólogo tradicional, o comportamento
social humano é moldado inteiramente pelo processo de
20
socialização, que é um processo exclusivamente
sociocultural. O advento da psicologia evolucionista nos anos
de 1990 ajudou a popularizar explicações do comportamento
social humano que conjugam causas últimas com causas
próximas, mas a sociologia continua como a última trincheira
contra as explicações neodarwinistas do comportamento
humano (LACERDA, pag. 2, 2009 – negrito nosso).
Inicialmente abordaremos alguns tópicos em relação à sociologia
clássica, baseados em textos de sociólogos conhecidos. Em relação à
sociologia clássica, trataremos: a) Seus pressupostos teóricos básicos; b) Sua
metodologia de pesquisa; c) Seus principais objetos de pesquisa.
Com relação aos pressupostos básicos da sociologia observamos que
esta ciência não dispõe de um corpo unitário de premissas teóricas básicas;
uma teoria unificada na qual se acomodam os tijolos teóricos com os quais se
constroem as metodologias e seus objetos de pesquisa. Sobre isso, escreve o
sociólogo americano Robert K. Merton:
A predileção dos sociólogos do século XIX em desenvolver
cada um seu “próprio sistema” de sociologia – e que se
manifesta ainda hoje em certos setores – significa que os
mesmos são elaborados, tipicamente, como sistemas
opostos de pensamento, mais do que consolidados num
produto cumulativo (MERTON, p. 37, 1970 - negrito nosso).
Esse aspecto dos estudos sociológicos, caracterizando a falta de uma
base na qual os autores possam desenvolver seu sistema, dá mais força à
interpretação de que a sociologia não é uma ciência unificada. O sociólogo
André Luiz Ribeiro de Lacerda, referindo-se ao surgimento da sociobiologia e à
reação na área da sociologia, relata que o acontecimento provocou aumento
das críticas em relação à natureza do conhecimento sociológico clássico. Se
anteriormente Merton já desaprovava a falta de uma linha-mestra na ciência
(como vimos no texto acima), a celeuma só acabou aumentando.
Nos anos 1970, Gouldner (o sociólogo americano Alvin
W.Gouldner, 1920-1980) diagnosticou uma crise na sociologia
ocidental. Uma crise teórica e metodológica que se
manifestou na fragmentação da disciplina. A recepção hostil
que
a
sociobiologia
recebeu
no
mainstream
foi
contrabalanceada pela simpatia de alguns sociólogos, que se
manifestaram e continuam a se manifestar, intensificando
críticas à sociologia e ampliando o diagnóstico de Merton e
Gouldner (LACERDA, p.160, 2009 – itálico e negrito nosso).
21
Merton, por seu lado, não tem ilusões a respeito de uma teoria unificada
permeando os estudos sociológicos, já que escreve:
As páginas seguintes levam a admitir que essa procura por um
sistema global de teoria sociológica, no qual as
observações sobre todos os aspectos do comportamento,
da organização e da mudança social, encontrariam
prontamente seu lugar preordenado, têm o mesmo desafio
estimulante e as mesmas promessas insignificantes daqueles
sistemas filosóficos que procuravam tudo abarcarem e que
caíram num merecido esquecimento (MERTON, p. 57, 1970 –
negrito nosso).
Merton neste comentário praticamente nega a possibilidade de uma
teoria científica básica na sociologia. Na filosofia, Merton parece estar se
referindo aos grandes pensadores sistemáticos, como Aristóteles, Tomás de
Aquino e, especialmente, Georg W. F. Hegel, cujo sistema tinha a pretensão de
encampar e explicar toda a realidade humana. Mas isto já seria esperar demais
de uma ciência humana como a sociologia, que se propõe a explicar e não só
interpretar, como a filosofia. Merton até faz referência a alguns sociólogos,
como Comte e Spencer, que tentaram construir sistemas abrangentes. Outros,
como Gumplowicz (1838-1909), Ward (1841-1913) e Giddings (1855-1931),
experimentaram elaborar um arcabouço teórico que se destinava “a guiar a
investigação de problemas sociológicos específicos, dentro de uma estrutura
provisória e evolutiva”, segundo Merton. Na praxis sociológica, entrementes,
não existe uma teoria central, como a teoria tectônica das placas na geologia e
geografia ou a teoria da oferta e demanda na economia.
