NatachaNicaise Cooperacao

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32 Encontro Anual da ANPOCS
28-30 Outubro 2008
Natacha Nicaise
Título da apresentação
Cooperação Internacional: África - Caribe, perspectivas cruzadas.
GT 19 Entre fronteiras e disciplinas: estudos sobre África e Caribe
Coordenadores: - Omar Ribeiro Thomaz (UNICAMP) - Lygia Sigaud (UFRJ)
1
Esta comunicação apresentará alguns resultados da minha tese de doutorado que trata
da transformação das relações coloniais em relações de “cooperação para o desenvolvimento”
da Comunidade Européia com o continente africano no pós-segunda guerra. Meu objetivo é
apresentar a configuração histórica a partir qual operaram essas transformações para começar
a articular contrastes e paralelismos com o caso do Haiti em relação aos USA desde o final do
século XIX. A primeira parte desta apresentação será dedicada a uma descrição da aparição
das políticas da ajuda externa americanas no final da década de 1950, à partir da doutrina do
Containment, do Plano Marshall e da criação do
Cooperative Program for Aid in the
Development of Economically Underdeveloped Areas. A segunda parte tratará da criação da
Política de Associação, antepassado da Política de cooperação para o Desenvolvimento da
União Européia. A terceira parte apresentará alguns dados sobre o Haiti. É a menos
desenvolvida, pois é o produto de uma pesquisa que estou começando.
Entre março de 1947 e janeiro de 1949, três discursos particularmente importantes
para o futuro do continente europeu e de suas colônias serão pronunciados pelo Presidente dos
Estados Unidos, Harry S. Truman e por Georges Marshall, General do Exército Americano,
um dos principais conselheiros e estrategistas do Presidente durante o conflito. A doutrina do
Containment, o Plano Marshall anunciado na conferência de 5 de junho de 1947 pelo General
Marshall, em Harvard e o Cooperative Program for Aid in the Development of Economically
Underdeveloped Areas (o quarto Ponto do discurso do 20 de janeiro 1949 de Truman sobre o
Estado da União) irão dar início à reestruturação de alianças políticas entre os Estados
Unidos, o continente europeu e suas colônias, em termos de “Assistência Externa” (Foreign
Assistance).
Em 12 de março de 1947, quando Truman descreveu diante do Congresso americano a
situação político-econômica da Grécia, próxima de uma guerra civil entre monarquistas e
comunistas, e a da Turquia, submetida a fortes pressões da URSS com relação ao estatuto de
certas fronteiras (ver BITSCH: 2001, p. 32), o presidente americano procurou convencer a
todos sobre a urgência de uma “assistência externa”. Sua argumentação estava baseada na
evocação das “trágicas condições” existentes nestes países, a “miséria”, o “caos” político, a
“ameaça” representada pelas “atividades terroristas” de uma “minoria militante dirigida pelos
Comunistas”. Uma assistência era imperativa para que a Grécia pudesse “sobreviver como
nação livre”, e se tornar “a self-suporting and self-respecting democracy”.
Para Truman, somente os Estados Unidos estariam em condições de brindar essa ajuda
e é nestes termos que o presidente defendeu sua posição diante do congresso americano.
2
Assim, ele terminava sua fala evocando os principais objetivos da política externa dos EUA:
“a criação de condições por intermédio das quais os EUA e as outras nações estejam em
condições de promover uma existência livre de coerção”; “assegurar o desenvolvimento
pacífico das nações”; “ajudar os povos livres a manter uma integridade nacional contra os
movimentos agressivos que procuram impor um regime totalitário e que comprometem a
fundação de uma ordem pacífica internacional e a segurança dos EUA”.1
A doutrina do Containment é anunciada. A partir de então estabelecia-se uma
associação lógica entre a expansão do comunismo e a necessidade de uma “assistência”
financeira e técnica, aos países que apresentassem riscos de revolução popular. A
precariedade das condições de existência da Turquia e da Grécia invocada pelo presidente dos
Estados Unidos para justificar a urgência de uma intervenção é, na sua fala, inseparável da
ameaça representada pelas “atividades terroristas de muitos milhares de homens armados,
dirigidos por Comunistas”, “uma minoria militante que explora a vontade humana e a
miséria”.
