A organização espacial da localidade de Harmonia I – São Lourenço do Sul-RS: uma análise sobre a comunidade pomerana The spatial organization of Harmonia I locality – São Lourenço do Sul-RS: an analysis about the Pomeranian community AUTORES Losane Hartwig Schwartz – [email protected] Aluna do curso de mestrado em Ciências Sociais, UFPel Jean Samarone Almeida Ferreira – [email protected] Aluno do curso de especialização em Geografia, UFPel Giancarla Salamoni – [email protected] Professora Adjunta 3 do Departamento de Geografia e Economia, Instituto de Ciências Humanas e Coordenadora do Laboratório de Estudos Agrários e Ambientais – LEAA da Universidade Federal de Pelotas. RESUMO Neste trabalho apresenta-se uma caracterização geográfica da localidade de Harmonia I – município de São Lourenço do Sul- RS . Para tanto, associou-se uma revisão teórica do processo de imigração e colonização da região com um estudo empírico, visando oferecer elementos para entender a organização atual do espaço rural ocupado por descendentes de pomeranos. Apresenta, ainda, um mapeamento atualizado da localidade, utilizando técnicas de Sistemas de Informação Geográfica. Palavras-chave: Imigração, Pomeranos, agricultura familiar, território. ABSTRACT This article presents a geographic characterization of a locality called Harmonia I – on São Lourenço do Sul-RS city. Therefore, associate a theory revision about the immigration and colonization process in the region with an empiric study in order to offer elements to understand the actual organization of the rural space occupied by Pomeranians descendents. Besides, presents an actualized mapping of the locality using Geographic Information Systems technique. key-words: Immigration; Pomeranians; familiar agriculture; territory; INTRODUÇÃO A corrente imigratória de europeus para o Brasil iniciou-se no século XIX tendo, principalmente, objetivos políticos e militares. Esse processo iniciou com a transferência da Corte Portuguesa ao Brasil, em 1808, e a conseqüente Abertura dos Portos. Antes disso, porém, ainda no século XVIII, outras iniciativas trouxeram principalmente imigrantes açorianos, não se constituindo, todavia, em fluxos contínuos. O século XIX abriu espaço para imigrantes estrangeiros oriundos de diversos países como Itália, Alemanha, Suíça, Portugal, etc. Os núcleos de colonização se estabeleceram principalmente no Rio Grande do Sul, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Espírito Santo. Foram implementadas medidas oficiais para consolidar, no espaço agrário brasileiro, a agricultura familiar baseada na pequena propriedade. A vinda de imigrantes europeus no inicio do século XIX, segundo as interpretações de Szmrecsányi (1990), ocorreu em duas correntes imigratórias com objetivos distintos: a “corrente colonizadora”, típica ao sul, com o objetivo de implementar núcleos de povoamento, onde os lotes coloniais são inteiramente desconectados da grande propriedade (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, em certas áreas de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo); e a “corrente propriamente migratória”, com o objetivo de abastecer a mãode-obra para a cafeicultura e outras atividades econômicas desenvolvidas no oeste paulista e, também, com menor intensidade no Rio de Janeiro. De acordo com Lando e Barros (1992) a questão da imigração européia para o Brasil corresponde à transformação do regime de trabalho na sociedade capitalista. De um lado, o regime de escravidão estava em decadência, e a política de Colonização adotada pelo Império brasileiro, visava basicamente atender aos interesses dos grandes latifundiários que necessitavam de mão-de-obra, em substituição à mão-de-obra escrava, especialmente em São Paulo, nas grandes propriedades cultivadoras de café. Porém, em outras regiões os objetivos foram diferentes. Pretendia-se povoar áreas devolutas, de florestas, abrindo vias de comunicação, além da proteção das fronteiras e visando ainda suprir as necessidades de alimentos para o mercado interno. A vinda de imigrantes alemães para o Brasil se deve, principalmente, às transformações agrícolas e demográficas ocorridas na Alemanha. Os imigrantes vindos, geralmente, eram trabalhadores pobres, agricultores, expulsos pelas transformações econômicas e sociais pelas quais passava a Alemanha. A abolição da estrutura feudal e o processo de industrialização levou-os a buscar melhores condições em outros países. As terras não comportavam mais o número de pessoas que dela