1 Aspectos históricos da neuropsicologia e o problema mente-cérebro DANIEL C. MOGRABI GABRIEL J. C. MOGRABI J. LANDEIRA-FERNANDEZ O PROBLEMA MENTE-CÉREBRO E O INTERACIONISMO CARTESIANO How can the soul of man determine the spirits of the body, so as to produce voluntary actions (given that the soul is only a thinking substance)* (Elisabeth da Boêmia apud Kim, 2005. p. 73) poderia ser incluído no rol dos precursores da neuropsicologia pela via da relação entre filosofia psicológica e fisiologia (mesmo que contingenciada pelos pressupostos ontológicos da noção de alma ainda vicejante naquele então), como se pode notar pela seguinte citação de seu último livro, As paixões da alma: Enfim, sabe-se que todos esses movimenA epígrafe, trazendo-nos a objeção da printos dos músculos, assim como todos os cesa da Boêmia ao seu preceptor, serve aqui sentidos, dependem dos nervos, que são de manifestação do impasse entre teoria como pequenos fios ou como pequenos psicológica e filosófica versus prática méditubos que procedem, todos, do cérebro, e ca e científica na modernidade. Descartes, contêm, como ele, certo ar ou vento muito conhecedor da obra de Harvey e ele messutil que chamamos espíritos animais [...] mo engajado na dissecação de animais, em (Descartes, 1979, p. 229). especial de seus cérebros, muito oportunamente para sua própria condição palaciaDescartes entende que a relação do na e cortesã, não questionava os dogmas cérebro com o corpo e a mente é mediada católicos que poderiam gerar anátemas, por esses espíritos animais. Assim, sua posiexcomunhões de diversos níveis e mesmo ção poderia ser considerada uma forma de a fogueira, como aconteceu com Giordano interacionismo. No entanto, como se pode Bruno, caso conhecido e temido por Desver pela citação seguinte, na obra cartesiacartes a ponto de fazê-lo pena, ainda que à alma seja resdir a seus discípulos que puguardada uma natureza disDescartes entende que a rela­ blicassem seu primeiro livro, ção do cérebro com o corpo e tinta, a de res cogitans, coisa a mente é mediada por esses um tratado sobre ótica que pensante, aos espíritos aniespíritos animais. Assim, sua desafiava o geocentrismo, mais é conferida uma condiposição poderia ser consideapenas postumamente. No ção puramente material: rada uma forma de interacioentanto, o próprio Descartes nismo. * Como pode a alma do homem determinar / o humor do corpo, de modo a produzir / ações voluntárias (uma vez que a alma / é apenas uma substância pensante). Fuentes.indd 19 [...] pois o que denomino aqui espíritos não são mais do que corpos e não têm qualquer outra propriedade, exceto a de serem corpos muito pequenos e se moverem muito depressa, 8/11/2013 10:44:42 20 Fuentes, Malloy-Diniz, Camargo & Cosenza (orgs.) assim como as partes da chama que sai de sela árabe. É notável a ideia de que uma de uma tocha; de sorte que não se detêm alteração do corpo na alma (ou mente) ou em nenhum lugar e, à medida que entram vice-versa dependa de um movimento, no alguns nas cavidades do cérebro, também sentido tradicional de deslocamento, gesaem outros pelos poros existentes na sua rado pela impulsão de espíritos. Além dissubstância, poros que os conduzem aos so, mesmo que esse movimento pudesse se nervos e daí aos músculos, por meio dos dar em pequenas dimensões, ele é concebiquais movem o corpo em todas as diversas do ainda de maneira extensa, vetorial e com maneiras pelas quais esse pode ser movitodas as demais propriedades que possamos do [...] (Descartes, 1979, atribuir à matéria condensap. 