Não é uma situação de miséria em si que Truman descreve no congresso americano,
mas um risco: que esta miséria seja explorada com finalidades políticas tidas como
contraditórias à “fundação de um desenvolvimento pacífico das nações”, desejado pelo
governo americano. Estas condições de pobreza clamavam, segundo ele, por uma assistência
externa urgente; essas populações não poderiam assegurar, por conta própria, o
restabelecimento de seus meios de subsistência — e, ainda mais relevante, seriam objeto da
cobiça alheia. A alternativa ao comunism deveria ser o estabelecimento de um sistema
democrático cujo advento passaria por uma intervenção americana controlada.
A doutrina do Containment é, sem nenhuma dúvida, o pano de fundo a partir do qual
os Estados Unidos irão reescrever sua intervenção na cena internacional do pós-guerra. Uma
associação lógica e ideológica entre “miséria”, “ameaça da integridade nacional”, por parte
dos Comunistas e a “necessidade de uma assistência externa” americana aparece no discurso
de Truman de 12 de março de 1947. Esta associação fundou um tipo de argumentação que
será mobilizado pelo governo americano tanto para pensar uma intervenção na Europa do pósguerra (o discurso de Marshall de 5 de junho de 1947), quanto para lançar o programa de
Foreign Assistance nas antigas colônias européias e outros “países em vias de
desenvolvimento” (o Ponto IV do discurso de Truman de 20 de janeiro de 1949).
1
Extrato do Discurso do Presidente Harry S. Truman de 12 de março de 1947, recomendando uma ajuda à
Grécia e à Turquia. In: http://www.trumanlibrary.org/teacher/doctrine.htm#speech (consultado na Internet em
28/02/07).
3
Em 5 de junho de 1947, o general Marshall introduz seu discurso na Universidade de
Harvard, evocando, por sua vez, “a miséria”, as “reações que a ela se seguem em meio aos
povos que dela padeceram por muito tempo, e o efeito que estas reações têm sobre seus
governos no curso das tentativas para estabelecer a paz no mundo”. Finaliza sua fala fazendo
referência às “imensas responsabilidades que a história claramente impôs aos Estados
Unidos”. Entre esses dois momentos do discurso, Marshall propõe a todos os países da
Europa, uma assistência econômica e financeira, insistindo sobre a unidade dos europeus
como condição para receber essa ajuda.2
Trata-se do Plano Marshall ou do European Recovery Program (ERP). Dezesseis
países aderirão a ele: Áustria, Bélgica, Dinamarca, França, Grécia, Irlanda, Islândia, Itälia,
Luxemburgo, Noruega, Holanda, Portugal, Reino Unido, Suécia, Suíça e Turquia. A União
Soviética recusará a oferta, aprofundando a divisão entre o Leste e o Oeste europeus (ver
BOSSUAT: 1992, pp. 93-107). O discurso de Marshall marca o início da intervenção dos
Estados Unidos para a reconstrução da Europa no pós-guerra.
Ainda que o Plano Marshall (1948-1952) tenha instigado a criação da primeira
instituição européia, a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico
(OCDE), a contribuição do esforço americano para a reconstrução da Europa do pós-guerra é
difícil de ser avaliada. O plano Marshall não originou a idéia de uma integração européia (ver
BOSSUAT, 1992; BITSCH: 2001)3 mas é a partir desta intervenção que um quadro de
condicionamentos político-ideológicos para o recebimento de ajuda será determinado. O
plano Marshall estabelece limites em relação aos quais a Europa comunitária deverá se
estabelecer se quiser beneficiar-se da ajuda americana para a reconstrução: aspirar ao
“liberalismo” comercial e manter a “democracia” política. Estes mesmos condicionamentos
acompanharão os programas de assistência externa dirigidos aos países do hemisfério sul, a
partir dos anos cinqüenta, países para os quais o adjetivo “subdesenvolvido” passará a ser
utilizado para traduzir o que se percebe como um atraso econômico que pode ser revertido
mediante intervenção externa.
Em 20 de janeiro de 1949, pouco menos de dois anos após o discurso de Marshall, o
presidente dos Estados Unidos, Harry Truman, pronunciou o discurso sobre o estado da União
2
G. Marshall, extrato do discurso proferido em Harvard, 5 de junho de 1947. in European Navigator
http://www.ena.lu (consultado em 05/12/06).