Com relação à metodologia na sociologia, ainda nos baseamos em
Merton, em seu clássico Sociologia – Teoria e Estrutura:
A condição das ciências físicas e biológicas permanece muito
diferente das ciências sociais e da sociologia em particular. Se
o físico, como tal, não tem necessidade de impregnar-se dos
Princípios de Newton, e o biólogo, como tal, não precisa ler e
reler A origem das espécies de Darwin, o sociólogo, mais
como sociólogo do que como historiador da sociologia,
tem amplos motivos para estudar os trabalhos de Weber,
Durkheim e Simmel e até mesmo para remontar,
ocasionalmente, às obras de Hobbes, Rousseau, Condorcet, e
Saint Simon (Ibidem, p, 48 – negrito nosso).
Em mais este aspecto a sociologia se aproxima de ciências como a
filosofia, a psicologia e a história. O cerne do aprendizado se dá através da
22
leitura dos clássicos da disciplina, descobrindo os modelos de trabalho
intelectual estabelecidos pelos fundadores; Comte (1798-1857), Marx (18181883), Weber (1864-1920), Durkheim (1858-1917), Tönnies (1855-1936),
Simmel (1859-1918), Talcott-Parsors (1902-1979), Mannheim (1893-1947) e
muitos outros. Tudo aliado à observação empírica e um ceticismo
metodológico, a fim de eliminar os aspectos “incontroláveis” do processo de
investigação. Assim, é através dos clássicos, os libri fecondatori (livros
fecundadores) segundo o escritor Salvemini, que o pesquisador também
poderá identificar um bom problema sociológico a ser estudado. Em outras
palavras: seguem-se os mestres, mesmo sabendo que estes tinham opiniões
diferentes e às vezes divergentes. Ainda sobre o método sociológico, escreve
Merton a título de recomendação para os futuros profissionais:
A teoria sociológica se pretende progredir de modo
significativo, deve prosseguir nestes planos interconexos, 1)
desenvolvendo teorias especiais das quais possam derivar
hipóteses que permitam ser investigadas empiricamente e, 2)
evolvendo (e não revelando repentinamente) um esquema
conceptual progressivamente mais geral, adequado a
consolidar grupos de teorias especiais.
Concentrar-nos exclusivamente em teorias especiais traz-nos o
risco de ficarmos envolvidos em hipóteses específicas que
explicam aspectos limitados do comportamento, organizações
e mudanças sociais, mas que permanecem mutuamente
inconsistentes (Ibidem, p. 63).
Para finalizar este subcapítulo sobre a sociologia clássica, cabe discutir
ainda sobre quais seriam os objetos de estudo da sociologia. Neste caso,
existem várias orientações genéricas. Não entraremos em detalhes, apenas
mencionaremos algumas interpretações de sociólogos famosos. Para Augusto
Comte, considerado tradicionalmente o fundador da ciência sociológica, a
sociologia deve-se concentrar no estudo da ordem e do progresso social. Émile
Durkheim, considerado o sistematizador da ciência, ensina que o objeto de
estudo da sociologia são os fatos sociais, os quais difíceis de serem estudados
têm como características a generalidade, a exterioridade e a coercitividade.
