Análise do Padrão de Marcação da NADPH diaforase na Área Somestésica Primária (SI) de Ratos Adultos Submetidos à Intoxicação por Metilmercúrio (MeHg) Marco Aurélio de Moura Freire*, Walace Gomes Leal, Antônio Pereira Jr.** & Cristovam Wanderley Picanço Diniz. Laboratório de Neuroanatomia Funcional, Departamento de Morfologia, Centro de Ciências Biológicas – Universidade Federal do Pará. * Bolsista de Iniciação Científica PIBIC – CNPq. ** Orientador Resumo O mercúrio (Hg) é um metal pesado que apresenta efeitos tóxicos largamente estudados em seres humanos. O mercúrio é muito utilizado na região amazônica em garimpos para a extração do ouro e a sua presença nos dejetos oriundos desta atividade constitui uma ameaça à saúde das populações ribeirinhas que se alimentam de peixe. Para analisar o efeito deste metal na área somestésica primária (SI) de ratos adultos intoxicados experimentalmente com cloreto de metilmercúrio (MeHg) numa concentração de 4 mg/kg/dia, utilizamos a histoquímica para a enzima NADPH diaforase, a enzima de síntese do óxido nítrico (gás envolvido em diversos processos cerebrais como plasticidade e transmissão sináptica). O córtex somestésico foi escolhido como alvo do estudo por apresentar uma elevada taxa metabólica, fator determinante para o tropismo do MeHg pelo sistema nervoso central. Os resultados obtidos indicam que houve uma drástica redução da reatividade da NADPH diaforase nos barris de SI dos animais intoxicados quando comparados com os animais controle. Tais resultados sugerem que o metilmercúrio tem uma ação danosa sobre o córtex somestésico, como já descrito para o cerebelo e para o córtex visual, confirmando sua ação como um veneno metabólico de ação lesiva em diferentes regiões do sistema nervoso. Abstract Mercury (Hg) is a heavy metal that has known toxic effects on the human central nervous system. However, mercury is still used in the amazon region as part of processes related to gold extraction. The dejects resulting of these processes are simply discarded on the rivers of that region. The continued use of mercury in this region is a dramatic public health concern threatening people living alongside rivers and who depend on them for their subsistence. In order to evaluate the toxic effects of this metal in the mammalian nervous system, we apllied NADPH diaphorase (NADPH-d) histochemistry to tangential sections of the primary somatosensory area (SI) of adult rats experimentally intoxicated with methylmercury (MeHg) in a concentration of 4 mg/kg/day. NADPH-d is the molecule responsible for the synthesis of nitric oxide, a neuronal messenger that performs some key-roles in the nervous system. The somatosensory cortex was chosen because of its high metabolic rate, which is a key factor determining the tropism of MeHg for the central nervous system. Our results indicate that reactivity for NADPH-diaphorase in SI is drastically reduced in intoxicated animals, suggesting that this system is altered for the harmful action of this metal, such as described previously to cerebellar and visual cortices. Revista Virtual de Iniciação Acadêmica da UFPA http://www.ufpa.br/revistaic Vol 1, No 2, Outubro 2001 -1- Introdução O mercúrio (Hg) é um metal pesado que apresenta efeitos tóxicos bastante conhecidos e largamente estudados em seres humanos (Hunter & Russel, 1954). Este composto pode ser encontrado em várias formas químicas, tais como o vapor de mercúrio metálico, o mercúrio inorgânico e o mercúrio orgânico (Clarkson, 1997). O metilmercúrio (MeHg), a forma orgânica do mercúrio, é um veneno sistêmico com ação lesiva preferencial no sistema nervoso (WHO, 1991). Os efeitos lesivos do MeHg no sistema nervoso começaram a ser mais profundamente investigados a partir de um grave acidente ocorrido na região de Minamata, Japão, na década de 50. Neste local, o MeHg era lançado em grandes quantidades como dejeto industrial na Baia de Minamata e foi introduzido na cadeia alimentar deste ecossistema. Como conseqüência, as pessoas consumidoras habituais de peixes e mariscos obtidos no local foram contaminadas pelo metal. O quadro clínico observado nestes indivíduos foi chamado de ´doença de Minamata´ e se caracteriza por comprometimento do campo visual periférico, disartria e ataxia cerebelar (WHO, 1991), entre outros problemas. Em exames histopatológicos, as lesões encontradas no cérebro humano contaminado por mercúrio localizam-se principalmente na camada de células granulares do cerebelo e no córtex visual (Chang, 1975). O