3 Para uma introdução à idéia européia, antes de 1957, cf. BITSCH, M-T., “Introduction, de l’Europe rêvée à
l’Europe nécessaire”, pp. 15-24, in BITSCH, M-T. 2001. Histoire de la construction européenne, de 1945 à nos
jours. Bruxelles: Editions Complexes.
4
diante da Câmara dos representantes e do Senado norteamericano.4 Do mesmo modo que o
discurso de 12 de março de 1947 e daquele de Marshall, este novo discurso estabeleceu um
registro narrativo específico para justificar a necessidade de uma assistência externa aos
países cobiçados pelas investidas dos dois blocos ideológicos. Truman inicia a apresentação
de seu programa anual por uma longa introdução lembrando quanto “os povos do mundo
inteiro, saindo de meio século de guerra e de terror, esperam pela boa vontade dos EUA, por
sua força e liderança sensata”. Esta declaração de Truman proclama ao mundo inteiro os
“princípios essenciais da fé e os objetivos da nação americana”. Ele encadeará, em seguida,
uma longa descrição da diferença entre Comunismo e Democracia, evocando a “liberdade”,
“a paz” etc., estes valores que oporiam os EUA a essa “falsa filosofia” que, segundo ele, é o
Comunismo. Truman finaliza seu discurso desenvolvendo os quatro pontos de seu programa
anual: 1) o suporte às Nações Unidas, 2) a reconstrução da Europa por intermédio do Plano
Marshall, 3) a criação de uma organização comum de defesa (a OTAN), assim como, quarto
ponto do discurso, 4) a extensão da ajuda às “regiões subdesenvolvidas” (underdeveloped
areas), até então acordada apenas a alguns países da América Latina. 5
O Cooperative Program for Aid in Development of Economically Underdeveloped
Areas é anunciado e as intenções gerais do governo americano para com esta nova categoria
de países são tornadas públicas. Nesse discurso, a questão da pobreza das antigas colônias vai
ser problematizada de maneira inovadora para a época. Truman fornece um dado suplementar
para a argumentação utilizada até então em termos de “democracia americana/ totalitarismo
comunista”, para justificar a urgência de uma assistência à miséria dos países europeus.
Introduz a problemática do “desenvolvimento” para estabelecer a necessidade de ajuda a uma
nova categoria de países “partidários da paz” (peace-loving countries): os países
“subdesenvolvidos”. O presidente defende um novo tipo de intervenção do governo
americano, expondo uma realidade suplementar: “A humanidade possui os conhecimentos e
capacidades necessárias para aliviar os sofrimentos dos povos que vivem em condições que se
aproximam da miséria” e “os Estados Unidos possuem as capacidades industriais, científicas e
técnicas das quais podem se beneficiar estas regiões ‘subdesenvolvidas’”. Segundo Truman,
“somente a democracia pode fornecer as forças vitalisantes para incitar os povos a uma ação
4 TRUMAN, Harry S. (20 de janeiro de 1949). Inaugural Adress, Point IV. http://www.trumanlibrary.org
(consultado em 05/12/06).
5
Para uma introdução às intervenções americanas na América Latina (a política intervencionista do “Big Stick”
do início do século XX e a política do “good neighbor principle”, a partir de 1930) ver ESCOBAR, A. “The
problematization of Poverty : the tale of three worlds and development” in ESCOBAR 1996. Encountering
Development. The Making and Unmaking of Third World. Princeton: Princeton University Press, pp. 21-55.
5
triunfante, não somente contra seus opressores humanos, mas também contra seus antigos
inimigos, a fome, a miséria e o desespero”.
O surgimento do termo “desenvolvimento” na equação discursiva “miséria / ameaça
comunista” característica desta época, não determina somente as mudanças semânticas
próprias a uma linguagem política que se renova, mas acaba por indiretamente redefinir as
relações entre colônias e impérios em função de uma nova dicotomia: aqueles que estão à
espera de um desenvolvimento e aqueles que estão em condições de fornecê-lo, os países
“subdesenvolvidos” versus os países “desenvolvidos”. Segundo Truman, “o antigo contexto
do imperialismo baseado na exploração não tem lugar neste novo projeto”; o que ele almeja é
“um programa de desenvolvimento baseado em conceitos de democratic fair-dealing”.
