Artigo publicado: BULHÕES, F.M. – “Críticas e elogios à razão e à ciência nos primeiros escritos de Nietzsche” In Nietzsche e as ciências, org. Miguel Angel Barranachea etc. Rio de janeiro, 7 Letras, 2011 - pg, 129-138 Críticas e elogios à razão e à ciência nos primeiros escritos de Nietzsche Resumo: Este pequeno trabalho pretende, de modo bastante sintético, contribuir para o esclarecimento do sentido que os termos ciência e razão possuem nos escritos de juventude de Nietzsche. Veremos que esses termos recebem dois tratamentos diferentes: quando estão vinculados ao socratismo e quando estão ligados aos “filósofos arcaicos”. Nietzsche reconhece e exalta a atitude racional-científica dos primeiros filósofos, no entanto, para ele, a filosofia vai mais além da ciência, já que ela, como a arte, também é movida pelo impulso ilógico da imaginação. Palavras-chave: socratismo, pré-socráticos, ciência, razão e filosofia. Razão e ciência Nos escritos do jovem Nietzsche – brilhante professor de filologia clássica da Universidade de Basiléia, conhecedor e admirador da civilização helênica e iniciante na carreira de filósofo1 –, a noção de ciência sempre (ou quase sempre) aparece vinculada à razão e longe do conceito moderno de experimentação. Aí, o impulso científico do homem é pensado como um impulso racional ao conhecimento, que não passa por procedimentos empíricos. Ciência é compreendida como um saber racional que, seguindo rígidos princípios lógicos, pretende medir, pesar, definir, explicar a realidade. O homem de ciência, com seu passo pesado e prudente, segue seu caminho guiado pelo fio lógico da razão. Ou seja, quando Nietzsche fala em ciência está se referindo ao impulso racional do homem que procura construir um saber “científico” estruturado sobre fundamentos (supostamente) firmes e sólidos. A crítica à razão socrática 1 Nietzsche inicia sua vida filosófica com uma excelente bagagem adquirida em seus estudos de filologia. Apaixonado pela civilização helênica, a partir de 1869, quando foi convidado a assumir a cátedra de filologia clássica em Basiléia, ele passou a ministrar cursos e conferências sobre poetas e pensadores gregos. Seus primeiros textos, tais como Homero e a filologia clássica (discurso proferido no dia em que, aos vinte cinco anos, tomou posse da cátedra), O drama musical grego e Sócrates e a tragédia, continham algumas ideias que reunidas viriam compor, em 1871, sua primeira grande obra filosófica: O Nascimento da Tragédia Em O nascimento da tragédia, como em outras obras, Sócrates é apresentado como símbolo da razão e da ciência, pois teria sido o primeiro a encarnar totalmente o novo tipo de homem que estava surgindo naquela época, “o homem teórico”2. Bem distinto dos seus contemporâneos, que eram movidos por uma “sabedoria instintiva”3, o novo “homem socrático” era movido pelo impulso racional. Diz Nietzsche: Sócrates foi “o primeiro que, pela mão de tal instinto da ciência, soube não só viver, porém, o que é muito mais, morrer”4. A partir dele, “aquele mecanismo dos conceitos, juízos e deduções foi considerado a atividade suprema e o admirável dom da natureza, superior a todas as outras aptidões”5. Esse novo homem socrático traz consigo uma fé inabalável, só que em sua crença não há deuses – eis aí seu caráter acentuadamente não místico6 –, o que há são argumentos logicamente encadeados que podem e devem levar ao encontro da verdade. Com Sócrates, isto é, com o “socratismo”7, surge pela primeira vez “aquela inabalável fé de que o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais profundos do ser”8. Podemos dizer que essa “sublime ilusão metafísica”9, a crença na razão e no seu poder de desvelar a verdade, é o coração do socratismo. Conforme os princípios socráticos, o verdadeiro conhecimento precisa ser edificado a partir de conceitos, juízos e deduções. Um saber que não consegue se explicar através de argumentos logicamente encadeados não é um “saber certo e seguro”, é um