230). É notável a ideia de que uma alteração do corpo na alma (ou mente) ou vice-versa dependa de um movimento, no sentido tradicional de deslocamento, gerado pela impulsão de espíritos. No entanto, de que maneira a interação entre alma e espíritos se daria? Descartes afirma que há uma diminuta glândula no meio do cérebro que perfaz o papel de locus principal da interação da alma com o corpo pela via dos espíritos: Concebamos, pois, que a alma tem a sua sede principal na pequena glândula que existe no meio do cérebro, de onde irradia para todo o resto do corpo, por intermédio dos espíritos, dos nervos e mesmo do sangue, que, participando das impressões dos espíritos, podem levá-los pelas artérias a todos os membros [...] (Descartes, 1979, p. 240). A glândula mencionada é a pineal. A escolha de Descartes pela glândula pineal se dá por dois motivos: trata-se de uma es­ trutura única e centralizada, em vez de dupla e dividida em hemisférios, que, assim, por razões analógicas e quase geométricas, é vista pelo autor como a melhor candidata para ser um centro de unificação das representações e impressões. Numa carta a Mersenne, datada de 24 de dezembro de 1640, Descartes (1979) afirma que o caráter de unicidade é também pertinente à glândula hipófise, mas que esta “não dispõe da mobilidade da pineal”, referindo-se ao fato de que a hipófise está presa à face superior do osso esfenoide por meio da sela túrcica (ou sela turca), uma pequena fosseta em forma Fuentes.indd 20 da. No entanto, não foram os arroubos de materialismo de Descartes recém-descritos que ficaram consagrados na história da filosofia, e sim o seu dualismo de substâncias: a ideia de que a realidade é cindida em dois mundos – um pensante; outro, extenso e material. Assim, o imaterialismo e racionalismo se coadunavam em uma decisão filosófica clara de sobrepor a racionalidade da mente às paixões, devendo esta ser sua guia e determinante. Esses mesmos racionalismo e primazia do pensamento podem ser abstraídos da popularizada máxima cartesiana “cogito ergo sum”. A existência é descoberta pela primazia epistemológica do pensamento, e o pensamento se configura como substância imaterial e inextensa. Até hoje sofremos influências desse dualismo cartesiano, que segue reverberando em algumas das tendências explicativas presentes no senso comum e mesmo no debate filosófico, menos afeito à interdisciplinaridade com ciências empíricas. Pode-se afirmar, inclusive, de acordo com Searle (1992), que o uso desse vocabulário antiquado condiciona o debate de tal forma espúria que muitos dos alegados problemas filosóficos da relação mente-corpo seriam pseudoproblemas. No trecho a seguir, será feito um mapeamento de algumas das mais importantes correntes contemporâneas de análise do problema mente-cérebro. Não se pretende exibir em caráter exaustivo todas as correntes e suas subdivisões, mas apenas criar uma 8/11/2013 10:44:42 Neuropsicologia 21 possibilidade de entendimento das diferentes postulações no que concerne essa relação para melhor compreensão da fundamentação histórica da neuropsicologia. por exemplo, atitudes proposicionais: relações entre conteúdos proposicionais e uma determinada postura mental com implicações práticas (p. ex., acreditar, desejar, esperar) (P. M. Churchland, 1981; P. S. Church­ land, 1986). Também foi proposto por ALGUMAS TESES CORRENTES eliminativistas (Dennett, 1992) que a noção de qualia (sensações e experiências coSOBRE A RELAÇÃO MENTE-CÉREBRO mo estados subjetivos qualitativos) poderia ter um caráter ilusório e não ter a existência Raros são os dualistas de substâncias na que lhes é atribuída na psicologia popular. contemporaneidade. A maioria das teorias Em sua grande maioria, pofilosóficas, na atualidade, resições eliminativistas entenpudia essa postura tida como Existem filósofos que, apelandem que uma neurociência ultrapassada diante de nosdo para a noção de possibilidade lógica (ou, ainda, para a em alto grau de maturidade so vigente quadro de referênnoção mais geral de possibilie desenvolvimento irá substicias, tanto filosófico como dade metafísica), argumentam tuir essa terminologia da psicientífico. Ainda assim, exisque não se pode em princípio cologia popular que se refetem filósofos que, apelando excluir a possibilidade de que riria a objetos não existentes para a noção de possibilidade haja uma substância não física por uma descrição científica lógica (ou, ainda, para a noque corresponda à natureza da de fato. ção mais geral de possibilidamente ou de uma suposta alma. Voltando a outro lado­ de metafísica), argumentam do espectro de posições, mais comuns são que não se pode em princípio