Zonas de crise na geopolítica mundial Carlos Santos Pereira Cáucaso: um barril à beira da explosão ATENTADOS QUASE DIÁRIOS na Inguchétia e no Daguestão, conflito entre arménios e azeris no Nagorno-Karabakh, tensão entre russos e georgianos em torno dos enclaves separatistas da Ossétia do Sul e da Abkázia… O Cáucaso vive de novo dias conturbados e os mais pessimistas alertam para a iminência de uma explosão. A norte do Grande Cáucaso, uma combinação explosiva de regimes de mão dura, de disputas territoriais herdadas do colapso da URSS, de corrupção, pobreza e desemprego e de um militantismo islâmico em expansão ameaçam mergulhar a região no caos. A sul, as sequelas da guerra russo-georgiana do Verão de 2008 continuam a alimentar tensões. O confronto entre tropas russas e georgianas assume desde logo uma dimensão que ultrapassa largamente a questão das regiões separatistas da Ossétia e da Abkázia. Face à presença política e militar americana na Geórgia, a dureza da resposta russa assume desde logo acentos de um braço de ferro entre Washington e Moscovo. Moscovo acusa Tbilissi de apoiar os separatistas chechenos nos conflitos dos anos 1990. E o Kremlin vê no líder do regime de Tbilissi Mikheil Saakashvili um “homem de mão” dos americanos na área. O conflito russo-georgiano levou a uma interrupção do diálogo político e da cooperação militar entre a NATO e Moscovo, e em Washington os mais impacientes advogavam uma estratégia de isolamento da Rússia. Com a chegada à Casa Branca da nova Administração de Barack Obama, em Janeiro de 2009, assiste-se a um notório desanuviamento nas relações entre Moscovo e Washington. Mas as sequelas do conflito continuam a marcar as relações entre a Rússia e o Ocidente. O alcance estratégico do Cáucaso O Cáucaso foi presa de uma incessante disputa entre russos, otomanos e persas ao longo de todo o século XIX. Congelada durante a era soviética, em que o Cáucaso esteve integrado na URSS, a guerra de influências reacendeu-se nos últimos anos, envolvendo agora russos, americanos, turcos e iranianos – e conferindo novas dimensões aos conflitos da região. Os analistas falam de um remake dos conflitos de potências do século XIX. Para a Rússia a região assume uma dimensão estratégica crucial. As montanhas do Grande Cáucaso servem de fronteira sul à Rússia e constituem a única defesa natural das planícies agrícolas que se estendem para norte. A conquista do Cáucaso no século. XIX e depois a integração de toda a região na URSS resolveram este pesadelo estratégico de Moscovo. A dissolução da União Soviética e as independências da Arménia, do Azerbaijão e da Geórgia empurraram a fronteira russa para norte e reduziram o domínio de Moscovo à vertente setentrional do Cáucaso. A Rússia continua a ter uma forte presença na Arménia, onde mantém um contingente militar de mais de três mil homens e uma preciosa capacidade de manobra, quer no conflito arménio-azeri em torno do NagornoKarabakh, quer no conflito de memórias em torno do genocídio arménio de 1915-16. Turcos e arménios sentaram-se à mesa de negociações em Setembro 2009, numa tentativa de ultrapassar os dramas herdados do início do século XX e normalizar as suas relações. A questão do Nagorno-Karabakh colocaria porém Ancara perante opções dilemáticas. Pressionada pelo Azerbaijão, seu principal aliado na área, a Turquia voltaria a exigir progressos na questão do Nagorno-Karabakh como condição para a reabertura da fronteira turco-arménia, acordada em princípio em Outubro de 2009. Segundo os analistas, a “mão” de Moscovo terá pesado no colapso das negociações, que constituiu um revés para Ancara na região. O Azerbaijão está no epicentro das manobras políticas na área. Desde a proclamação das independências, Baku tem procurado jogar com a corte que lhe é feita por russos, americanos, turcos, iranianos e americanos. Os recursos energéticos azeris (petróleo e gás) representam um importante trunfo nesta disputa. O gás azeri é escoado desde 2005 pelo novo gasoduto Baku-Tbilissi-Ceyhan, uma importante aposta estratégica dos EUA, já que constitui uma alternativa às fontes de energia da Rússia e do Irão e coloca em jogo a posição dominante da Rússia na região. As companhias americanas investiram fortemente no petróleo