procuravam sobreviver, o que veio a coincidir com os interesses do Brasil de colonizar áreas devolutas, e suprir de mão-de-obra a agricultura. Aqui se dedicaram à produção de gêneros de primeira necessidade, não oferecendo concorrência a grande propriedade latifundiária. A Lei de Terras (1850), permitindo a compra e venda de terras, e o processo de substituição da mão-de-obra escrava que se intensificava a partir da proibição do tráfico (1851-1952), até a completa abolição da escravatura (1888), foram fatores que contribuíram para o processo imigratório. A política de colonização originou no Rio Grande do Sul um segmento camponês com uma atividade econômica fortemente diversificada, baseada na divisão familiar do trabalho, possibilitando a emergência da pequena propriedade em meio a uma região dominada pelo latifúndio.Rocha e Miorin (1989, p. 22) alertam que “além da grande propriedade de atividade pecuarista, a pequena propriedade de agricultura colonial, que possibilitou a sustentação do crescimento do comércio com o centro do país”. Assim, na organização espacial do Rio Grande do Sul nota-se a coexistência da grande lavoura e a pequena propriedade, que têm um ponto comum: a importância dada à terra como meio de produção principal e caracterizam-se por um sistema econômico de relações sociais de produção particular. O marco da colonização alemã no Rio Grande do Sul é o ano de 1824, quando é fundada a primeira colônia e hoje município de São Leopoldo. A partir daí, muitos outros núcleos foram criados, inclusive pela migração de muitos destes colonos para outras áreas do Estado. Os primeiros imigrantes alemães que se instalaram no Rio Grande do Sul receberam terras do governo imperial, que financiou seu transporte, além de equipamentos e outros tipos de auxílio, prática seguida até 1950, quando começou a se cobrar pelas terras. Com a Lei de Terras de 1850 e a decisão, em 1854 de não mais realizar o assentamento de imigrantes com base na doação de terras, mas através da compra, fixando o preço das terras públicas destinadas á colonização, a colonização européia se orientou principalmente pela iniciativa privada. Nesse período, várias colônias foram fundadas por iniciativa privada, sendo que poucas tiveram êxito. Entre as muitas iniciativas, de acordo com Coaracy (1957) houve uma colônia que venceu todas as dificuldades, se desenvolveu e prosperou até atingir a autonomia de município, sob administração exclusivamente privada, sem ser encampada pelo governo. Foi a colônia de São Lourenço, situada na Serra dos Tapes, município de Pelotas, fundada em 1958, pelo empresário alemão Jacob Rheingantz, que se instalou na própria colônia, acompanhando e administrando sua obra de perto. Entre os atrativos estariam a boa fertilidade dos solos e a proximidade de vias de escoamento para os produtos devido à proximidade de dois centros urbanos: Pelotas e Rio Grande A homogeneidade estabelecida pela origem comum européia, pela identidade de hábitos e costumes, pela coincidência de interesses e de condições de existência e o isolamento da colônia, fortaleceram o sentimento de vida em comum, de unidade. As primeiras escolas foram instaladas por iniciativa dos próprios colonos, os professores eram colonos nem sempre com suficiente instrução. A primeira escola pública só foi instalada em 1878, 20 anos depois da chegada dos primeiros colonos e, assim mesmo, desprovida de professor, mostrando o descaso ou indiferença do governo em relação ao futuro desta colônia. Também, por meio de uma contribuição de cada colono, foram construídas as primeiras capelas. As colônias eram divididas em picadas e estas em lotes, que eram vendidos aos colonos. A ORGANIZAÇÃO DO CAMPESINATO DE ORIGEM POMERANA: O CASO DA LOCALIDADE DE HARMONIA I A localidade estudada corresponde à parte de uma dessas picadas, constituída inicialmente por 101 lotes, a maioria com 48,4 hectares (observar Figura 1), e formada essencialmente por pomeranos. A principal característica do sistema de colonização no sul, conforme Seyferth (1990) foi seu isolamento e sua homogeneidade étnica. Figura 01: Mapa antigo da Colônia de São Lourenço Fonte: COARACY, 1957, s. p. Passado aproximadamente um século do período de início da colonização, a colônia experimentou uma modificação no seu sistema produtivo, quando por incentivo do governo associou “às culturas tradicionais de subsistência, matérias-primas como o pêssego, aspargo, milho-doce, morango e ervilha” (SALAMONI, 2001, p.33), que tinham como mercado as