a medicina popular e o tratamento para picada de

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Povos e Comunidades Tradicionais
A MEDICINA POPULAR E O TRATAMENTO PARA PICADA DE
SERPENTES NO ALTO VALE DO JEQUITINHONHA.
Polliane Rocha da Cruz Moraes
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Há séculos o ser humano vem buscando alternativa para se livrar dos males que acontecem em
sua vida. Nos últimos duzentos anos, tal busca foi, sem dúvida, hegemonizada pela medicina moderna.
Não sem razão. Afinal, em apenas algumas gerações, a medicina científica aumentou a expectativa de
vida mais do que havia sido feito em oitocentas gerações (FOUREZ, 1995). No entanto, trata-se de
uma forma de medicina que privilegia mais o diagnóstico que o tratamento. Trata-se de um modelo
que enfoca mais a cura que a prevenção. Que prioriza mais o corpo físico do que o paciente em sua
totalidade. Que enfatiza mais a especialização do que a complexidade. Em suma, trata-se de uma prática
médica que não visa o bem viver.
Levando-se em conta tais limites, a pesquisa nos instiga a pensar que não há somente um paradigma
de afastar os males e curar as doenças e que estes não dependem somente de questões socioeconomicas,
trata-se de uma questão cultural e ineficiência da medicina moderna para com determinadas mazelas como
as espirituais por exemplo. Na medicina popular, por exemplo, as curas e as prevenções de alguns males
são feitas por meio de práticas seculares e tradicionais, tais como benzeções, raizadas, curandeirismo,
regras alimentares, repouso e algumas crenças. Nesses casos, o tratamento para as doenças espirituais e
físicas são feitos por mestres diferentes. A benzeção, por exemplo, caracteriza-se pelo ato de tratar com
orações, seja feita uma única vez ou várias vezes, como manda o ritual, e geralmente são para tratar
doenças espirituais e físicas como espinhela caída, quebranto, vento virado, sol e sereno na cabeça,
picada de animais venenosos entre outras. Já o curandeiro é um mestre que trata com orações e remédios
caseiros como emplastos e raizada. A picada de serpente, escorpiões e outros animais venenosos são
tratados com orações e remédios, ao passo que as queimaduras podem ser tratadas com emplastos,
banhos e gorduras extraídas de animais selvagens e domésticos, como gordura de galinha, peixe, tatu e
outros. O raizeiro, por sua vez, trabalha apenas com raizada, que é um remédio composto por cachaça,
raízes, frutos, folhas, cascas de árvores e sementes. A raizada pode ser fabricada tanto pelo curandeiro
quanto por um raizeiro, e geralmente é utilizada em enfermos com doenças físicas. Vale lembrar que
alguns tratamentos alternativos na medicina popular passam por restrições impostas pelo mestre, que
assumem a forma de resguardos, crenças e outros.
Aprofundando nas questões suscitadas, este trabalho tem por objetivo falar sobre os modos
de vida observados em Senador Modestino Gonçalves. O foco da pesquisa está no envolvimento da
medicina tradicional local. Assim, a principal questão abordada no trabalho é o tratamento de picada
de serpente feita por um curandeiro em três membros de uma família, quais sejam, o pai, a mãe, e uma
das filhas. Ambas as serpentes que provocaram os acidentes são da família “Viperidae”, conhecidas
popularmente na região de Senador Modestino Gonçalves como Jacuçu cabeça de poltrona ou jaracuçu
correia, Jaracuçu do papo amarelo e Jaracuçú d’gua.
Estado, capital e territórios tradicionais: dinâminas territoriais em disputa
A metodologia usada para a coleta de informações foi a história oral com apoio de um questionário
semi-estruturado, as entrevista foram gravadas, logo após transcritas de forma idêntica as falas para então
serem analisadas. Segundo Meihy (1996), a história oral é um recurso moderno usado para a elaboração
de documentos, arquivos e estudos referentes a vida social de pessoas. Ela é sempre uma história do
tempo presente e é reconhecida como História viva.
Os entrevistados são moradores de uma comunidade rural de Senador Modestino Gonçalves Alto
vale do Jequitinhonha. De maneira tradicional a alimentação dos integrantes da comunidade na maioria
das vezes é baseada em alimentos nativos da região e/ou produzidos em suas próprias terras. Assim
como o modo de se alimentar, estão os modos de prevenir as doenças e tratarem da saúde, sejam os males
espirituais ou fisícos. Os tratamentos são à base de benzeções, banhos, regras alimentares, preparados de
plantas medicinais, minerais, óleos, ossos, carnes de animais e outros.