saber apenas instintivo, quer dizer, não é verdadeiramente um saber. Nietzsche considera que a expressão “apenas por instinto” sintetiza a nova postura socrática e mostra que o socratismo surge desqualificando os instintos em nome de uma suposta superioridade da razão: (...) a palavra mais penetrante desse culto novo e inaudito ao saber e ao entendimento, foi Sócrates quem a disse, quando constatou ser o único que confessava nada saber, enquanto, em sua perambulação crítica por Atenas, visitando os grandes estadistas, oradores, poetas e artistas, encontrava por toda parte 2 NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia (utilizaremos a sigla NT). Trad. J. Guinsburg. São Paulo, Companhia das Letras, 1992. 3 NT, § 13. 4 NT, § 15. 5 NT, § 15. 6 NT, § 13. 7 Socratismo é um conceito criado por Nietzsche que do início ao fim do seu trajeto filosófico permanece com o mesmo sentido, vinculado ao “otimismo teórico” que desqualifica todo saber e toda moral que não passa pela prova dialética. 8 9 NT, § 15. NT, § 15. a presunção do saber. Com espanto, reconheceu que todas aquelas celebridades não possuíam uma compreensão certa e segura nem sequer sobre suas profissões e seguiam-na apenas por instinto. ‘Apenas por instinto’ através dessa expressão tocamos no coração e no ponto central da tendência socrática.10 Ou seja, a partir de Sócrates, o instinto é pouco, é escasso, é insuficiente para fundamentar o conhecimento. Só há ciência onde a razão estiver no comando. Dessa forma, a sabedoria instintiva dos antigos gregos passa a não ser mais reconhecida como um autêntico saber. Surge uma nova exigência socrática: agora, o conhecimento precisa ser produzido pelo fio lógico do pensamento racional que, por meio de nexos causais, constrói um encadeamento discursivo de modo que toda conclusão a que se chega pode e deve ser demonstrada dedutivamente. Vale notar que, de acordo com Nietzsche, o saber instintivo em Sócrates nunca o fez fazer nada, ao contrário, só o fez retroagir: “A sabedoria instintiva só se mostra, nessa natureza inteiramente anormal, apenas para contrapor-se aqui e ali ao conhecer consciente, impedindo-o”11. Chamamos a atenção de que se por um lado Nietzsche lança críticas severas a Sócrates, quando o trata como o símbolo do socratismo que rompeu com os antigos “homens de instinto”12 e matou a arte trágica, por outro ele reconhece e admira a enorme força e importância do homem Sócrates, um divisor de águas da história grega, “precursor de uma cultura, arte e moral totalmente distinta”13. Nietzsche fica perplexo diante esse novo daimon que conseguiu sozinho destruir o antigo e belo mundo helênico: Eis a extraordinária perplexidade que a cada vez se apodera de nós em face de Sócrates, que nos incita sempre de novo a reconhecer o sentido e o propósito desse fenômeno, o mais problemático da Antiguidade. Quem é esse que pode ousar, sozinho, negar a essência grega, essa essência que em Homero, Píndaro e Ésquilo, em Fídias, em Péricles, em Pítia e Dioniso, como o mais profundo dos abismos e a mais alta elevação, está seguro de nossa assombrada admiração? Que força demoníaca é essa que se atreve a despejar essa poção mágica no pó? Que semideus é esse, ao qual o coro espiritual dos mais nobres da humanidade tem de clamar: ‘Ai! Ai! Tu o destruíste, o belo 10 NT, § 15. NT, § 13. 12 Cf. BM, § 191. 13 NT, § 13. 11 mundo, com teu punho poderoso; ele desmorona, ele se desfaz!’