azeri, ao mesmo tempo que Moscovo procura convencer Baku a vender à Rússia todo o gás natural do Azerbaijão a preços europeus. A guerra russo-georgiana de 2008 e o esboço de reaproximação entre turcos e arménios trouxe nova urgência à procura de uma solução para o conflito do Nagorno-Karabakh. Arménios e azeris iniciaram uma nova ronda de negociações a partir da Primavera de 2010 com base num pacote de princípios delineados pelo Grupo de Minsk da OSCE (criado em 1992), co-presidido pela Rússia e pela França. O avanço das negociações geraria, porém, fortes resistências domésticas em Baku e sobretudo em Erevan. Para o Azerbaijão é imperativo recuperar o enclave do NagornoKarabakh, mas para a Arménia uma retirada é politicamente inviável. Os conflitos do Cáucaso do Norte A COMPLEXIDADE ÉTNICA E RELIGIOSA DO CÁUCASO Uma localização estratégica na encruzilhada das ambições dos impérios, condições geográficas únicas e uma tremenda complexidade étnica, religiosa e cultural fazem do Cáucaso uma das áreas mais conturbadas da periferia europeia. Espécie de ponte de terra entre os mares Negro e Cáspio em que confluem o Irão e a Turquia, a Sul, e a Rússia, a norte, a região é vincada por duas cadeias montanhosas, o Grande Cáucaso, a norte, e o Pequeno Cáucaso, a sul. Ponto de encontro entre o Ocidente e o Oriente, fronteira entre a Europa e a Ásia, o Cáucaso foi ao longo dos séculos terreno da expansão dos impérios e palco de choques militares, políticos, militares, religiosos e culturais. Incorporada durante séculos no império persa, a região seria conquistada pelos árabes, e depois disputada por otomanos, mongóis, e de novo dominada pela Pérsia até à conquista russa, no início do século XIX. O Cáucaso regista a maior diversidade etnolinguística do planeta – georgianos, arménios, azeris, chechenos, avaros, inguches, ossetas, abkazes tcherkesses, cabardinos, balcários…Uma centena de etnias para 21 milhões de habitantes, representando diferentes famílias linguísticas (indo-europeias, uralianas e caucasianas), e uma diversidade religiosa que inclui o islão sunita e xiita, católicos, ortodoxos, e budistas. A geografia explica, em boa medida, o perfil político da região. As montanhas e vales serviram de refúgio e de trincheira às mais variadas minorias étnicas e de trincheira a identidades belicosas e irredentas. O desencontro entre as fronteiras políticas e os agrupamentos étnicos e religiosos é fonte interminável de conflitos. Apesar da repressão e dos processos de engenharia étnica e demográfica, nem os sucessivos impérios nem a “sovietização” (século XX) conseguiram unificar os povos da região. Com o colapso da União Soviética, em 1991, a Geórgia, o Azerbaijão e a Arménia tornaram-se independentes. A região do Cáucaso foi então palco de várias disputas territoriais, levando à guerra do Nagorno-Karabakh (1988-1994), o conflito osseta-inguche (1989-1991), a guerra na Abkázia (1992-1993) as duas guerras da Chechénia (1994-1996 e 1999-2009), o conflito da Ossétia do Sul, em 2008 e, mais recentemente, às insurreições de inspiração fundamentalista no Daguestão e na Inguchétia e a uma carga de instabilidade e violência por toda a vertente russa do Cáucaso. Explosões, tiroteios, raptos, torturas e execuções sumárias, atentados bombistas e ataques visando sobretudo os representantes das autoridades e das forças da ordem instalaram-se no quotidiano do Cáucaso russo. Só entre Junho e Agosto de 2009 registaramse 452 ataques (256 no ano anterior) e 436 mortos (o triplo de 2008). O número de vítimas duplicou e o número de atentados bombistas quadruplicou na região ao longo do último ano. Após alguns anos de relativa acalmia, os atentados bombistas regressaram à Chechénia. E a 29 de Agosto de 2010 os insurrectos atacaram a comitiva do presidente checheno Ramzan Kadyrov durante uma visita à sua aldeia natal. A Rússia travou duas guerras na Chechénia, que declarou a independência em 1991, na sequência do colapso da URSS. A intervenção lançada em 1994 para restabelecer a autori- JANUS dade do Kremlin terminaria dois anos depois com uma retirada humilhante. O Kremlin declarou um sucesso a segunda guerra da Chechénia (1999) e em Abril de 2009 anunciou triunfalmente o fim da “operação de contraterrorismo” na