Como amostras de fatos sociais, Durkheim cita as leis e as religiões. Como
exemplo desta metodologia, citamos um trecho de seu As regras do
pensamento sociológico:
23
Conseguimos, então, representar-nos, de um modo preciso, o
domínio da sociologia. Este só compreende um determinado
grupo de fenômenos. Um fato social reconhece-se pelo poder
de coerção externa que exerce ou o suscetível de exercer
sobre os indivíduos; e a presença desse poder se reconhece,
por sua vez, pela existência de uma sanção determinada ou
pela resistência que o fato opõe a qualquer iniciativa individual
que tende a violá-la. (DURKHEIM, p. 37-38, 2002).
Outra figura precursora da sociologia, como o alemão Max Weber,
afirma sinteticamente que o objeto de estudo da sociologia são as conexões e
a significação das manifestações culturais por trás dos fatos sociais. Weber
assim define os objetivos da sociologia:
A ciência social que nós pretendemos praticar é uma ciência
da realidade. Procuramos compreender a realidade da vida
que nos rodeia e na qual nos encontramos situados naquilo
que tem de específico; por um lado, as conexões e significação
cultural das suas diversas manifestações na sua configuração
atual, e por outro, as causas pelas quais se desenvolveu
historicamente assim e não de outro modo (WEBER apud
COHN, p. 88, 1989).
Dadas as características da sociologia clássica em relação à teoria, à
metodologia e aos objetos de pesquisa expostos acima, concluímos que a
sociologia evolutiva, sem querer substituir a sociologia clássica como já
escrevemos, tem todas as condições de ocupar seu espaço na pesquisa
sociológica brasileira.
2. b) Quais são os diversos campos de pesquisa da sociologia evolutiva?
Neste ponto do estudo comentamos alguns temas que já estão sendo
pesquisados pela sociologia evolutiva. As questões – que colocamos na forma
de tópicos – são resultado de nossas pesquisas e análises, realizadas no
decorrer da preparação deste trabalho.
A) A origem da linguagem: este talvez o primeiro grande problema que separa
a sociologia clássica da sociologia evolutiva. Para a maior parte dos sociólogos
clássicos, a pergunta nem se apresenta. Em Durkheim a questão da linguagem
não existe; toda a cultura é classificada como “maneiras de agir e de sentir que
apresentam notável propriedade de existir fora das consciências”. O mesmo
vale para a maior parte dos outros sociólogos que não se ocuparam do
assunto, por colocarem o tema fora da área da sociologia. Com relação à
24
origem da linguagem escreve o biólogo alemão Ulrich Kull, também seguidor
da linha clássica:
Não é improvável que no caso do homem tenha havido um
aumento do tamanho do cérebro e com isso a capacidade de
raciocínio e sua relação com os aspectos sociais. A
importância das características sociais no homem tem sua
origem no forte desenvolvimento da linguagem, já que esta tem
como função a comunicação (KULL, p. 158, 1979 – tradução
nossa).
Esta é a resposta mais comum que encontramos depois de pesquisar
em diversas fontes. A origem da linguagem explica a cultura, que explica mais
linguagem, e assim por diante: linguagem  cultura  mais linguagem 
mais cultura... Na prática o processo evidentemente não é linear, mas
dialético. Entretanto, poucos se colocaram a questão se a capacidade de
aprendizado da linguagem – e outros aspectos da vida – não poderia ser um
fato de adaptação evolutiva, gravado nos genes. Nesse caso, somos os
descendentes daqueles indivíduos que em seu grupo tiveram mais capacidade
de absorver e processar todo tipo de informação, transmitindo esta capacidade
(evidentemente não a informação!) aos seus descendentes. Com a interação
natureza inata/experiência (nature/nurture) a cultura espiritual e material das
sociedades – influenciando por sua vez também os indivíduos – se
desenvolveu cada vez mais.