excluir a posaqueles que defendem alguma versão de sibilidade de que haja uma substância não dualismo de propriedades. Eles entendem física que corresponda à natureza da mente que propriedades mentais não podem, em ou de uma suposta alma. princípio, ser reduzidas às propriedades fíNo lado diametralmente oposto do sicas ou cerebrais; no entanto, acreditam espectro de posições sobre a relação menteque os componentes últimos da realida-cérebro, encontra-se o eliminativismo ou de sejam todos de natureza física, diferenmaterialismo eliminativo. Uma das princitemente dos dualistas de substâncias. Entre pais teses do eliminativismo é a de que a folk os dualistas de propriedades, poderíamos psychology (psicologia popular) trabalha distinguir dois grupos majoritários de pocom categorizações falsas, terminologias sições: aqueles que acreditam em causação herdadas de um passado remoto que premental, ou seja, que é possível que propriecisam ser eliminadas para um progresso da dades mentais tenham poder causal nesse compreensão da relação cérebro-mente. Asmundo constituído de uma substância físim como a teoria do phlogiston foi superasica; e os epifenomenalistas – aqueles que da cientificamente e tornada obsoleta pelas acreditam que propriedades mentais sepesquisas empíricas em oxidação, também riam epifenômenos e, assim, desprovidas de muitas classes de supostos estados mentais qualquer papel causal (Jackson, 1982). seriam apenas ilusões. Ainda que permaneAlém das tendências teóricas já descriçam em nosso vocabulário explicativo, esses tas, existem várias formas mais ou menos entia non-gratia não possuiriam qualquer redutivas de fisicalismo ou materialismo. capacidade causal, nem sequer existiriam, Por redutivo, entende-se, aqui, a capaci­dade tal como bruxas, almas, elán vital, etc. Entre de uma teoria explicar predicados mentais as entidades mentais que essa linha de penem termos de predicados neurais ou criar samento pretende eliminar, encontram-se, Fuentes.indd 21 8/11/2013 10:44:42 22 Fuentes, Malloy-Diniz, Camargo & Cosenza (orgs.) reduções interteóricas do vocabulário exum correlato neural. A ideia de correlatos plicativo mental em termos de um vocaneurais pode ter várias versões e variações; bulário neural por via de leis de ponte, ou, entretanto, algumas dessas versões não se ainda, funcionalizar propriedades mentais comprometem com uma postura necessaem termos de sua estrutura causal física. riamente identitária, o que é uma vantaAlém dessas posições, existem teorias idengem. Trata-se, aqui, de encontrar o conjuntitárias que defendem a ideia de que proto mínimo de eventos e processos cerebrais cessos mentais seriam idênticos a processos que possa ser correlacionado a uma capaneurais. Além de outras variantes, as teocidade mental como seu substrato neural. rias identitárias podem ser classificadas em Variações dessa ideia se dispõem fundaduas­famílias de posições: a identidade de mentalmente em um eixo no qual postutipo (Lewis, 1966) e a identidade de ocorras mais localizacionistas (Zeki et al., 1991) rência (token) (Kim, 1966). No primeiro caou globalistas/conexionistas (Baars, 1988; so, cria-se uma identidade estável entre um Mesulam, 2012) são postuladas. Por locatipo mental e um tipo físico. No entanto, o lizacionismo, entende-se, aqui, o poder de argumento da múltipla realizabilidade (Foimputar a áreas bem determinadas do céredor, 1974; Putnam 1967) – a defesa da posbro capacidades distintas e específicas. Por sibilidade de que um estado mental (funcioglobalismo/conexionismo, considera-se a nal) possa ser realizado por diversos estados possibilidade de que as correlações sejam cerebrais – coloca o argumento da identiestabelecidas entre capacidades funcionais e dade de tipo em maus lenáreas em interação e reverbeA fidelidade responsável ao çóis. No caso da identi­dade ração informativa, como será projeto de uma neuropsicolode ocorrência, esse problema abordado mais adiante neste gia há de congregar o entenparece estar, pelo menos, mimesmo capítulo. Entende-se dimento dessas propriedades tigado, já que as identidades