Número 11 / 12

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Governador do Amazonas
Omar José Abdel Aziz
Reitor da Universidade do Estado do Amazonas
Profo. Dr. José Aldemir de Oliveira
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ANO-6,Nº 11
MANAUS, JULHO-DEZEMBRO,2008
ANO-7,Nº 12
MANAUS, JANEIRO-JUNHO,2009
UNIVERSIDADE
DO ESTADO DO
AMAZONAS
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Edições
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Copyright © 2007
Governo do Estado do Amazonas
Secretaria de Estado da Cultura
Universidade do Estado do Amazonas – UEA
Universidade do Estado do Amazonas
Reitor José Aldemir de Oliveira
Pró-reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa
Maria das Graças Vale Barbosa
Escola Superior de Ciências Sociais
Diretor Randolpho de Souza Bittencourt
Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental
Coordenador Sandro Nahmias Melo (2009); Serguei Aily
Franco de Camargo (2009-atual).
Solicita-se permuta
Solicitase canje
Exchange desired
On demande l’échange
Vogliamo cambio
Wir bitten um Austausch
Coordenadores(as)
Prof. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo
Profa. Dra. Cristiane Derani
Coordenação Editorial
Prof. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo
Prof. Dr. Walmir de Albuquerque Barbosa
Prof. Dr. Ozório José de Menezes Fonseca
Conselho Editorial
Profa. Dra. Cristiane Derani
Prof. Dr. David Sánchez Rubio
Prof. Dr. Fernando Antonio de Carvalho Dantas
Prof. Dr. Joaquim Shiraishi Neto
Prof. Dr. Luiz Edson Fachin
Prof. Dr. Ozorio José de Menezes Fonseca
Prof. Dr. Raymundo Juliano Feitosa
Prof. Dr. Sandro Nahmias Melo
Prof. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo
Profa. Dra. Solange Teles da Silva
Prof. Dr. Walmir Albuquerque Barbosa
Revisão Técnica e Normativa
Denison Melo de Aguiar
Diagramação e Projeto Gráfico
Francisco Ricardo Lopes de Araújo
Revisão Ortográfica
Profa. Rosa Suzana Batista Farias
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS – UEA
Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental
Rua Leonardo Malcher, n.º 1728, 5.º andar,
Centro, CEP: 69010-170
Manaus – Amazonas – Brasil
Tel./Fax. 55 92 3627-2725
Ficha catalográfica
Ycaro Verçosa dos Santos– CRB-11 287
Hiléia: Revista de Direito Ambiental da
Amazônia. ano 6-7, n.º 11-12. UEA - Edições
Governo do Estado do Amazonas / Secretaria
de Estado da Cultura / Universidade do Estado
do Amazonas, 2008.
p. 324
ISSN: 1679-9321 (Semestral)
E-mail: [email protected]
Site: www.pos.uea.edu.br/direitoambiental/
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1. Direito Ambiental – Amazônia I.
Universidade do Estado do Amazonas
CDD: 344.046811
CDU 344 (811)
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .........................................................................11
PARTE I
A LEI DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA E O DEBATE SOBRE JUSTIÇA
SOCIAL E PROTEÇÃO AMBIENTAL NA AMAZÔNIA
José Heder Benatti ........................................................................15
TUTELA INIBITÓRIA COLETIVA E O MEIO AMBIENTE DO TRABALHO
Priscila Campana .........................................................................31
EFETIVAÇÃO DE DIREITOS ÉTNICOS E COLETIVOS: UMA BATALHA
DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS DA REGIÃO SUL
Gladstone Leonel da Silva Júnior
Roberto Martins de Souza..............................................................................51
QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU DO ARAGUAIA-TOCANTINS: ESTRATÉGIAS LOCAIS DE REPRODUÇÃO SOCIAL E CULTURAL
Nirson Medeiros da Silva Neto.......................................................................75
PARTE II
COMPETÊNCIAS MATERIAIS NO CONTROLE E REGULAMENTAÇÃO
DA ATIVIDADE PESQUEIRA
Thaísa Rodrigues Lustosa de Camargo
Serguei Aily Franco de Camargo.................................................................121
TERRAS INDÍGENAS NAS FAIXAS DE FRONTEIRA DA AMAZÔNIA
BRASILEIRA: UMA BREVE ANÁLISE DOS DISCURSOS CONTRÁRIOS
AO SEU RECONHECIMENTO
Alex Justus da Silveira
Fernando Antonio de Carvalho Dantas......................................................141
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A FARRA DO BOI E A QUESTÃO DO BALANCEAMENTO DE PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS
Denison Melo de Aguiar
Serguei Aily Franco de Camargo..................................................................159
CONSIDERAÇÕES ACERCA DA VIABILIDADE DA ARBITRAGEM:
CONTRATOS DE REPARTIÇÃO EQUITATIVA PELO ACESSO E USO DA
BIODIVERSIDADE E JUSTIÇA DEMOCRÁTICA DE PROXIMIDADE
Liana Amin Lima da Silva
José Augusto Fontoura Costa.......................................................................181
A NECESSIDADE DE TUTELA PENAL CONTRA A BIOPIRATARIA NA
AMAZÔNIA
Aline Ferreira de Alencar
Fernando Antônio de Carvalho Dantas
Maria Auxiliadora Minahim........................................................................207
A PESSOA JURÍDICA E O CONCURSO DE AGENTES NO CONTEXTO DA
REPONSABILIZAÇÃO PENAL AMBIENTAL
Antônio Ferreira do Norte Filho
Serguei Aily Franco de Camargo.................................................................235
NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS E PADRÕES JURÍDICOS NO PROCESSO
DE REDEFINIÇÃO DA REGIÃO AMAZÔNICA
Joaquim Shiraishi Neto................................................................................253
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PARTE III
PLURALISMO JURÍDICO COMO VALOR JURÍDICO FUNDAMENTAL DO ESTADO BRASILEIRO: ESTUDO DE CASO SOBRE A LEI Nº
145/2002 DO MUNICÍPIO DE SÃO GRABRIEL DA CACHOEIRA E A
CO-OFICIALIZAÇÃO DAS LÍNGUAS NHEENGATU, TUKANU E
BANIWA
Moysés Alencar de Carvalho........................................................................271
SUJEITOS INDÍGENAS E ESTADO NO CAMPO DA REGULAÇÃO JURÍDICA DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS À BIODIVERSIDADE
Sheilla Borges Dourado................................................................................287
Part IV - RESUMOS....................................................................................311
DISSERTAÇÕES DE MESTRADO (JULHO/2008 – JUNHO/2009)
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CONTENTS
PRESENTATION..............................................................................................11
PART I
THE LAW OF ADJUSTMENT AND LAND DEBATE ON SOCIAL JUSTICE
AND ENVIRONMENTAL PROTECTION IN THE AMAZON
José Heder Benatti...........................................................................................15
INHIBITORY COLLECTIVE PROTECTION AND ENVIROMENT OF
WORK
Priscila Campana............................................................................................31
THE EFFECTUATION OF ETHNIC AND COLLECTIVES LAWS: A BATTLE FOR THE TRADITIONAL COMMUNITIES OF THE SOUTH REGION
Gladstone Leonel da Silva Júnior
Roberto Martins de Souza..............................................................................51
BREAKING COCONUT BABASSU LADIES FROM ARAGUAIA-TOCANTINS: LOCAL STRATEGIES OF SOCIAL AND CULTURAL REPRODUCTION
Nirson Medeiros da Silva Neto.......................................................................75
PART II
SKILLS MATERIALS IN CONTROL AND REGULATION OF FISHING
ACTIVITY
Thaísa Rodrigues Lustosa de Camargo
Serguei Aily Franco de Camargo.................................................................121
INDIGENOUS LANDS IN THE BANDS OF THE BORDER OF BRAZILIAN
AMAZON: A BRIEF REVIEW OF OPPOSITES DISCOURSE ANALYSIS
TO ITS RECOGNITION
Alex Justus da Silveira
Fernando Antonio de Carvalho Dantas.......................................................141
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THE “FARRA DO BOI” AND THE QUESTION BALANCING THE CONSTITUTIONAL PRINCIPLES
Denison Melo de Aguiar
Serguei Aily Franco de Camargo.................................................................159
CONSIDERATIONS ON THE FEASIBILITY OF ARBITRATION: EQUITABLE DISTRIBUTION CONTRACTS FOR ACESS AND USE OF BIODIVERSITY AND JUSTICE DEMOCRATIC NEARBY
Liana Amin Lima da Silva
José Augusto Fontoura Costa.......................................................................181
THE NEED FOR PENAL PROTECTION AGAINST BIOPIRACY IN THE
AMAZON
Aline Ferreira de Alencar
Fernando Antônio de Carvalho Dantas
Maria Auxiliadora Minahim........................................................................207
THE CORPORATION AND THE CO-AUTHORS AGENTS IN THE CONTEXT OF ENVIRONMENTAL CRIMINAL RESPONSABILITY
Antônio Ferreira do Norte Filho
Serguei Aily Franco de Camargo.................................................................235
NEW SOCIAL MOVEMENTS AND LEGAL STANDARDS IN THE PROCESS OF THE REDEFINING THE AMAZON REGION
Joaquim Shiraishi Neto................................................................................253
PART III
LEGAL PLURALISM AS FUNDAMENTAL LEGAL VALUE OF BRAZILIAN STATE: A CASE STUDY ABOUT THE LAW Nº 145/2002 THE MUNICIPALITY OF “SÃO GRABRIEL DA CACHOEIRA” AND THE CO-OFFICIALIZATION OF LANGUAGES NHEENGATU, TUKANU E BANIWA
Moysés Alencar de Carvalho........................................................................271
INDIGENOUS AND STATE IN SUBJECT FIELD OS LEGAL REGULATION OF TRADITIONAL KNOWLEDGE RELATED TO BIODIVERSITY
Sheilla Borges Dourado................................................................................287
PART IV - MASTERS DEGREE DISSERTATIONS (JULY/2008 – JUNE/2009)
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...................................................................................................................................311
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APRESENTAÇÃO
A Hiléia, Revista de Direito Ambiental da Amazônia, tem como objetivo
contribuir para o desenvolvimento de conhecimento científico que corresponda
às realidades sociais que são estudadas por pesquisadores no campo do Direito
Ambiental e áreas afins. Possuindo, neste sentido, uma variedade de temas relacionados à complexidade das questões Amazônicas.