república, mas a situação está longe de estabilizada. Os militantes chechenos reagiram à pressão russa lançando ataques fora da Chechénia. O sangrento assalto à escola de Beslan, na vizinha Ossétia do Norte, em Setembro de 2004, ficaria nas memórias como símbolo trágico dessa estratégia. A guerrilha chechena mergulhou na clandestinidade e transformou-se numa força-sombra, organizada em pequenas células, protegida pelas lealdades tribais, infiltrada entre os “jovens fanáticos” de que fala a propaganda russa, mas também entre burocratas, funcionários de vida dupla ou a própria polícia. Nos últimos anos Moscovo entregou o controlo da situação ao presidente checheno Ramzan Kadyrov, ele próprio um antigo separatista. Uma política de repressão implacável dizimou os militantes e levou a uma redução significativa dos ataques. Kadyroy e a milícia que controla são porém acusados do recurso sistemático ao rapto, à tortura, ao assassinato e a violações dos direitos humanos. Alguns dos seus críticos, como a jornalista Anna Politkovskaia e a activista dos direitos humanos Natália Estemirova, foram mortos a tiro em condições nunca esclarecidas. Ao mesmo tempo, os militantes chechenos infiltraram as repúblicas vizinhas – Inguchétia e Daguestão em particular –, explorando o ressentimento causado pela repressão das forças federais e engrossando as fileiras de rebeliões nacionalistas e islâmicas. O conflito de baixa intensidade que lavrava na Inguchétia agravou-se no último ano. Uma média de três a quatro ataques por semana e centenas de mortos fizeram do território inguche uma das regiões mais perigosas do Cáucaso russo. A 22 de Junho de 2009 o presidente inguche Iunus-Bek Evkurov foi ferido, num ataque provavelmente ligado à campanha contra a corrupção lançada pelo novo presidente designado pelo Kremlin, mas reivindicado por um grupo islamista. No vizinho Daguestão a violência aumentou igualmente, à medida que se acentuava a repressão na vizinha Chechénia. Em 1999 um 2.10 2011-2012 grupo radical engrossado por combatentes chechenos tentou instaurar uma Estado islâmico na república, numa acção duramente reprimida pelo exército russo. Os atentados com viaturas armadilhadas contra responsáveis políticos, militares ou da polícia e os confrontos entre as forças de segurança e militantes multiplicam-se ao longo do último ano, colocando o Daguestão à beira da guerra civil. Entre a segunda metade de Agosto e os primeiros dias de Setembro de 2009, a violência custou a vida a 16 funcionários e polícias e a 25 rebeldes no Daguestão. A Ossétia do Norte, a mais desenvolvida das repúblicas do Norte do Cáucaso, é habitada por uma maioria cristã e manteve sempre laços de particular proximidade com a Rússia. Nem por isso tem sido poupada à violência. Um atentado suicida com uma viatura armadilhada num mercado de Vkladikavkaz, em Setembro de 2009, fez 15 mortos e dezenas de feridos. E em 1992 uma disputa territorial explodiu num conflito violento com a Inguchétia, que só terminou com a intervenção de uma força de interposição russa. A própria Rússia tem sido duramente atingida. Beslan foi apenas a mais sangrenta de uma série de carnificinas na última década. As explosões de 29 de Março de 2010 nas estações do metro de Moscovo de Lubianka e Park Kultury fizeram 35 mortos e mais de 100 feridos. Todos os sinais indicam que se trata de muçulmanos de uma república do Cáucaso do Norte, provavelmente da Chechénia. Em 2002, o assalto de um grupo de homens armados a um teatro de Moscovo deixou 170 mortos. Entre 2003 e 2004 uma série de ataques suicidas em Moscovo e arredores fez dezenas de vítimas. Dias antes do massacre de Beslan, ataques terroristas derrubaram dois aviões de passageiros russos. E em Novembro de 2009 uma bomba provocou o descarrilamento do Nevski Ekspress, o comboio que liga Moscovo a S. Petersburgo, matando cerca de 30 passageiros. por Dokku Umarov, antigo presidente da República chechena da Ichkéria. No início de Agosto de 2010 vieram a lume sinais de divisões e de uma luta do poder na liderança do movimento. As divisões, que se prenderiam com diferenças ideológicas e rivalidades entre os diversos grupos, tendências e gerações, não parecem afectar a capacidade operacional dos grupos