?14 De modo geral, na obra nietzschiana, sobretudo em O nascimento da tragédia, Sócrates é o homem-símbolo do socratismo que trouxe consigo um “duvidoso Iluminismo”15 que, por sua vez, acabou se espalhando por todos os lados. É importante ressaltar que o grande problema aos olhos de Nietzsche do homem socrático não é ele ser racional, é, sim, ser absurdamente racional, a força que o move é um “desenfreado impulso lógico”16. É justamente essa ausência de freio o motivo das críticas de Nietzsche à atitude socrática. A razão socrática não apenas quer o conhecimento como o quer “a qualquer custo”. Segundo Nietzsche, com o socratismo começou a “história de um erro”17, o erro de separar e opor a razão dos instintos. O elogio à razão nos pré-socráticos Nos escritos póstumos de Nietzsche, de 1872 a 1875, imediatamente posteriores à publicação de seu primeiro e polêmico livro, encontramos um novo modo de pensar a razão e a ciência. Aqui, o impulso racional-científico é um traço fundamental dos primeiros filósofos gregos, dos pré-socráticos, que são vistos como os verdadeiros mestres e autênticos filósofos. Como veremos, nesse caso, razão e ciência possuem um sentido bem diferente do que quando estão vinculados ao socratismo, já que neles o impulso ao conhecimento não é um impulso lógico desenfreado. De acordo com o jovem professor, a filosofia quando surgiu na Grécia se revelou “na sua forma mais pura e mais grandiosa”18. Aí foram formulados os “tipos principais do espírito filosófico”19 e os problemas fundamentais da filosofia. Conforme Nietzsche, nos “filósofos arcaicos”20, o pensamento e a vida eram indissociáveis. Não existia separação entre teoria e prática. Eles viviam como pensavam e pensavam como 14 NT, § 13. NT, § 13. 16 NT, § 13. 17 Cf, CI. 15 18 NIETZSCHE, Les philosophes préplatoniciens (FP). Apresentação e notas: Paolo D’Iorio; trad. Nathalie Fernand. Paris, Editions de Léclat, 1994.FP, p. 83. Desde 1969, Nietzsche pretendia ministrar um curso sobre os primeiros filósofos (incluindo Sócrates), que só se realizou em 1873. Como base para suas aulas, começou a escrever as Lições sobre os filósofos pré-platônicos e terminou em 1872. Este é um manuscrito denso que consta a referência das fontes bibliográficas e extensos comentários sobre os fragmentos dos primeiros filósofos, de Tales a Sócrates. 19 NIETZSCHE. A filosofia na época trágica dos gregos (FE). Trad. Rubens Torres Filho, in Os Pensadores, volume “Os Pré-socráticos”. São Paulo, Ed. Abril S.A, 1973, § I. 20 Este termo é frequentemente utilizado por Nietzsche no conjunto de aforismos do outono-inverno de 1872, um escrito póstumo intitulado O último filósofo, que fazia parte de um livro também póstumo, O livro do filósofo. viviam. O pensamento constituía “um apoio para a vida e não para o conhecimento erudito, apoio a partir do qual se salta para o alto”21. Nietzsche considera que o surgimento de filósofos geniais e “originais” - Tales, Anaximandro, Heráclito, Parmênides, Anaxágoras, Empédocles e Demócrito22 – expressa a exuberância e criatividade da época áurea dos gregos, a época trágica (século VI e V a. C.), quando a Grécia foi “uma civilização autêntica” 23. Por isso, se alguém quiser saber o que é a filosofia e quem é o filósofo não deve buscar respostas na Ásia ou no Egito, nem na modernidade. É preciso voltar-se para os primeiros pensadores gregos entre os quais a filosofia apareceu à altura que sempre deve ter: Os gregos souberam começar na altura própria, e ensinam mais claramente do que qualquer povo a altura em que se deve começar a filosofar. Não só na desgraça, como pensam aqueles que derivam a filosofia do descontentamento. Mas antes na felicidade, na plena maturidade viril, na alegria ardente de uma idade adulta, corajosa e vitoriosa. Que os gregos tenham filosofado nesse momento (da sua história) informa-nos tanto sobre o que é a filosofia e o que ela deve ser como sobre os próprios gregos24. Chamando a atenção para a marca originalmente revolucionária da filosofia, Nietzsche afirma que cada um dos filósofos formulou a sua “original e independente” visão de mundo: De Tales aos sofistas e a Sócrates, nós temos sete categorias independentes, quer dizer, sete vezes o aparecimento de filósofos originais e independentes: 1- Anaximandro, 2- Heráclito, 3- os Eleatas, 4- Pitágoras, 5- Anaxágoras, 6- Empédocles, 7- Atomismo (Demócrito). Eles representam sete visões de mundo radicalmente diferentes25. Nietzsche mostra que o filósofo arcaico grego surgiu questionando os antigos sábios porque pensou a realidade de modo racional, “não-mítico”. E o primeiro a pensar 21 22 FE, § I. FP, p. 83. 