Esta edição é a condensação de dois números: 11 e 12 da Revista. Correspondente ao segundo semestre do ano 6 da revista, ou seja, Julho a Dezembro
de 2008, número 11 e ao primeiro semestre do ano 7, isto é, Janeiro a Junho
de 2009, número 12, na qual se encontram um conteúdo científico que trata
do Direito Ambiental e diversas áreas afins. Os artigos desta edição envolvem
questões relativas aos povos e comunidades tradicionais e questões que se entrelaçam com a realidade destas, constituindo-se num exemplo das diversidades
étnicas e culturais da Amazônia Brasileira.
Importante também, agradecermos aos nossos (as) colaboradores (as):
Professor Doutor José Aldemir de Oliveira, Magnífico Reitor da UEA e a Professora Doutora Maria das Graças Vale Barbosa, Pró-Reitora de Pós-Graduação
e Pesquisa que garantiram os recursos necessários à atualização da periodização da revista; aos Professores Doutores Ozorio Jose de Menezes Fonseca e
Walmir de Albuquerque Barbosa e ao Mestrando Denison Melo de Aguiar (bolsista CAPES), aos quais foram repassados os encargos de organização editorial
dos três números da Hiléia, agora entregue aos nossos leitores; aos professores
e colaboradores externos; e, finalmente, aos mestrandos e seus orientadores, e
demais autores que contribuíram com seus estudos nesta revista.
Agradecemos, em especial, a Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Amazonas – FAPEAM, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior – CAPES e ao Conselho Nacional Científico e Tecnológico
- CNPQ pelo apoio financeiro ao Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental.
Prof. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo
Coordenador do Programa de pós-graduação em
Direito Ambiental – Universidade do Estado do
Amazonas
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ÍNDICE - PARTE I
A LEI DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA E O DEBATE SOBRE JUSTIÇA
SOCIAL E PROTEÇÃO AMBIENTAL NA AMAZÔNIA
José Heder Benatti..........................................................................................15
Introdução
1. O Debate da grilagem e o desmatamento na Amazônia
2. O que se entende por grilagem de terra pública
3. Critérios para regularizar as ocupações irregulares e destinar as terras públicas
4. Criação de espaços distintos: uma para a propriedade familiar e outra para a grande
propriedade
5. A política de regularização fundiário do Estado do Pará
6. A Lei Federal Nº 11.952/2009 e o debate sobre justiça social e proteção ambiental
Considerações Finais
Referências
TUTELA INIBITÓRIA COLETIVA E O MEIO AMBIENTE DO TRABALHO
Priscila Campana............................................................................................31
1. Segurança no trabalho e a necessidade de prevenção
2. A incapacidade da técnica ressarcitória na defesa dos direitos coletivos
3.O sentido preventivo da tutela inibitória
4. Fundamento legal da tutela inibitória e a sua antecipação
5. O meio ambiente do trabalho
6. O papel do Ministério Público do Trabalho e sua legitimidade
7. Cabimento da ação civil pública?
8. A utilização da ação inibitória coletiva
Considerações Finais
Bibliografia
EFETIVAÇÃO DE DIREITOS ÉTNICOS E COLETIVOS: UMA BATALHA DAS
COMUNIDADES TRADICIONAIS DA REGIÃO SUL
Gladstone Leonel da Silva Júnior
Roberto Martins de Souza..............................................................................51
Introdução
1. Os reconhecimentos jurídicos históricos, a partir da organização e da luta
2. Aparatos normativos garantidores e a utilização do positivismo de combate
2.1. Normas gerais utilizadas pelas comunidades tradicionais
2.2. Normas específicas
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2.2.1. Quilombolas
2.2.2. Faxinalenses
2.2.3. Indígenas
2.2.4. Pescadores Artesanais
2.2.5. Cipozeiras
2.2.6. Ilhéus
3. O choque entre as concepções liberais do direito e os reconhecimento de direitos
étnicos e coletivos;
Conclusão
Referência Bibliográfica
QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU DO ARAGUAIA-TOCANTINS: ESTRATÉGIAS LOCAIS DE REPRODUÇÃO SOCIAL E CULTURAL
Nirson Medeiros da Silva Neto.......................................................................75
Introdução
1. Sofrimento e mobilização: a vida e o trabalho das quebradeiras de coco babaçu e sua
organização em movimento social
2. Quebradeiras de coco face às “novas estratégias empresariais”
Considerações Finais
Referências
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A LEI DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA E O
DEBATE SOBRE JUSTIÇA SOCIAL E PROTEÇÃO
AMBIENTAL NA AMAZÔNIA
José Heder Benatti *
Sumário: Introdução; 1. O Debate da grilagem e o desmatamento na Amazônia; 2. O
que se entende por grilagem de terra pública; 3. Critérios para regularizar as ocupações
irregulares e destinar as terras públicas; 4. Criação de espaços distintos: uma para a
propriedade familiar e outra para a grande propriedade; 5. A política de regularização
fundiário do Estado do Pará; 6. A Lei Federal Nº 11.952/2009 e o debate sobre justiça
social e proteção ambiental; Considerações Finais; Referências.
Resumo: Um dos temas mais polêmicos atualmente diz respeito à proposta do
Governo Federal (hoje transformada na
Lei 11.952/2009), que visa a regularização fundiária de propriedades públicas nas
regiões da Amazônia Legal. Em relação
aos argumentos contrários a esta medida
jurídica é a alegação de que a lei favorece a
ocupação ilegal de terras públicas e contribui com a aceleração das taxas de desmatamento em curso na região. Considerandose os desacordos este artigo pretende
refletir sobre esse processo, levando em
consideração as opiniões distintas, à luz
da Constituição Federal de 1988, que estabeleceu novas bases para a relação entre
sociedade e meio ambiente.
Abstract: One of the most polemic themes
nowadays regards the proposal of the federal government (now transformed in the
law 11.952/2009) that aims the land regularization of public properties in the legal
Amazonia regions. In relation to the arguments opposed to this legal measure is the
allegation that the law favors the unlawful
occupation of public lands and contributes
with acceleration rates of deforestation in
course in the region. Considering the disagreements this article aims to reflect about
this process, taking into consideration the
distinct opinions in the light of the Federal
constitution of 1988, which established
new grounds for the relationship between
society and environment.
Palavras-chave: Regularização Fundiária, Keywords: Land Regularization, Right
Direito de Propriedade, Meio Ambiente e Property, Environment and Amazon.
Amazônia.
* Advogado, mestre em direito, doutor em ciência e desenvolvimento socioambiental,
professor de direito da Universidade Federal do Pará, pesquisador do CNPq e Presidente
do Instituto de Terras do Pará.
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INTRODUÇÃO
Um dos temas mais polêmicos das políticas agrária e ambiental do
Governo Federal é o projeto de regularização de terras públicas na Amazônia
Legal, convertido na Lei nº 11.952/2009. Dois argumentos contrários à iniciativa se destacam: o primeiro diz que, ao estabelecer a preferência de venda das
terras aos seus ocupantes entre 15 módulos fiscais (média propriedade) e 2.500
hectares (grande propriedade), a lei iguala o grileiro, geralmente grande proprietário, ao posseiro, pequeno ocupante de terra pública. Isso representaria, na
prática, um empreendimento imobiliário em favor do grileiro. O segundo argumento afirma que a regularização fundiária, tal como foi proposta, aumentará
o desmatamento da Amazônia. Do outro lado, os médios e grandes ocupantes
das terras públicas rebatem as críticas, dizendo que foram para a Amazônia sob
o estímulo de políticas públicas do passado, que lhes prometeram terra para
trabalhar. Sob essa ótica, o desmatamento ocorreu porque, para ter assegurado o
direito à propriedade, era necessário derrubar 50% da floresta da área ocupada.
A questão se torna complexa por um motivo simples: todos os argumentos têm
um fundo de verdade e não podem ser descartados a priori. Talvez estejamos
diante daquilo que Carlos Drummond de Andrade chamou de “meia verdade”,
no poema “A Verdade”.
Em meio a tantas opiniões distintas, é necessário buscar um consenso
mínimo. O primeiro passo talvez seja o entendimento de que, a partir da Constituição de 1988, a sociedade brasileira estabeleceu um novo contrato, com novas
regras para o relacionamento da sociedade com o meio ambiente. Assim, o passado não pode ser desculpa para a continuidade de comportamentos predatórios.
O segundo ponto é a necessidade de se pactuar uma transição que assegure a superação desse passado. Dois elementos devem ser trabalhados nessa transição:
o resgate do passivo ambiental causado pelo desmatamento da floresta, tendo
como premissa a meta de desmatamento ilegal zero; e o preço justo da terra.
Harmonizando esses dois pontos, a transição será mais rápida.
São esses pontos que pretendemos discutir nesse texto.
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1.
O DEBATE DA GRILAGEM E O DESMATAMENTO NA AMAZÔNIA1
A privatização ilegal de terras públicas é uma constante na Amazônia.
