Por que o Chile dá certo

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Edição 1907 . 1° de junho de 2005
Chile
Por que o Chile dá certo
Em uma América Latina que não acha
o caminho para o desenvolvimento, o
Chile é a ovelha desgarrada que encontrou
uma fórmula econômica de sucesso
Índice
Diogo Schelp, de Santiago
Miguel Candia
Lya Luft
Millôr
Diogo Mainardi
Tales Alvarenga
André Petry
Roberto Pompeu de
Toledo
Carta ao leitor
Entrevista
Cartas
Radar
Holofote
Contexto
Veja essa
Gente
Datas
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Os livros mais
vendidos
O maior desafio de todo país em
desenvolvimento é um dia
deixar de sê-lo. No decorrer do
século passado, poucos
conseguiram ultrapassar a linha
que os separa das nações
desenvolvidas. Na América
Latina, o Chile é o único que
encontrou o caminho. A
economia chilena cresce à taxa
média de 5,5% há vinte anos,
estabilidade que não se vê em
outros países da região. Nesse
período, a proporção de chilenos
vivendo abaixo da linha da
pobreza caiu à metade,
enquanto no restante do
continente o número de pobres
permaneceu, em média,
Avenida Apoquindo, na capital
inalterado. Se mantiver esse
chilena: modernidade e solidez
financeira
ritmo de crescimento por mais
uma dúzia de anos, o Chile
alcançará renda per capita
similar à de Portugal e à da
NESTA REPORTAGEM
Quadro: Um abismo entre o
Grécia, nações situadas no
Chile e a América Latina
patamar mais básico do Primeiro
Mundo. A questão levantada
pelos dados acima é a seguinte: a experiência chilena pode
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servir de modelo para os vizinhos, inclusive o Brasil? A
resposta: os princípios básicos que norteiam o desenvolvimento
chileno – a democracia, a boa governança, a economia de livre
mercado, o investimento em educação e a busca de acordos
comerciais com o maior número possível de parceiros,
sobretudo com os ricos – são universais e servem muito bem
para países grandes e pequenos da América Latina. Até para
um gigante como o Brasil, com população e território onze
vezes maiores e uma economia que tem oito vezes o tamanho
da chilena.
Miguel Candia
O que o Chile tem de especial,
em comparação com as outras
nações latino-americanas, é um
consenso entre os políticos
sobre o modelo econômico
capaz de manter o país no rumo
certo. A esquerda e a direita
chilenas estão de acordo em
quase tudo o que se refere à
economia e reservam a
discussão para questões que
envolvem valores morais, para
como lidar com os crimes da
ditadura que dirigiu o país de
1973 a 1990 e para um ou outro
detalhe sobre leis trabalhistas e
tributárias. Essas são as
diferenças básicas entre os dois
principais pré-candidatos à
Escola pública em Santiago: 80% dos
eleição de dezembro deste ano alunos estudam em período integral
para a Presidência – Michelle
Bachelet, do Partido Socialista, e Joaquín Lavín, da União
Democrática Independente. Bachelet é candidata da
Concertación, coalizão de centro-esquerda. Lavín é da Alianza,
coalizão de centro-direita. Em economia, os dois pensam quase
igual. Eles defendem a estabilidade da moeda, o livre mercado,
a responsabilidade fiscal e a assinatura de acordos comerciais
com um leque amplo de países. Essa unanimidade – que vem
desde 1990, quando o país começou sua transição da ditadura
para a democracia – traz duas vantagens. Primeiro, garante a
continuidade das medidas econômicas, o que permite fazer
planejamentos a longo prazo. Uma das principais conquistas
dessas medidas foi o controle da inflação, de apenas um dígito
há dez anos. Segundo, cria um ambiente de negócios seguro,
que estimula o crescimento econômico. Como as regras do jogo
são respeitadas e mantidas de um governo para outro, os
empresários, nacionais ou internacionais, não relutam em
investir lá. Não à toa, o Chile é considerado o país da região
com o menor risco para investidores externos. Foi essa
estabilidade que permitiu aos chilenos serem os latinoamericanos que menos sentiram os efeitos das crises
econômicas que abalaram as economias capitalistas
interligadas na segunda metade dos anos 90.
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Beneficiados
por
uma
economia
estável,
os
eleitores
chilenos
vivem
sob
a
tranqüilidade
do
consenso.
"Seja
qual
for
o
candidato
eleito,
tenho
certeza de que qualquer um deles vai manter a economia no
bom caminho", diz o aposentado Lionel Acuña Faúndez, de 60
anos, de Santiago. Lionel define-se politicamente como "de
direita", mas diz que pretende votar em Bachelet, uma
socialista, porque acredita ser quem vai melhor dar
continuidade ao governo do presidente Ricardo Lagos, no cargo
desde 2000. É comum encontrar em Santiago pessoas com o
otimismo de Lionel. Lagos está deixando a Presidência com
uma popularidade de 70%. Ele foi o primeiro presidente
socialista do Chile desde 1973, quando Salvador Allende foi
deposto em um golpe militar. O governo de Lagos, no entanto,
não tem nada que lembre o caos do período de Allende, que
estatizou empresas e desapropriou terras. Sob o socialista
Allende, o Estado era responsável por 40% do PIB chileno. Sob
o socialista Lagos, essa participação é de apenas 9%. Um
Estado pequeno tem a vantagem de diminuir o espaço de ação
dos corruptos: o Chile é o país com o menor índice de
corrupção da América Latina, segundo ranking da ONG
Transparência Internacional.