MeHg afeta também o cérebro em desenvolvimento, porém com um padrão de lesão mais generalizado (WHO, 1991; Mottet et al., 1997). Os efeitos do MeHg também foram observados em cérebros de animais submetidos à intoxicação experimental (Chang, 1975; WHO, 1991; Nagashima, 1997). Em ratos, além da lesão cerebral, observa-se também degeneração axonal, com comprometimento secundário da bainha de mielina no ramo sensorial de nervos periféricos (Nagashima, 1997). Para estudos no córtex visual, com vistas à correlação com seres humanos, entretanto, as espécies mais indicadas são gatos e macacos (Nagashima, 1997). O mecanismo de neurotoxicidade do MeHg ainda não é totalmente conhecido. Os efeitos celulares do MeHg são diversos e a lesão ocorre provavelmente por mais de um mecanismo (Chang, 1975; Atchison & Hare, 1994; Clarkson, 1997). Classicamente, tem sido enfatizado que a morte celular decorrente do MeHg ocorre por necrose (Chang, 1975). Porém, mais recentemente, tem sido proposto que o MeHg poderia induzir a morte celular também por apoptose (Kunimoto, 1994; Nagashima, 1997). As áreas sensoriais do necórtex de mamíferos se caracterizam por possuir módulos de processamento organizados em forma de colunas, que vão da pia à substância branca (ver Purves et al., 1997 para revisão). Dentre estas estruturas, uma das mais estudadas é o campo de barris de roedores (Woolsey & van der Loos, 1970; van der Loos & Woolsey, 1973; Welker & Woolsey, 1974). Os barris são estruturas citoarquitetônicas discretas observadas na camada IV do córtex somestésico de algumas espécies de mamíferos (Woolsey et al., 1975) e foram revelados inicialmente pela técnica clássica de coloração de Nissl (Woolsey & van der Loos, 1970; Welker, 1971), que cora corpos celulares de neurônios e glia. Posteriormente, os barris foram revelados através da reação histoquímica para várias enzimas metabólicas, como a citocromo oxidase (Wong-Riley e Welt, 1980), a succinato desidrogenase (Wallace, 1987) e a NADPH diaforase (Franca & Volchan, 1995; Pereira Jr. et al., 2000), que comprova o alto grau de metabolismo desta região. A taxa metabólica parece ser um dos fatores cruciais para explicar o tropismo do mercúrio pelo sistema nervoso central. O presente trabalho visa investigar os efeitos da intoxicação experimental por MeHg sobre a estrutura tridimensional dos barris da área somestésica primária de ratos revelados pela NADPH diaforase procurando evidenciar possíveis alterações que possam ser relacionadas ao metabolismo energético desta região e à expressão do óxido nítrico, neurotransmissor gasoso envolvido em vários processos no sistema nervoso central, como a plasticidade, neuroproteção e toxicidade isquêmica. Revista Virtual de Iniciação Acadêmica da UFPA http://www.ufpa.br/revistaic Vol 1, No 2, Outubro 2001 -2- Materiais e Métodos Seis ratos Wistar machos e adultos foram utilizados para a realização deste trabalho. Os animais foram divididos em dois grupos (I – controle; II – tratados). Os animais do grupo II foram intoxicados com cloreto de metilmercúrio (Ultrascientific) segundo o protocolo adaptado de Nagashima et al. (1996). Um total de 160 mg de metimercúrio foi dissolvido em 400 ml de etanol a 5% (4 mg/10 ml). Os ratos foram contaminados por via intraperitoneal com uma dose diária de 4 mg/kg durante 7 dias. Animais do grupo I receberam apenas etanol a 5% através do mesmo esquema de tratamento. Após um período de sobrevida de 7 dias, ambos os grupos foram perfundidos, sob anestesia profunda induzida por inalação de éter ou clorofórmio, através do ventrículo esquerdo com volumes sucessivos de solução salina 0,9% e paraformaldeído a 4% ou formalina a 10%. Em seguida, o cérebro foi retirado da caixa craniana e posicionado entre duas lâminas de vidro e imerso em tampão fosfato 0,1 M por cerca de 24 horas para ser aplanado. No dia seguinte, secções tangenciais de 100 µm de espessura foram obtidas em um vibrátomo (Pelco), sendo recolhidas em tampão fosfato 0,1 M (pH 7,2 – 7,4). As secções de tecido dos animais tratados e controle foram incubadas na mesma solução e submetidas aos mesmos procedimentos histoquímicos. A histoquímica para a revelação da atividade da enzima NADPH diaforase foi realizada pelo método indireto (ou da enzima málica) adaptado de Scherer-Singler et al. (1983), a partir do protocolo descrito a seguir: Adicionou-se 15 mg de azul de nitrotetrazólio (do inglês nitroblue tetrazolium - NBT) (Sigma) a 0,5 ml de dimetil sulfóxido (DMSO) (Inlab) (solução I). Posteriormente, acrescentou-se 