Contudo, diferentemente de outros períodos históricos, hoje se apresenta com
um caráter singular na relação de apropriação individual, no contexto fundiário
regional. A propriedade da terra não parece ser aqui um instituto totalmente
enquadrada na concepção ocidental de propriedade2. A propriedade advinda da
grilagem não possui título fundado em uma base legal: a área do imóvel rural
não é demarcada e as atividades desenvolvidas dentro de seus limites são ilegais,
pois a exploração da terra para o desenvolvimento das atividades agropastoris
ou florestais não tem autorização do Poder Público. Além disso, são constantes as denúncias de violação das normas ambientais e a utilização do trabalho
forçado. Logo, encontramos diferentes situações que podem ser inseridas em
uma ou mais violações: ambientais, agrárias, civis, criminais e tributárias, numa
lógica que leva à apropriação e concentração dos recursos naturais e financeiros
de forma ilícita.
Neste contexto a Amazônia se torna palco de disputa entre vários atores, com
interesses distintos que culminaram nos problemas que, hoje, compõem o cenário
amazônico, pela disputa da terra e dos recursos naturais. São violações dos direitos
indígenas, das posses das populações tradicionais e posseiros familiares.
Diante deste complexo quadro, o combate à grilagem de terras e à violência no campo não pode ser visto como uma política de curto prazo, nem se
basear apenas em ações pontuais e desconexas. O primeiro passo a ser dado é
superar a limitada capacidade de gestão dos órgãos competentes, para o orde-
1
As idéias apresentadas nesse item foram publicadas no livro “BENATTI, José Heder;
SANTOS, Roberto Araújo; GAMA, Antonia Socorro Pena. A grilagem de terras públicas na Amazônia brasileira. Brasília: IPAM:MMA, 2006 (Série Estudos)” e também
no trabalho “Ordenamento territorial e regularização fundiária no Pará. Belém: Iterpa,
2008”, sendo que este último pode ser encontrado no site www.iterpa.pa.gov.br .
2
Entenda como propriedade ocidental a propriedade moderna, ou seja, é o imóvel (rural
ou urbano) que é demarcada e registrada em cartório, mecanismo utilizado pelo Poder
Público para transferir seu patrimônio para o domínio privado. Neste termo, quando
referirmos à propriedade está tratando da área que possui título legítimo de propriedade,
ou seja, não é um título falso. Já a posse, desde sua origem na história da humanidade, é
um estado de fato que antecedeu à propriedade na apreensão e utilização dos bens, para
a satisfação das necessidades do homem, sendo também um tipo de relação do homem
com a terra.
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namento fundiário, seja no seu corpo técnico, seja no material.3
Outro elemento importante é ter a compreensão de que a consolidação
da propriedade rural (pequena, média e grande)4, respeitando os pressupostos
sociais e ambientais, representa um importante passo para o fortalecimento da
cidadania e da proteção ambiental. Nesta linha de atuação, apresentam-se dois
aspectos importantes do combate à grilagem de terra na Amazônia: a elaboração
de critérios de regularização fundiária da pequena, média e grande ocupação; e
critérios para a destinação de terras públicas, privilegiando a pequena propriedade familiar e a criação de assentamentos.
Existe um entendimento geral, do Estado e da sociedade brasileira, de que
é fundamental acabar com a grilagem e dilapidação do patrimônio público. O
receio está em como fazê-lo. Seja qual for o caminho escolhido o importante é
partir do pressuposto de que a consolidação da propriedade privada e o estado de
direito social – no caso amazônico, a institucionalização da propriedade privada
(individual e coletiva) – é uma condição para a consolidação de um modelo
democrático e participativo de distribuição e gestão da terra e dos recursos
naturais e, consequentemente, de proteção do meio ambiente.
2.
O QUE SE ENTENDE POR GRILAGEM DE TERRA PÚBLICA5
A grilagem é entendida como a legalização do domínio da terra através
de documento falso. Também é compreendida como a apropriação ilícita de
terras por meio da expulsão de pequenos ocupantes de terras públicas e índios.
Portanto, trata-se de uma série de mecanismos de falsificação de documentos de
propriedade de terras, negociações fraudulentas, chantagens e corrupções que
têm envolvido o Poder Público e os entes privados.
O Livro Branco da Grilagem de Terras no Brasil (s/d:12) define que “toda
ação ilegal que objetiva a transferência de terras públicas para o patrimônio de
3
No âmbito do Estado do Pará e federal os governos têm investidos em pessoal com
os concursos públicos, como na compra de equipamentos e estruturação dos órgãos
fundiários e treinamento dos técnicos.
4
Definimos como grande posseiro, para fim de regularização fundiária, a faixa de ocupação com base na Lei Agrária e na Constituição Federal, ou seja, acima de 15 módulos
fiscais e abaixo de 2.500 ha. Acima de 2.500 ha continua sendo um grande posseiro, mas
a competência para deliberar sobre a regularização fundiária é do Congresso Nacional,
conforme mandamento constitucional.
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terceiros constitui uma grilagem ou grilo”. Portanto, o termo grilagem denota
uma ação ilegal (que pode consistir de atos ilegais ou atos irregulares) praticada
por particulares, a fim de se apropriarem das terras públicas. Portanto, podemos
fazer a seguinte indagação: a grilagem de terra pública é ilegal ou irregular?
Se toda grilagem de terra é ilegal, não há alternativa para o governo a não
ser recuperar a terra para o patrimônio público, pois a origem da ocupação está
viciada e não há como admitir a confirmação dos atos praticados. No entanto, se
a grilagem pode ser classificada como irregular, basta a validação dos atos praticados para que as irregularidades estejam sanadas ou, pelo menos, parte das irregularidades. Em outras palavras, se os atos praticados da grilagem ofenderam
as normas jurídicas, devido a alguns elementos intrínsecos a esses atos, há a
possibilidade de serem ratificados, a fim de que o ato se valide.
Assim, revendo a pergunta anterior, podemos fazer a seguinte indagação:
toda grilagem de terra pública é ilegal ou dependendo de certas circunstâncias
ou características pode ser enquadrada como irregular?
As diferentes formas de ocupação da Amazônia, seja com apoio legal
e financeiro do Poder Público ou por iniciativa própria, acabaram criando um
cenário complexo que não pode ser enquadrado somente em uma definição um
estereótipo de apropriação do patrimônio público. Deve-se considerar a complexidade para buscar as soluções, por isso que ao tratar os casos concretos de
grilagem encontra-se situações de ilegalidade, como também de irregularidade.
É consenso de que combater a grilagem da terra e dos recursos naturais
terá grande repercussão ambiental e na estruturação social, pois acaba com a
violência como forma de se ter acesso aos bens públicos, e é também uma indi-
5
Divulga-se que o termo grilo ou grilagem tem sua origem na tentativa de transformar
títulos falsificados, dando-lhes aparência de legais, com o emprego do inseto ortóptero
– o grilo, tanto que o Dicionário Aurélio define grileiro como sendo “Indivíduo que
procura apossar-se de terras alheias mediante falsas escrituras de propriedade”. Logo, a
terra grilada é aquela em que o título de propriedade é falso. O mecanismo utilizado, e
que acabou denominando o processo de apropriação ilegal de terras públicas, era o de
“comprar” dos cartórios ou de terceiro um falso título da terra e, para lhe dar uma certa
aparência de autenticidade, o documento era colocado em uma gaveta com alguns grilos. Passado algum tempo, os grilos iriam alimentar-se das bordas da escritura, expelir
excrementos no documento e auxiliar na transformação do papel de cor branca para uma
cor amarelada, ficando com um aspecto envelhecido. Assim, o título de propriedade da
terra com esse novo visual daria maior credibilidade ao seu possuidor, que alegaria já ser
proprietário daquela gleba de terra há algum tempo. Atualmente, empregam-se outras
tecnologias mais eficazes para conseguir o mesmo objetivo, ou seja, a falsificação de
documentos.
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cação de que existem mecanismos democráticos de se obter a terra.
Neste contexto, discutir o fim da grilagem na Amazônia é discutir a relação entre a consolidação da propriedade privada e o Estado de direito social,
ou seja, no caso amazônico, a institucionalização da propriedade privada (individual e coletiva) é uma condição para a consolidação de um modelo democrático
e participativo de distribuição e gestão da terra e dos recursos naturais.
No processo de regularização fundiária não estamos nos referindo a qualquer tipo de apropriação privada, por isso que afirmamos que a grilagem pode
ser classificada em ilegal e irregular. O reconhecimento do direito de propriedade privada em terras públicas está vinculado a uma apropriação individual
ou coletiva da terra, compatível com a função sócio-ambiental do imóvel rural.
Outro elemento importante neste debate é a capacidade de garantir a distribuição eqüitativa da propriedade privada e, que ao mesmo tempo, reconhecer
os diferentes tipos de propriedades. Logo, deve-se garantir o acesso às diferentes
formas de apropriação da terra e dos recursos naturais, de tal modo que uma concepção de uso não venha se sobrepor e a concentrar uma grande quantidade de
terra. E ao garantir o acesso para o desenvolvimento das diferentes atividades
sociais e econômicas, as propriedades ficam comprometidas em cumprir a sua
função social e ambiental. Assim, o acesso plural à terra e a função social da
propriedade são duas manifestações das cláusulas do Estado democrático. Não
se pode implementar uma, sem assegurar a efetividade da outra.
A importância da garantia do direito de propriedade, com essas duas dimensões, está no fato de reconhecer o direito à terra às comunidades indígenas,
às populações tradicionais, aos camponeses e aos médios e grandes posseiros6.
