290 O Niilismo da vontade de poder: maquinação e desertificação da terra Luís Thiago Freire Dantas* RESUMO A interpretação de Heidegger acerca dos pensadores apresenta uma ruptura com o modo recorrente de compreender um específico pensador. Isto se deve em grande parte, porque Heidegger parte da distinção entre a história (Gesichte) e o historiológico (Histörie). Com isso, o presente texto procura pensar como a compreensão de Heidegger sobre a vontade de poder em Nietzsche corresponde a um momento essencial na história do ocidente porque constata o niilismo enquanto propulsor da crise do fundamento, já que averigua que os valores normativos estão em decadência. Contudo, procurando afastar de qualquer tipo de interpretação historiológica, pois, a partir dessa interpretação que Heidegger torna-se a mostra que o niilismo se configura como fenômeno interno da lógica do Ocidente por sempre procurar a fundamentação do ente no seu ser. Assim, ao conceito vontade de poder nietzschiano Heidegger o relaciona como pertencente ao âmbito metafísico sendo incapaz de pensar a essência do niilismo, e sim o intensifica, já que, na procura da conservação-elevação do próprio poder através dos entes, modifica-se a concepção de verdade, não mais a certeza do representar, mas o asseguramento factível do ente pelo cálculo incondicionado da vontade que Heidegger denomina como Maquinação. Esse termo tem correspondência direta com a concepção heideggeriana da vontade de poder de Nietzsche, já que na sua predominância a “era da ausência de sentido” é promovida, ou seja, o âmbito projetivo é fechado ao homem e como conseqüência ocorre a desertificação da terra, que corresponde ao soterramento do ente para com todas as possibilidades frente ao ser. Porque, de acordo com Heidegger, a essência do niilismo corresponde ao abandono do ser diante do ente. PALAVRAS-CHAVE: niilismo, vontade de poder, Heidegger, Nietzsche, maquinação. * Pós-graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bolsista REUNI. E-mail: [email protected].. Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 291 O Ocidente na reflexão empreendida por Heidegger se estabelece num dos modos concernente à distinção entre a História (Gesichte) e a historiologia (Histörie). O primeiro termo indica os acontecimentos que determinam uma época, enquanto o segundo são os fatos passados colhidos à mercê do conhecimento presente. Essa distinção se torna crucial porque, como Heidegger (1996, p.11) escreve na preleção sobre Heráclito, “uma coisa é produzir historiologicamente uma imagem do passado para o respectivo presente, outra é pensar historicamente, isto é, experimentar o que foi essencialmente (das Gewesen) como o porvir (das Künftige) que já está essencializando. Todos os renascimentos historiológicos do passado não passam de más fachadas para equívocos históricos”. Todavia, Heidegger adverte que a nossa época é dominada pela historiologia, impedindo o acontecimento da essência da História, pois impele ao caráter não epocal do pensamento acerca do ser. Contudo, na medida em que há uma tentativa no pensamento heideggeriano para superar este estatuto historiológico, o qual não se aplica apenas numa substituição, mas que a História deve ser tomada pelo pensamento no caráter da historicidade que se perfaz ao modo daquilo que acontece na nossa época. Contudo, Heidegger explica que perduramos num tempo em que o ser mesmo já não é mais lembrado, a metafísica caminha para seu acabamento e o ente se constitui cada vez mais no abandono para com o ser. Com isso, Heidegger procura propiciar ao pensamento a experiência para com o ser através da análise dos pensadores, que na compreensão do filósofo foram cruciais para formação do Ocidente, por exemplo, Heráclito, Parmênides, Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, Nietzsche. Mas, é notório a “violenta” interpretação que Heidegger realiza acerca dos pensadores “essenciais” do ocidente, já que procura se afastar do modo habitual e frequente de um pensador ser interpretado para trazer à tona o que ainda não foi dito, por exemplo, Nietzsche é pensado como o último pensador metafísico “uma vez que retorna o início do pensamento grego, assumindo esse início a sua maneira e assim fecha o anel formando o curso do questionamento sobre o ente como tal na totalidade” (HEIDEGGER, 2007b, p. 362). Sendo que a compreensão de Heidegger acerca da filosofia nietzschiana perpassa invariavelmente pela confrontação que Nietzsche realiza acerca do niilismo, já que o estabelece como crise dos valores