madame lynch – mulher do mundo e da guerra

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MADAME LYNCH – MULHER DO MUNDO E
DA GUERRA
RICARDO VÉLEZ RODRÍGUEZ
COORDENADOR DO CENTRO DE PESQUISAS ESTRATÉGICAS
“PAULINO SOARES DE SOUSA”, DA UFJF.
DOUTOR EM FILOSOFIA PELA UNIVERSIDADE GAMA FILHO.
PROFESSOR EMÉRITO DA ECEME.
[email protected]
Elisa Alice Lynch. Assim chamava-se uma irlandesa, que viveu em meados do
século XIX, casou muito jovem com um oficial francês, morou em Argel, separou-se do
seu marido, residiu em Paris, onde conheceu Francisco Solano López e, depois, foi morar
com ele no Paraguai. História trivial? Certamente não, como verão os leitores nas páginas
que seguem. Vale a pena ler a obra que narra a sua biografia. Li esse livro na tradução ao
espanhol, feita por Rosa S. Corgatelli (Madame Lynch, mujer de mundo y de guerra, de
Fernando Baptista, Buenos Aires: EMECÉ Editores, 1997, 2a. Edição em espanhol, 436 p,
23 x 15 cm.).Esta obra apareceu originariamente em português sob o título de Elisa Lynch Mulher do mundo e da guerra, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira / Pró-Memória –
INL, 1985, 600 páginas, (21 x 13.5 cm), 1o. Prêmio Literário Nacional, (Biografia).
O autor, Fernando Baptista, nascido em Porto Alegre, formou-se em Ciências Políticas e
Econômicas e foi jornalista vinculado ao Correio do Povo, da capital gaúcha, bem como à
Revista do Globo, da mesma cidade. Desempenhou o cargo de técnico em administração da
Presidência da República, no Brasil, tendo sido condecorado pelo governo brasileiro, bem
como pelo Ministério da Defesa do Paraguai, país onde é membro honorário do Instituto de
História e do Museu Militar.
A obra divide-se em seis capítulos e um Apêndice. Os capítulos recebem os
seguintes títulos: I – A primavera de Elisa. II – O verão de Elisa. III – Nuvens e
turbulências. IV – A tempestade. V – O caminho do calvário. VI – O outono de Elisa. No
Apêndice, o autor relata os passos que foram dados pelos herdeiros de Elisa Lynch, para
reaver as posses que ela tinha adquirido no Mato Grosso.
A obra narra, com vivacidade que prende a atenção do leitor do início ao fim, a vida
e aventuras de Elisa Alice Lynch, uma bela irlandesa que viveu na segunda metade do
século XIX, tendo nascido na cidade de Cork em 1835, no seio de uma família de classe
média com raízes nobiliárquicas. Parentes próximos de Elisa foram um bispo (seu tio avô) e
um oficial do exército inglês. No brasão de armas da família Lynch aparece a divisa Non
temere ne timide. As palavras do brasão familiar traduziam perfeitamente o que seria o
norte de Elisa Alice Lynch, uma mulher de fibra, que soube fazer frente à dura realidade
(sem temor nem timidez), preservando a sua feminilidade.
Elisa Alice Lynch, companheira de Solano López e a sua principal conselheira política.
Casada com a idade de 15 anos, com o médico francês Javier de Quatrefages, oficial
da Legião Estrangeira, a jovem Elisa teve de viver na cidade de Argel, acompanhando o
marido que para lá tinha sido enviado. Não ficou a jovem irlandesa (que na sua terra natal
teve refinada educação, no Trinity College, junto com moças da aristocracia), simplesmente
trancafiada em casa nas longas horas de ausência do marido. Tornou-se habilidosa amazona
e passou a conhecer, em detalhes, a cidade colonial, bem como as defesas do posto
avançado das forças armadas francesas. Nas escaramuças sangrentas e freqüentes com os
rebeldes habitantes do deserto, as tropas da metrópole parisiense sofriam constantes baixas.
Nos momentos de maior crise, a jovem passou a integrar uma brigada voluntária de
enfermeiras a serviço do Exército.
Não passou desapercebida do universo masculino de aventureiros e militares, que
prevalecia em Argel, essa bela loira que cavalgava feito experimentado ginete. Muito cedo
despertou paixões arrasadoras, em que pese o fato de a jovem Elisa se manter
rigorosamente fiel ao seu marido, o oficial Quatrefages. O comandante militar do Segundo
Império em Argel, um sedutor coronel do Exército francês e um jovem conde russo,
aventureiro declarado, terminaram batendo-se em duelo, na disputa pelas atenções da
jovem, que insistia em não trair o seu esposo, que, de outro lado, pendia mais para as
beneditinas pesquisas de insetos e endemias tropicais, do que para as atenções domésticas
de marido devotado. Do duelo de amantes não correspondidos resultou morto o
comandante militar, tendo vindo a público a paixão desenfreada dos duelistas pela jovem
Elisa. O resultado não se fez esperar: o introvertido e inseguro capitão Quatrefages pediu a
separação da sua esposa que, desolada, regressou a Paris.