aqui que a fidelidade responsistêmicas que emergem da se dariam entre ocorrências sável ao projeto de uma neuinteração complexa entre diferentes níveis de processaindividuais de estados cereropsicologia há de congremento de informação em áreas­ brais e mentais. Muitos fungar o entendimento dessas distintas do cérebro, sem, no cionalistas acabam por adepropriedades sistêmicas que entanto, perder de vista a esrir a essa posição, visto que emergem da interação compecificidade inerente a cada visões mais algorítmicas de plexa entre diferentes níveis parte ou subsistema constifuncionalismo acreditam que de processamento de infortuinte do sistema. uma função pode ser instanmação em áreas distintas do ciada, por exemplo, tanto in silico como in cérebro, sem, no entanto, perder de vista a vivo. Assim, para tal linha de argumentação, especificidade inerente a cada parte ou subo suporte material que sustenta o algoritmo sistema constituinte do sistema. Essa dupla não faria grande diferença. Como será covinculação da neuropsicologia será discutimentado a seguir, tal postura pode até ser da nas duas seções seguintes. entendida como uma forma de dua­lismo, já que a mente pode ser vista como uma estrutura meramente formal. O MÉTODO ANATOMOCLÍNICO E O Mais promissoras são as pesquisas inSURGIMENTO DA NEUROPSICOLOGIA terdisciplinares que coadunam filosofia da Ainda que não seja possível determinar o mente e da ciência com neuropsicologia, exato surgimento de uma disciplina comneurociência e ciência cognitiva, entendenplexa como a neuropsicologia, um de seus do que qualquer capacidade mental deve ter Fuentes.indd 22 8/11/2013 10:44:43 Neuropsicologia 23 atos de fundação pode ser considerado o que o segundo estágio, após a morte do patrabalho de Pierre Paul Broca (1824-1880) ciente, envolvia a necropsia do cérebro e da na localização de um centro dedicado pamedula espinal (Goetz, 2010). Assim, o méra produção da fala no cérebro. Em meio à todo permitia vincular dados clínicos com controvérsia sobre a localização das funções informações sobre neuroanatomia, sugecerebrais – que persistia desde a Antiguidarindo uma potencial relação de causalidade, mas havia ganhado força a partir do séde entre esses dois fatores e possibilitando a culo XVII –, Broca faz uma breve comuniclassificação de doenças neurológicas a parcação, em 1861, no Boletim da Sociedade de tir de achados anatômicos. Antropologia (que na época discutia temas Desde a descoberta de Broca (1891), tão diversos quanto arqueologia, mitologia, evidências crescentes indicaram uma coranatomia e psicologia), sobre o caso de um relação entre disfunções cognitivas ou quapaciente com um comprodros clínicos específicos com Desde a descoberta de Broca, metimento específico na capadrões de lesões cerebrais. evidências crescentes indicapacidade de produção de faPor exemplo, amparado na ram uma correlação entre disla, em meio a um quadro de casuística de centenas de exfunções cognitivas ou quadros relativa preservação cogniti-combatentes da Primeiclínicos específicos com pava (Sagan, 1979). Essa publira Guerra Mundial, Kleist drões de lesões cerebrais. cação é acompanhada de ou(1934) desenvolve, na décatra, mais extensa, no Boletim da Sociedade da de 1930, um mapa de localização cereAnatômica, também em 1861. O paciente, bral relativamente preciso, sugerindo comSr. Leborgne, havia “perdido o uso da paprometimentos específicos que o dano focal lavra” e era incapaz de “pronunciar mais do ao cérebro traz. que uma sílaba, que ele repetia duas vezes O conhecimento sobre a localização seguidas” (tan tan) (Broca, 1861). Leborgne de funções cerebrais ganharia novo impulso morreu pouco tempo depois do exame clía partir dos estudos de Wilder Penfield, na nico, e sua autópsia revelou uma lesão espedécada de 1950, que, em seu trabalho com cífica no giro frontal inferior esquerdo. Brocirurgias de pacientes epilépticos utilizando ca (1861) conclui em seu relato que “[...] o procedimento Montreal, estabeleceu por tudo permite crer que, neste caso específico, meio de estimulação elétrica um detalhado a lesão do lobo frontal foi a causa da perda mapa de processamento sensorial (Jasper & da palavra [...]”