A linguagem do desenvolvimento que encontramos no Cooperative Program,
anunciado por Truman, sintetiza as intenções políticas que vemos desenharem-se desde o
início do século XX, com a política americana do Big Stick e do Good Neighbor Principle, na
época, destinados exclusivamente para América Latina e o Caribe. Esta linguagem, cujas
referências são a “democracia”, tal como defendida pelos EUA e em seguida pela CEE, e o
“liberalismo” comercial, ativamente promovido pelas duas potências, se transformará em um
importante instrumento na redefinição das assimetrias Norte-Sul a partir da experiência do
Plano Marshall na Europa.
Segundo Gilbert Rist (1996), cujo estudo se apóia no trabalhos de Peter Praxmarer
(1984) e Wolfgang Sachs (1990), o termo “subdesenvolvimento” aparece nesta época com
uma conotação diferente dos primeiros usos, que datam dos anos 1940. Ele teria sido utilizado
pela primeira vez em 1942 por um funcionário da Organização Internacional do Trabalho,
Wilfred Benson, em um artigo intitulado “The Economic Advancement of the
Underdevelopped Áreas” (publicado em The Economic Basis for Peace, Londres, 1942,
National Peace Council). Até essa época, o adjetivo “subdesenvolvido” também era utilizado
por outras disciplinas (e não somente pela economia), principalmente pela biologia, pela
psicologia e pela fotografia.6 A partir do ponto IV do discurso de Truman, o termo será
associado a uma idéia de mudança social pensada em termos econômicos e à possibilidade de
se provocar tal mudança. O termo “desenvolvimento” será assimilado a partir de então a um
princípio de organização social que existiria “naturalmente” (RIST, 1996, 116-135).
6
PRAXMARER, Peter. Development. 1984. On the sociogenesis, Political usage and theoretical possibilities of
a concept. Thèse 383, Institut Universitaire de Hautes Etudes Internationales, Université de Genève. Wolfgang
SACHS. « L’archéologie du concept de développement », Interculture (Montréal), 23(4), automne 1990, Cahier
109. Citados por RIST (1996).
6
A Política de Cooperação para o Desenvolvimento da União Européia para com países
da África, do Caribe e do Pacífico (ACP) tem raízes na Política de Associação estabelecida
entre a Comunidade Econômica Européia (CEE) e os Países e Territórios Ultramarinos
(PTOM), em 1957, pouco menos de dez anos após a assinatura do Plano Marshall e da
instauração do Cooperative Program pelo governo americano. Quando a CEE foi
estabelecida, ela reunia somente seis países: França, Bélgica, Alemanha, Holanda, Itália e o.
Neste contexto, a Política de Associação dizia respeito às colônias francesas e belgas, assim
como à Somália, sob tutela italiana e à Nova Guiné holandesa.7 A Política de Associação
comportava disposições regulando as trocas econômicas; estabelecia a abertura das fronteiras
e a eliminação dos direitos alfandegários, e legislava sobre a extensão das vantagens
comerciais já em vigor entre colônias e metrópoles ao conjunto dos Estados membros da CEE
(art.133-136).
A contrapartida desta abertura era a participação do conjunto de países membros no
Fundo
Europeu
de
Desenvolvimento
(FED),
que
devia
“financiar
projetos
de
desenvolvimento, de instituições sociais e investimentos econômicos na África, de maneira a
elevar o poder de compra dos habitantes e a fornecer os recursos complementares”, além de
suprir os “investimentos demandados para o desenvolvimento progressivo dos PTOM”.8 Não
se esperava que a Comunidade econômica européia se formasse integrando um passado
colonial africano em vias de decomposição. O projeto inicial previa o estabelecimento de um
Mercado Comum a través da eliminação progressiva dos obstáculos às trocas intra-européias,
à instauração de uma união aduaneira, assim como à criação de uma política comum em
matéria agrícola, de comércio exterior e de transporte. A política de Associação foi imposta
pela França aos outros países membros, por ocasião das negociações finais do Tratado de
Roma, em 1957. A França se aliou a Bélgica que ainda possuía importantes colônias (o Congo
Belga e Ruanda-Urundi) e fez da Política de Associação uma condição para sua participação
7
A África Ocidental francesa compreendendo Senegal, Sudão, Guiné, Costa do Marfi m, Daomé, Mauritânia,
Niger e Burkina Faso; a África Equatorial francesa compreendendo o Médio Congo, Oubangui-Chari, Chade e o
Gabão; Saint-Pierre e Miquelon, arquipélago de Comores, Madagascar e dependências, a Costa francesa da
Somália, a Nova Caledônia e dependências, os Protetorados franceses da Oceania, os territórios austrais e
antárticos, a República autônoma do Togo, o território sob tutela de Camarões, administrado pela França, o
Congo belga e Ruanda-Urundi. Traité instituant la CEE - Annexe IV: Pays et territoires d’outre-mer auxquels
s’appliquent les dispositions de la quatrième partie du traité. European Navigator http://www.ena.lu/mce.cfm
(consultado em 29/01/07). A convenção de associação não inclui os departamentos franceses ultramarinos
(Reunião, Guadalupe, Martinica e Guiana), nem a Algéria, partes integrantes do território metropolitano.