O mais surpreendente talvez seja
o fato de que o modelo
econômico de Lagos – e de todos
os governos de centro-esquerda
que o antecederam – tenha sido
iniciado na ditadura militar. Seria
natural que, na transição para a
democracia, o novo governo
quisesse rechaçar todo o legado
do regime do general Augusto
Pinochet, um dos mais violentos
da região. Os militares mataram
3.000 pessoas e torturaram
outras 30.000. Deixaram, no
entanto, o cerne do modelo que
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permitiu ao país encontrar uma fórmula de crescimento
duradouro. "Os governos democráticos que assumiram a partir
de 1990 mantiveram esse modelo, com alguns ajustes, porque
era o que dava mais resultados", diz o economista Ricardo
Núñez, do Centro de Estudos Públicos da Universidade do Chile,
em Santiago. Explica Núñez: "Enquanto os governos militares
do Brasil e da Argentina estatizaram suas economias e
adotaram uma política comercial protecionista, a ditadura
chilena iniciou privatizações e escancarou seu mercado para
produtos externos".
Os governos de centro-esquerda, que se seguiram à abertura
do regime militar, aperfeiçoaram o princípio de livre-mercado e
firmaram acordos comerciais com os Estados Unidos, a União
Européia, o México, o Canadá, a Coréia do Sul e o Mercosul, o
primeiro a ser ajustado, em 1996. O Chile optou por não entrar
no bloco porque queria ter liberdade para negociar com todo o
mundo. Os sócios do Mercosul – Argentina, Brasil, Paraguai e
Uruguai – só podem negociar em conjunto acordos comerciais
com outros países ou blocos. Sozinhos, os chilenos fecham
acordos com mais rapidez. Isso é fundamental porque, como
tem um mercado interno muito pequeno, a melhor fonte de
crescimento econômico do país é o aumento das exportações.
No ano passado, quando entrou em vigor o acordo com os
Estados Unidos, as exportações chilenas para o mercado
americano cresceram 31%, enquanto as importações de
produtos daquele país aumentaram 37%, prova de que o
acordo foi bom para os dois lados. "O Chile tem facilidade para
abrir aos seus produtos mercados grandes como os Estados
Unidos por ser um país pequeno", diz o economista Patricio
Meller, do Centro de Economia Aplicada da Universidade do
Chile. "Os produtores rurais americanos, por exemplo, não
temem tanto a capacidade produtiva do Chile como temem a
do Brasil."
A vantagem disso é que, a partir
do momento em que se abre um
novo mercado, os chilenos
começam a investir em produtos
nos quais não tinham tradição. O
Chile nunca deu muita atenção à
produção de carne para
exportação. Agora, estimulado
pelos acordos comerciais com os
Estados Unidos e a Europa, esse
setor está ganhando força. O
mesmo aconteceu com certas
variedades de frutas e com o
salmão, produto do qual o Chile
é o segundo maior exportador
mundial. Há vinte anos, o país
exportava uma quantidade
insignificante do peixe. "Com a
abertura iniciada na década de
80, o empresário chileno
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começou a desenvolver uma
mentalidade exportadora", diz Aníbal Ariztía, presidente da
Associação Viñas de Chile, que reúne 95% das empresas
produtoras de vinho chileno, um setor voltado quase
totalmente para a exportação. Junto com a abertura do
mercado e as privatizações, o governo militar iniciou, nos anos
70 e 80, uma série de reformas que foram mantidas pelos
governos democráticos e se tornaram consenso político. Sua
origem na ditadura não foi empecilho para que suas qualidades
fossem reconhecidas. As cinco mais importantes são:
• Criou-se uma lei que impede o Estado de gastar mais do que
arrecada. Até hoje, a responsabilidade fiscal é um dos pontos
fortes da política chilena. Lagos desenvolveu a regra de que
deve sobrar no caixa do governo o equivalente a 1% do PIB
anual.
• Os impostos foram reduzidos e a arrecadação, simplificada.
Atualmente, as empresas pagam um único imposto, de menos
de 20%. Isso ajuda a aumentar os investimentos e faz com que
a sonegação no Chile seja a mais baixa da América Latina.
• Foram estabelecidas regras claras para reger o setor
financeiro do país. O Chile tem, hoje, um dos sistemas
bancários mais sólidos do mundo. Com isso, tornou-se a base
perfeita para empresas estrangeiras com negócios na América
Latina. Uma visita à Avenida Apoquindo, uma das mais
modernas da capital, com seus arranha-céus de vidro, mostra a
força desses investimentos.
