| sustentabilidade | A economia da partilha A tendência global que está a mudar a forma como pensamos, vivemos e negociamos 22 | destaque | Estamos a testemunhar, em todo o mundo, o surgimento de uma nova economia sustentável, com exemplos reais de como comunidades, empresas e indivíduos estão a organizar as suas vidas em torno da partilha de recursos. Texto de Benita Matofska [perita em economia da partilha, fundadora e partilhadora chefe das plataformas The People who Share e Compare and Share] E xistem no mundo bens inativos no valor de 3,5 biliões de libras1, desde espaços inutilizados a bancos de automóvel vazios. Se juntarmos a este facto o afastamento cultural do hiperconsumo e da necessidade de ter posses, em direção a uma economia com base no acesso, construída em torno da partilha de recursos e facilitada pela tecnologia, a que se soma um interesse renovado da comunidade, temos os ingredientes para a maior mudança social desde a Revolução Industrial. Pedem-me frequentemente que defina a economia da partilha. Decidi que era tempo de dar a resposta definitiva por escrito. É necessária uma definição inequívoca, não só para efeitos de clareza e para permitir uma discussão com sentido, mas também para oferecer um objetivo e direção precisos para todos aqueles que trabalham no sentido de permitir, criar e promover a economia da partilha. Além disso, se esta economia sustentável se mover do nicho para o quantum, é necessária uma mensagem clara para popularizar o movimento crescente que mudará a forma como pensamos, vivemos e negociamos. A economia da partilha é um sistema socioeconómico baseado na partilha de bens físicos e humanos. Inclui a criação, produção, distribuição, comercialização e consumo partilhados de bens e serviços por diferentes pessoas e organizações. Embora esteja ainda na sua “infância”, conhecida apenas através de um conjunto de serviços e empresas em fase de arranque que permitem trocas peer-to-peer com o uso da tecnologia, este é apenas o começo. No seu potencial máximo, a economia da partilha é um sistema socioeconómico novo e alternativo que integra a partilha e a colaboração como núcleo – em todos os aspetos da vida económica e social. A economia da partilha engloba os seguintes aspetos: troca, intercâmbio, compra coletiva, consumo colaborativo, propriedade partilhada, valor partilhado, cooperativas, cocriação, reciclagem, reutilização, redistribuição, troca de bens usados, arrendamento, empréstimo, modelos com base na subscrição, peer-to-peer, economia colaborativa, economia circular, economia pay-as-you-use, wikinomics, empréstimo peer-to-peer, microfinanciamento, microempreendedorismo, crédito mútuo, redes sociais, The Mesh, empresas sociais, futurologia, democracia, freakonomics, crowdfunding, crowdsourcing, cradle-to-cradle, fonte aberta, abertura de dados e conteúdos gerados pelo utilizador (UGC). Em 2010, após a humilde experiência de partilhar uma plataforma com Desmond Tutu e Bob Geldof no Congresso “One Young World” (e depois de vinte anos de trabalho em televisão), prometi que a minha próxima ambição seria encontrar uma solução para as crises globais mais urgentes. Após três meses de noites sem dormir, em que a palavra “partilha” ecoava na minha mente, acordei uma manhã com 1. The People who Share, 2013. 23 | sustentabilidade | a frase que iria alterar o rumo da minha vida – “o que há de errado no mundo é a falta de partilha”. O mais entusiasmante desta ideia é que esta falta pode ser compensada se encontrarmos uma forma de aproveitar o potencial ilimitado de partilha. E foi assim que começou a minha vida enquanto fundadora da The People who Share, a campanha global para a criação de uma economia da partilha, iniciativa pioneira responsável pelo Dia Global da Partilha (que este ano teve lugar no dia 1 de junho). O movimento expandiu-se por todo o mundo e tem agora um alcance de setenta milhões de pessoas em 192 países. Não poderíamos ter imaginado, quando divulgámos pela primeira vez a hashtag #sharingeconomy no Twitter, em 2011, que o setor se tornaria tão popular de forma tão rápida. Embora o crescimento nesta área seja evidente, a clareza na definição é essencial, não só para que quem trabalha neste espaço possa traçar os seus objetivos, mas também para construir um sistema socioeconómico global robusto e sustentável. A economia da partilha é um sistema económico sustentável, que engloba dez elementos essenciais: 1. Pessoas: As pessoas são o centro da economia da partilha. É uma economia popular, o que significa que as pessoas são cidadãos ativos e que participam nas suas comunidades e na sociedade em geral. As pessoas são também os fornecedores de bens e serviços; 24 em atividades produtivas e motiva-as a fazê-lo. Na economia da partilha, os desperdícios têm valor, são vistos apenas como um recurso no local errado. A economia da partilha permite que os desperdícios sejam aproveitados onde forem necessários e valorizados. são os criadores, colaboradores, produtores, coprodutores, distribuidores e redistribuidores. Na economia da partilha, as pessoas criam, colaboram, produzem e distribuem em peer-to-peer e de pessoa para pessoa (P2P). Os participantes da economia da partilha são indivíduos, comunidades, empresas, organizações e associações. 