no pensamento ocidental. Ainda mais, para Heidegger, o ocidente é Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 292 determinado pelo pensar metafísico por procurar instituir o ente no seu ser, ou seja, provoca o esquecimento da diferença que há entre o ser e qualquer ente. Dessa forma, a interpretação heideggeriana do acabamento da metafísica parte do que vem a ser as doutrinas nietzschianas: vontade de poder e eterno retorno, onde, como Heidegger escreve, o ser se torna uma mera palavra vazia e sem qualquer referência aos entes. Por isso, a partir do modo como Heidegger concebe a relação da vontade de poder para com o eterno retorno como variantes explícitos de que o niilismo não é um fenômeno concernente apenas a nossa contemporaneidade, e sim se instaura na lógica do ocidente, tomaremos de início explicitar como esses conceitos nietzschianos comparecem na interpretação realizada por Heidegger, contudo não para apresentar o pensamento de Nietzsche em sua profundidade, mas como essa interpretação intensifica a compreensão heideggeriana do fenômeno do niilismo. II Heidegger explica que devemos tomar o título “vontade de poder” não de maneira óbvia, sem maiores explicações, e sim pensá-lo como uma posição metafísica, não somente em uma de suas fases, mas no interior da essência da metafísica. A partir daí, alcançaremos o sentido primordial do pensamento nietzschiano sobre o problema do “ser”, o ente na totalidade, diante do que Heidegger denomina como a metafísica da vontade de poder. Com isso, ao identificarmos que a vontade de poder exerce uma conformação de domínio situado no próprio querer, pois o próprio Nietzsche escreve no Assim falou Zaratustra (1999, p.147-148) que “onde encontrei o vivente, aí encontrei vontade de poder; e mesmo na vontade de servo encontrei a vontade de ser senhor”, comparece justamente esse querer-ser-senhor consistindo numa rede de comando que se dispõe claramente nas possibilidades da atuação ativa. Pois, não ocorre uma supressão do servo, já que este ainda está inserido no próprio querer, mas ele vem a ser o comandante no momento em que segue essa disposição ao fim de obedecer a si mesmo através do caráter de comando. Tanto mais porque, como explica Heidegger, o comandar condiz a uma auto-superação e não somente um ditar ordens a outros; o que indica a dificuldade maior do comandar do que Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 293 o obedecer; assim, quando o comandante se torna incapaz de obedecer a si mesmo, sua própria vontade de poder, nesse momento ele já precisa de alguém para comandá-lo. Essa dificuldade ao que comanda é mais visível pelo fato da vontade sempre aspirar a mais, não porque esteja ausente, faltando algo que a subsiste, ao contrário, ela aspira mais poder porque ela já o tem. Por isso, no título “vontade de poder” torna cada vez mais visível que a vontade quer a si mesma, enquanto comando, na requisição daquilo querido por ela. Assim Heidegger explica que vontade e poder não tem uma coligação somente na junção vontade de poder, mas esse título constitui a essência do poder, assinalando a incondicionalidade da vontade que quer a si mesma enquanto mera vontade. De tal modo, a vontade de poder não pode ser contraposta a, por exemplo, uma “vontade de nada”, pois o próprio Nietzsche já advertiu que a vontade prefere querer o nada a nada querer e Heidegger (2003, p. 497) ainda acrescenta, “O ‘nada querer’ não significa de modo algum querer como meta a ausência de tudo o que é real. Ao contrário, ele visa sim justamente querer o que é real, mas este sempre e em toda a parte como um nada, e a partir deste querer, a nadificação”. A partir desse prevalecimento da vontade de poder perante todo o real, Heidegger acentua para o fato de que a sua essência é o traço fundamental de tudo o que é real no pensamento de Nietzsche. E na tentativa de ultrapassar o respectivo estágio através da dominação de si mesmo, esse estágio já tem de estar assegurado e fixado, pois é no asseguramento do respectivo estágio de poder que se assegura a condição necessária para elevar poder dentro de um instaurar que visa primordialmente à condição do querer-paraalém-de-si-mesma. Entretanto, se a vontade almeja sempre o dominar de si mesma não permanecendo imóvel a nenhum estágio, então ela retorna a si enquanto a mesma e como se dirige ao ente na totalidade, a sua essência se configura através da “vontade de poder” e a sua existência se refere ao “eterno retorno do mesmo”. Assim, se apresenta nessa condição o que para Heidegger são