A cura de picada de serpente é executada na região pelos curandeiros locais sempre que alguém
solicita, seja em humanos ou em animais. Para o sucesso do tratamento os ”mestres” recomendam: dieta
alimentar, crenças, medicação específica e orações.
No que tange a dieta alimentar o paciente fica restrito a uma alimentação que não contém alho e
cebola. Os alimentos advindos de plantas que se alastram como batatas, maxixe e outros, são inadequados,
assim como aqueles que soltam baba, como o quiabo e ora-pro-nobis, além do peixe, porco e outros que
fazem parte do cardápio no dia a dia destas famílias de comunidades tradicionais, a dieta tem previsão
de 40 dias e não devem ser derrespeitadas. Uma das entrevistadas relatou que para os curandeiros locais
o que o paciente ingere antes do acidente sempre interfere na recuperação da pessoa “ofendida” e caso
o mesmo tenha ingerido alguns dos alimentos proibidos, deve colocar um pedaço de fumo na boca para
provocar vômito
Em relação às crenças, logo após o acidente o paciente deve amarrar um cipó verde próximo ao
local da picada para atrair boas energias, matar o animal para que o mesmo não tenha energia sobre a do
paciente, não atravessar água corrente, mas se houver necessidade de atravessar que seja de costas, além
do mais o paciente não deve pisar em cabelo e não ser “visto” por mulheres grávidas ou por paciente em
tratamento vítima de acidente semelhante.
No caso da medicação, a aplicação acontece tanto por meio externo quanto por via oral. O mestre
curandeiro prepara emplastos feitos de alguns alimentos que não podem ingerir como: alho, cebola, ovo,
bicarbonato e outros. A ideia dos emplastos partem da sabedoria que estes alimentos puxam o veneno
para fora, ao passo que se ingeridos puxam o efeito tóxico para o intestino. O veneno da serpente também
pode ser puxado através de uma pedra conhecida como pedra de veado, a tal, é um cálculo retirado do
“ fel”(órgão colado no fígado do animal). Já a garrafada é um preparado usado por via oral a base de
semente de amburana, assa peixe, canguçú branco e preto, caboclo, jurema, fel da terra, raiz de guiné e
outras plantas imersa na cachaça. No momento da preparação do remédio deve observar a quantidade de
produtos a serem adcionados, levando em conta que deve ser colocados sempre quantidades impares de
plantas, a ingestão é ministrada em doses decrescente de acordo coma necessidade de cada paciente.
Como complementação do tratamento são usadas as orações com palavras específicas a fim de
conter o veneno do animal. As mesmas são usadas em momentos de dores fortes, uma vez que, as dores
sofridas pelos paciente não podem ser controladas por analgesícos. Em relação ao sucesso do tratamento
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de picada de serpentes, estes três entrevistado somam um total de 386 pacientes vítimas de tais acidentes
que curou através dos cuidados do mesmo curandeiro, deste total nenhum foi a óbito e nem mesmo ficou
com sequela.
Ao longo dessa pesquisa, os entrevistados deixaram claro que sua procura por este tipo de
tratamento é por uma questão de tradição e não por dificuldades financeiras e/ou por difícil acesso a
medicina moderna. Afirmaram também que a procura, por reconhecer que muitos “incômodos” só se
curam com tratamento feito por mestres que foram escolhidos por Deus, doenças como quebrantos, sol e
sereno na cabeça os médicos não obtém respostas para elas. Diante disso, podemos dizer que tais pessoas
é apenas uma das famílias conservadora da cultura popular tradicional do Alto Vale do Jequitinhonha,
principalmente quando o assunto é saúde. Portanto, a medicina popular tradicional nasce de uma sabedoria
que se dá através da fé e anos de experiência dos mestres que praticam o “curandeirismo”.
Concluo que este tipo de pesquisa traz à tona a importância e representatividade de um povo que
se preza pelos seus hábitos culturais tradicionais, independente do grau de escolaridade e/ou posição
social ocupada. Ressalto isso pelo fato de uma das entrevistadas ter curso superior, ou seja, ter mais
condições e facilidades de obter informação sobre as técnicas usadas na medicina moderna e mesmo
assim ainda se submete a tratamentos da medicina popular. Considero que tais pessoas são merecedoras
de respeito por dar continuidade a esta cultura tão vasta que temos no Brasil.
Palavras chave: Cultura, Saúde, picada de serpente.
• REFERÊNCIAS
FOUREZ, Gérard. A construção das ciências: A introdução à filosofias e a éticas das ciências. São
Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1995.
MEIHY, Jose Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. 2. ed. São Paulo: Loyola,1996.
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