8
Comissão européia. 1958. Primeiro relatório Geral sobre a atividade da Comunidade. p. 114 e Comissão
européia. 1959. Segundo relatório Geral sobre as atividades da Comunidade. p. 138 e IV parte do Tratado de
Roma, artigo 132, parágrafo 3.
7
na Comunidade. Juntos, estes dois países convenceram Itália e Holanda a se juntarem a
Somália e a Nova Guiné. Em 1957; as colônias seriam “associadas” por cinco anos, sem
consulta, apesar do clima político de descolonização e do questionamento crescente do
colonialismo e do imperialismo tanto na metrópole, quanto por parte das elites africanas.9
O contexto político na Europa era extremamente desfavorável à vontade da França,
percebida como um império em ruínas, com dificuldades em gerir a guerra de independência
na Argélia (1954-1962). A empresa colonial era cada vez mais contestada pela opinião
pública e pelos dirigentes dos outros países membros, particularmente no caso da Alemanha,
cujos protetorados tornaram-se franceses e belgas após a derrota da Primeira Guerra Mundial.
No início das negociações, a posição francesa recebeu pouquíssima atenção, os países
membros estavam ocupados com as questões de harmonização das políticas ligadas ao
estabelecimento do mercado comum e geriam, cada um por si, a relação com suas colônias.10
Somente quando a instauração de uma Política de Associação tornou-se uma condição sine
qua non da entrada da França no mercado comum foi que os outros países membros adotaram
uma posição a esse respeito. Alemanha ocidental, Itália, Luxemburgo e Holanda irão se opor,
em um primeiro momento, mas não poderão recusar a Política de Associação sob pena de ver
a França retirar-se do projeto e paralisar a criação da CEE, como ela fez alguns anos antes, ao
bloquear a criação de uma política comum para a defesa.
De maneira geral, estes países temiam se ver associados à política colonial francesa
em pleno fiasco na Argélia. Eles não mais possuiam colônias importantes e não viam interesse
em se associarem ao financiamento do desenvolvimento dos países ultramarinos franceses.
Enfim, nem todos partilhavam a idéia de que a ação da Europa devia estar prioritariamente
orientada para a África francófona. Alemanha, Holanda e Itália tinham relações muito mais
importantes com a América do Sul e com a Ásia. Apesar destas divergências de visões e de
interesses, as críticas foram dirigidas às modalidades da Associação. Ao final das
negociações, nenhum país contestou o princípio da participação de territórios africanos na
CEE (ver MIGANI 2005, p. 240).
A este conflito entre os diferentes países fundadores da CEE irão se somar as
importantes tensões oriundas das aspirações independentistas e antimperialistas das nascentes
elites africanas. Estas tensões surgem, na época, em reação ao fato de a Associação ter sido
concluída no contexto da tutela colonial. “Nós queremos, neste casamento arranjado, ser os
9
A Política de Associação é estabelecida entre a conferência de Bandung de abril de 1955 — que lança as
premissas do movimento dos países não-alinhados, anticolonialista e antimperialista — e a declaração da ONU,
de 14 de dezembro de 1960 sobre a outorda da independência aos países coloniais.
10
Entrevista realizada com Gabrielle Von Brockowski (Bruxelas, 20/01/06).