. O quadro clínico específico Penfield, 1954). Na segunda metade do séde perda de produção da fala e o giro fronculo XX, evidências de estudos de lesão, motal inferior se tornaram epônimos de Broca, delos animais, medições em células únicas sendo chamados, respectivamente, de afasia e, mais recentemente, pesquisas utilizando de Broca e área de Broca. neuroimagem acumularam-se para indicar Broca (1891) utilizava em seus estudos de forma inequívoca a especialização de reo método anatomoclínico, o esteio da neugiões cerebrais em termos de processamenrologia científica no final do século XIX. Esto de informação. Tais dados, no entanto, se método consistia em um exame em dois são complementados por perspectivas coneestágios com o intuito de vincular sinais clíxionistas e por um gra­dual ­refinamento do nicos a padrões de alteração cerebral (Goetz, conceito de localização cerebral. Esses pon2010). O primeiro estágio dessa abordagem tos são discutidos nas seções seguintes deste dedicava-se a um exame clínico em profuncapítulo, a partir da biografia e das ideias de didade, acompanhando o paciente ao longo um dos precursores da neuropsicologia, Alede um extenso período de tempo, ao passo xander Romanovich Luria. Fuentes.indd 23 8/11/2013 10:44:43 24 Fuentes, Malloy-Diniz, Camargo & Cosenza (orgs.) LURIA, O CONCEITO DE SISTEMA E A INSTANCIAÇÃO DA CULTURA NO CÉREBRO Morreu aos 77 anos, vítima de problemas cardíacos. Luria foi não apenas um dos fundadores da neuropsicologia contemporânea, Alexander Romanovich Luria nasceu em mas também teve papel proeminente no 1902, na cidade russa de Kazan, em uma fadesenvolvimento da psicologia históricomília judia formada por profissionais libe-cultural. Em função dessa dupla vincularais. Seu pai era um médico especializado ção, Luria tinha uma perspectiva privilegiaem doenças gastrintestinais, e sua mãe era da sobre a relação entre biologia e cultura. dentista – algo pouco comum na época. Sua Para ele, a dissociação entre psicologia soformação é marcada por grande ecletismo, cial e individual era uma falácia teórica, e o graduando-se primeiro em ciências sociais desenvolvimento e funcionamento do cérepela Universidade de Kazan; entrou no curbro se davam a partir de complexas interaso no ano seguinte à Revolução Russa, pações entre fatores biológicos e sociais (Lura posteriormente formar-se em medicina ria, 1976). Essa posição encontra ecos em pela Universidade de Moscou. Ao longo de tendências contemporâneas da neurociênseu percurso acadêmico, filiou-se a divercia, que sugerem que, na medida em que os sas teorias. No início de sua formação, nos humanos fazem parte de uma espécie altaanos 1920, estudou psicanálise, traduzindo mente social, nosso desenvolvimento bioFreud para o russo e fundando a Associação lógico não pode ser dissociado da influênPsicanalítica de Kazan. Em 1924, conheceu cia da interação social. Isso é indicado, por Lev S. Vygotsky e Aleksei N. Leon­tiev, junexemplo, por proponentes da hipótese do to aos quais estabeleceu os fundamentos cérebro social, que sugerem que demande uma psicologia que considerasse a indas impostas pela estrutura social completeração entre fatores individuais e elemenxa da ordem dos primatas foram um dos fatos sociais/culturais. Ocorreram, em seguitores determinantes na evolução do cérebro da, na década de 1930, suas excursões à Ásia (Dunbar, 1998). Menor, em que realizou estudos sobre a inUma das ideias essenciais da aborfluência de fatores como escolaridade na dagem de Luria é a noção de que vínculos cognição e linguagem. Também são desfuncionais entre regiões cerebrais são conssa época seus estudos com gêmeos, quando truídos historicamente. Por exemplo, áreas tentou elucidar a relação entre fatores genéresponsáveis pela linguagem se tornam funticos e culturais. Durante a Segunda Guercionalmente conectadas a regiões vinculara Mundial, trabalhou em um hospital para das ao processamento visual e motor a parex-combatentes, estendendo seu conhecitir da invenção