Ao mesmo tempo em que se reconhece um direito, estão-se definindo deveres,
pois se possibilita que a propriedade tenha um limite reconhecido, um cadastro
confiável, o uso da terra e dos recursos naturais legalizados e monitorados. Reconhece-se o espaço de manifestação de liberdade do indivíduo ou da coletividade e, concomitantemente, assegura-se que o exercício da autonomia privada
esteja sujeito à função social e ambiental do imóvel rural.
3.
CRITÉRIOS PARA REGULARIZAR AS OCUPAÇÕES IRREGULARES E
DESTINAR AS TERRAS PÚBLICAS
A oposição à grilagem não será eficaz se limitar as políticas de comando
e controle7, será preciso reconhecer que nem toda ocupação da terra pública é
ilegal, em muitos casos a situação de irregularidade persiste por falta da atuação
do Poder Público. Por isso o combate à grilagem de terra na Amazônia precisa
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focar em duas medidas:
a) Apresentação de critérios de regularização fundiária da pequena, média
e grande ocupação, privilegiando a pequena propriedade familiar;8
b) Critérios para a destinação de terras públicas, para outros usos ou para
fim de proteção ambiental.
O fato de conceder algumas prerrogativas à pequena propriedade não exclui a possibilidade de destinar terras para a média e grande propriedade. Pelo
contrário, a idéia é ter a pequena ocupação como parâmetro, a fim de ajudar na
construção dos critérios para a destinação de terras públicas para a grande propriedade, porque a Constituição Federal faz esse tratamento distintivo.
Mesmo quando utilizado o termo ocupação irregular, deve-se ter uma
interpretação sistêmica da legislação brasileira, incluindo as normas agrárias e
ambientais. Tradicionalmente tem-se interpretado um ato irregular de ocupação da terra somente sob o prisma agrarista. Contudo, quando os princípios e
comandos normativos ambientais são incluídos, um ato até então considerado
legal pode ser caracterizado como irregular no uso dos recursos naturais. Neste
âmbito, quais são os elementos necessários para assinalar uma ato irregular,
tanto na concepção agrarista como ambientalista, ou seja, dentro de uma noção
agroambiental?
Os requisitos necessários para que uma ocupação de terras pública faça
jus à legitimação da posse deve ser respeitada a ocupação de terras devolutas, a
qual é manifestada em cultura efetiva e moradia habitual. Logo, é condição sine
qua non que a área esteja sendo ocupada. Além disso, nesse processo, é vedada
a regularização de áreas com dimensão territorial inferior à fração mínima de
parcelamento do módulo rural.
Outro aspecto a ser levado em consideração são os comandos normativos
relativos ao meio ambiente. Assim, as áreas a serem regularizadas devem pas-
6
Lembrando que trabalhamos com a concepção de que a grande ocupação é a faixa de
ocupação com base na Lei Agrária e na Constituição Federal, ou seja, compreende as
posses acima de 15 módulos fiscais e abaixo de 2.500 hectares.
7
Os instrumentos de comando e controle são mecanismos de regulação direta, objetivando modificações no comportamento dos agentes por meio da imposição da lei, que
tem um caráter punitivo para quem contraria o comando normativo. O instrumento fixa
parâmetros técnicos para as atividades econômicas, visando garantir o objetivo que se
deseja alcançar. Com o instrumento de comando e controle, o Estado faz cumprir a lei
através do monitoramento, fiscalização e da responsabilização do agente econômico, o
que implica em recursos financeiros suficientes no seu orçamento para garantir o funcionamento destes mecanismos.
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sar, antes da titulação, pelo enquadramento ambiental, ou seja, tem que buscar
recuperar o passivo ambiental existente no imóvel rural. São exigências constitucionais necessárias para legitimar a ação do Poder Público no reconhecimento
do direito à terra. O pressuposto básico é verificar qual é a função dada a terra:
a área ocupada está cumprindo a sua função socioambiental?
Incorporando o princípio da responsabilidade ambiental, a Constituição
de 1988 é categórica ao definir, no art. 186, que a função social é cumprida
quando a propriedade rural atender simultaneamente, segundos critérios e graus
de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
a) aproveitamento racional e adequado da terra e dos recursos naturais;
b) utilização racional dos recursos naturais disponíveis e preservação do
meio ambiente;
c) observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
d) exploração que favoreça o bem-estar do proprietário e dos trabalhadores.
Nesses mandamentos constitucionais estão explicitados os três elementos necessários para a efetivação da função social: o econômico, o social e o ambiental.
A conciliação da utilidade privada (atividade agrária ou da função produtiva) e dos
interesses públicos ocorre quando a exploração econômica leva em consideração os
aspectos social e ambiental.
Resumindo, o imóvel rural tem a incumbência constitucional de produzir e
proteger os bens ambientais. A função ecológica do imóvel rural é efetivada quando os serviços ambientais do ecossistema9 estão assegurados, ou seja, ao dar uma
destinação útil à terra e aos recursos naturais (por meio do seu aproveitamento na
agricultura, na pecuária e no manejo), o desenvolvimento da atividade agrária
manterá um grau satisfatório dos serviços ecológicos10.
Logo, os critérios de regularização das áreas públicas ocupadas devem
levar em conta esses princípios constitucionais, e as ocupações que não respeitaram boa parte dos mandamentos constitucionais são ilegais e, portanto, não
podem ser regularizadas.
4.
CRIAÇÃO DE ESPAÇOS DISTINTOS: UMA PARA A PROPRIEDADE
FAMILIAR E OUTRA PARA A GRANDE PROPRIEDADE
8
A Lei federal Nº 11.952/2009 apresenta os critérios para regularizar no âmbito das terras da União na Amazônia, e a Lei Nº 7.289/2009 estabelece os critérios para regularizar
as terras do Estado do Pará.
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Atualmente a terra não é somente fonte de alimentos, mas é um recurso
natural importante para manutenção da biodiversidade, da produção do biodiesel e outras matérias-primas para a indústria. O Brasil é um dos poucos
países do mundo que ainda possui terra para expandir a atividade agrária, pagando um custo alto que é a destruição da floresta. Portanto, a tendência é aumentar
a disputa por esse recurso cada vez mais escasso e valorizado.
É preciso buscar mecanismo que assegure espaço para o desenvolvimento
da atividade agrícola familiar, um deles é o instituto jurídico que regula o acesso
a terra, ou seja, o contrato de concessão de direito real de uso, substituindo o
título definitivo.
Nesse momento de caos fundiário e forte disputa pela terra, é preciso criar
dois espaços para que a propriedade familiar e a grande propriedade possam se
desenvolver sem que esta abocanhe o espaço daquela.
A distinção da titulação entre concessão e título definitivo é apresentada
como política pública, porque a atual situação caótica fundiária assim o exige.
Se optássemos pela titulação definitiva para todas as propriedades e assentamentos, a médio prazo, teríamos o aumento da concentração da terra e inúmeras
famílias sem terra em busca de novas áreas para ocuparem. Isso quer dizer que
de nada adiantará o reconhecimento e a distribuição de lotes à pequena propriedade ou a criação de assentamentos.
Na política de regularização fundiária, um dos aspectos que estimula a concentração de terra é o título do imóvel alcançar valor superior ao da produção
agrária, provocando a venda da terra titulada. Essa tendência é maior em áreas
com poucos imóveis rurais regularizados e com o aumento da demanda por terras
legalizadas. Esse é o caso atual do Pará com a entrada do agronegócio que tem
como meta implantar a soja, a cana-de-açúcar e o biodiesel.
O objetivo que se busca alcançar com a concessão consiste em tirar as
áreas destinadas para a pequena propriedade da especulação imobiliária e es9
Ecossistema pode ser entendido como a comunidade de plantas, animais ou outros
seres vivos, juntamente com o componente inorgânico do ambiente natural, encontrados
num determinado habitat e interagindo entre si.
10
Denominamos serviços ecológicos ou ambientais do ecossistema a manutenção da capacidade de retenção de parte do ciclo de carbono, a manutenção do sistema hidrológico
e climatológico, a função de barreira natural contra a propagação de incêndios florestais,
a reciclagem de nutrientes, o fornecimento de matéria-prima, o controle da erosão e a
manutenção da biodiversidade. De modo geral, os serviços ecológicos podem ser definidos como sendo as circunstâncias e os processos, dentro de cada ecossistema, e as espécies que fazem parte desse meio ambiente, que sustentam o ecossistema e possibilitam
a realização da vida humana.
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timular as ações coletivas – tais como o associativismo – com o intuito de
melhorar a produção e o preço da produção familiar. Quanto à grande propriedade, o objetivo é desestimular a procura, pois o estado não pode favorecer
a concentração de terra. Assim, somente quando houver um mercado de terra
estabilizado, com a regularização fundiária da média e da grande propriedade e
com a política agrícola consolidada para a propriedade familiar, é que se poderá
pensar em mudar a concessão para a titulação definitiva.
Outra política importante para assegurar o espaço para a pequena propriedade é a constitucionalização do limite ao direito de propriedade, que discutiremos logo mais.
5.
A POLÍTICA DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIO DO ESTADO DO PARÁ
O Estado do Pará já iniciou o processo de ordenamento territorial e regularização fundiária com a Política Estadual de Ordenamento Territorial (PEOT).
Essa política leva em conta os comandos normativos previstos na Constituição
Federal e na Estadual, na legislação estadual e nos procedimentos administrativos do Instituto de Terras do Pará (ITERPA). Com isso, busca conciliar os
princípios da produção agrária e da proteção ambiental.