2. Produção: Na economia da partilha, as pessoas, organizações e comunidades, como participantes ativos que são, produzem ou coproduzem bens e serviços colaborativamente, coletivamente ou cooperativamente. A produção é aberta e acessível a todos que desejarem produzir. 3. Valor e sistemas de troca: A economia da partilha é uma economia híbrida em que existem várias formas de troca, incentivo e criação de valor. O sistema engloba moedas alternativas, moedas locais, bancos de tempo, investimento social e capital social. É baseado nas recompensas materiais, imateriais ou sociais e incentiva a utilização mais eficiente dos recursos. Este sistema híbrido de incentivo permite que as pessoas se envolvam 4. Distribuição Na economia da partilha os recursos são distribuídos e redistribuídos através de um sistema eficiente e equitativo. Os recursos inativos são realocados ou trocados com quem necessita dos mesmos, criando um sistema circular ou um ciclo fechado eficiente e equitativo. A reciclagem, a reutilização e a partilha do ciclo de vida dos produtos são caraterísticas comuns na economia da partilha. O sistema emprega tecnologia para redistribuir ou trocar bens inutilizados ou “adormecidos”, gerando valor para as pessoas, comunidades e empresas. Os modelos de propriedade partilhada como cooperativas, compras coletivas e consumo colaborativo são caraterísticos da economia da partilha, promovendo uma distribuição justa dos bens, que beneficie a sociedade como um todo. O acesso é promovido e preferido em detrimento da propriedade, e encarado como propriedade distribuída ou partilhada. O car sharing – partilha de automóveis, por exemplo, pagando conforme o uso, é vista como preferível e mais inteligente em comparação com o custo, o encargo, o desperdício de recursos e o potencial de inatividade da propriedade. | destaque | 5. Planeta: A economia da partilha coloca tanto as pessoas como o planeta no centro do sistema económico. A criação de valor, a produção e a distribuição operam em sinergia ou harmonia com os recursos naturais disponíveis, e não à custa do planeta. os seus cidadãos, económica e socialmente, e permite a redistribuição de poder económico e social. Estas duas facetas baseiam-se num sistema de governação e de tomada de decisões aberto, partilhado, distribuído e democrático. Este ecossistema robusto facilita a abertura e partilha de opor- o car sharing, a troca peer-to-peer e um vasto leque de formas de partilha de recursos. As leis, políticas, estruturas e infraestruturas criam um sistema de confiança, com os seguros, as garantias, as avaliações sociais e o capital de reputação na vanguarda. As pessoas são o centro da economia da partilha. É uma economia popular, o que significa que as pessoas são cidadãos ativos e que participam nas suas comunidades e na sociedade em geral A economia da partilha é inerentemente sustentável, porque o sistema é concebido para a sustentabilidade e não para a obsolescência. A conceção dos produtos, por exemplo, não só é baseada na disponibilidade ou reutilização de recursos, como também promove modelos com um impacte positivo no planeta. Ou seja, em vez levar a cabo a simples redução das emissões de carbono para atenuar o impacte negativo, a economia da partilha cria bens e serviços que afetam positivamente o ambiente natural, tais como os modelos de economia circular ou os modelos C2C2 – por exemplo, um par de ténis feitos com materiais recicláveis que possuem sementes implantadas nas solas biodegradáveis; à medida que os ténis se desgastam, as plantas crescem. 