da escrita (Luria, 1976). Essa mento sobre pacientes com lesões cerebrais perspectiva é particularmente relevante na adquiridas. Na década de 1950, em virtude medida em que relativiza a de uma onda de antissemitisideia de um cérebro humano mo, afastou-se do DepartaUma das ideias essenciais da trans-histórico (cérebros da abor­dagem de Luria é a noção mento de Neurocirurgia, dede que vínculos funcionais entre idade de pedra) (Cosmides & dicando-se a estudos sobre regiões cerebrais são construíTooby, 1994), considerando crianças com déficits cognidos historicamente. que a escrita surgiu em tortivos e atrasos de desenvolno de 3.500 anos atrás (Kravimento. Ao final dessa démer, 1981) e, portanto, tem uma história cada, retornou ao trabalho com pacientes muito curta em contraste com as primeiras neurológicos, passando os últimos anos de evidências de humanos anatomicamente sua carreira refinando seu arsenal clínico. Fuentes.indd 24 8/11/2013 10:44:43 Neuropsicologia 25 modernos, com no mínimo 100 mil anos a atividade de outros em casos de dano ce(Stringer, 2012). Com base na visão de Lurebral. Assim, essa perspectiva é particularria, podemos especular como são formadas mente frutífera para pensar implicações clías conexões entre as áreas do cérebro hunicas e o aspecto qualitativo de sintomas mano a partir da estimulação e do ambienneurológicos. te providos na sociedade contemporânea. Um conceito fundamental dentro da TRAZENDO A NEUROPSICOLOGIA perspectiva luriana, que ressitua a questão da localização cerebral, é o de sistema funPARA O SÉCULO XXI cional. Luria (1976) promove uma desconstrução da ideia de função ao sugerir que, Em que pese o impacto da obra de Luria na em suas formas complexas, esta não pode formação da neuropsicologia como disciser atribuída a um único órgão ou tecido. plina, alguns de seus insights não foram pleDando o exemplo da respiração, ele afirnamente incorporados por autores que o ma que não se trata de uma função apeseguiram. De forma geral, a neuropsicolonas do pulmão, sendo executada por um gia ainda hoje subscreve a um campo consistema completo, que inclui diversos órceitual em descompasso com algumas das gãos e um aparato muscular amplo. A novias mais frutíferas para se pensar a relação de sistema sugere um alto grau de plasção entre funcionamento mental e cerebral. ticidade e compensação entre as suas partes. Por exemplo, a noção de modularidade, um Atendo-se ainda ao exemplo da respiração, dos pilares da abordagem neuropsicológica, Luria indica como os músculos intercosvem sendo relativizada diante de achados tais são recrutados para compensar casos empíricos novos. Especificamente, o auem que há atividade deficiente do diafragmento de estudos sobre conectividade esma. Modalidades complexas trutural, funcional e efetiva de cognição seriam, segundo entre regiões cerebrais (MeO aumento de estudos sobre conectividade estrutural, funele, um exemplo privilegiado sulam, 2012) sugere que, aincional e efetiva entre regiões de funcionamento sistêmida que a especialização funcerebrais (Mesulam, 2012) suco, com diferentes áreas cecional de regiões cerebrais gere que, ainda que a esperebrais trabalhando em conseja inegável, é somente da cialização funcional de regicerto para sua consecução. interação entre áreas que ões cerebrais seja inegável, Luria identifica três sistefunções complexas podem é somente da interação entre mas com base em contribuiemergir. Além disso, paradigáreas­que funções complexas podem emergir. ções funcionais específicas: mas recentes para o entendiuma unidade de sono-vigília, mento do funcionamento ceuma de processamento sensorial e armazerebral calcam-se em modelos dinâmicos, namento de informação e uma de regulaem que o processamento de informação, ção e monitoramento de atividades (Luria, mesmo em níveis básicos, é influenciado 1976). Ainda que essas unidades funcionais por processos de ordem superior (Frispossam ser situadas em diferentes substraton, 2010). Um exemplo privilegiado dessas tos neurais (respectivamente, no tronco ceperspectivas é o estudo da consciência, que