Tendo como finalidade priorizar a propriedade familiar, o ITERPA foi
reestruturado para que seja possível a criação de assentamentos. A atual organização do órgão conta com a Coordenadoria de Projetos Especiais composta
pela Gerência de Comunidades de Quilombos e pela Gerência de Projetos de
Assentamento. Para tanto, o Estado criou três tipos de assentamentos: a) Projeto
Estadual de Assentamento Sustentável (PEAS); b) Projeto de Assentamento Estadual Agroextrativista (PEAEX); e c) Território Estadual Quilombola (TEQ).
Os assentamentos criados pelo Estado receberão concessão de direito real
uso, enquanto que os quilombolas receberão a titulação definitiva e coletiva,
conforme estabelecem a Constituição Federal e a Estadual.
O objetivo que se busca alcançar com a concessão de direito real de uso
nas áreas de assentamento é retirar as áreas destinadas para a pequena propriedade da especulação imobiliária e estimular as ações coletivas – tais como o
associativismo – com o intuito de melhorar a produção e o preço da produção
familiar. Quanto à grande propriedade, o objetivo é desestimular a procura, pois
o Estado não pode favorecer a concentração de terra. Assim, somente quando
houver um mercado de terra estabilizado, com a regularização fundiária da média e da grande propriedade e com a política agrícola consolidada para a propriedade familiar, é que se poderá pensar em mudar a concessão para a titulação
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definitiva.
Nesse primeiro momento, a criação de assentamento é pensada como uma
política de regularização fundiária em áreas de ocupação humana, ou seja, não é
política do ITERPA criar assentamentos em áreas sem ocupação humana. O que
se busca para as áreas com cobertura vegetal natural é a proteção ambiental, priorizando instrumentos que assegurem a sua conservação. O mesmo tratamento se
dará para o processo de regularização fundiária rural, isto é, não haverá alienação
de terra pública com floresta para iniciar projetos agropecuários.
A inovação do estado do Pará é realizar a regularização com uma nova
metodologia, isto é, a Varredura Fundiária priorizando a atuação no âmbito do
município com ação governamental conjunta, envolvendo a Secretaria de Projetos Estratégicos, a Secretaria de Meio Ambiente, a Secretaria de Agricultura,
o Instituto de Terras do Pará e a Empresa de Assistência Técnica e Extensão
Rural do Pará. Com ações conjugadas, espera-se titular, licenciar as atividades
agrárias e discutir a produção agrícola do imóvel rural.
Busca-se, com essa política, um processo de gestão territorial contínua,
transparente e democrática, pactuado com os diferentes atores sociais (federal,
estadual, municipal e sociedade civil), além de realizar uma “varredura” fundiária.
Sendo assim, os objetivos que tal política pretende alcançar são: diminuir a violência rural e o desrespeito aos direitos humanos, assegurar o direito de propriedade aos diferentes segmentos sociais, diminuir o desmatamento, garantir a
sustentabilidade ambiental e priorizando a ocupação familiar.
Os processos de regularização de posse deverão ser acompanhados de
planta e de memorial descritivo georreferenciado cujos custos financeiros para
a sua elaboração deverão ser de responsabilidade da(o) beneficiária(o) da legitimação, com exceção dos processos de da pequena propriedade, quando se tratar
de doação, e a criação de assentamento.
Os títulos de domínio expedidos pelo órgão fundiário conterão cláusulas
que obriguem o beneficiário a manter, a conservar e, se for o caso, a restaurar as áreas de preservação permanente e de reserva legal. Tais títulos também
conterão como cláusula obrigatória que diz respeito à averbação à margem do
registro do imóvel, junto ao cartório competente, da área de reserva legal.
Em decorrência da infra-estrutura tecnológica que está se organizando – a
qual contará com cadastro dos imóveis georreferenciado e com técnicos capacitados
para a execução do mapeamento através do sistema GPS –, a metodologia a ser
utilizada na coleta das informações sobre as características físicas dos imóveis
se refere ao georreferenciamento apoiado na Rede Geodésica Federal. Objetivase, com isso, organizar um banco de informação próprio das propriedades rurais
e compartilhado tanto por instituições públicas (Federais, Estaduais e MuniciHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009
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pais) quanto por registros imobiliários, servindo para melhor definição de divisas municipais, de perímetros urbanos e de unidades de conservação. Com
uma base cadastral estruturada, reunindo elementos necessários ao trabalho de
reforma agrária e de ordenamento fundiário, o Estado poderá planejar e executar
de forma sistemática as ações de democratização do acesso à terra, de combate
à grilagem e de fiscalização do uso da propriedade rural.
A Varredura Fundiária irá levantar todos os imóveis rurais na área que
está atuando, constituindo uma malha fundiária e de ocupação existente. Busca
com isso obter informações sócio-econômicas da realidade da região, possibilitando o ordenamento territorial, a titulação das ocupações legitimáveis, a criação de assentamentos, o reconhecimento à terra aos quilombolas, bem como,
destinar às terras públicas para proteção ambiental ou concessão florestal. A
ocupação familiar terá prioridade na destinação das terras públicas com o intuito
de fortalecer a agricultura familiar, com vistas ao seu desenvolvimento social,
econômico e ambiental. Maiores informações podem ser adquiridas no site do
instituto (www.iterpa.pa.gov.br).
6.
A LEI FEDERAL Nº 11.952/2009 E O DEBATE SOBRE JUSTIÇA SOCIAL E PROTEÇÃO AMBIENTAL
A Lei nº 11.952, de 25 de junho de 2009, que dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União,
no âmbito da Amazônia Legal. A novidade contida na norma foi a dispensa de
licitação para áreas rurais até quinze módulos fiscais na Amazônia para quem
ocupa desde dezembro de 2004, e por esse e outros comandos normativos recebeu algumas críticas, entre elas as que relacionam a lei a consolidação da grilagem ou como estímulo ao desmatamento. O Greenpeace chegou a afirmar que
a lei será o Programa de Aceleração da Grilagem – PAG, pelo fato que as áreas
ocupadas até quinze módulos fiscais11 na Amazônia poderão ser compradas sem
11
O módulo fiscal (MF) é fixado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA) e definido por lei pelo município, sendo regulamentado pelo art. 4º do
Decreto Nº 8.485, de 06/05/80. No Pará a maioria dos municípios possui módulo fiscal
entre 55 a 75 ha, com exceção de Ananindeua, Benevides, Marituba e Santa Bárbara,
onde o módulo fiscal é de 7 ha. O Estado do Amazonas possui MF de 80 e 100 ha; no
Acre a maioria é de 100 ha e um terço é de 70 ha; no Amapá, 50 e 70 ha; em Rondônia,
60 ha e, em Roraima, 80 e 100 ha (fonte: INCRA, 2001).
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licitação. O Movimento dos Trabalhados Rurais Sem Terra (MST) fez a mesma
crítica, dizendo que a norma jurídica possibilita a legalização da grilagem.
O Imazon – Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia ficou
no meio termo nas críticas. De um lado declara que o governo acerta ao tentar
regularizar as terras ilegalmente ocupadas. De outro lado ressalva que a lei pode
reforçar a expectativa entre os candidatos a posseiros e grileiros de que nova
“regularização” ocorra no futuro, ampliando a ocupação de terras públicas.
Para saber qual será o efeito real da norma de regularização fundiária pelo
menos duas perguntas devem ser respondidas: essa norma vai colaborar para
aumentar a concentração de terra? Irá facilitar ou estimular o desmatamento na
Amazônia? São duas perguntas que possuem abrangências distintas. A primeira
está relacionada ao debate do acesso à terra da pequena propriedade e a outra a
questão ambiental.
Na realidade, a Lei nº 11.952/2009, está inserida em um novo contexto
político, onde os órgãos públicos agrários estaduais e federais (ITERPA, MDA e
o INCRA), o IBAMA e a Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Pará estão
atuando em parceria para combater a grilagem e a violação do meio ambiente.
Nesse novo contexto, o desmatamento não será o critério principal de legitimação da ocupação, mas a destinação socioambiental do imóvel rural.
O Estado deve ser pró-ativo e coordenar o processo do ordenamento territorial para que suas políticas públicas sejam eficazes, pois a falta de uma política
de destinação de bens públicos pode promover – e é o que, na maioria das vezes,
ocorre, caso haja a falta dessa política – um ordenamento caótico das áreas territoriais por meio da grilagem. Essa forma espontânea de ordenamento é nociva
aos direitos humanos e ao meio ambiente. Para tanto, é necessário estabelecer
uma política de ordenamento territorial que inclua: regularização fundiária, licenciamento ambiental das propriedades rurais, cumprimento da função social
da propriedade, controle, fiscalização e instrumentos econômicos12 capazes de
12
Um incentivo é um mecanismo de política que visa levar ou estimular os agentes
econômicos a desenvolver determinadas ações e comportamentos para alcançar metas
e objetivos predeterminados. O incentivo econômico encoraja as pessoas a ter certos
comportamentos desejados. O incentivo fiscal é a isenção ou redução de impostos estabelecidos em lei para estimular gastos privados em certas áreas ou programas.
O incentivo pode ser criado para beneficiar uma atividade, estimular comportamentos
ou desestimulá-los. Dessa forma, os incentivos econômicos (financeiros e fiscais) podem ser uma forte ferramenta para estimular a proteção dos recursos naturais no imóvel
rural, pois possibilitam corrigir tendências do mercado que podem estar encorajando
ações contrárias à conservação da natureza. Contudo, os incentivos econômicos são
instrumento público complementar ao de comando e controle.
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estimular a gestão sustentável dos recursos naturais, de maneira especial, a floresta.