Os indícios apresentados pela genética já são em tão grande número,
que não é mais possível admitir que apenas características físicas, como a
propensão a desenvolver tipos de doenças e outros fatores fisiológicos, tenham
origens genéticas, sendo apenas nosso cérebro imune a este processo. Não se
trata, afirmamos mais uma vez, de um determinismo, mas de tendências mais
ou menos acentuadas, de acordo com fatores ambientais. “Não há um único
fenômeno nem um único processo no mundo vivo que não seja parcialmente
controlado por um programa genético contido no genoma. Não há uma única
atividade, em qualquer organismo, que não seja afetada pelo tal programa”
(Mayr, 2005).
B) O desenvolvimento da cultura material e espiritual influenciada por fatores
genéticos: a evolução da cultura e da tecnologia já encontra diferentes
25
interpretações na sociologia clássica. No entanto, com o desenvolvimento das
ciências, identificamos diversos aspectos, para os quais uma abordagem
sociológica clássica não é suficiente. O Jornal da Fundep, sob o título de Freud
explica? publicou reportagem sobre pesquisas realizadas pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), no programa de pós-graduação em
Neurociências. Nesta universidade está em andamento um programa sobre
Neuroimunologia, coordenado pelo professor Antonio Lúcio Teixeira Junior, do
Departamento de Clínica Médica, que demanda conhecimentos das áreas de
Psiquiatria, Neurologia, Biologia Celular e Molecular e Imunologia. Segundo o
professor, “é possível ilustrar a importância da interdisciplinaridade com
pesquisas em Neuroimunologia, que visam elucidar como processos
inflamatórios são capazes de influenciar o comportamento humano”. Segundo
o professor, há evidências de que infecções viróticas como a gripe, provocam
mudanças na conduta das pessoas. No futuro, a equipe pretende desenvolver
um modelo capaz de delinear a relação entre os sistemas imunológicos e
nervosos, o que pode trazer alternativas para o tratamento de males como a
depressão, que possui proporções endêmicas. Desta reportagem podemos
concluir que fatores genéticos podem influir no aparecimento de doenças – a
depressão muito provavelmente tem origens genéticas – que por sua
disseminação têm consequências sociais. Neste caso o sociólogo evolutivo
pode pesquisar temas como: a depressão era comum no passado da
humanidade, que tipo de reações provocou nos indivíduos e nas sociedades?
O que significa tal fato sob o aspecto evolutivo e quais suas consequências
atuais?
Ainda acrescentaremos à lista outras quatro questões que, segundo
Lacerda (conforme Crippen, 2006) estão sendo estudadas pelos sociólogos
evolucionistas:
1 – Como o comportamento funciona? Quais são as causas próximas?
2 – Qual é a ontogenia (descrição da origem e desenvolvimento de um
organismo) do comportamento? Como ele se desenvolve ao longo do curso da
história de vida do organismo?
26
3 – Qual é a função do comportamento? Qual é a sua contribuição para a
sobrevivência e o sucesso reprodutivo do organismo?
4 – Como o comportamento evoluiu no contexto do ambiente ancestral do
organismo?
Com referência à diferença de abordagem entre a sociologia clássica e a
sociologia evolutiva, completamos este capítulo com as palavras do sociólogo
zoólogo alemão Rupert Riedel:
Afirmava
o
behaviorismo
(comportamentalismo):
“O
comportamento é conseqüência do meio”; toma um
posicionamento oposto a sociobiologia: “Todo comportamento
é uma conseqüência da herança genética”. Ali afirmam os de
esquerda: “Culpa pelo teu comportamento é somente o meio”.
Ali afirmam os de extrema direita: “Culpa pelo teu
comportamento é somente tua herança genética”. Ambas as
posições querem justificar um mundo sem responsabilidades e
por isso desumano. Ainda bem que em suas conseqüências
radicais as duas idéias estão erradas (RIEDL, p. 53, 1987).