as duas expressões fundamentais da metafísica nietzschiana: vontade de poder e eterno retorno. Além do que, a interpretação acerca do eterno retorno parte da disposição que pensa o ente na totalidade de tal modo que os termos desse modo de apreender o ente como aquilo Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 294 que é, configura num elemento fundamental do acabamento da metafísica que Heidegger (2007d, p. 4) explica do seguinte modo: O ‘retorno’ pensa a transformação do que vem a ser em algo permanente para o asseguramento do devir do que vem a ser na duração de seu devir. O ‘eterno’ pensa a transformação dessa constância em algo permanente no sentido da circulação que volta a si e segue em direção a si. No entanto, o devir não é o progressivamente outro do múltiplo que se altera infinitamente. O que vem a ser é o próprio mesmo, isto é, o um e o mesmo (o idêntico) na respectiva diversidade do outro. Inclusive porque, na interpretação de Heidegger, o eterno retorno do mesmo é o modo de o inconstante se tornar presente enquanto tal, com o intuito de que nesse presentarse proporcione a mais elevada dotação de constância visando unicamente determinar a incessante possibilidade do potencializar-se. A partir daí percebemos mais claramente porque a “vontade de poder” designa aquilo que o ente é na sua constituição e o “eterno retorno do mesmo” indica o modo como o ente, dotado dessa constituição, é. Porém, Heidegger (2007a, p. 218) ainda esclarece que, “Porquanto o eterno retorno do mesmo distingue o ente na totalidade, ele é um caráter fundamental do ser que se mostra como co-pertinente com a vontade de poder; e isso apesar de o ‘eterno retorno’ denominar um ‘devir’”. Todavia, com o início da metafísica ocidental compreendendo o ser no sentido da constância do presentar-se, quer dizer, no se fazer presente, já no seu acabamento comparece como o mesmo que retorna àquilo que sempre uma vez mais precisa trazer dotação de constância, ou seja, o eterno retorno se torna a maior dotação de constância àquilo desprovido de consistência. Isso significa, de acordo com Heidegger, que para Nietzsche o conceito de ser permanece ainda preso as noções metafísicas como o consistente, firme, solidificado e rígido contraposto ao devir, enquanto que o ser nesse estágio da metafísica pertence ao cerne da vontade de poder, que assegura sua consistência a partir de um dotar de constância, que procura unicamente ultrapassar-se, ou seja, vir a ser. Por isso, Nietzsche em uma das suas anotações afirma que a mais alta vontade de poder é justamente imputar sobre o devir o caráter de ser e isso está totalmente em correspondência com os traços fundamentais da filosofia nietzschiana, já que “Ser e devir só se inserem aparentemente em uma contradição Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 295 porque o caráter de devir da vontade de poder é, em sua essência mais íntima, eterno retorno do mesmo, e, com isso, a constante dotação de consistência ao que é desprovido de consistência” (HEIDEGGER, 2007d, p. 218). III Entretanto, se no acabamento da metafísica há um superar daquela distinção entre o mundo “verdadeiro” e o mundo “aparente” a partir de uma inversão, a qual procura transformar o mais baixo, o sensível, como ponto mais alto da hierarquia, contudo após a supressão do mundo supra-sensível qualquer dicotomia que venha ter o caráter de avaliar a partir de um ideal perde totalmente o sentido, porque apenas o “mundo do devir” é que se torna a fonte de todo o valor. Porém, Heidegger atenta que apesar deste afastamento em relação ao pensamento da tradição, a diferença pertencente ao “o que é” e “o fato de ser” ainda continua impensada, sendo que nessa relação “o fato de ser” não concorda ao “o que é” em momentos que lhe convém, e sim que sempre está junto por acontecer igualmente no pensar valorativo. Desse modo, a partir da coesão do “fato de ser” com o “o que é”, Heidegger denota que a vontade de poder e o eterno retorno não precisam mais se compertencer como algo que venha a determinar o ser, e sim necessitam agora que venham dizer o mesmo, o qual, em termos metafísicos, o eterno retorno deve remontar ao fim da história, na medida em que não há metas ou fins, e a vontade de poder concerne ao modo do caráter fundamental da entidade do ente no âmbito da consumação da modernidade. Além do que, a consumação da modernidade se encaminha, de acordo com Heidegger, na história da metafísica que para Nietzsche condiz à questão dos valores, acarretando numa tentativa de transvaloração dos