300 mg de ácido málico (Sigma) em um becker contendo 50 ml de solução de TRIS 0,05 M (Nuclear) (solução II), ajustando-se então o pH para 8,0 utilizando-se HCl. A correção do pH da solução II é crítica para se obter uma boa reação. Em seguida, acrescentou-se à solução II 50 mg de β-nicotinamida adenina dinucleotídeo fosfato (β-NADP) (Sigma) e 20 mg de cloreto de manganês (Sigma). As soluções I e II foram então misturadas, acrescentando-se em seguida 3 ml de TRITON X-100 (Sigma). Foi obtida uma solução de cor amarela fotossensível, sendo protegida da luz com papel laminado. Os cortes foram incubados nesta solução e mantidos, sob agitação constante, numa temperatura em torno de 40o C e protegidos da luz. A reação foi monitorada em intervalos de 30 minutos, utilizando-se um microscópio óptico, para evitar que os cortes ficassem demasiadamente escuros em decorrência da redução excessiva do azul de nitrotetrazólio em formazan, sendo interrompida em 3 ou 4 horas, quando os campos de barris e as células NADPH d+ estavam bem evidentes. Algumas secções foram coradas pelo método de coloração de Nissl, para evidenciar o padrão normal dos campos de barris. A seguir, os cortes foram lavados em tampão fosfato 0,1 M e montados em lâminas gelatinizadas, desidratados em cubetas de vidro contendo álcool com diferentes gradientes de concentração (50%, 70%, 80%, 90% e 100%) e clareados em xileno sendo, então cobertos com lamínula com o auxílio de um meio de inclusão (Entellan, Merck). Resultados A reação enzimática para a NADPH diaforase permitiu revelar a topografia dos barris na área somestésica primária de animais do grupo I (Figura 1a), como já previamente descrito na literatura para o rato (Franca & Volchan, 1995) e para o camundongo (Pereira Jr. et al., 2000). Os maiores barris ocupam a região denominada de subcampo póstero-medial de barris e correspondem às grandes vibrissas mistaciais da face do animal (Woolsey & van der Loos, 1970; Nussbaumer & van der Loos, 1985). Outras partes do corpo são também identificadas por suas representações no campo de barris, como pata anterior e posterior, tronco e região Revista Virtual de Iniciação Acadêmica da UFPA http://www.ufpa.br/revistaic Vol 1, No 2, Outubro 2001 -3- anterior do focinho. A coloração de Nissl, realizada em secções alternadas, revela um padrão de organização semelhante (Figura 1b). A reação de NADPH diaforase revelou também o padrão de distribuição dos neurônios diaforase positivos (NADPH d+) (Figura 1a) ao longo da área SI. Nos campos de barris, estes neurônios localizam-se predominantemente nas regiões do septo, que separa os barris individuais, embora perceba-se a presença de alguns poucos neurônios no interior dos barris (Figura 1a). Também existe um gradiente de densidade de corpos celulares nos eixos anterior-posterior (maior concentração de células na porção anterior) e medial-lateral (maior concentração na região medial, como descrito por Franca et al., 2000). A reação de NADPH diaforase nos animais intoxicados revela, em uma análise qualitativa, que a intensidade de marcação da neurópila foi drasticamente reduzida, principalmente no centro dos barris (Figura 2), quando comparada aos animais controle (grupo I). Devido a esta reação mais difusa, os barris apresentam um aspecto “pálido”, provavelmente devido à menor quantidade da enzima. A diminuição da reatividade de neurópila também foi notada na região localizada na borda rostral de SI, conhecida como “cortex disgranular” (Figura 3a), onde se pode perceber um aspecto mais difuso de reação enzimática quando comparado à mesma região dos animais do grupo I (Figura 3b). Não foi possível determinar se ocorreram alterações na distribuição dos neurônios NADPH d+ em qualquer uma das áreas analisadas tampouco mudanças sutis na morfologia celular. Revista Virtual de Iniciação Acadêmica da UFPA http://www.ufpa.br/revistaic Vol 1, No 2, Outubro 2001 -4- A B Figura 1. Padrão de organização dos campos de barris de um rato do grupo II revelado pela NADPH-d. Notar a presença de células no interior dos barris (seta branca) e nos septos (seta preta) (A). Coloração de Nissl evidenciando o aspecto “cheio” dos barris do PMBSF (seta) (B). PMBSF: subcampo póstero-medial de barris; Barra de calibração: 250 µm. Revista Virtual de Iniciação Acadêmica da UFPA http://www.ufpa.br/revistaic Vol 1, No 2, Outubro 2001 -5- Figura 2. Fotomicrografia de um barril do PMBSF de um rato do grupo I demonstrando a presença de neurônios NADPH d+ no interior