3. Estudo de caso: a sociologia evolutiva e o estudo da religião
Uma área onde houve grande desenvolvimento na utilização do
arcabouço teórico do neodarwinismo e da psicologia evolutiva foi na
antropologia social, especificamente nos estudos da religião. Resumidamente,
a visão neodarwinista diz que assim como qualquer outro órgão ou função do
corpo humano, a mente também tem um efeito de seleção natural e de
contribuição para a evolução – lembrando que nunca utilizamos a palavra
evolução no sentido de melhoria, mas apenas de melhor adaptabilidade ao
ambiente, aumentando as chances de sobrevivência do indivíduo. Produto da
mente, a religião é estudada pela psicologia, antropologia e sociologia
evolutivas, vendo nela uma atividade humana que também tem ou tinha a
função de contribuir para a melhor sobrevivência da espécie (com foco nos
indivíduos). Importante lembrar que estas ciências não se preocupam com a
existência ou não de Deus – já que isto é tema para a filosofia e a teologia –
mas apenas com os eventuais efeitos da crença na evolução humana.
27
Com relação ao papel da religião como instrumento da seleção natural,
existem duas orientações teóricas básicas. A primeira, afirma que a religião é
realmente produto da evolução e confere vantagem adaptiva aos seus
praticantes. A outra visão é que a crença é produto secundário da evolução da
mente humana, sem que tivesse sido selecionada por proporcionar qualquer
vantagem evolutiva. Fato é que a crença em deus ou deuses incorpóreos,
crença na vida além-túmulo, crença em orações e ritos para mudar o curso dos
eventos humanos, tem sido encontrado em todas as culturas.
Para a maior parte dos estudiosos ainda não está clara a função da
religião sob a perspectiva evolucionista. Segundo reportagem no jornal The
New York Times, em seu recente livro In Gods we trust: the evolutionary
landscape (Nós confiamos nos deuses: a paisagem evolucionária) o
antropólogo Scott Atran escreve: “Imagine qualquer outro animal que toma
ferimento por saúde, grande por pequeno, rápido por lento ou morto por vivo. É
pouco provável que tal espécie possa sobreviver”. Assim, Atran procurou outra
explicação: se a crença religiosa não era um processo adaptivo, talvez
estivesse associada com outra necessidade que, esta sim, era adaptiva.
Uma teoria que tenta explicar a origem da crença em seres
supranaturais como prática secundária de outro processo adaptivo é a da
“detecção do agente”. Segundo ela, nossos antepassados provavelmente
tinham que se precaver contra qualquer movimento, sombra, barulho; em
suma, qualquer “agente” ameaçador, mesmo que não tivessem visto nada de
maneira nítida. Uma sobra na savana poderia, ou não, ser um predador. Assim,
fugir à primeira impressão poderia significar a diferença entre continuar vivo ou
virar almoço de uma hiena. Na caverna escura, a impressão de ter visto um
“agente” – talvez um urso – e se precaver com fogo e lanças, também poderia
ser a diferença entre a vida e a morte. Milhares e milhares de anos dessa
prática condicionaram nosso cérebro a ver coisas, “agentes” onde não os
havia. Experimentos efetuados pelos psicólogos Heider e Simmel nos anos
1940 chegaram a conclusões que permitem comprovar esta teoria. Deste
comportamento adaptivo, provavelmente presente em nossos antepassados
mais primitivos e pré-humanos, pode ter se desenvolvido a crença em seres
não presentes; espíritos, deuses e outros.
28
Outra hipótese que explicaria a crença no sobrenatural é do psicólogo
Justin Barrett, que em 2004 escreveu um artigo intitulado Why would anyone
believe in God? (Por que alguém acreditaria em Deus?). Barrett argumenta que
um dos motivos para a crença seria a necessidade de encontrar um causador
para os fatos que nos afetam, tanto na nossa vida, quanto na natureza.
Precisamos precaver-nos da chuva, do calor sufocante, das secas e carestia.
Deste tipo de comportamento adaptivo (correr para um abrigo, procurar água
ou alimento), fortemente entranhado em nossos genes, derivou a pergunta
sobre a origem destes fatos; da fome, da sede, do medo. Com isso, deuses e
outras potências seriam fortes candidatos para ocupar esta função na mente
dos nossos ancestrais.