valores. Por isso, pensar essa história a partir de Nietzsche concerne a compreender que o pensamento valorativo pressupõe, mesmo que tacitamente, toda a metafísica até aqui. Do mesmo modo, toda a metafísica que precede o modo de pensar o “ser” como vontade de poder também pertence a essa vontade que impõe, cria valores, regulando o pensamento valorativo. Porém, se ao lermos a filosofia de Nietzsche e tratarmos essa compreensão da história de maneira branda, como se estivesse ao meio de tantas outras, Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 296 apenas acumulamos conhecimento e então adentraremos num estudo historiológico do pensador, fato proeminente entre os séculos XIX e XX, onde Heidegger (2007b, p.81) observa que, a historiologia erudita representou a história da filosofia, ora no campo de visão da filosofia kantiana ou da filosofia hegeliana, ora no campo de visão da Idade Média, e certamente, com maior freqüência ainda, em um campo de visão que, por meio de uma mistura das doutrinas filosóficas mais diversas, dá a impressão ilusória de uma amplitude e de uma validade universal, por meio das quais desaparecem todos os mistérios da história do pensamento. Desse modo, não é porque, na interpretação heideggeriana, Nietzsche interpreta a história da metafísica a partir da vontade de poder, que devemos analisar de forma historiológica como se o filósofo colocasse “visões” próprias nas doutrinas dos pensadores anteriores. Mas sim que, a essência da história é tomada agora pela vontade de poder, pois se abriu um novo horizonte interpretativo pelo qual a “metafísica da vontade de poder” institui um mundo que se posiciona como um transvalorar de toda a metafísica, e somente a partir desse acontecimento histórico é que se abre a possibilidade do estudo historiológico e não o contrário. Já que, como Heidegger ressalta, a tentativa de imputar a interpretação nietzschiana da história, a partir da vontade de poder como transfiguração da imagem da história, mesmo sendo estranho indicar aos pensadores anteriores tal modo de interpretar o ente na totalidade, requer um pensamento meditativo, por que mesmo se precisarmos admitir que a interpretação nietzschiana da história não coincida com aquilo que a metafísica mais antiga ensina, essa admissão carece antes de qualquer coisa de uma fundamentação que vai além da comprovação meramente historiológica da diferença entre a metafísica de Nietzsche e a metafísica mais antiga (HEIDEGGER, 2007b, p.84). Por isso, na procura de comprovarmos a estranheza que o pensamento valorativo possui à metafísica da tradição, nos depararemos com o fato de que sua origem é mais profunda e não será um estudo historiológico que revelará com propriedade o horizonte aberto pela filosofia nietzschiana, e sim como Heidegger afirma, precisamos olhar o pensamento de Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 297 outrora a partir do campo de visão do nosso pensamento. A partir dessas considerações de Heidegger acerca do modo como Nietzsche compreende a história da metafísica, explicita-se a própria maneira pela qual Heidegger interpreta os pensadores, ou seja, procura-se distanciar de qualquer tipo de historiologia, pois não pretende realizar uma hierarquia comparativa entre as doutrinas de modo a satisfazer o pensamento atual. Mas procura atentar a maneira pela qual essas doutrinas acontecem no mundo e esses acontecimentos se apropriam dos entes, permitindo a configuração de uma época. Desse modo, Heidegger escreve que nosso tempo é o da indigência, a qual pode ser sintetizada na sentença nietzschiana: “Deus está morto”. Visto que, apresenta um fenômeno não pertencente apenas a nossa época, e sim que se situa no interior da articulação investigativa do ocidente: o Niilismo. Esta constatação de acordo com Heidegger (2009, p.85) nos leva a retomar o pensamento acerca da história, porque, “se o niilismo europeu não é apenas um movimento histórico, se ele é o movimento fundamental da nossa história, então a interpretação do niilismo e a tomada de posição em relação a ele dependem do modo como e do lugar a partir do qual a historicidade do ser-aí humano é determinada”. Contudo, devemos lembrar que para Heidegger a filosofia de Nietzsche não é a superação do niilismo, mas sua adoção mais extrema, com isso, Heidegger compreende que Nietzsche permanece no interior das reflexões acerca do ser ou do ente, ou da verdade no modo da fixação da vontade de poder para uma conservação, porque sendo a verdade uma condição da conservação de poder, ela se torna