23 FE, § I. Nos dois prefácios de A filosofia na época trágica dos gregos, livro que acabou não sendo publicado, Nietzsche avisa ao leitor que seu interesse é mais pelas “personalidades” originais de cada um dos filósofos do que por seus sistemas cosmológicos. Por este motivo, para apresentá-los, ele não aborda todo o conjunto de suas idéias. Escolhe somente as teorias “em que ressoa com maior força a personalidade de cada filósofo”. “De cada sistema quero apenas extrair o fragmento de personalidade que contém e que pertence ao elemento irrefutável que a história deve guardar. (...) A tarefa consiste em trazer à luz o que devemos amar e venerar sempre e que não nos pode ser roubada por nenhum conhecimento posterior: o grande homem”. 24 FE, § 1. 25 FP, p. 128 o universo em sua totalidade de modo não-mítico foi Tales. O jovem pensador, filólogo alemão, vê na famosa frase de Tales – “a água é o princípio de todas as coisas” – uma ousadia sem precedentes. Nietzsche o descreve como um investigador científico da natureza, diz ele: Tales foi um “criador e mestre que começou a sondar as profundidades da natureza sem fábulas fantasiosas”26. Como astrônomo e matemático possuía um “entendimento calculador”27 capaz de ver, por todos os lados, relações de causalidade. Além de ter sido o primeiro filósofo grego, foi também considerado por seus contemporâneos como um dos Sete Sábios28. A grande diferença, ressalta Nietzsche, é a de que ele foi o primeiro sábio filósofo, por isso seu mérito é ímpar: Tales se diferencia (dos outros sábios) porque é não-mítico. Sua contemplação se completa em conceitos. (...). Tales pôs um princípio de onde ele tira suas conclusões: ele é o primeiro a sistematizar. Poderia alguém objetar que essa mesma capacidade de sistematização se encontrava já nas cosmogonias as mais antigas (...), nas representações cosmogônicas da Ilíada, depois na Teogonia (de Hesíodo), nas teogonias órficas, de Ferecídes de Siros (esse já um contemporâneo de Tales)29. Mas, nessas cosmogonias, continua Nietzsche, a capacidade intelectual de sistematização estava a serviço dos cultos. Com Tales, o pensamento torna-se livre dos mitos. Seu mérito é enorme: “Conceber pela primeira vez o universo inteiro, tão heterogêneo, como a evolução de uma única matéria original revela uma liberdade e ousadia incríveis. É um mérito que ninguém pode ter outra vez”30. A atitude crítica em relação à tradição mítica é um traço comum a todos os filósofos arcaicos. Em suas Lições, Nietzsche mostra que eles se diferenciavam da figura do antigo sábio que poderia ser de três tipos: “o príncipe patriarca rico de experiência, o aedo inspirado, e o sacerdote iniciado”31. Embora diferentes, o rei, o poeta e o sacerdote possuíam algo em comum: acreditavam nos mitos. Crença não 26 FE, § III. FE, § III. 28 Nietzsche destaca como uma das qualidades mais significativas da cultura helênica o reconhecimento do alto valor da “sabedoria”. Levando em consideração que “um povo é não só caracterizado por seus grandes homens, mas, sobretudo, pela maneira de os reconhecer e de os honrar”, o povo grego pode ser conhecido como aquele que mais valorizou a sabedoria, prova disso é a grande importância que davam aos Sete Sábios: “A consagração dos Sete Sábios é um dos grandes traços característicos dos Gregos: outros povos têm santos, os gregos têm sábios” (FP, p. 82). Estes eram tomados como modelos conforme os quais se deveria viver. É tão grande o respeito em relação a eles que o sentimento de admiração chega a ser uma espécie de adoração religiosa. Por isso, diz Nietzsche, a lista dos Sete Sábios era uma forma de “canonização dos sábios”, um acontecimento similar à canonização dos santos feito pela Igreja católica. 29 FP, p.87. 30 FP, p. 110. 31 FP, p. 102. 