6. Poder: A economia da partilha capacita tunidades e o acesso ao poder. O poder é partilhado ou distribuído e a infraestrutura permite aos cidadãos o acesso ao poder e à tomada de decisões. Os sistemas que permitem e promovem a remuneração justa e que reduzem a desigualdade e a pobreza – como o comércio justo – são apoiados e preferidos. Isto serve de incentivo às pessoas, que se tornam agentes económicos ou microempreendedores, que assinam contratos vinculativos entre si ou que efetuam trocas peer-to-peer. 7. Direito partilhado: Na economia da partilha, o mecanismo de criação de leis é democrático, público e acessível. As regras, políticas, leis e normas são criadas através de um sistema democrático que permite e incentiva a participação em massa a todos os níveis. As leis e políticas permitem, apoiam e incentivam as práticas de partilha, como 8. Comunicações: Na economia da partilha, a informação e o conhecimento são partilhados, abertos e acessíveis. As boas comunicações abertas são essenciais ao fluxo, eficiência e sustentabilidade deste sistema económico. Um dos princípios fundamentais da economia da partilha diz que as comunicações são distribuídas e o conhecimento é vastamente acessível, fácil de obter e pode ser utilizado por diferentes indivíduos, comunidades e organizações, de imensas formas e com os mais variados propósitos. A tecnologia e as redes sociais permitem o fluxo de comunicação e auxiliam a partilha de informação. O foco das comunicações na economia da partilha é a promoção da mensagem: “Partilhe Mais”. 9. Cultura: A economia da partilha promove uma cultura baseada no “nós”, 2. C2C: Modelo de design de produtos e sistemas cradle to cradle 25 | sustentabilidade | onde toda a comunidade e o bem maior são tidos em consideração. A saúde, a felicidade, a confiança e a sustentabilidade são algumas das caraterísticas a assinalar. A partilha é vista como um atributo positivo, as pessoas que partilham são enaltecidas, incentivadas e capacitadas. Um estilo de vida partilhável é preferido e defendido. A cultura de partilha estende-se a todos os setores, geografias, condições económicas, sexos, religiões e etnias. A diversidade é celebrada e as colaborações entre diferentes grupos são aplaudidas e incentivadas. A partilha de recursos faz parte da estrutura e do ecossistema da sociedade de disruptiva, o empreendedorismo de partilha, o empreendedorismo criativo, o intraempreendedorismo e o microempreendedorismo são também comuns. 10. Futuro: A economia da partilha é um sistema económico robusto e sustentável, construído em torno de uma visão a longo prazo, considerando sempre o impacte e as consequências futuras das ações no presente. Ao ter em conta as consequências a longo prazo, a futurologia e uma perspetiva ampla, a economia da partilha apresenta-se como um sistema económico estável e sustentável. O pensamento Existem agora mais de sete mil iniciativas de economia da partilha no mundo3, desde peer-to-peer a alugueres de casas como a Airbnb ou a HouseTrip, clubes de car sharing como a Zipcar, empresas de ridesharing como a Liftshare e até o nosso ponto de comparação de mercado da economia da partilha – www.compareandshare.com –, que tem o objetivo de propagar esta nova economia à população em geral. O diretório global da economia da partilha (Global Sharing Economy Directory) da Compare and Share lista mais de sete mil iniciativas, ordenadas por categoria e distribuição geográfica, demonstrando que esta nova economia está lon- A economia da partilha promove uma cultura baseada no “nós”, onde toda a comunidade e o bem maior são tidos em consideração partilha. As externalidades são sempre tidas em consideração e integradas. A cultura de negócios é baseada na utilização mais eficiente de recursos e na cultura colaborativa de negócios. Negócios conscientes, sociais, sustentáveis, éticos, empresas sociais e negócios como força do bem são também caraterísticas da economia da partilha. Os modelos de negócio predominantes na economia da partilha são: modelos baseados no acesso, subscrição, aluguer e modelos colaborativos e entre peer-to-peer. A inovação sistemático e a necessidade de uma abordagem sistémica à mudança são fundamentais para o sucesso da economia da partilha. Mas estes dez pilares não são apenas um sonho hippie, irrealista e inalcançável, ou uma visão idealista. O que estamos a testemunhar, em todo o mundo, é o surgimento desta nova economia sustentável com exemplos reais de como comunidades, empresas e indivíduos estão a organizar as suas vidas em torno da partilha de recursos. 3. Compare and Share, Global Sharing Economy Directory. 4. Fast Company, 2011. 5. The People who Share, 2013. 6. The State of the Sharing Economy; The People who Share, 2013. 