um valor distanciando das outras interpretações como o desvelamento do ente, adequação de um conhecimento com um objeto e até da certeza asseguradora do representado. Entretanto, porque procura fixar de maneira diversa aquilo que é para além do movimento e deveniente, a “mais elevada vontade de poder”, enquanto dotação de consistência ao devir, ela seria uma falsificação, ou seja, no pensamento nietzschiano a verdade torna-se um erro. Um determinando “tipo de erro”, pois detém o caráter de que apenas é demarcada como tal desde que seja pensada a essência da verdade concomitante com a essência do ser: a vontade de poder. Isso porque o eterno retorno do mesmo diz como o ente é na totalidade, isto é, não possui nenhum valor ou meta além dos entes, configurando no que Heidegger (2007 d, p.15) indica como a era da “ausência de sentido Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 298 consumada”, a qual “insiste em sua própria essência de maneira mais ruidosa e violenta possível. Ela busca se salvar de maneira irrefletida em seu ‘além-mundo’ mais próprio e assumir a derradeira confirmação do predomínio da metafísica na figura do abandono do ser em relação ao ente”. IV Sendo que essa ausência de sentido consumada está em correspondência ao que Heidegger interpreta como a consumação de todas as possibilidades metafísicas, provocando um cerceamento no âmbito projetivo do homem ao ser. Além do que, a consideração sobre a verdade do ente é despojada de qualquer tentativa de pensar a essência da verdade. Pois, como salienta Heidegger, a mudança da adaequatio para certeza e deste para o asseguramento do ente em sua factibilidade passível de ser constituída, instaura o predomínio da entidade como maleabilidade. “A entidade como maleabilidade permanece sob o predomínio do ser que se entregou à constituição de si mesmo pelo cálculo e à factibilidade do ente que lhe é próprio por meio do planejamento e do arranjo incondicionado” (HEIDEGGER, 2007d, p.13). Sendo que através desse domínio do planejamento e arranjo incondicionado é que se perfaz o ímpeto da maquinação. Este termo significa a factibilidade do ente, numa procura que tudo seja feito de tal forma que aumente o seu grau de eficiência, para que assim, as crises sejam suplantadas no próprio interior da maquinação. Pois, a maquinação atua impedindo qualquer “fundamentação” de projetos que estão além do seu poder, fornecendo à ausência de sentido “metas” maquinacionais, que procuram erigir novos valores para a “vida”. Já que esta vida agora repercute em si a mobilização total enquanto a organização da ausência incondicionada de sentido a partir da vontade de poder e para a mesma. Desse modo, Heidegger escreve que o objeto não é mais representado em sua objetidade (Gegenstand), mas que se dispõe como dispositivo (Bestand) aplicado ao modo de empresa estabelecendo as “visões de mundo” que buscam somente a ampliação do poder, porque como Heidegger atenta: Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 299 Essas visões de mundo impelem toda a calculabilidade do representar e produzir ao extremo porque emergem, segundo a sua essência, de uma autoinstauração colocada sobre si mesmo, do homem no ente e no domínio incondicionado do homem sobre todos os meios de poder sobre a face da Terra e sobre a própria Terra (HEIDEGGER, 199, p. 18). Com isso, a maquinação provoca de forma velada, porém atuante, o que Heidegger denomina como desertificação da terra. Desertificação aqui diverge de destruição, a qual, de acordo com Heidegger, procura apenas eliminar aquilo que até então cresceu e foi construído, enquanto que a desertificação é o constante impedimento do começo, ou seja, apenas algo pode vir a acontecer se estiver presente no cerne do controle e do funcionamento aos entes. Tanto que no interior da maquinação as crises são suplantadas, a partir de um desenraizamento total de tudo sempre na medida de um empenho de “política cultural” que procura instaurar vivências quais seriam a finalidade da desertificação. Por isso, Heidegger (1999, p.18) indica que, A desertificação da Terra pode caminhar junto tanto com a obtenção de um elevado padrão de vida para o homem como a organização de um estado uniforme de felicidade de todos os homens. A desertificação pode ser o mesmo com ambos e, do modo mais sinistro, transitar por toda parte, precisamente porque ela se oculta. Porque se a desertificação impede todo o começo através do erigir das “vivências” nas quais o ente é elevado ao maior grau da hierarquia deixando-o solto à