8
que carregam o véu da noiva, nós recusamos ser o presente da boda, tampouco a louça que
paga o preço nas disputas de casal, nem as bonecas para distrair os futuros filhos”, dirá
Léopold Senghor (1906-2001) por ocasião de trabalhos preparatórios para a Assembléia de
Strasbourg, em 1953.11 Em função disto, será necessário inventar literalmente uma razão de
ser para a Política de Associação, o que motivará a instauração de uma “política de
informação ultramarina” dirigida para os Estados membros, para a Comissão européia, para
os cidadãos “europeus”, e também para os dirigentes africanos.
O que certos funcionários franceses e alemães das primeiras gerações da Direção
Geral encarregados da Política de Associação chamarão de um “capricho colonial”, um
“fardo” ou ainda um “acidente histórico” se explica, em grande medida, pelo contexto político
da época, que fazia valer uma relação de forças entre Estados Membros muito favorável à
França, que não tinha nenhum interesse econômico e político em se desfazer dos “laços
particulares” que mantinha com uma base importante de seu Império. Estes territórios eram
parte integrante da República, mantê-los à parte seria inconstitucional e afetaria o mercado
comum já formado com as colônias (ver DIMIER: 2001; 2003).12
A proposta francesa aos parceiros europeus será, portanto, a de abrir seus mercados
africanos em troca de uma série de garantias. A França propõe desenvolver as trocas
comerciais entre a CEE e os territórios ultramarinos em troca da partilha dos gastos com
investimentos entre os membros da Comunidade. Ela apresentou duas outras justificativas
para tentar convencer os países membros: (1) a África detém as matérias-primas que a Europa
não possui, ao contrário dos Estados Unidos e da União Soviética; (2) é indispensável
assegurar o desenvolvimento dos países subdesenvolvidos afim de evitar que eles se
aproximem dos Estados comunistas (ver MIGANI: 2005). O governo francês sustentava
11
Marchés Coloniaux du Monde, 17 de janeiro de 1953, citado por DIMIER, V. 2001, p.20.
DIMIER, V. “Du bon usage de la tournée : propagande et stratégies de légitimation au sein de la Direction
Générale Développement, Commission européenne (1958-1970)”. Pôle Sud, n°15 novembre 2001, p. 1932. “La
France refuse en tout cas d’ouvrir ses marchés africains à ses partenaires tout en continuant à assurer seule la
charge financière de leur développement. En pleine guerre d’Algérie, l’ambition française est également de
compenser l’affaiblissement des liens politiques par un renforcement des relations économiques Europe-Afrique.
L’Assemblée nationale française fait d’ailleurs de l’association CEE-TOM et du marché commun eurafricain une
condition sine qua non de la ratifi cation du traité. Hormis la Belgique, très présente au centre de l’Afrique, les
partenaires de la France craignent par contre de se compromettre dans une politique de type néo-colonialiste
sévèrement condamnée par les Nations unies. L’exigence française fait donc l’objet de vives discussions
diplomatiques”. L’association à la CEE des pays et territoires d’outre-mer in European Navigator
http://www.ena.lu/mce.cfm (consultado em 29/01/07). Para uma análise detalhada, ver DIMIER : 2001 ; 2003.
12
9
firmemente a idéia de Associação que permitiria originar a Euráfrica, desejada por esse país
desde o início do século XX e “agir em favor da paz e do entendimento entre os povos”.13
O desejo de uma administração comum, “européia”, da África era mais antigo do que
a proposição francesa de Associação. Essa vontade está presente na idéia de Euráfrica que
aparece na França nos anos 1920, sendo em seguida retomada em 1931 pelo ministro dos
assuntos coloniais da terceira República e reaparecerá com força em 1945. A França promove
esse conjunto eurafricano, desejando permitir que a Europa e a África, juntas, tornem-se uma
força essencial da política mundial (ver WALL: 2005; ADAMTHWAITE: 2005). A Euráfrica
era desejada por ingleses e franceses no imediato pós Segunda Guerra Mundial. A formação
deste conjunto era percebida pelos dois impérios como a possibilidade salvadora para a
Europa devastada, garantindo um suprimento de recursos africanos e constituindo um front de
oposição aos lobbies anti-coloniais presentes nas Nações Unidas e, de modo generalizado, nos
EUA.