O que causa insegurança e descontrole é a falta de definição do direito de
propriedade como se encontra atualmente a região amazônica. A regularização
fundiária que está se propondo busca desestimular o desmatamento e assegurar
o controle das áreas públicas e privadas. Atualmente um quinto da Amazônia
Legal permanece como “terra devoluta” e parte considerável das terras arrecadadas pelo Poder Público nas décadas de setenta e oitenta não receberam uma
destinação efetiva. Este fato leva o mesmo poder público a desconhecer quem
e como suas terras estejam sendo ocupadas. O reconhecimento formal das diferentes formas de ocupação existentes permitirá ao Estado e a sociedade controle sobre o uso da terra e demais recursos naturais. Portanto, a regularização
fundiária terá impacto positivo e não negativo, desde que priorize a ocupação
familiar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Resumindo, a regularização fundiária deve trabalhar com critérios de reconhecimento do direito a terra (moradia, prazo mínimo de ocupação e função
socioambiental do imóvel rural) como também com critérios de exclusão do
direito a terra (área reivindicada que não cumpre a função social, e a utilização
de trabalho forçado para realizar qualquer atividade laboral dentro do perímetro
da área reivindicada), priorizando as posses familiares.
O nó górdio é o atual paradoxo da Constituição Federal, que ao estabelecer critérios para destinação das terras públicas para a propriedade
familiar e a proteção ambiental, não criou nenhum obstáculo a concentração da
terra.13 O principal comando constitucional que apresenta algum embaraço ao
grande latifúndio é a obrigação de cumprir a função social da terra.14 Contudo,
isso não é suficiente para impedir a formação da grande propriedade no Brasil, se
faz necessário a constitucionalização do limite do direito de propriedade, esta13
O artigo 188 da Constituição Federal determina que “A destinação de terras públicas
e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária. O § 5º do artigo 225 preconiza que “São indisponíveis as terras devolutas
ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos
ecossistemas naturais.”
14
A função social da propriedade está presente nos artigos 5º, XXIII; 170, III e 186 da
Constituição Federal.
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belecendo uma restrição ao tamanho da área e a quantidade de imóveis rurais que
uma pessoa pode possuir no Brasil.
O debate principal para que se consiga uma verdadeira distribuição de
terra no Brasil é limitar o direito de propriedade. Não é a proposta de regularização fundiária que inclua a média e grande ocupação que irá acelerar o processo
de concentração de terra. A concentração de terra já existe e somente a política de reforma agrária não será suficiente para combater o grande latifúndio. A
reforma agrária está contribuindo para garantir o acesso a terra à propriedade
familiar, mas não é suficiente para limitar a concentração de terra, pois no mercado o acesso a terra é livre, desde que haja um proprietário querendo comprar e
outro com interesse de vender o negócio pode se consolidar, sem levar em conta
nenhum critério social ou ambiental.
Enquanto não houver uma restrição ao direito de propriedade, o processo
de poucos possuírem muito continuará, com uma forte tendência de aumentar
ainda mais a atual concentração de terra.
A campanha liderada pelos movimentos sociais que atuam na área agrária
objetivando incluir na Constituição Federal uma emenda que estabelece um
limite máximo à propriedade da terra no Brasil é um grande passo no combate a
concentração da terra e dos recursos naturais.
Por outro lado, o mercado nacional e internacional está fechando o cerco
às práticas predatórias e a sociedade vem exigindo comportamentos comprometidos com a sustentabilidade ambiental e a responsabilidade social. O que
precisamos agora é de uma política socialmente justa, ambientalmente sustentável e economicamente inclusiva.
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REFERÊNCIAS
BENATTI, J. H.; SANTOS, R. A.; GAMA, A. S. P. A grilagem de terras públicas na Amazônia brasileira. Brasília: IPAM:MMA, 2006 (Série Estudos).
BRASIL. Constituição Federal do Brasil, 2008.
BRASIL. Lei Federal Nº 11.952/2009, apresenta os critérios para regularizar no
âmbito das terras da União na Amazônia.
BRASIL. Lei Nº 7.289/2009, estabelece os critérios para regularizar as terras do
Estado do Pará.
PARÁ. Ordenamento territorial e regularização fundiária no Pará. Belém:
Iterpa, 2008.
www.iterpa.pa.gov.br
Artigo recebido em: 26/04/2010
Artigo aprovado para publicação em junho /2010.
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TUTELA INIBITÓRIA COLETIVA E O MEIO
AMBIENTE DO TRABALHO
Priscila Campana*
Sumário: 1. Segurança no trabalho e a necessidade de prevenção; 2. A incapacidade da
técnica ressarcitória na defesa dos direitos coletivos; 3.O sentido preventivo da tutela
inibitória; 4. Fundamento legal da tutela inibitória e a sua antecipação; 5. O meio ambiente do trabalho; 6. O papel do Ministério Público do Trabalho e sua legitimidade; 7.
Cabimento da ação civil pública?; 8. A utilização da ação inibitória coletiva Considerações finais; Bibliografia
Resumo: A pesquisa objetiva analisar o
instituto da ação inibitória e sua possível
aplicação na tutela coletiva do meio ambiente trabalhista. Entende-se tal instrumento processual como relevante porque
sua finalidade não é a de reparar um direito já transgredido, mas sim a de impedir
o prolongamento ou a reiteração do ilícito
praticado. Assim, sustenta-se a distinção
entre dano e ilícito para desmitificar o
paradigma processual civil tradicional
que se preocupa tão-somente com a lesão
e sua conseqüente reparação. A lógica da
proteção inibitória é preventiva, onde não
se aguarda a ocorrência do dano para que
seja providenciada tutela. Desta forma,
por meio de inspiração no direito italiano, é possível assentar no direito pátrio
a ação inibitória, considerando que a ação
civil pública tornou-se insuficiente para
garantir integralmente proteção ao meio
ambiente laboral, e que o Ministério Público do Trabalho é agente legítimo na sua
promoção.
Abstract: The research aims to analyze the
inhibitory institute and its possible collective protection application of the work environment. It is understood that such procedural tool as relevant because its target
is not for repairing the rights already transgressed, but to prevent the prolongation or
the illicit reiteration practiced. Thus, it is
supported the distinction between damage
and illicit for demystifying the traditional
civil procedural paradigm that is worried
only about the damage and its consequent
reparation. The inhibitory protection logic
is preventive, where it is not awaited the
damage occurrence to prepare the protection. Therefore, through Italian law inspiration is possible to place on the paternal
law the inhibitory protection, considering
that the public civil action has become insufficient to assure integrally the laboring
environment protection; and that the Public
State Prosecutor is the legitimated agent in
its promotion.
Palavras-chave: meio ambiente do trab- Key-words: work environment; inhibitory
alho; ação inibitória; direitos transindivid- protection; trans-individual rights.
uais
* Pós-doutora em Direito (UFSC); Doutora em Direito (UFPR); Professora na Sociesc/
SC e UnC/SC.
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1.
SEGURANÇA NO TRABALHO E A NECESSIDADE DE PREVENÇÃO
Os comportamentos genéricos das empresas faltando às obrigações de
cumprir e fazer cumprir normas de segurança dos empregados acaba por ser
configurar fraude aos direitos sociais constitucionalmente garantidos. A Carta
Magna de 1988 dignifica o trabalho, considerado como fundamento republicano, onde a ordem econômica deve estar insculpida na sua valorização.
Dessa forma, sistematizando o princípio de que a saúde é direito de todos
e dever do Estado, a Constituição Federal garante no artigo 7º, XXII “a redução
dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”.
A falta de efetividade das normas protetivas laborais é um dos vários
problemas da saúde do trabalhador brasileiro. O elevado número de acidentes
trabalhistas, e de mortes, principalmente na área da construção civil, demonstram
que o direito à saúde do trabalhador deve sair do plano abstrato normativo e adquirir ressonância prática. E, consequentemente, o melhor caminho não é a reparação da lesão mas sim a prevenção do ilícito, a obliteração da continuidade ou
repetição da violação ao direito por parte, no caso, dos empregadores1.
De acordo com dados oficiais da Previdência Social, os acidentes do trabalho causam em média cerca de três mil mortes por ano no país. Os indicadores apontam que no setor privado, 653.090 acidentes foram registrados no
ano de 2007, número maior que o de 2006, de 512.232 casos, e óbito de 2.804
cidadãos2.
A problemática insere-se no campo do menosprezo à saúde e vida do
trabalhador quando o empregador, pela corrida ao lucro, não investe em maquinários seguros, em equipamentos modernos de trabalho e muito menos em
Programas de Prevenção dentro de sua empresa. Conforme pesquisa a respeito,
Sebastião Geraldo Oliveira3 pondera:
1
A prevenção de acidentes significa melhor qualidade, produtividade e competitividade
do produto, o que não entenderam ainda os empregadores atrasados, comenta Raimundo
Simão de Melo. Ainda pondera que as estatísticas oficiais mostram dados aterrorizantes
em relação ao número de acidentes típicos e de doenças profissionais e do trabalho,
destacando-se, entre estas, a surdez profissional, a lesão por esforços repetitivos (LER),
doenças de coluna, silicose e intoxicação por chumbo. In Segurança e meio ambiente do
trabalho: uma questão de ordem pública, p. 48.
2
Dados disponíveis em http://www.previdenciasocial.gov.br, acesso em 25.08.2009.
32
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O problema do acidente do trabalho e das doenças ocupacionais que lhes são equiparadas continua desafiando as inteligências do mundo inteiro, com estatísticas que abalam
consciências. O local de trabalho é para o empregado
ganhar a vida, não para encontrar a morte. (…) O combate às agressões à saúde do trabalhador pode ser travado
em várias frentes. O êxito, entretanto, está condicionado
à implementação de uma nova mentalidade, priorizando a
luta pelo ambiente de trabalho saudável, porque até então
os esforços estão sendo canalizados com muita ênfase para
o socorro das vítimas, e com pouco empenho para a prevenção dos danos.