maquinação, então esse ocultamento provoca a própria ausência da história, visto que os entes não requisitam nada mais do que uma vontade imersa num querer proveniente de uma finalidade que reside simplesmente no nada anulador, desconhecendo o saber de sua própria e completa nulidade. Desse modo, a desertificação da terra começa como processo voluntário, que não é e nem pode ser descoberto em sua essência, apenas nos deixa a constatação de que “se o ente soterra e desenraiza toda e qualquer possibilidade de início do ser e, assim, continua impelindo para frente o ente, conduzindo, porém, a uma desertificação que não destrói, mas sufoca o inicial no erigir e no ordenar” (HEIDEGGER, 2007c, pg. 363). Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 300 Ademais, diante da desertificação da terra, a historiologia comparece como única possibilidade essencial referente à história, acarretando no historicismo que Heidegger depõe em transformar a história num mero cômputo do passado em vista do presente e nesse caminho o homem a cada vez tem sua essência aproximada ao historiológico e não do histórico. Visto que, com o domínio da historiologia através da consumação do homem moderno (a subjetividade), o animal rationale agora se transforma em animal historicum, essa transformação está em curso pelo fato de que “o animal historiológico não visa, por exemplo, ao animal que se torna ‘historiológico’ e que pertence ao passado, mas ao animal que a tudo pro-duz, para o qual o ser do ente desponta na produtibilidade e se oculta ao mesmo tempo em seu caráter maquinacional” (HEIDEGGER, 2009, p. 156). V Porém, como podemos superar ao estatuto historiológico? Heidegger escreve que o pensar meditativo precisa ser retomado atentando à diferença entre o ser e qualquer ente para, por conseguinte, a história se afastar do círculo da objetivação característica da historiologia, pois esta depreendida de sua produção representacional reaparece na decisão entre ser e ente de forma a colocar em jogo a essência da época. E por mais que o termo “decisão” esteja atualmente desgastado, para Heidegger, ele remonta à cisão mais intrínseca e à distância mais extrema entre o ente na totalidade e o ser. De tal forma que, “A decisão mais elevada que pode ser tomada e que se transforma respectivamente é aquela entre o predomínio do ente e dominação do ser. Por isso, quando quer e como quer que o ente na totalidade seja propriamente pensado, o pensamento já reside aí na esfera dos perigos inerentes a essa decisão” (HEIDEGGER, 2007b, p. 371). Assim, o pensamento se aproxima do que “aconteceu” numa determinada época, lembrando que esse acontecer para Heidegger (2007b, p. 374) significa: O que a história suporta e impõe, o que dissolve as contingências e fornece de antemão às resoluções o seu campo de jogo, isso que, no interior do ente representado objetiva e situacionalmente, no fundo é o que é. Nós nunca Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 301 experimentamos o que aconteceu por meio de constatações históricas em relação ao que “se deu”. Tal como essa expressão nos dá bem a entender, o que “se deu” é aquilo que passa por nós no primeiro plano e no pano de fundo dos palcos públicos das ocorrências e das opiniões emergentes quanto a essas ocorrências. O que acontece nunca pode ser conhecido historiologicamente; só pode ser conhecido pelo pensamento em meio à concepção do que a metafísica que determina previamente a época trouxe ao pensamento e à palavra. Portanto, na medida em que Heidegger intitula os pensadores como aqueles que “fundam” um mundo histórico a partir da abertura do ser. Heidegger comparece na nossa história não como pensador que procura pôr um novo fundamento ao nosso pensar, mas aquele que prepara o pensamento à transição ao outro início, no qual a essência da história comparece a favor do ser-aí, não como um elemento apreendido pelo ser-aí, mas por manifestar um compartilhamento nas decisões históricas, pelas quais, o que foi essencialmente é repetido pelo porvir, conjugando desse modo na possibilidade de ultrapassarmos o niilismo da factibilidade maquinacional. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS HEIDEGGER, Martin. A Metafísica de Nietzsche. In: Nietzsche vol. II. Trad. Marcos Antônio Casanova. Ed. Forense Universitária. 2007a: Rio de Janeiro. ___________. A Palavra de Nietzsche: “Deus está morto”. Trad. Marcos Antônio Casanova. Revista Natureza Humana. Vol. 5(2): 471-526. jul-dez. 2003: São Paulo. __________. 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