militantes. Os independentistas radicais da região ameaçam desde há muito exportar a guerra para outros pontos da Rússia e atingir a população civil. Uma chura (espécie de conselho dos sábios) do Emirado do Cáucaso realizada na Primavera de 2009 teria tomado a decisão de exportar a jihad e a guerra de sabotagem para o interior da Rússia de modo a atingir a população civil russa e as infraestruturas dos “ocupantes” no Cáucaso. [...] a “chechenização” do conflito está a surtir efeitos indesejados e a gerar mais violência. O atentado em Dezembro de 2009 contra o expresso Nevski Ekspress, reivindicado pelo “Estado-Maior das Forças Armadas do Emirado do Cáucaso”, terá provavelmente constituído a primeira ilustração da estratégia anunciada pelos rebeldes caucasianos. O aumento da violência põe em causa as políticas e tácticas russas na área. Os jihadistas não serão mais do que algumas centenas – entre 500 e um milhar, segundo peritos de Moscovo. Mas as operações militares implacáveis e as sevícias em série cometidas pelas forças russas ou pelos seus aliados locais acabam por facilitar o recrutamento entre os jovens e engrossar as fileiras da rebelião. Nos média de Moscovo e entre os peritos da região começa-se a questionar a táctica da força como remédio para o separatismo e o militantismo islâmico no Cáucaso e a advogar uma abordagem social do problema, mas o debate político é ainda escasso. O próprio Kadyrov transformou-se num dilema que se agrava à medida que se multiplicam de novo sinais de tensão na Chechénia. Kadyrov culpa os wahhabis e outros grupos radicais pelos ataques e repete que os rebeldes são financiados e treinados por países Mudança de paradigma Desde que a Rússia conseguiu impor uma relativa pacificação na Chechénia, a rebelião nacionalista parece ter-se fundido numa campanha islamista radical, contagiando todo o Cáucaso russo, de larga maioria muçulmana. A fundação do Emirado do Cáucaso foi anunciada oficialmente a 31 de Outubro de 2007 73 ocidentais. Vozes críticas em Moscovo insistem em que a “chechenização” do conflito está a surtir efeitos indesejados e a gerar mais violência. Próximos e mesmo críticos de Kadyrov alertam porém para que uma mudança de rumo podia ter como preço uma terceira guerra na Chechénia. O conflito russo-georgiano Reconhecida apenas pela Rússia e mais três países (Nicarágua, Venezuela e ilha Nauru), a proclamação de independência da Ossétia do Sul e da Abkázia, na sequência do conflito de Agosto de 2008, deixou os dois enclaves numa situação de virtual no man’s land político e de total dependência de Moscovo. A situação política e militar dos dois enclaves parece para já congelada num estatuto ambíguo e dificilmente sustentável a prazo. O presidente Eduard Koikoty declarou em Agosto de 2009, cerca de um ano depois da proclamação da independência, que a Ossétia do Sul não excluía o cenário de fazer um dia parte da Federação Russa. Na Abkázia, a população diminuiu continuamente desde o início dos anos 1990 e será agora de pouco mais de 30 mil almas. Antigo paraíso de turistas, a Abházia vê-se remetida ao isolamento e o encerramento das tradicionais vias de comércio com a Geórgia paralisou praticamente a economia do território. Moscovo reduziu as suas tropas nos dois territórios mas 1.700 militares russos permanecem ainda nas montanhas ossetas e abkazes, em violação dos acordos de cessar-fogo de Agosto de 2008. Moscovo usou o veto no Conselho de Segurança para impedir o prolongamento da missão da ONU na Ossétia e responsáveis da missão de monitorização da EU (EUMM) acusam as autoridades russas de criar os mais diversos obstáculos à sua acção. A situação continua a alimentar tensões entre a Rússia e o Ocidente, apesar do “degelo” ao longo de 2009 e 2010. A secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton esteve em Julho de 2010 em Tbilissi e recorreu a uma linguagem particularmente dura para condenar a “invasão e ocupação” russa, embora aconselhando Tbilissi a não tentar recuperar os territórios pela força. A visita de Hilary Clinton a Tbilissi, Erevan e Baku, um mês depois de o seu colega da Defesa Robert Gates ter visitado a região mostra bem o interesse americano na região, depois de dois anos de relativo esquecimento. ■