Vê-se, com isto, que não é suficiente o controle judicial posterior às
lesões, com cunho individualizado. Imprescindíveis, perante a comprovação
da ilicitude dos atos fraudatórios e reiterados do empregador, medidas também
genéricas, preventivas, que obliterem tais comportamentos violadores do direito, e que podem ser atingidas através de sua inibição4.
Perante tal quadro, a instituição essencial na defesa da ordem jurídica e
dos interesses da sociedade, que é o Ministério Público, atua na prevenção e
reparação dos danos causados aos trabalhadores vítimas de acidente trabalhista
em função da ausência, por parte das empresas negligentes, de regular aplicação
das normas de segurança, fundamentais à salubridade do meio ambiente trabalhista
e, consequentemente à incolumidade física e mental do trabalhador.
O órgão ministerial atua obrigatoriamente nos processos relacionados a
acidentes trabalhistas por causa da sua natureza, de ordem pública, e em razão
3
In Proteção jurídica à saúde do trabalhador, p. 290.
Decisão da comarca de Cubatão, de 02.07.88, na Ap. cível 99.091-1, no episódio do
incêndio da Vila Socó, confirmou a responsabilidade da Petrobrás, nos seguintes termos: “…é aquela estatal a proprietária do oleoduto e a única responsável pela sua conservação e manutenção. E um dos fatores determinantes do evento foi precisamente a
corrosão dos tubos, fazendo com que ocorresse o seu rompimento quando aumentada
a pressão do combustível em decorrência do fechamento das válvulas. Por outro lado,
como bem assinalou a r. sentença, é também a Petrobrás a responsável pela existência de
sistemas de segurança capazes de detectar a ocorrência de vazamentos, como aquele que
se verificou. Finalmente, também é a estatal responsável pela precariedade dos sistemas
de comunicação com a Codesp relativamente à operação de bombeamento e indicação
precisa dos dutos utilizados, como anotado pela perícia”. In CAMPOS, José L. Dias.
Responsabilidade civil e criminal decorrente de acidente do trabalho na Constituição
de 1988, p. 122.
4
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da qualidade da parte, geralmente mais débil na relação jurídica levada a juízo.
Deste modo, a tutela ao meio ambiente do trabalho sadio transcendeu
o nível individual e tornou-se matéria de cunho público, já não mais somente
interesse dos grupos sindicais em defesa de tais direitos, mas especialmente de
toda a sociedade.
2.
A INCAPACIDADE DA TÉCNICA RESSARCITÓRIA NA DEFESA DOS
DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS
A doutrina tradicional do processo civil, num contexto individualista e
patrimonialista, conformou seu sistema à supremacia da técnica ressarcitória
como único remédio contra o ato ilícito, o ato violador ao direito.
A importância da responsabilidade civil na atualidade é fundada na preocupação de restauração de equilíbrio patrimonial e moral desfeito pelo evento danoso, conforme vasta doutrina pátria explicada em Maria H. Diniz, Caio Mário da
Silva Pereira, Sílvio Neves Baptista, entre outros5. Neste sentido o instituto é fonte
de uma relação obrigacional que visa a prestação de ressarcimento, tão somente.
Contudo, embora esta lógica sirva especialmente aos direitos patrimoniais tradicionais, passíveis de reposição da lesão com a conversão em
pecúnia, é, ao mesmo tempo, insatisfatória quando pensada ao nível dos direitos
não patrimoniais, pois preocupa-se somente com o ressarcimento dos danos, já
ocorridos, e como ocorrerá a indenização.
Ocorre que, num enfoque que afasta o sistema da responsabilidade civil,
a tutela dos direitos transindividuais, coletivos e difusos, requer não a recomposição do statu quo ante (muitas vezes impossível de concretizar), ou sua in5
De acordo com Maria H. Diniz: “A responsabilidade civil constitui uma sanção civil,
por decorrer de infração de norma de direito privado, cujo objetivo é o interesse particular, e, em sua natureza, é compensatória, por abranger indenização ou reparação de dano
causado por ato ilícito (...)”. Desse modo, a responsabilidade civil orienta-se à reparação
do dano causado a outrem, desfazendo tanto quanto possível seus efeitos, restituindo o
prejudicado ao seu estado anterior. In DINIZ, M. H. Curso de direito civil, p. 07. Para
Caio Mário da Silva Pereira, “a responsabilidade civil consiste na efetivação da reparabilidade abstrata do dano em relação a um sujeito passivo da relação jurídica a que
se forma”. In PEREIRA,C. M. S. Responsabilidade civil, p. 11. No mesmo sentido Sílvio N. Baptista conceitua como “(...) a relação obrigacional decorrente do fato jurídico
dano, na qual o sujeito do direito ao ressarcimento é o prejudicado, e o sujeito do dever
o agente causador ou o terceiro a quem a norma imputa a obrigação”. BAPTISTA, S. N.
Teoria geral do dano, p. 59.
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denização, mas sim, e sobretudo, a sua prevenção.
Há casos em que, ocorrendo o dano, há irreversibilidade de recompor o
bem lesado. E quando ilícito e dano se afirmam em momentos distintos, nada
mais coerente do que evitar o dano atacando desde logo a prática do ilícito.
Ou seja, o sistema de responsabilidade civil nas atuais sociedades de massa, que necessitam de tutela de seus bens coletiva e difusamente, é inoperante
pois este visa somente restabelecer o equilíbrio violado pelo dano.
Por outro lado, para que haja a tentativa de satisfazer a tutela dos novos
direitos emergentes, existe a necessidade de repensar a técnica civilista, baseada
na resolução de conflito tipo “Caio versus Tício”, e partir para a aceitação de
tutelas coletivas.
A preocupação passou a ser a ocorrência de eventos lesivos irreparáveis
e que não são passíveis de monetarização, como os direitos não patrimoniais
transindividuais. Ao invés da clássica sanção ressarcitória, incabível neste caso,
recorre-se a outra forma de tutela, a inibitória, que servirá operante antes da violação e com efeitos diretamente reintegratórios dos direitos em hipótese ameaçados.
Neste passo, o tema da tutela inibitória vem assumindo papel importante,
já tendo despontado no Processo Civil italiano.
Cristina Rapisarda6, referindo-se à incapacidade da tradicional tutela ressarcitória em garantir efetivamente a tutela dos novos direitos, pontua que
la non patrimonialità pone in luce anche l’esigenza di forme
di tutela ripristinatorie o, piú precisamente, reintegratorie,
che mirino a garantire l’attuazione ‘dell’interesse specifico
per cui si invoca la tutela’, anzichè del diverso interesse
alla restaurazione patrimoniale del soggetto leso, secondo
il principio dell’equivalente monetario.
É preciso, antes de aprofundar a técnica reintegratória, distinguir os conceitos de dano e de ilícito civil.
Ocorre unificação do instituto do ilícito civil com a da responsabilidade
por dano devido à idéia, originada de um processo histórico, que relacionava automaticamente a tutela privada do bem com a recomposição do valor econômico
deste no patrimônio do indivíduo lesado. O ressarcimento do dano era considerado o único modo de tutela contra o ilícito, que era confundido com a
6
RAPISARDA, Cristina. Profili della tutela civile inibitoria, p. 81.
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lesão. Não se concebia o fato de que bens de grande importância, e direitos não
patrimoniais, vitais para o desenvolvimento das pessoas, não são passíveis de
ser valorados monetariamente de forma objetiva7.
Entretanto, este princípio de raiz romana deve restar superado com a tutela inibitória, pois na proteção preventiva não é importante a análise da natureza
do ilícito, a situação jurídica violada ou o dano ocorrido.
Há necessidade, para tanto, de se perceber que os institutos do dano e do
ilícito são distintos.
A partir do ensaio de Renato Sconamiglio8 a doutrina italiana tem estabelecido a separação entre os conceitos de ilícito e de dano. O ilícito é o compreendido como a conduta, violadora, contrária ao direito, e o dano é o fato histórico
e material que pode decorrer, eventualmente, do ilícito. Expõe o autor italiano
sobre a diferença entre a lesão do direito e o dano:
Qui è sufficiente osservare che nella prima ipotesi ricorre
soltanto, ma in ogni caso, la trasgressione ad um comando giuridico: a cui l’ordinameto non può non reagire apprestando adeguati rimedi; e questo a prescindere dalla
circostanza che l’interesse privato, dalla norma in astratto
tutelato, sia stato in effetti colpito o si sia verificato un vero
e proprio danno. Al contrario, nell’altra ipotesi, si verifica
essenzialmente la lesione di um bene del soggetto, quale
diviene possibile in concreto determinare com riferimento al soggetto medesimo o addirittura al suo patrimonio;
e soltanto qualora tale bene sai giuridicamente protetto
(danno ingiusto) si pone il problema del risarcimenti, la cui
soluzione – da parte dello stesso legislatore – è ovviamente
condizionata, peraltro, allésigenza di eliminare, per una via
o per l’altra, il danno.
Com esta distinção em mente, é possível entender o sistema de tutela
inibitória.
7
MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela, p. 61.
SCONAMIGLIO, Renato. Il risarcimento del danno in forma specifica. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, 1957, p. 206.
8
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3.
O SENTIDO PREVENTIVO DA TUTELA INIBITÓRIA
A ação inibitória é instrumento efetivo para o amparo dos direitos não
patrimoniais, aí inseridos os denominados “novos direitos”, transindividuais de
terceira geração, como o direito ao meio ambiente saudável.
Não se pode pensar que tais direitos possam ser satisfeitos com um tipo
de tutela, como a ressarcitória, que age somente depois de ocorrida a lesão.