A posição americana era ambivalente. Se os EUA almejavam uma “doutrina Monroe
eurafricana” que conteria qualquer intenção de invasão estrangeira, principalmente soviética,
eles continuavam pouco convencidos da capacidade da França de resolver o problema da
guerra da Argélia, o que desacreditava francamente as intenções internacionalistas e a visão
de interdependência euro-africana defendida pela França com a idéia de Euráfrica (ver
WALL: 2005).14 A criação de uma Euráfrica levaria a numerosas interpretações por parte dos
franceses e ingleses. Uma Euráfrica política? Econômica? De qual Europa e de qual África?
Os interesses divergentes de ingleses e franceses, reforçados pelo contraste de suas políticas
coloniais impediriam a realização do projeto de Euráfrica tal como apresentado naquela
época. A França manterá, no entanto, esta idéia até o momento da assinatura do Tratado de
Roma, quando o ministro francês dos assuntos externos se fará presente na ONU para
apresentar o que virá a ser o projeto de Associação (ver ADAMTHWAITE: 2005).
A legislação do Tratado de Roma, que funda a Comunidade européia precisava em
1957 que os “signatários do Tratado declarem seu desejo de confirmar a solidariedade que
liga a Europa e os países ultramarinos e assegurar o desenvolvimento da sua prosperidade,
13
Segundo os termos de Guy Mollet, presidente do Conselho do governo francês, citados por MIGANI (idem, p.
237).
14
Segundo Wall, em 1953, a política africana dos Estados Unidos começará a se desenhar, em seguida à
deflagração da guerra da Algéria e ao movimento independentista das colônias britânicas que ameaçam
tornarem-se territórios de expansão comunista (p. 134). Em 1957, será criado o primeiro cargo de subsecretário
de Assuntos Africanos no departamento de Estado (p. 138).
10
conforme os princípios da Carta das Nações Unidas”.15 A Política de Associação será
justificada pela “solidariedade”, pela importância de se “favorecer os interesses dos habitantes
destes territórios e sua prosperidade”, pela “necessidade de conduzir estes povos ao
desenvolvimento econômico, social e cultural ao qual eles aspiram”; mas também pela
afirmação de “relações” e de “responsabilidades particulares” que era preciso continuar a
assumir, que não devem ser “traídas”, que são alimentadas pela “consciência de um dever de
prestar ajuda, reconhecido pelos povos altamente industrializados em relação aos países
menos avançados, em vias de desenvolvimento”.
Com o estabelecimento da Política de Associação, em 1957, em pleno contexto da
Guerra Fria, temos, de um lado, a criação do Mercado Comum, organizado em torno da
liberalização das trocas econômicas e da abertura das fronteiras entre seis países e as excolonias de outro, o surgimento de um Fundo de Desenvolvimento que serviria para alimentar
um novo tipo de relações, através o financiamento de projetos e programas de
desenvolvimento. Três décadas separam a atual Política de Desenvolvimento européia da
época das independências da grande maioria de seus beneficiários originais. Ao longo dos
anos, a Política de Associação foi institucionalizada numa Política de Desenvolvimento
ampliada à totalidade do globo, integrando paulatinamente as antigas colônias dos países
membros, a medida em que a Comunidade européia se ampliava.
No caso do Haiti, a transformação das relações coloniais ocorreu de uma forma
singular, bastante distinta das demais colônias européias. O fim do regime colonial não
coincidiu com a entrada de políticas desenvolvimentistas estrangeiras. A independência da
colônia mais prospera da França aconteceu em 1804, cento e cinqüenta anos antes da maioria
das colônias africanas, depois de uma longa insurreição de escravos, liderada por Toussaint
15
“Determinados a estabelecer os fundamentos de uma união cada vez mais estreita entre os povos europeus,
Decididos a assegurar por uma ação comum o progresso econômico e social de seus países, eliminando as
barreiras que dividem a Europa, Tomando como objetivo essencial para o qual envidar esforços, a melhoria
constante das condições de vida e de emprego de seus povos, Reconhecendo que a eliminação dos obstáculos
existentes demanda uma ação acordada com vistas a garantir a estabilidade na expansão, o equilíbrio nas trocas e
a lealdade na concorrência, Preocupados em reforçar a unidade de suas economias e em assegurar o
desenvolvimento harmonioso, reduzindo a distância entre as diferentes regiões e o atraso dos menos favorecidos,
Desejosos de contribuir, graças a uma política comercial comum, para a supressão progressiva das restrições às
trocas internacionais, Aspirando confirmar a solidariedade que une a Europa e os países ultramarinos, e
desejando assegurar o desenvolvimento de sua prosperidade, conforme os princípios da Carta das Nações
Unidas, Decididos a consolidar, pela constituição deste conjunto de recursos, a salvaguarda da paz e da
liberdade, e clamando os outros povos que partilham de seu ideal, a se associarem a seu esforço, Decidiram criar
uma Comunidade Européia e designaram para tanto (...)”. Preâmbulo do Tratado De Roma, 1957.