Uma terceira teoria chama-se “teoria da mente” e já é conhecida da
psicologia. Em sua formulação básica diz que toda a nossa vida social está
baseada no fato de que sabemos o que outros pensam e que podemos
antecipar ações e fazer com que acreditem o que queremos. Trata-se de uma
constatação de como qualquer ser humano, mesmo o membro de uma tribo
primitiva, se comporta socialmente. O passo seguinte é a assunção de que os
mortos ou um deus poderiam ter este tipo de mente. Assim, poderíamos
“saber” o que esta divindade espera de nós e o que dela poderíamos esperar,
de acordo com nosso comportamento.
Depois do aparecimento dos espíritos e deuses através de processos
iguais ou semelhantes aos descritos, os humanos passariam a associar estas
entidades com outros tipos de comportamento que poderiam conferir
vantagens adaptivas ao grupo: paz de espírito, coesão social, transformação
de sentimentos sociais – compaixão com os fracos, respeito pelos mais fortes
ou mais velhos, espírito de cooperação, sentimento de equidade. Segundo
pesquisas recentes, grande parte destes sentimentos já estava presentes entre
chimpanzés e bonobos (De Waal, Taylor, Lewis-Williams).
Outra visão científica do surgimento da crença no sobrenatural coloca o
problema de forma diferente. Para esta linha de pensamento, representada
principalmente pelos antropólogos – entre eles Steven Mithen e David LewisWilliams – alterações genéticas aleatórias no cérebro, provocaram na mente
29
fenômenos diversos. Mithen, por exemplo, se refere a um “big-bang” da cultura
humana, ocorrido há 35-40 mil anos, quando ocorreu um repentino
desenvolvimento na arte, religião e linguagem. Lewis-Williams segue
aproximadamente a mesma linha de pesquisa, afirmando que a religião
apareceu antes como sentimento do sagrado em certos indivíduos, que depois
foi transformado em outras funções sociais (arte, religião, instituições, entre
outros).
Sem dúvida, a religião posteriormente teve uma função primordial na
organização das primeiras sociedades organizadas agrárias. O antropólogo
Joseph Campbell em seu clássico As máscaras de Deus dá à religião o papel
de organizadora das primeiras cidades-estado da Suméria, em cerca de 3.200
A.C. Atualmente, os movimentos religiosos assumiram outras funções e têm
influência na política e nos grandes movimentos sociais. Apesar de tudo, no
entanto, a religião não perde sua atratividade como fenômeno humano
antiquíssimo, sempre presente e como matéria de estudo para compreensão
da natureza humana.
Bibliografia
ABIB, José Antonio Damásio. Epistemologia pluralizada e história da
psicologia. Scientia Studia, São Paulo, v. 7 n. 2 p. 195-208. 2009. Disponível
em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-
31662009000200002> Acesso em 10/03/2012.
CAMPBELL, Joseph. As máscaras de Deus. São Paulo: Palas Athena, 2005.
COHN, Gabriel (org.) Weber. São Paulo: Editora Ática, 1989.
COSMIDES, Leda, TOOBY John. Evolutionary Psychology: a primer. Center
for
Evoltionary
Psychology.
Janeiro
de
1997.
Disponível
em
<
http://www.psych.ucsb.edu/research/cep/primer.html > Acesso em 15/02/2012.
DAMASIO, Antonio R. Der Spinoza-Effekt. (O efeito Spinoza) München:
Ullstein Heyne List, 2003.
30
DARWIN, Charles. A expressão das emoções no homem e nos animais.
São Paulo: Editora Schwarcz, 2012.
DE WAAL, Frans. Der Affe in uns – Warum wir sind, wie wir sind (O macaco
em nós – por que somos como somos). Wien: Carl-Hanser Verlag, 2006.
DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martin
Claret, 2002.