27 compartilhada pelo filósofo, o pensador “não-mítico”32. Em contraposição aos antigos sábios, o filósofo “não se limita a uma filosofia esporádica, por sentenças isoladas; não se limita a uma grande descoberta científica. Mas ele quer a totalidade, ele cria uma imagem do mundo”33. O filósofo vai além do pensamento mítico ao criar um discurso conceitual para comunicar a sua visão do mundo. Segundo Nietzsche, a definição grega de filosofia é: “a arte de representar em conceitos a imagem de tudo o que existe. Tales foi o primeiro a satisfazer essa definição”34. Para ele, a filosofia surgiu quando houve “o domínio do instinto religioso de unidade pelo conceito”35. Devido ao seu “espírito científico”, o filósofo se afastou da linguagem fabulosa dos mitos e inventou a linguagem lógica e abstrata da filosofia. Nesse sentido, Nietzsche identifica o discurso filosófico ao discurso científico: “não há filosofia separada da ciência: naquela como nesta, pensa-se da mesma maneira”36. Isto é, pensa-se de modo racional, através de causas e efeitos, de premissas e deduções. Nesses escritos que tratam dos primeiros filósofos, o poder da razão de criar conceitos e combinações lógicas é valorizado já que é este poder de abstração que permite ir além do particular e compreender a natureza (physis) como totalidade, compreender “o mundo em seu conjunto”37. Só a razão é capaz de parar a “roda do tempo”38 e é esta paralisação o que possibilita a construção do discurso filosófico: “O filósofo: agarra-se a ele (ao conceito) para fixar o seu encantamento, para o petrificar”39. Encontramos aqui algo incomum, o elogio de Nietzsche ao aspecto racional-científico 32 33 34 FP, p. 87 FP, p. 88. FP, p. 88 Paolo D’iorio - tradutor de Os Filósofos pré-platônicos para o francês –, destaca a importância do “espírito científico” dos filósofos arcaicos e cita um aforismo de Nietzsche que diz: “O filósofo e o espírito científico escolhem como problema e acham interessante precisamente o habitual e cotidiano, o irregular e o excepcional ocupam aqueles que tem a imaginação de espíritos não científicos”, FP, p. 279. O cotidiano tornou-se problemático para o filósofo quando ele se libertou dos mitos, quando “o intelecto tornou-se livre e pôs seu olhar sobre as coisas, (aí) pela primeira vez, o cotidiano lhe apareceu digno de interesse, problemático”. Nesse ponto, a ciência e a filosofia estão próximas da arte: “A ciência tem em comum com a arte que as coisas as mais cotidianas lhes aparecem novas e atraentes: a vida é digna de ser vivida, diz a arte; o mundo é digno de ser conhecido, diz a ciência”, FP, Notas, p. 279. 36 NIETZSCHE, F. “O último filósofo. Considerações sobre o conflito entre arte e conhecimento” (UF). Trad. Rubens Eduardo Ferreira Frias. In O livro do filósofo (LF). São Paulo, Centauro, 2001, § 61, p. 20. 37 Schopenhauer também define a filosofia como um saber sobre a totalidade do real: “A filosofia é uma soma de juízos bastante universais, cujo fundamento de conhecimento é imediatamente o mundo no seu conjunto, sem nada excluir”, SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. Tradução, apresentação, notas e índices de Jair Barbosa. São Paulo, Editora UNESP, 2005, § 16, p. 137. 38 Em um escrito póstumo de 1872, cujo título é Sobre o pathos da verdade, Nietzsche diz: “Pois a maneira de consideração filosófica consiste no desprezo pelo presente e pelo instantâneo. Ele (o filósofo) tem a verdade; é possível que a roda do tempo role para onde quiser, ela nunca poderá escapar da verdade”. Trad. Pedro Süssekind. In Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Rio de Janeiro, 7 Letras, 1996, p. 28. 39 FE, § III, p. 31. 