indústrias conserveiras. No entanto, este tipo de cultivo foi deixado de lado, posteriormente, devido à falta de mercado para vender os produtos e pelo fato de não haver mais o incentivo do governo. A partir dos anos 80 iniciou-se o ciclo produtivo da cultura do fumo que se mantém até os dias atuais, sendo a principal fonte de renda dos agricultores desta região. A localidade estudada localiza-se no 4° distrito de São Lourenço do Sul - RS e tem como limite norte a localidade de Bom Jesus, ao sul a localidade de Sesmaria, a Leste o Arroio Bom Jesus e a oeste o Arroio Canoas, em coordenadas UTM N:6535903.653; S:6530885.987; E:382544.906 e W:372804.368, conforme a Figura 2. Figura 02: Localização da Localidade de Harmonia I – São Lourenço do Sul – RS Fonte: Base do IBGE (2001) adaptado por FERREIRA, 2006. Situada na parte inicial da Serra dos Tapes, pertencente ao Escudo Cristalino Sul-RioGrandense, com altitudes entre 30 e 260 metros, essa área caracteriza-se por um relevo que varia desde suave ondulado, compondo, nas encostas vales profundos e pequenos planaltos. Aproximadamente um século após a chegada dos primeiros colonos, a colônia produzia culturas tradicionais de subsistência e matérias-primas para a indústria conserveira como o pêssego, aspargo e milho doce. No entanto, estes cultivos foram substituídos, gradativamente, devido a falta de mercado para vender os produtos e pelo fato de não haver mais o incentivo do governo. A partir dos anos 80 iniciou-se o ciclo produtivo da cultura do fumo, que se mantém até os dias atuais, sendo a principal fonte de renda dos agricultores desta região. Para o levantamento de dados e informações necessárias à análise proposta, optou-se por um tipo de pesquisa em rede denominada “snowball sampling” (GOODMAN, 1961), na qual o pesquisador, através de um ponto de inserção – pessoas com as quais já se tinha algum contato – após a primeira entrevista, solicita ao entrevistado que indique um ou mais possíveis entrevistados que deverão compor a amostra. No caso desta pesquisa cada entrevistado indicou três famílias com as quais tenha algum tipo de relação. Destas optou-se pela que estivesse localizada geograficamente mais longe de quem a indicou para a realização de nova entrevista. Em paralelo foi feito um levantamento cartográfico por meio de deslocamentos por estradas e limites da localidade.O roteiro de entrevistas levantou informações referentes à idade, escolaridade e sexo dos membros das famílias entrevistadas e êxodo rural de membros da família, visando compreender os motivos que levaram as pessoas deixarem o campo. As questões contemplam, ainda, a forma pela qual foi adquirida a propriedade, sua área atual (especificando a área utilizada no momento), as relações de trabalho e, por fim, a participação desses agricultores em associações. As unidades pesquisadas contemplam um total de 53 membros dos quais mais da metade tem escolaridade até a 4ª série do ensino fundamental. Não foi encontrado nenhum morador analfabeto. Porém, apenas um possui o Ensino Médio Completo, E três não estão em idade escolar. Quanto a faixa etária dos moradores das unidades pesquisadas 20 apresentam idades de 0 a 25 anos, 19 de 26 a 55 anos e 14 com mais de 56 anos, sendo que destes últimos, três tem idades acima de 75 anos. Os dados representam a estrutura familiar da localidade, onde geralmente convivem três ou mais gerações no mesmo domicílio. Conforme Seyferth (1990) esta é uma família camponesa tipicamente européia, que não mudou muito desde o século XIX. A maioria são homens (31), sendo 22 mulheres. No que se refere à forma de aquisição da propriedade, percebeu-se que o mais comum é a herança. Herda a propriedade apenas um dos filhos, que se compromete a assumir a propriedade e cuidar dos pais na velhice. A segunda forma de aquisição mais comum é a compra (geralmente de algum vizinho ou parente). As propriedades em Harmonia I apresentam, em sua maioria, a estrutura fundiária original dos lotes, visto que visto a partilha entre herdeiros não é muito comum. Apenas quatro membros dessas famílias mudaram para a cidade nos últimos cinco anos, sendo dois por motivo de casamento, um por motivo de trabalho e um buscando sua independência. Quando perguntados se participam de alguma associação, destacou-se a participação na Igreja. Essa questão mostra a forte religiosidade como um dos pilares sociais da comunidade. Todos freqüentam regularmente a igreja. O culto passa a ser uma forma de sociabilidade desses agricultores. Na