EAGLEMAN, David. Incógnito – As vidas secretas do cérebro. Rio de
Janeiro: Editora Rocco, 2012.
ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. Sociologia Vol. 19, Psicologia Vol. 17. São
Paulo: Encyclopaedia Britannica, 1982
FREYRE, Gilberto. Sociologia – Introdução ao estudo dos seus princípios
Vol I e II – 5ª edição. Rio de Janeiro: Livraria Editora José Olímpio, 1973.
GIDDENS, Anthony. Sociologia – 8ª edição. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian: 2010.
GUIMARÃES, Cristina. Freud Explica. Jornal da Fundep, Nº 73 – Ano IX, p. 56. Fev. 2012.
HENIG, Robin M. Darwin´s God (O Deus de Darwin). The New York Times.
4/3/2007.
Disponível
em:
<http://www.nytimes.com/2007/03/04/magazine/04evolution.t.html?pagewanted
=all> Acesso em 14/02/2012.
KULL, Ulrich. Evolution des Menschen – Biologische, soziale und kulturelle
evolution (Evolução do ser humano – Evolução biológica, social e cultural).
Stuttgart: Metzlersche, 1980.
LACERDA, André L.R. Abordagens biossociais na sociologia: biossociologia ou
sociologia evolucionista. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Junho 2009.
Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010269092009000200010 > Acesso em 23/02/2012.
31
LEWIS-WILLIAMS, Davis. Conceiving God – The cognitive origin and
evolution of religion. (Concebendo Deus – A origem cognitive e evolutiva da
religião) London: Thames & Hudson, 2010.
MACHALEK, R.S. Sociobiology and Sociology. Department of Sociology
University of Wyoming. s/d. Disponível em < http://www.eolss.net/SampleChapters/C04/E6-99A-14.pdf > Acesso 25/03/2012.
MAYR, Ernst. Biologia, Ciência Única. São Paulo: Editora Schwarcz, 2005.
MERTON, Robert K. Sociologia, teoria e estrutura. São Paulo: Editora Mestre
Jou, 1970.
MITHEN, Steven. A pré-história da mente. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
NUNES, Silvia Alexim. A psicopatologia da vida cotidiana – como Freud
explica. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira: 2011.
PINKER, Steven. Tábula Rasa. São Paulo: Editora Schwarcz, 2004.
RIEDL, Rupert. Kultur – Spätzündung der Evolution? (Cultura, efeito
retardado da evolução?). München: Piper Verlag, 1987.
RIDLEY, Matt. Genome, The autobiography of a species (Genoma, A
autobiografia de uma espécie). Suffolk: Harper Perennial, 2000.
RIDLEY, Matt. O que nos faz humanos. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004.
STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY. Sociobiology. 21/11/2005.
Disponível em: < http://plato.stanford.edu/entries/sociobiology/> Acesso em
25/03/2012.
ROSE, Ricardo. A psicologia evolutiva. Consciência. Org. Julho 2010.
Disponível em: < http://www.consciencia.org/a-psicologia-evolutiva> Acesso em
07/04/2010.
TAYLOR, Max A. The evolutionary Basis and Function of Religion (A base
evolucionária e função da religião). University of Tennesse. Maio, 2005.
Disponível
em:
32
<http://trace.tennessee.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1921&context=utk_chan
honoproj> Acesso em 5/03/2012.
WILSON, Edward, O. Sociobiology – The new synthesis (Sociobiologia – A
nova síntese). Cambridge: Harvard Press, 2000.
WINOGRAD, Monah. Freud e a filogenia anímica. Revista do departamento
de
Psicologia
–
UFF,
Jan/Jun
2007.
Disponível
<
em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010480232007000100006&script=sci_arttext > Acesso em 10/03/2012.
Ricardo Ernesto Rose
Jornalista, Graduado em Filosofia, Pós-graduado em Gestão Ambiental e
Sociologia
33
34
Download