35 do pensamento filosófico: “A filosofia grega arcaica, contra o mito e pela ciência”40, a filosofia vai “do mito às leis da natureza, da religião à ciência”41. Conforme a interpretação nietzschiana, todo vigor e exuberância da filosofia présocrática é inseparável da razão e da ciência. Todo filósofo pré-socrático é um investigador da physis movido, uns mais, outros menos, pelo impulso racionalcientífico. Só que, neste caso, diferente do que acontece no socratismo, o impulso racional que quer o conhecimento não é excessivo, desmesurado. Segundo Nietzsche, os primeiros filósofos gregos devem ser entendidos como aqueles que dominaram “o instinto de conhecimento”42, por isso é preciso reaprender com eles o modo “supremo” de praticar a filosofia: “A dignidade suprema do filósofo mostra-se quando ele circunscreve o instinto de conhecimento sem limites, forçando-o a unificar-se”43. A filosofia, mais além da ciência Como já foi visto, o pensamento racional-científico - que mede, calcula, define e classifica - está presente como um traço inerente ao filósofo. Mas esse traço não é o único fundamental. Segundo Nietzsche, a filosofia voa muito mais alto do que a ciência. O pensamento filosófico vai além do “entendimento calculador” próprio do cientista, pois salta sobre as coisas visíveis em busca do invisível, em busca da totalidade e da unidade. Nietzsche valoriza a expressão “Tudo é Um”44 como sendo o que marca a distinção entre a filosofia e as demais ciências. Enquanto o cientista lida com as coisas na sua multiplicidade, o filósofo vê, sente e se surpreende com o universo em sua totalidade. Nietzsche explica: a teoria de Tales, de que tudo veio da água, não é uma 40 O filósofo como médico da civilização (Póstumo de primavera de 1873), In LF, § 169, p. 57. FP, p. 278. 42 UF, In LF, § 32, p. 6 43 UF, In LF, § 30, p. 5. 41 44 FE, § III. teoria científica, é filosófica porque diz respeito a todas as coisas e não a algo em particular. Nos fala Nietzsche: “Se (Tales) tivesse dito: ‘Da água provém a terra’, teríamos apenas uma hipótese científica, falsa, mas dificilmente refutável. Mas ele foi além do científico. As parcas e desordenadas observações da natureza empírica que Tales havia feito sobre a presença e as transformações da água ou, mais exatamente, do úmido, seriam o que menos permitiria ou mesmo aconselharia tão monstruosa generalização (...)”45. Quer dizer, Tales, ao vislumbrar a água como o princípio eterno e divino de todas as coisas, foi o primeiro a dar o grande salto para a totalidade. Embora cientista, seu olhar ultrapassou o empírico, individual e transitório em busca do uno e eterno. Sua teoria é uma “monstruosa generalização” porque não é resultado de uma dedução lógica e menos ainda de uma observação empírica. É fruto, sim, diz Nietzsche, de “um postulado metafísico, uma crença que tem sua origem em uma intuição mística e que encontramos em todos os filósofos”46. Sem entrarmos agora nessa questão ligada à intuição47 e ao misticismo, ressaltamos apenas que, aqui, o termo “metafísica” assim como “intuição mística” não são negativos, ao contrário, estão vinculados ao sentimento de unidade com todas as coisas que, por sua vez, está por trás da expressão “Tudo é um”. Portanto, o salto monstruoso, metafísico, misterioso e ilógico dado pelo filósofo o diferencia do cientista. O pensamento filosófico constrói teorias sofisticadas semelhantes às construções científicas, porém, diferentes destas, as teias filosóficas surgem de uma experiência singular com o “insólito, assombroso, difícil, divino e inútil”. 45 46 47 FE, § III. FE, § III. Aprofundo essas questões ligadas à intuição e ao aspecto místico do filósofo (pré-socrático) na minha Tese de Doutorado: BULHÕES, F.M. Arte, razão e mistério: Nietzsche e o filósofo arcaico. Rio de Janeiro, IFCS/UFRJ, 2006. Aristóteles diz com razão: “Aquilo que Tales e Anaxágoras sabem será chamado de insólito, assombroso, difícil, divino, mas inútil, porque eles não se preocupavam minimamente com os bens terrenos”. Ao escolher e discriminar assim o insólito, assombroso, difícil e divino, a filosofia marca o limite que a separa da ciência, do mesmo modo que, ao preferir o inútil, marca o limite que a separa da prudência48. Nietzsche atribui à filosofia uma difícil missão: “A filosofia deve manter firme a corrente espiritual