localidade predomina a Igreja Evangélica Luterana, e não há nenhuma igreja católica. A maioria dos trabalhadores está vinculada ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais (são sócios, mas não participam das reuniões). Outras associações de destaque são as de futebol. São realizados campeonatos com times formados pelos próprios moradores da localidade, sendo que numa mesma localidade chega a existir mais de um time. Os jogos de futebol realizados aos domingos e os bailes, geralmente realizados aos sábados, são as principais formas de lazer disponíveis na localidade. No que se refere às relações de trabalho, prevalece a mão-de-obra familiar. Foram identificados apenas dois agricultores que prestam serviço em outra propriedade, em época de safra, mediante pagamento de diária ou ajuda mútua. A ajuda mútua, geralmente, se dá entre vizinhos ou parentes em época de safra, mas não é uma prática recorrente, mas excepcional, como por exemplo, em caso de doença de algum dos trabalhadores. CONSIDERAÇÕES FINAIS A inserção da produção camponesa nos circuitos urbano-industriais provoca mudanças nas características da mesma, ou seja, passa a predominar uma produção familiar moderna, com utilização de tecnologia. Porém, uma característica importante a diferencia das grandes empresas rurais, pois é o próprio camponês que assume o papel de agente econômico, movimentando o seu capital e investindo-o na sua propriedade. É o proprietário que organiza e fiscaliza o uso de mão-de-obra, bem como, dos recursos naturais. Observa-se que a unidade de produção da área pesquisada continua embasada no emprego de mão-de-obra do próprio grupo familiar garantindo a sua condição de proprietário da terra. Porém, com base em Gerardi e Salamoni(1993,p.152), “é visível que a conduta dos produtores rurais volta-se para a conquista de mercados e financiamentos, tornando-os elementos capitalizados e inseridos nas transações monetárias, em conseqüência, também usuários de maquinaria, insumos industriais e serviços técnicos.” Na localidade há uma forte relação com o capital agroindustrial, uma vez que a atividade predominante é a fumicultura, cuja produção é unicamente voltada para a comercialização, mediante contratos de integração vertical. Os agricultores afirmam que a renda do fumo permitiu a aquisição da maioria dos equipamentos agrícolas que hoje existem na propriedade, além de proporcionar uma melhoria na qualidade de vida, sendo as demais atividades, como o plantio de batata, feijão, milho, amendoim, bem como, a produção de leite e a suinocultura se voltam cada vez mais para o autoconsumo, devido aos baixos preços pagos ao produtor por estes produtos. Seyferth (1990) explica esse fato através do “ethos camponês”, que faz com que o agricultor vise sempre, dentro do possível, a auto-suficiência da unidade de produção. Isso explicaria o motivo de continuarem se dedicando a uma policultura, associada a criação de animais domésticos, mesmo tendo como atividade principal a fumicultura. No que se refere à economia camponesa, de acordo com Wanderley (1999), esta pode ser incorporada à economia capitalista sem perder suas peculiaridades e características de reprodução, tendo o agricultor familiar de hoje, a herança da tradição camponesa adaptada às exigências do mercado. Observa-se que os costumes, as normas e os valores tradicionais, considerados como camponeses (SEYFERTH, 1990; WOORTMANN, 1995), suas práticas e representações mantêm-se ao longo do tempo. Portanto, não apenas na produção, mas também nas relações sociais, motivas por laços de parentesco e amizade, observa-se uma forte coesão deste grupo, de origem ética praticamente homogênea, fato esse que explicaria a sua reprodução social e a permanência como produtor familiar na agricultura. REFERÊNCIAS COARACY, Vivaldo. A Colônia de são Lourenço do Sul e seu Fundador Jacob Rheingantz. São Paulo: Saraiva, 1957. 161 p. CUNHA, Noel Gomes da. Caracterização dos solos de São Lourenço do Sul - RS. Pelotas: Embrapa - CPACT, 1994. GERARDI, L.H.O e SALAMONI, G. Considerações sobre a transformação da agricultura tradicional em um complexo moderno.Ambiente Y Sociedad: la hacia el siglo XXI, Mérida, UCLA,v.1,p.149-154, 1993. GOODMAN, Leo. A. Snowball sampling. Annals of mathematical statistics,v.32, p.148170, 1961. LANDO, Aldair Marli; BARROS, Eliane Cruxên. Capitalismo e colonização – os alemães no Rio Grande do Sul. In: LANDO, A. et al. RS: Imigração e Colonização. 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