11
Louverture e em seguida por Jean-Jacques Dessalines, dois líderes inspirados pelos ideais de
liberdade das Revoluções Francesa e Americana.
No momento no qual começaram as revoltas dos escravos, 14 de agosto 1791, os
norte-americanos já tinham ganhado a revolução contra os Ingleses (1776) e os fundadores da
nova nação estavam tentando unificar o país, negociando com os franceses e espanhóis a
posse dos territórios da Louisiana e da Florida, para os quais o acesso pelo golfo do México e
o pelo mar Caribe era fundamental. A situação política e geográfica do Haiti colocava em
evidência não somente as questões da securisação das fronteiras e do controle do acesso ao
mar do Caribe por partes dos USA, mas também a questão dos regimes de escravidão da
França e dos Estados Unidos. Para esses países, reconhecer uma república revolucionária
negra colocava em questão a ordem social e o processo de construção nacional do país no
caso dos USA, o que explicaria que a independência do Haiti fosse seguida pelo longo não
reconhecimento diplomático por parte da França e dos USA, até 1826 e 1961
respectivamente.16
Enquanto boa parte das colônias africanas se tornaram independentes no final da
década de 1950, Haiti já tinha visto se suceder um numero impressionante de chefes de
estado, presidentes e imperadores e o país estava na véspera de uma longa ditadura militar
dirigida por François Duvalier. Desde sua independência, o país conheceu uma longa
sucessão de golpes de estado, o poder foi sempre contestado por facção do exercito, pelas
elites mulatas e negras e também pela classe dos comerciantes, o que incluía numerosos
estrangeiros (Alemães, Americanos, Franceses e Ingleses, Sírios e Libaneses). No inicio do
século XX, o país estava numa situação de insurreição quase permanente, umas das razões
que motivaram a invasão americana entre 1915 e 1934.
Embora a presencia norte-americana no Caribe e na América Central tenha começado
no final do século XIX, será entre a ocupação de 1915-1934 e o início do Cooperative
Program estabelecido por Truman em 1947, quando começam a ser implementados os
programas de “cooperação” que fazem parte de um conjunto de intervenção dos USA na
região. A agência de desenvolvimento americana, a USAID, foi criada em 1961, na
administração Kennedy, depois do Congresso ter aprovado o Foreign Assistance Act que
reorganizou os programas de assistências exteriores americanos que tinham sido aprovados
junto com Plano Marshall, estabelecendo uma separação entre ajuda militar e a ajuda não
militar (uma distinção que até este momento não existia). As relações de cooperação com a
16
MENENDEZ, M. 2005. Cuba, Haïti et l’interventionnisme américain, un poids, deux mesures. CNRS
Editions : Paris.
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União Européia começaram bem mais tarde, em 1990, com a assinatura da Convenção de
Lomé (1990-1995) com os países da África, do Caribe e do Pacifico (os países “ACP).
A partir desta exposição rápida do caso dos Estados Unidos com Haïti, queria expor o
que poderia ser um projeto comparativo entre o conjunto Comunidade Européia / África e o
dos Estados Unidos/Haiti e quais seriam as linhas de pesquisa. A comparação das duas
configurações pós-coloniais mostram até agora determinados pontos que uma vez
aprofundizados iluminariam melhor a longa duração das políticas de desenvolvimento para
com as ex-colônias, sua articulação com o campo das relações internacionais no qual
competem as metrópoles, as similitudes e diferenças a respeito das agências de intervenção, as
elites nacionais.
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