A memória e os alinhavos da jornada do tornar-se si mesmo: um olhar da psicologia analitica Jungiana e da neuropsicologia Monica Zanzini Certain Como todos os tijolos e o cimento que sustentam o erguer de uma parede, as memórias sustentam e alinhavam a complexa trajetória do tornar-se si mesmo. Somos aquilo que lembramos ser, assim como, lembramos tudo o que somos, tanto no que se refere ao surgir da nossa história pessoal, quanto ao continuar da história coletiva na qual estamos inseridos. Fazendo uso das palavras de Makowitsch (2005), “sem a cola da memória, passado e futuro perdem seu significado e a consciência é reduzida ou mesmo perdida”. Mais do que um baú fechado e empoeirado no sót?o das nossas idéias, as memórias, cada vez mais, têm se mostrado como um sistema dinâmico e de grande valor no que se refere ao equilíbrio, integridade e continuidade da psique . De acordo com a definição de Isquierdo (2002), o termo memória se refere à “habilidade de adquirir, armazenar e evocar informações”. Este conceito está intimamente atrelado à experiência de continuidade de uma existência, quer falemos de memória de uma espécie ou memória coletiva e social, quer falemos da memória pessoal. Vale destacar que o conceito de memória não se trata de uma única habilidade, mas de uma “complexa combinação de subsistemas mnemônicos” (Baddley, 1995). É através da memória pessoal que somos capazes de fazer coisas, estabelecer rotinas, registrar e relembrar experiências autobiográficas e pessoais, nomear e registrar diferentes padrões linguísticos, assim como reter fatos de conhecimento geral. De acordo com cada uma destas especificidades, a memória é classificada pela neuropsicologia como procedural, semântica e episódica. Clinicamente, também pode ser classificada como memória recente (de instantes e minutos passados), tardia (de dias passados) e remota (de anos antecedentes). A memória coletiva e social está atrelada ao conjunto de experiências, conhecimentos, crenças, etinia e fatos do saber compartilhado por um grupo humano. Já a memória de uma espécie se refere ao conjunto de características morfológicas, anatômicas, bioquímicas e fisiológicas da espécie. Diante deste panorama, não é surpreendente a afirmação de que nem toda memória se refere a uma experiência vivida e reprimida, assim como podemos compreender cada indivíduo como um ser que já nasce carregado de um potencial mnemônico. Harmath (2002), em seu artigo Psicologia Jungiana à luz da neurociência, destaca uma citação de Jung, feita em 1935, na Clínica Tavistock em Londres, que se aproxima muito deste conceito atualmente proposto: “O cérebro nasce com uma estrutura acabada, funcionará de maneira a inserir-se no mundo de hoje, tendo, entretanto a sua história. Foi elaborado ao longo de milhões de anos e representa a história da qual é o resultado. Naturalmente traços de tal história estão presentes como em todo o corpo, e se mergulharmos em direção à estrutura básica da mente, por certo encontraremos traços de uma mente arcaica” (OC VIII). Dando continuidade à palavra de Jung que traz consistência aos atuais achados sobre a memória, encontramos em seu texto Analytical Psychology and Weltanschaung a seguinte reflexão: ” ... Mas existem várias coisas na psique humana que não são aquisições individuais, pois a mente humana n?o nasce uma tábula rasa, nem sequer cada ser humano é dotado de um cérebro novo e único. Ele nasce dotado de um cérebro que é o resultado do desenvolvimento de incontáveis ancestrais” (...) “Todos os fatores que foram essenciais aos nossos antepassados recentes ou remotos, e continuam essenciais para nós, estão embebidos no nosso sistema orgânico hereditário”. O neuroscientista Joe Z.Tsien e seu grupo de pesquisa no campo da memória da Universidade de Boston, tem contribuído de maneira importante no aprofundamento da compreensão sobre os mecanismos mnemônicos nos últimos anos. Seus trabalhos ilustraram, através de experimentos de ressonância magnética em ratos de laboratório, como cada evento vivenciado (externo ou interno) é registrado e codificado por um conjunto seriado de atividades neuronais. Esta codificação se dá através de trocas químicas entre os neurônios de determinados sistemas do cérebro, associadas à percepção de grupos de elementos sensoriais. De acordo com ele, todas as vivências perceptivas são registradas em agrupamentos distintos, conforme