Em companhia de antigas amigas conhecidas em Argel, Elisa freqüentou salões
badalados da capital francesa, onde se reunia a intelectualidade, bem como as grandes
figuras da diplomacia, da empresa e da política. Numa dessas reuniões, foi-lhe apresentado
um jovem general paraguaio, Francisco Solano López (1827-1870), representante
diplomático do seu país junto às cortes e governos europeus e que, posteriormente, tornarse-ia presidente da República do Paraguai. Eis a forma em que o autor descreve o encontro
entre Elisa e o chamado por ela de Napoleão do Paraguai: “Francisco Solano López sorriu,
segurou a mão que lhe era oferecida, levou-a aos lábios com a elegância de um nobre
madrileno. Ainda em pé, admirou a bela mulher sentada diante dele: cabelos de ouro,
ondulados, que lhe lembravam as cascatas paraguaias à luz do sol do amanhecer; os olhos,
de uma tonalidade cinza azulada, agressivos e insondáveis; a pele, de brancura cor de rosa.
Alta e enxuta como uma dançarina. – Muito me envaidece ser lisonjeado por uma dama tão
formosa – retribuiu num francês perfeito. Elisa, encantada com a homenagem, abriu o leque
nacarado, escudo da sedução feminina, e o golpeou levemente no ombro nu. – Sinto
curiosidade em relação ao Paraguai. Esse nome soa-me romântico (...). – O Paraguai é o
país do futuro e da riqueza – respondeu o jovem general, enquanto sentava-se ao lado dela”
(p. 43-44).
Elisa ficou encantada com o aposto general. Muito rapidamente a admiração
converteu-se em paixão e decidiu acompanhar ao seu jovem amante de regresso ao país sulamericano. Elisa Lynch passou a ser a companheira do general paraguaio (a quem
carinhosamente chamava de mon sauvage), apesar da inicial rejeição dos membros da
família de Francisco Solano López, bem como das senhoras da sociedade de Assunção. A
sua vida confundiu-se, a partir de então, com a do futuro governante dos paraguaios.
Madame Lynch, na época de seu regresso à França, após a morte de Solano López, em 1870.
Fernando Baptista conta a história de Elisa Lynch, num pano de fundo histórico,
muito bem documentado, da vida de Solano López e das peripécias da Guerra do Paraguai.
Este era filho do presidente Carlos Antonio López (que sucedeu ao famoso ditador Gaspar
Rodríguez de Francia). Aos 18 anos de idade, foi nomeado general-de-brigada. Comandou
por duas vezes (1846 e 1849) as forças de seu país enviadas à província de Corrientes para
combater o governo argentino de Juan Manuel Rosas. No período compreendido entre 1853
e 1856 viajou diversas vezes à Europa, onde estudou questões estratégicas e se familiarizou
com o sistema militar prussiano, bem como com a organização do Exército francês.
Durante suas viagens comprava armas e munições para as forças armadas paraguaias. O
jovem general-diplomata contratou técnicos estrangeiros nas áreas de siderurgia,
telecomunicações e ferrovias, e conseguiu, de outro lado, a ratificação de tratados
comerciais com a França e com a Inglaterra, além de freqüentar a corte de Napoleão III, de
quem se tornou fervoroso admirador. A proposta estratégica do presidente Carlos Antonio
López era a de tornar o Paraguai uma potência militar no Continente sul-americano, a fim
de contrabalançar o crescente poderio do Império do Brasil.
Em Paris, como foi destacado anteriormente, Solano López foi apresentado a Elisa
Alice Lynch, que se mudou para Assunção. A jovem irlandesa, em que pese a sua juvenil
idade (na casa dos 20 anos) passou a exercer, paulatinamente, grande influência nos
negócios públicos paraguaios. Ao ser nomeado pelo pai ministro da Guerra e da Marinha,
Solano López adotou, nas forças armadas paraguaias, o sistema militar aprendido na
Europa, dando ensejo a uma tripla estrutura, em que se misturavam a organização
prussiana, a tática napoleônica e os rigorosos regulamentos herdados da tradição militar
espanhola. Após a morte de Carlos Antonio López, Solano reuniu um congresso
especialmente convocado para elegê-lo presidente da república por dez anos, em outubro de
1862.