26 ge de ser um sonho inalcançável. Nas avaliações do volume de mercado da economia da partilha surgem muitos valores entre os 110 mil milhões de libras4 até à casa dos biliões de libras, se o montante estimado do potencial inativo exceder os 3,5 biliões de libras5. No Reino Unido, 65% dos adultos participou na economia da partilha, rendendo essa participação cerca de 4,6 mil milhões de libras6, enquanto nos Estados Unidos, 52% dos norte-americanos arrendou, pediu emprestado ou alugou | destaque | itens que anteriormente teria possuído, com 83% a afirmarem que o fariam, se fosse fácil7. A atividade na economia da partilha está a crescer por toda a Europa. Na Holanda, 84,1% dos cidadãos de Amesterdão afirmam que participariam na economia da partilha8, enquanto a Europa representa 38,7% do mercado global de car sharing9. O crescimento da economia da partilha é evidente, embora falte uma avaliação exaustiva do mercado global. Em resposta a esta lacuna – e em colaboração com a New Economics Foundation –, vamos levar a cabo o estudo mais exaustivo relativo ao valor da economia da partilha até à data. O valor de mercado, neste caso, ultrapassa amplamente os cálculos tradicionais de contributo para o PIB, visto que os valores social e ambiental da economia da partilha são significativos – desde a redução de emissões de carbono à maximização de recursos, criação de coesão social e comunidades felizes e saudáveis. A Shareable – a maior publicação online de conteúdo sobre a economia da partilha, fundada por Neal Gorenflo – observou um crescimento ano a ano no setor. Lisa Gansky, autora de The Mesh, documenta como estão a despontar novos modelos de negócio, concebidos em torno do acesso e não da propriedade, onde as pessoas são produtoras e fornecedoras de bens e serviços – deixando de estar dependen- tes das grandes corporações. As grandes corporações estão também a reconhecer esta oportunidade de mercado e a entrar no espaço. Desde os hotéis Mariott e a sua parceria com a Liquidspace – arrendando cantos inutilizados de hotéis a empreendedores –, até ao Walmart, nos Estados Unidos, que faz entregas online através de crowdsourcing com clientes na loja; ou a M&S no Reino Unido que, com a iniciativa Shwopping, reciclou milhões de peças de roupa ao mover-se para um sistema de circuito mais fechado. A economia da partilha tem, inclusive, o seu próprio analista – Jeremiah Owyang, fundador da plataforma Crowd Companies, que documenta e examina o crescimento do setor. Economistas e académicos por todo o mundo declaram a economia da partilha como o maior acontecimento desde a Revolução Industrial; e a imprensa global destaca a “nova e imensa economia da partilha [em que] a tecnologia reduz os custos das transações, tornando a partilha de bens mais fácil e barata do que nunca – sendo assim possível a uma escala muito maior”. O jornal The Economist de 9 de março de 2013 e a revista Forbes registam um crescimento de 25% na economia da partilha em 2013. Não restam dúvidas de que esta nova economia é a economia do futuro. Visto que quanto mais partilhamos, mais felizes somos10, é este o futuro que defendo. BIBLIOGRAFIA Compare and Share, Global Sharing Economy Directory – There are now over 7,000 Sharing Economy initiatives in the world. Disponível em http:// www.compareandshare.com/sharing-economy-directory/. Fast Company (2011) e MIT Sloan Management – The Sharing Economy is valued at £110 billion. Disponível em http://mitsloanexperts.mit.edu/mit-sloan-grad-on-the-sharing-economy-the-next-big-trend-in-social-commerce/. Forbes Magazine claims 25% growth in the Sharing Economy in 2013, 23 de janeiro de 2013. Inquérito da ShareNL em 2013 – 84,1% of citizens in Amsterdam say they would participate in the Sharing Economy. Disponível em http://www.collaborativeconsumption.com/2013/08/20/what-is-the-consumer-potential-of-collaborative-consumption-answers-from-amsterdam/. Inquérito da Sunrun em 2013 – 52% of Americans have rented, borrowed or leased items they would have previously owned with 83% saying they would do so if it were easy. Disponível em http://www.sunrun. com/why-sunrun/about/news/press-releases/ new-survey-reveals-disownership-is-the-new-normal/. Huge new sharing economy [where] technology has reduced transaction costs making sharing assets cheaper and easier than ever – and therefore possible on a much larger scale. In The Economist, 9 de março de 2013. The Great Sharing Economy Report, Cooperatives UK, 2011 – The more we share, the happier we become. The People who Share, 2013 – There are £3.5 trillion worth of idle assets in the world. The State of the Sharing Economy Report, The People who Share 2013 – In the UK, 65% of adults have engaged with the Sharing Economy earning some £4.6 billion. Disponível em www.stateofthesharingeconomy.com. Universidade de Berkeley – Europe claims 38.7% of the worldwide car sharing market. Estudo sobre car 7. Inquérito da Sunrun em 2012. 8. Inquérito da ShareNL em 2013. 9. Estudo sobre car sharing da Universidade de Berkeley, 2013. 10. The Great Sharing Economy, Cooperatives UK, 2011. sharing da Universidade de Berkeley, 2013. 27