sua especificidade mais ou menos ampla, tal como a referência viso espacial, afetiva e motora. Isto foi exemplificado por Tsien (2008) em seu trabalho de monitoramento da atividade cerebral dos ratos na vivência de situações traumáticas simuladas, como por exemplo um terremoto. Estes registro foram dispostos em gráficos que demonstravam a área do cérebro mais estimulada em cada instante da vivência provocada. Joe Z. Tsien demonstrou que tais gráficos poderiam ser expressos como poliedros em formas piramidais tridimensionais. Este estudo também demonstrou que um fato com forte carga emocional é mais provável de ser recordado que outro sem essa carga emocional, isto porque as memórias emocionais são registradas numa parte do cérebro e as visuais em outra (Tsien 2008). O que as liga são as conexões neuronais e nesse caso, no processo de evocação, temos duas vias de acesso à informação buscada. Em paralelo a este estudo, as equipes de Stickgold e Ellenbogen (2008), nas universidades de Harvard e Massachussets, descreveram a formação das memórias como uma longa jornada durante a qual ocorre a codificação da informação, sua estabilização e um aprimoramento de acordo com o referencial pessoal. A codificação, segundo eles, seria qualitativamente alterada até atingir uma vaga semelhança com sua forma original. No decorrer de algumas horas ela pode se tornar mais estável, resistente a interferências de lembranças conflitantes. Após longos períodos, de acordo com o padrão requisitado de evocação desta memória, ocorreria uma seleção natural onde o cérebro parece decidir o que é mais ou menos relevante para fixação em longo prazo e, seria através desta seleção que se construiria a nossa história individual. Seus estudos abordaram o processamento da aprendizagem e a sedimentacão da memória durante o sono. Vale acrescentar à compreensão proposta por estes cientistas da atualidade, a teoria proposta pelo neurocirurgião Karl Pribam na década de 1960. Ele postulou que as lembranças estariam distribuídas na região cortical e não localizadas em apenas uma estrutura específica. Sob este prisma, propôs o conceito de holograma (o todo esta nas partes e as partes contém o todo), retirado das leis da física, como a base de compreensão do funcionamento cerebral dos processos de armazenamento de informação. O modelo de Pribam propõe que a memória não seria armazenada de modo sequencial linear, mas sim em camadas, multidimensional, de modo que cada unidade ou memória elevaria o nível de detalhamento das informações registradas, ao invés de apenas adicionar mais uma informação. Deste modo, as informações que se apresentassem fragmentadas não seriam perdidas; o que se poderia ser observado seria apenas a alteração de sua nitidez, pois de acordo com o principio do holograma, quanto menor for a parte registrada, mais fraca se torna a evocação imagem total. Nos deparamos aqui com mais um aspecto das nossas memórias: elas não são rígidas, nem imodificáveis. Sua característica diferenciada é o fato de manterem constante relação entre si, de sintetizarem-se e conversam entre si, o que possibilita a produção de novas memórias e sua acomodação em formato de metacircuitos, os quais estabelecem entre si uma relação de contigüidade. Assim sendo, falar sobre a memória humana, é entender esta capacidade como uma trama ou rede, dinâmica e plástica, cuja regulação ainda não foi totalmente esclarecida. Esta dinâmica se faz possível, devido ao fato de termos uma predisposição fisiológica para constantes experiências sensorial-afetivo-motoras. Cada vez que uma experiência sensorialafetivo-motora é vivida de forma repetida, acarreta em uma constelação neuronal, ou um novo padrão de comunicação entre neurônios envolvidos na decodificação/codificação destas experiências. Na medida em que se repete a experiência, o número de metacircuitos cresce e cada um deles representa uma nova experiência com o mesmo objeto, com o mesmo afeto com a mesma ação, ou ainda com o conjunto ou com fragmentos de outras situações. Sabemos que são características essenciais dos seres humanos as habilidades de memorizar, de abstrair detalhes essenciais e semelhantes entre diversas situações cotidianas e, a partir disto, generalizá-las em conceitos, manter a flexibilidade de adaptação e lidar criativamente com situações novas e complexas (Tsien, 2008). Podemos retomar o exemplo do