• O Chile foi o primeiro país sul-americano a iniciar um controle
de longo prazo da inflação. Em 1989, já no fim do regime, foi
criado um banco central independente do governo, com a
missão expressa de manter a inflação baixa. Desde 2000, a
meta permanente do banco central chileno passou a ser uma
inflação anual entre 2% e 4%.
• Em 1980, foi feita uma reforma na educação que passou para
os municípios a responsabilidade pelo ensino público e criou um
tipo de escola privada que recebe subsídio do governo. O
sistema de ensino ficou mais justo e universal. As
universidades públicas são pagas e existe um sistema de
crédito para os alunos de famílias pobres. Sete em cada dez
jovens que chegam à universidade vêm de famílias cujos pais
não tiveram essa oportunidade. É a forma mais rápida de
ascensão social no Chile. "É natural, depois de todos os acordos
internacionais que firmamos, que o nosso próximo passo em
educação seja nos tornarmos um país bilíngüe", diz Sergio Bitar
Chacra, ministro da Educação do Chile.
Costuma-se dizer que o êxito é a
melhor maneira de criar consenso.
As reformas feitas pela direita foram
mantidas pela esquerda chilena
porque deram certo. Dois outros
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fatores, no entanto, ajudam a
explicar a escolha da centroesquerda chilena em manter as
reformas adotadas por Pinochet. O
primeiro, e mais importante, foi o
fato de que a maioria dos exilados
políticos chilenos viveu no velho
continente quando a esquerda
européia descobria a democracia e
concluía pela inutilidade de suas
antigas teses econômicas centralistas
e intervencionistas. Os comunistas
chilenos voltaram do exílio
influenciados por essa fórmula,
adotada por governos como o do
As exportações
socialista Felipe González, da
representam 42%
Espanha. A segunda razão para o
do PIB chileno
consenso econômico chileno é o
trauma do passado. O medo de
No ano passado o
repetir a radicalização que marcou o
Chile exportou 40%
governo de Allende, no início da
a mais do que
década de 70, e o de Pinochet, entre
importou
1973 e 1990, ajudou a criar, na
década de 90, um clima de
moderação entre esquerda e direita. O maior beneficiado foi o
povo chileno. Os outros povos da América Latina também
podem se beneficiar. Basta se espelhar no exemplo chileno.
Com reportagem de Ruth Costas e Solange Monteiro
Ela poderá ser presidente
A candidata preferida dos chilenos
defende a continuidade econômica
Michelle Bachelet, de 52
anos, tem grandes chances
de ser a primeira mulher
presidente do Chile. Nas
pesquisas de opinião, ela
tem 41% das intenções de
voto, mais que o dobro do
segundo colocado, Joaquín
Lavín, com 18%. Médica
pediatra, Bachelet foi
ministra da Saúde e da
Defesa e pertence ao Partido
Socialista, o mesmo do
presidente Lagos. Seu pai, o
general Alberto Bachelet, era
aliado do presidente Allende
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Roberto Candia/AP
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e morreu sob a tortura do
regime de Pinochet. Ela
concedeu a seguinte
entrevista a VEJA.
Veja – O Chile vem de um
longo período de estabilidade
econômica. O que ainda falta
ser feito?
Bachelet – Chegou a hora
de fazer com que as
conquistas do país, que são
muitas, se traduzam em
pequenas conquistas para
todas as pessoas. Para isso
precisamos seguir
crescendo, o que só será
possível mantendo as
políticas macroeconômicas
Bachelet: foco no Mercosul sem
que serviram de base para
perder de vista acordos comerciais
esse crescimento até agora. com países ricos
Falta aumentar o apoio à
inovação tecnológica e aos pequenos empresários, de
maneira a incluir mais chilenas e chilenos no processo de
desenvolvimento.
Veja – O que é mais importante, na sua opinião: aumentar
os laços comerciais com a América Latina ou dar prioridade
a acordos com países ricos?
Bachelet – Temos planos de nos aproximar mais do
Mercosul, não só comercialmente, mas também política e
culturalmente, em infra-estrutura e em energia. Essa é a
resposta que damos ao desafio da globalização. Isso não
nos impede de manter os acordos que conseguimos com os
Estados Unidos e a União Européia ou que façamos novos
acordos com países da Ásia e da Oceania.
Veja – Deve-se avançar na punição dos responsáveis pelos
crimes da ditadura?
Bachelet – Deve-se manter o que temos agora: de um
lado, o governo tomando medidas para encontrar a
verdade. De outro, os tribunais estabelecendo as
responsabilidades penais a respeito do que é revelado.
Podemos estudar medidas que impeçam os processos de se
tornar eternos, desde que isso não implique impunidade.
Veja – O que significa para o Chile a possibilidade de uma
mulher chegar à Presidência?
Bachelet – Isso demonstra como a sociedade chilena
mudou. O Chile viveu uma modernização econômica nos
anos 40 e 50, quando se industrializou, e nos anos 80 e 90,
quando abriu sua economia e o consumo aumentou.
Também vivemos uma modernização política, com o fim da
ditadura. Faltava uma modernização cultural. É o que
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estamos vendo com o papel cada vez mais importante das
mulheres.
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