rebral, nos córtices occipital, parietal e temganhou nova força a partir da adoção dos poral e no córtex pré-frontal), o conceito de conceitos de conectividade (Tononi, 2007) sistema pressupõe a ideia de que tais regiões e predição probabilística (Friston, 2010). cumprem funções amplas e que diferentes Paralelamente, as últimas décadas trou­ componentes de cada unidade compensam xeram um gradual abandono da metáfora da Fuentes.indd 25 8/11/2013 10:44:43 26 Fuentes, Malloy-Diniz, Camargo & Cosenza (orgs.) mente como um computador. Fundamental foram excluídos da neurociência cognitipara a discussão promovida neste capítulo, va, em parte por dificuldades metodolóo cognitivismo estrito sugeria que a mente gicas. O estudo da emoção em humanos é funcionaria tal como um software, que poum exemplo princeps dessa mudança. Uma deria ser instalado em diferentes suportes, explo­ração científica da emoção é complinão importando as características do hard­ cada pelo fato de que estados emocionais ware (i. e., o corpo e o cérebro) no qual funsão subjetivos e acessados de forma privicionava. Essa perspectiva, considerada ad legiada a partir de uma perspectiva de priextremum, cai em uma posição dualista, em meira pessoa. Ainda que essa limitação não que a mente é um conjunto de regras forse aplique a aspectos comportamentais da mais que pode ser instanciado independenemoção (p. ex., expressões faciais), o estudo temente de sua base orgânica (Searle, 1980). objetivo de sentimentos e estados internos Em oposição a essa perspecganhou novo impulso com Uma exploração científica da tiva, acompanha-se a incortécnicas de imagem (Ekman, emoção é complicada pelo fato poração nas neurociências de 1992). As evidências converde que estados emocionais são um paradigma biológico que gentes sobre o processamensubjetivos e acessados de forconsidera todos os processos to emocional em humanos e ma privilegiada a partir de uma cognitivos como calcados em a extensa litera­tura sobre moperspectiva de primeira pessoa. uma base material (o céredelos animais e estudos combro) e motivados em última instância por parados fizeram emergir nas últimas déquestões referentes à adaptação do organiscadas o campo das neurociências afetivas mo. De um ponto de vista clínico, a adesão (Panksepp, 2004). da neuropsicologia a esse paradigma biolóDiante desse panorama, um dos desagico enfatiza o caráter adaptativo dos sintofios atuais da neuropsicologia é acompanhar mas e respostas de pacientes neurológicos, os últimos desenvolvimentos do campo mais em vez de considerá-los meramente expresamplo das neurociências, encampando posisões de déficits. ções que possam revitalizar seus métodos e Além dessas questões de ordem teóriteorias. Ao mesmo tempo, a neuropsicologia, ca, uma neuropsicologia para o século XXI amparada na vasta riqueza de seus dados clíprecisa reinventar-se metodologicamente. nicos, pode informar produções futuras nas Estudos de lesão formaram o cerne da aborneurociências. Sendo assim, esse desafio dedagem neuropsicológica ao longo do sécuve ser encarado com otimismo. lo XX. Nas últimas décadas, os campos mais amplos da neurologia clínica e das neuro­ REFERÊNCIAS ciências cognitivas beneficiaram-se de inovações técnicas, como procedimentos de Baars, B. J. (1988). A cognitive theory of consciousness. neuroimagem de alta resolução espacial (p. New York: Cambridge University. ex., fMRI, PET, DTI). Essas técnicas possibiBroca, P. P. (1861). Perte de la parole, ramollissement litam evitar as limitações associadas com eschronique et destruction partielle du lobe antérieur tudos de lesão, como, por exemplo, o fato de gauche du cerveau. Bulletin de la Societé Anthropoque raramente o dano cerebral está limitalogique, 2, 235-238. do a áreas corticais específicas e a dificuldaChurchland, P. M. (1981). Eliminative materialism de em determinar as habilidades pré-mórand the propositional attitudes. Journal of Philosobidas de pacientes (Fotopoulou, 2013). phy, 78(2), 67-90. Além disso, essas técnicas permiChurchland, P. S. (1986). 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