estudo com ratos em situação simulada de terremotos, quando foi feito o registro da atividade cerebral em forma de pirâmides, agrupando a percepção e a categorização de diferentes facetas do mesmo evento organizadas hierarquicamente, partindo das características mais gerais e abstratas a aspectos mais específicos. Cada pirâmide registrada poderia ser uma unidade componente de um poliedro, “que congregaria todos os eventos da mesma categoria compartilhada, como o conjunto de todos os acontecimentos assustadores”. Tendo ciência da propriedade de categorizar e hierarquizar os códigos de memória, a representação de novas experiências pode envolver simplesmente a substituição das facetas especificas que formam o topo das pirâmides de memórias para indicar, por exemplo, o lugar ou o tempo em que ocorreu determinado terremoto. A compreensão de tamanha complexidade na dinâmica do acervo mnemônico e do seu preponderante caráter plástico e mutante, traz como evidente a raiz da riqueza simbólica contida nos sonhos que afinal, utilizam o nosso estoque de informações memorizadas para comunicar a nós mesmos o panorama da nossa totalidade psíquica. Jung disse que a memória seria composição do inconsciente ou da falta da consciência. “Estes conteúdos são produzidos pela atividade associativa inconsciente que dá origem também aos sonhos”(OC vol VIII, §270). Von Franz, no livro o Homem e seus Símbolos, fala sobre como Jung sublinhava a possibilidade de conjunção entre os campos de realidade que a física e a psicologia estudam, nomeando-a como “unicidade psicofísica” de todos os fenômenos da vida. Ainda de acordo com ela, a proposta de uma idéia unitária de realidade também compartilhada por Pauli e Neumann, corresponde ao que Jung denominava unus mundus (o mundo único no qual a matéria e a psique ainda não estão discriminadas). Em complemento a esta visão retomamos novamente o texto de Jung, quando ele afirma que: “tudo o que experimento é psíquico. Até mesmo a dor física é um evento psíquico que pertence à minha experiência. Minhas impressões sensoriais – a despeito do fato de que me impõe um mundo de objetos impenetráveis que ocupam espaço – são imagens psíquicas, e somente elas constituem minha experiência imediata, pois somente elas são os objetos imediatos da minha consciência” (JUNG, §219/ by JJ ClarKe). Neste ponto cabe a observação de que podemos trazer em sonhos e memórias as lembranças da nossa vida, mas tanto os sonhos quanto as memórias, também são carregados da bagagem da vida humana, especialmente da cultura na qual estamos inseridos. O fato de estudarmos o desenvolvimento da humanidade na estruturação de cada ser humano não invalida o interesse e o estudo do ser individual, porque também o entendimento de cada ser humano, nos conta da evolução da espécie. O mesmo podemos dizer sobre o estudo dos sonhos. Assim como cada um de nós conta com um acervo mnemônico diferenciado pela impressão pessoal que vivemos diante de cada episódio pessoal ou coletivo, também os sonhos trazem sua característica personalizada e experiência de imersão no mundo coletivo, já que são formados por enredos ou símbolos pessoais e coletivos. Desta forma, estudar os sonhos seria estudar o acervo mnemônico expresso de maneira imagética e, portanto, buscar compreender o caminho percorrido por cada um de nós no processo de consolidação de ser quem somos. Do mesmo modo, estudar o acervo de memórias é uma possibilidade de aprofundamento de auto conhecimento tanto no que se refere ao caminhar pessoal, quanto no caminhar do mundo em que estamos inseridos. Creio ser importante lembrar que este processo se dá através de processos conscientes e inconscientes, orgânicos e psíquicos, pessoais e coletivos, numa relação de constante continuidade e contiguidade. O presente trabalho propõe uma reflex?o sobre o conceito de memória atrelado ao conceito de totalidade psíquica proposto por Jung, transitando entre os terrenos da neuropsicologia e da psicologia Analítica Jungiana. Sendo a memória aqui compreendida como um conteudo de marcante relevância na dinâmica analítica, assim como na trajetória de individuação e psicossocial, envolve uma via de representação do mundo e assegura a integridade da identidade pessoal e cultural, já que, além de nos fornecer registros do passado, também se coloca diante de nós como um suporte para o presente e uma uma ponte para o futuro.