O problema estratégico fundamental do Paraguai era a saída ao mar. Um país
fluvial, considerava Solano López, dependia de quem controlasse o curso dos rios. Daí por
que o jovem general centrou a parte inicial da sua estratégia na tentativa de dominar o Rio
da Prata. Esse era, para o Paraguai, o único caminho existente para o mar. Ora, essa via
estava sob controle estrangeiro. López, com a determinação de obter uma saída
independente para o oceano, preparou uma tropa de cerca de oitenta mil homens.
Aproveitando-se da intervenção do Brasil na guerra civil uruguaia, Solano ordenou a
captura do navio brasileiro Marquês de Olinda, da Marinha Mercante Imperial, que subia
pelo Rio Paraguai em direção ao Mato Grosso. Os paraguaios invadiram essa província
brasileira, expulsaram as autoridades imperiais e assassinaram numerosos cidadãos. Com
esta atitude, o governo paraguaio afetou de maneira negativa os interesses de três países
limítrofes: a Argentina, o Uruguai e o Brasil, que observavam com desconfiança crescente
o surgimento de uma poderosa máquina de guerra, chefiada por um jovem guerreiro com
espírito expansionista. As Nações agredidas, como é sabido, constituíram a Tríplice Aliança
e deflagraram a guerra em defesa dos seus interesses ameaçados pelo mais bem estruturado
exército do continente sul-americano.
Mas a estratégia de Solano López não parava na pretensão de dominar o curso do
Rio da Prata. As suas ambições iam mais longe. O jovem general pretendia reunir, em torno
à Assunção, a antiga Província espanhola do Paraguai, equivalente a um enorme território
que compreendia a região de Corrientes, na Argentina, além, evidentemente, das terras do
Paraguai moderno. Uma vez incorporada essa província, pensava Solano López, seria fácil
anexar a de Buenos Aires, bem como a restante parte do território argentino e algumas
províncias brasileiras como o Rio Grande do Sul e o Mato Grosso. A seguir, a anexação do
Uruguai seria fácil de imaginar. O sonho do general paraguaio era se tornar uma espécie de
Bonaparte dos trópicos, que construiria um grande império hispano-americano, que
rivalizaria diretamente com o Império do Brasil, a fim de lhe disputar a hegemonia
continental. O sonho de outro déspota da época, Luis Napoleão III da França, era colocar
um pé em cada um dos continentes americanos, o do norte, com Maximiliano de
Habsburgo, e o do sul, com o marechal Solano López, que seria erguido à dignidade
imperial por um plebiscito que o jovem general ganharia facilmente.
O ditador paraguaio Francisco Solano López.
No início do conflito, López obteve êxitos militares significativos. Porém, logo a
guerra evoluiu de forma adversa para o Paraguai. Pesou muito na mudança do curso do
conflito, a rigorosa política deflagrada pelo Império brasileiro contra o país agressor: o
Brasil não aceitaria negociar com quem atentou contra a integridade do território nacional e
assassinou súditos do Imperador. Foram postas a serviço da defesa do território nacional
todas as forças vivas do país, a banca, a diplomacia, a nossa rudimentar indústria e a já
testada capacidade dos gaúchos para criar rebanhos vacuns e de cavalos. Os estadistas
imperiais não pouparam esforços para organizar uma força armada que conseguisse se
sobrepor ao poderoso exército paraguaio, incorporando o que de mais avançado havia em
armamento ofensivo e tático. Destaca-se a compra à França de modernos couraçados (foi
muito hábil, neste ponto, a diplomacia imperial, que conseguiu neutralizar os representantes
de Solano López em Paris e pagar antecipadamente os navios de guerra encomendados pelo
governo paraguaio, incorporando-os à armada brasileira). No terreno tático vale a pena
mencionar a utilização, por Caxias, de balões de reconhecimento, que foram definitivos na
tomada da fortaleza de Humaitá, que garantia aos paraguaios o domínio do curso superior
do Rio da Prata. Na reação brasileira foi de capital importância a coragem do primeiro
comandante das nossas tropas, o general Osório e, na segunda parte do conflito, a
extraordinária visão estratégica de Caxias, bem como a sua indiscutível capacidade de
liderança, aliada à sua coragem pessoal. Embora quem chefiava nominalmente a coalizão
era o general argentino Mitre, quem de fato exerceu a liderança foi o marquês de Caxias.