através dos séculos: pela eterna fertilidade de tudo o que é grande. Para a ciência não existe grande nem pequeno – mas para a filosofia, sim!”49. A filosofia quando diz “isto é grande”, ela “eleva o homem acima da avidez cega, desenfreada, de seu impulso ao conhecimento. Pelo conceito de grandeza, ela refreia esse impulso”50. Volta aqui a importante questão dos limites do impulso ao conhecimento: a ciência (como o socratismo), não tem limite, a filosofia (pré-socrática) tem, por isso ela deve ensinar à ciência a não se precipitar com avidez sobre as coisas. A ciência, sem essa seleção, sem esse refinamento de gosto, precipitase sobre tudo que é possível saber, na cega avidez de querer conhecer a todo preço; enquanto o pensar filosófico está sempre no rastro das coisas dignas de serem sabidas, dos conhecimentos importantes e grandes51. Concluindo: Nos escritos de juventude Nietzsche, razão e ciência quando aparecem ligadas ao socratismo, como em O nascimento da tragédia, são mal vistas porque, nesse caso, trata-se de um impulso racional-científico desmesurado, tirano, que deprecia todos os outros impulsos. Sócrates, o homem-símbolo do socratismo, é combatido por Nietzsche porque representa o início da crença metafísica na razão. O que é criticado não é a razão em si, mas é a razão metafísica, socrática, que, estabelecendo uma ruptura com os instintos, se coloca numa dimensão superior e separada dos outros impulsos, sentimentos e sensações. É como se houvesse um abismo. O que Nietzsche quer é mostrar que não existe abismo algum. Não há uma separação radical entre filosofia, ciência, razão e arte. Não há ciência sem razão assim como não há filosofia sem ciência 48 FE, § III. FE, § III. 50 FE, § III. 51 FE, § III. 49 e sem arte. Aliás, a filosofia é uma espécie de irmã da tragédia, já que nasceram no mesmo período. E, por incrível que pareça, a razão e a ciência também são filhas da época trágica dos gregos. Quando os termos razão e ciência aparecem vinculados à filosofia arcaica não são alvos de críticas, já que, aqui, o espírito racional-científico é considerado uma força altamente criativa e inovadora, que possibilitou os primeiros filósofos gregos questionarem toda a tradição mítica e criarem novas e originais visões de mundo. Sem a racionalidade científica que mede, calcula, classifica e conceitua, não teria nascido o pensamento filosófico. Estaríamos ainda na lógica do pensamento mítico. Ou seja, uma certa dose do espírito racional-científico está presente na filosofia desde seu nascimento. O segredo está na dosagem. Enfim, de acordo com o jovem Nietzsche, não há problema nenhum com a razão nem com a ciência desde que não estejam exacerbadas. Não há problema nenhum em querer conhecer a realidade, em nomear as coisas, criar categorias, definir conceitos, aliás, é isso o que faz o filósofo. Não há problema em ser metafísico. O que é problemático é ser excessivamente metafísico, pois esse excesso de impulso ao conhecimento é o que torna a razão uma força tirana, que inibe e desqualifica os outros impulsos. A tendência metafísica quando excessiva no homem faz deste um ser arrogante e vaidoso que acredita ser capaz de acabar com os mistérios da existência. Ora, o que há de bom, de positivo, na metafísica é ser ela uma força que nos leva em direção ao “insólito, assombroso, difícil, divino e inútil”. Quando essa força está desenfreada, ela cai no erro de querer transformar o insólito em sólido. Por isso, nos fala Nietzsche com toda convicção: fim à tirania da razão, abaixo as falsas oposições. O que realmente importa é afirmar os diferentes impulsos que fortalecem e enriquecem a vida, pois a razão, a ciência e a filosofia devem estar a serviço da vida: “O valor da filosofia (...) não corresponde à esfera do conhecimento, mas à esfera da vida, a vontade de existência usa a filosofia tendo por fim uma forma superior de existência”52. 52 UF, In O livro do filósofo. São Paulo, Centauro, 2001, § 48, p. 14.