do barril (*) e no septo (**). Observar a região mais pálida no centro do barril (neurópila mais fracamente reagida) indicada pela seta. I: barril; II: septo. Barra de calibração: 100 µm. A B Figura 3. Fotomicrografia de um neurônio NADPH d+ de um animal do grupo I (A). Notar a neurópila mais fracamente reagida. Neurônio NADPH d+ positivo de um animal do grupo II (B). Notar a neurópila mais fortemente reagida, quando comparada com A. Barra de calibração: 100 µm. Revista Virtual de Iniciação Acadêmica da UFPA http://www.ufpa.br/revistaic Vol 1, No 2, Outubro 2001 -6- Discussão Os resultados obtidos no presente trabalho relacionam-se a questões referentes aos efeitos da intoxicação aguda por metilmercúrio no sistema nervoso central, indicando que este modelo de intoxicação pode causar alterações similares àquelas relatadas na literatura causadas pela intoxicação crônica, quando os sintomas característicos da intoxicação por mercúrio manifestam-se após um período relativamente longo tanto em animais (Hansen et al., 1989) quanto em humanos, como aconteceu em Minamata, no Japão (Irukayama et al., 1962), no Iraque (WHO, 1991), ou nos EUA com uma família que se contaminou ao consumir porcos intoxicados com mercúrio (Davis et al., 1993). Em relação às células NADPH diaforase positivas, sabe-se, desde os estudos pioneiros de Thomas e Pearse no começo da década de 60 (Thomas & Pearse, 1961; 1964), que estas células apresentam resistência a venenos metabólicos. Uma das hipóteses para esta proteção seria o fato de estas células serem responsáveis pela síntese do óxido nítrico (Valtschanoff et al., 1993), uma molécula gasosa altamente difusível e que atua como um neurotransmissor não convencional (Snyder, 1992). O óxido nítrico, em baixas concentrações, possui um papel neuroprotetor no sistema nervoso central. Este fato poderia explicar a manutenção do padrão morfológico normal das células NADPH d+ nos animais intoxicados de forma aguda por mercúrio. Por outro lado, Oliveira e colaboradores, em 1998, ao realizarem uma análise estatística dos ramos dendríticos mais distais de células NADPH d+ da substância branca de gatos intoxicados por metilmercúrio, observaram que estas células apresentavam uma diminuição em sua árvore dendrítica, porém não sofreram alterações na área de corpo celular (Oliveira et al., 1998). Ainda neste trabalho, estes pesquisadores relatam a aparente resistência das células NADPH d+ da substância cinzenta, porém uma elevada alteração na reatividade de neurópila nesta área, resultado semelhante ao encontrado no córtex somestésico dos ratos analisados neste estudo. A drástica diminuição de reatividade de neurópila observada nos animais intoxicados sugere que o metilmercúrio pode ocasionar alterações na enzima de síntese do óxido nítrico (NOS), indicando que este metal poderia comprometer a expressão do óxido nítrico (provavelmente alterando seu transporte pelo comprometimento de terminais axonais), gás que está envolvido com diversas funções importantes no sistema nervoso como plasticidade, neuroproteção e neurotransmissão sináptica. Conclusão A partir desta abordagem experimental, é possível concluir que o sistema somestésico de ratos apresenta alterações após intoxicação com metilmercúrio. A alteração do padrão de marcação da enzima NADPH diaforase é um indicador que o metilmercúrio altera a expressão da enzima de síntese do óxido nítrico, um gás envolvido em vários processos cerebrais como plasticidade sináptica, neurotransmissão e neuroproteção. Todavia, o padrão de lesão observado no córtex somestésico é diferente daquele observado no cerebelo destes animais (Nagashima, 1997). A comparação morfológica entre os barris e as células NADPH d+ dos animais intoxicados com MeHg e animais normais, utilizando procedimentos morfométricos semelhantes aos utilizados por Oliveira e colaboradores (1998) fornecerá, futuramente, informações mais concretas a respeito da fisiopatologia da intoxicação mercurial no sistema somestésico de roedores. Revista Virtual de Iniciação Acadêmica da UFPA http://www.ufpa.br/revistaic Vol 1, No 2, Outubro 2001 -7- Referências Bibliográficas ATCHISON, W.D. and HARE, M.F. Mechanisms of methylmercury-induced neurotoxicity. FASEB Journal, 8: 622-629, 1994. CHANG, L.W. Neurotoxic effects of mercury – a review. Environmental Research, 14: 329-373, 1975. CLARKSON, T.W. The toxicology of mercury. Critical Reviews in Clinical Laboratory Sciences, 34: 369-403, 1997. 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