Tão logo o conflito mudou de curso, passando a favorecer os exércitos aliados,
surgiu uma oposição à guerra na população e nas elites paraguaias. Solano deflagrou uma
cruel luta de eliminação de quem, no plano interno, divergisse da sua política bélica. Em
1868, acusou vários de seus compatriotas de traidores e conspiradores, mandando executálos, entre estes seu irmão Benigno e o bispo Palácios. Foi o denominado Massacre de São
Fernando. Já no fim do conflito, as forças paraguaias estavam dizimadas. De um exército
de aproximadamente 80 mil combatentes, restavam apenas 250 homens esfarrapados e
famintos, que acompanharam o marechal Solano López e uma pequena multidão de
sobreviventes civis, numa apressada fuga rumo ao nordeste do país, perseguidos pela tropa
de 4.500 homens comandados pelo general Correia da Câmara. Solano López foi achado
ferido e solitário quando tentava atravessar o rio Aquidabã, após perder a Batalha de Cerro
Corá. Segundo relatos históricos, mesmo depois de intimado a se entregar, López resistiu
com a espada em punho. Morreu lutando perto de Cerro Corá, em 1o. de março de 1870,
ferido pela lança do soldado brasileiro Chico Diabo e por um disparo de espingarda do
soldado de cavalaria José Soares. Como dizia a quadrinha da época: "O Cabo Chico Diabo,
do diabo Chico deu cabo".
Elisa Lynch solidarizou-se com o seu companheiro em todas as etapas da guerra e
nos seus planos estratégicos. Imaginava-se uma nova Imperatriz Eugênia (a esposa do
Imperador Napoleão III), ou uma nova Josefina de Beauharnais (a imperatriz esposa de
Napoleão I). Sonhava com ficar à testa de uma nova dinastia, que perpetuaria o seu nome
na história do nascente Império do Paraguai. Mas, se os sonhos de Elisa Lynch
contemplavam essa pretensão dinástica, os seus ideais encarnavam, também, em rara
simbiose, a valentia das mulheres paraguaias que lutaram na guerra levando os seus filhos
até a linha de combate, combatendo com eles, atendendo os feridos e, muitas vezes,
morrendo heroicamente ao seu lado, em defesa da pátria. Elisa Lynch acompanhou as
tropas paraguaias vestindo uniforme de coronel do exército, exercendo as funções de
enfermeira-chefe, mas também revisando a construção de trincheiras e supervisionando o
abastecimento dos soldados. Chegou a residir, muitas vezes, com os seus cinco filhos nos
acampamentos do exército paraguaio, a fim de não abandonar o seu companheiro nas duras
fainas da guerra. Organizou o que seria então o núcleo inicial do serviço secreto paraguaio,
constituído por indígenas totalmente fiéis a ela, infiltrados no exército paraguaio e nas
fileiras inimigas. Pouco antes de falecer Solano López, Elisa teve a tristeza e o orgulho de
ver o seu próprio filho, jovem coronel, morrer combatendo heroicamente contra as tropas
brasileiras.
Mas Elisa Lynch encarnava também o pragmatismo das mulheres anglo-saxãs,
formada que fora no exclusivo Trinity College. Como boa dama de espírito inglês, a
companheira de Solano López aproveitou a sua prestigiosa posição para ir amealhando, ao
longo dos anos, enorme patrimônio familiar, constituído, basicamente, por duas linhas de
acumulação: a proveniente das porcentagens que ganhava sobre os produtos que o Paraguai
exportava (tudo era vendido pelos produtores ao Estado, que pagava a estes o que achava
conveniente e que embolsava, pela mão da elite governante, a diferença entre o preço de
compra e o relativo às vendas no mercado internacional, evidentemente muito mais
elevado: um perfeito modelo de patrimonialismo latino-americano). Com esses cabedais
assim acumulados, madame Lynch comprou extensas áreas de terras públicas, tanto no
Paraguai quanto na província brasileira de Mato Grosso, tendo os seus filhos contratado,
após a morte da mãe, os serviços advocatícios de Rui Barbosa, para reaverem as terras que
tinham sido confiscadas pelos exércitos aliados. A segunda linha de acumulação consistia
nas generosas doações que os paraguaios, adeptos de um poder inquestionável desde a
época das Reduções Jesuíticas, generosamente presenteavam ao primeiro mandatário e à
sua mulher, como dádivas oferecidas aos deuses...
Desterrada após a derrota e morte de Solano López, Elisa viajou com os seus filhos
para Londres, onde os deixou estudando em internatos de boa qualidade e passou a residir,
sozinha, em Paris. Em decorrência da demora dos seus advogados para reaverem
rapidamente os bens confiscados, a outrora poderosa rainha do Paraguai passou a viver
pobremente na capital francesa, até adoecer gravemente e morrer sozinha, no seu modesto
apartamento, no segundo andar do Boulevard Pereyre, no. 55, em 26 de julho de 1886.
Elisa Lynch tinha então 51 anos de idade.
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