Isto significaria não somente a aceitação do “pratico o ilícito, causo dano, mas
pago”, como também expropriaria os próprios direitos, transformando-os em
direito à pecúnia.
Explica Luiz Guilherme Marinoni, em obra orientadora sobre o assunto
da técnica inibitória que
O direito à saúde, o direito ao meio ambiente saudável, os
direitos do consumidor, não podem ser efetivamente tutelados através da tutela ressarcitória. A natureza não patrimonial dos “novos direitos” é incompatível com o simples ressarcimento. A tutela ressarcitória diz respeito ao patrimônio;
não ao direito ao bem. Assim, a tutela ressarcitória, mostrase incapaz de assegurar os “novos direitos”(grifo nosso).9
Conforme o mesmo autor10, o comportamento ilícito, referente aos “novos direitos”, se caracteriza geralmente como continuidade da ação ou como
repetição. Exemplifica com os casos de poluição ambiental, de venda de produtos danosos à coletividade, e de difusão de notícias lesivas à personalidade, e
ressalta que a proteção destes direitos certamente fica na dependência de um
tipo de amparo legal que imponha meios coercitivos a fim de convencer o obrigado a não fazer ou a cumprir uma obrigação de fazer. Neste caso, a tutela inibitória garantiria a atuação deste interesse específico em lugar do ressarcimento
do dano via indenização.
Esta tutela de prevenção é chamada na Itália de tutela inibitória. E a melhor definição de tutela inibitória está na disposição do art. 156 da lei italiana nº
633/1941sobre o direito do autor:
Chi ha ragione di temere la violazione di un diritto (…)
oppure intende impedire la continuazione o la ripetizione
di una violazione già avvenuta, può agire in giudizio per
9
10
MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela. P. 69.
Idem, ibidem, p. 70.
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ottere che il suo diritto sai accertato e sai interdetta la violazione.
Portanto, o sentido preventivo da tutela inibitória serve para impossibilitar que o ilícito, que é ato violador ao direito, se repita, ou mesmo que venha a
ser praticado, se ainda não se aconteceu.11
Com efeito, a tutela inibitória surge para amparar a necessidade de prevenção do ilícito enquanto que a tutela ressarcitória se dirige somente contra o
dano ressarcível. Esta última é tutela de um direito pecuniário equivalente ao
valor do dano sofrido e que, além de pressupor este dano, expressa a responsabilidade fundada na culpa ou no dolo.
A inibitória representa tutela que não se associa aos efeitos, sejam ou não
danosos, do ilícito.
É proposto um conceito de ilícito que seja independente do
de fato danoso. Para que o ilícito esteja configurado, não
se discute a sua consequência, danosa ou não, pois basta
o ato contrário, violador do direito. Há ilícito quando há
atividade contrária ao direito. Assim, pode haver ilícito sem
que tenha ocorrido dano.
O objetivo da tutela inibitória não é o de reparar um direito já transgredido, como é o da tutela ressarcitória. Sua finalidade é a de impedir o prolongamento ou a reiteração do ilícito, supondo um ilícito já praticado, e portanto
tendo incontestável caráter preventivo.
A tutela inibitória possui natureza preventiva porque é orientada para o
futuro, e específica porque destinada à efetividade do exercício integral do direito.
Como a ação inibitória destina-se ao perigo da continuação ou repetição
de ato contrário ao direito, atacando o ato ilícito, não pode ter o dano entre
os seus pressupostos. Para a configuração do ilícito basta a prática de um ato
11
Segundo Cristina Rapisarda, “l’esperibilità della tutela inibitoria dipende, normalmente, dall’esistenza di um comportamento illecito che si concreti in una attività a carattere continuativo, ovvero in una pluralità di atti suscettibili di ripetizione. Il collegamento della tutela inibitori ad un illecito in parte già commesso non influisce in alcun modo
sulla natura preventiva del rimedio, dato che la tutela esplica la sua efficacia soltanto
nei confronti del possibile illecito futuro. La tutela stessa prescinde, infatti, dagli effetti
dell’atto o dell’attività illecita, siano essi dannosi o meno poichè si dirige unicamente
contro il pericolo di ripetizione o di continuazione dell’illecito”. Op. cit., p. 90.
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contrário ao direito, mesmo que não seguido de um evento danoso. É suficiente
a transgressão a um comando jurídico, pouco importando se tal transgressão
levará a um dano ou não.
Portanto, o autor, requerendo a inibitória, deve provar o perigo da prática,
da continuação ou da repetição do ilícito, e também que o ato será ilícito se
praticado, ou que é ilícito, no caso de inibitória da continuação ou de repetição.
O juiz, por sua vez, na ação inibitória, não deverá analisar a existência de
dano ao bem jurídico protegido, e nem tampouco exigir elementos como culpa
ou dolo na prática ilícita.
Entretanto, se o ilícito ocorreu e não há mais possibilidade de que venha a
ser novamente praticado, a única tutela viável é a reintegratória. Somente quando o ilícito ainda não foi praticado, ou pode prosseguir ou voltar a ocorrer, é que
cabe a tutela inibitória
Portanto, na tutela ressarcitória visa-se o dano, e na tutela inibitória a
prevenção contra a violação do direito.
Poderia ocorrer dúvida no caso em que a inibitória servisse para impedir a continuação do ilícito, parecendo ser na verdade tutela reintegratória12, na
eliminação de situação ilícita anterior. Entretanto, a tutela inibitória não elimina
o ilícito, mas atua sobre a vontade do réu para que o ilícito não continue. Ou
seja, “a forma de atuação desta inibitória pressupõe que o ilícito somente será
eliminado se ocorrer o adimplemento voluntário, o que significa que a tutela
apenas força o réu a eliminar ou cessar o ilícito”.13
Em outras palavras, em princípio, tal tutela teria por objetivo se opor
à continuação ou repetição de um ilícito. Mas alguns autores admitem a ação
inibitória para prevenir o ilícito de forma pura, sem que tivesse ocorrido antes.
A questão de prevenção do ilícito de forma pura é bem mais difícil de
ser tratada, em função das provas. O problema está em provar que o ilícito provavelmente será praticado, matéria mais complexa do que nos casos em que o
ilícito já foi praticado e se receia somente o seu prosseguimento ou reiteração.
Neste estudo dirigido à tutela inibitória coletiva, se dará enfoque ao primeiro caso, em que a ação visa impedir a prática prolongada ou repetida do
ilícito.
4.
FUNDAMENTO LEGAL DA TUTELA INIBITÓRIA E A SUA ANTECIPAÇÃO
A tutela de direitos em comento, não obstante expressa no ordenamento
jurídico italiano, encontra respaldo nos diplomas legais brasileiros. Recorre-se
ao princípio geral de prevenção, básico em qualquer ordenamento jurídico que
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se empenhe em garantir os direitos fundamentais.
Do mesmo modo, esta garantia, contextualizada em um Estado social,
onde a Constituição Federal de 1988 é marcada por direitos sociais que devem
ser tutelados de modo difuso e coletivo, é possível a realização da tutela inibitória como instituto sócio-jurídico.
A Constituição brasileira afirma, em seu art. 5º, XXXV, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. A expressão
“ameaça a direito” é claramente preventiva e denota a intenção de se garantir a
tutela inibitória. Isto acontece haja vista que o direito de acesso à justiça tem
como pressuposto o direito à adequada tutela jurisdicional e este, a seu turno,
o direito à proteção preventiva, inserido em um contexto valorativos do Estado
social.
O Código de Defesa do Consumidor reafirma o princípio constitucional
do direito à adequada tutela jurisdicional por meio do artigo 83, que dispõe que
para a tutela dos direitos difusos e coletivos são admissíveis todas as espécies
de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela e, por meio do artigo
84, que garante o direito à tutela difusa ou coletiva, e dispõe que o juiz poderá
impor multa diária, independente do pedido do autor, na sentença ou na tutela
antecipatória. Quer dizer, há garantia legal do direito à tutela inibitória difusa ou
coletiva e a possibilidade do juiz em impor multa na sentença inibitória ou na
tutela inibitória antecipatória.
Deste modo, o artigo 461 do Código de Processo Civil14 representa a fonte
da tutela inibitória, justamente porque o juiz, de acordo com esta norma, pode,
na tutela antecipatória ou na sentença, impor a multa para pressionar o obrigado
ao cumprimento do dever e ainda se valer do amplo poder a ele conferido para
efetivar a tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente.
Este artigo do Código de Processo Civil abarca a prevenção de um ilícito originado da inobservância de um dever.
Tal dispositivo constitui uma tutela específica dando ao juiz possibilidade,
ao conceder a tutela inibitória (final ou antecipatória) de impor multa diária ao
réu, sem que o autor tivesse pedido.
Quanto à tutela antecipatória inibitória, o art. 461, em seu parágrafo terceiro, é claro ao permitir a antecipação da tutela das obrigações de fazer e não
fazer, ao que, por decorrência, significa a possibilidade da antecipação da tutela
inibitória.
Quais os pressupostos para a concessão da tutela antecipatória inibitória?
12
13
Visa-se a necessidade de supressão do ilícito.
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória, nota no. 1081 da Tese
40
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Para a obtenção desta antecipatória, o demandante da inibitória deverá
demonstrar, mesmo que de modo sumário, o perigo da prática, do prosseguimento ou da reiteração do ilícito. Deve ser explicitada a probabilidade do perigo
do ilícito e que, se a tutela for concedida ao final, provavelmente ele já terá sido
praticado. O justificado receio não é de dano, mas de ilícito.
Ainda deve o demandante demonstrar, sumariamente, que o ato caso seja
executado, ou que já foi executado no caso de prolongamento ou repetição, é
dotado de ilicitude.
Assim, o art. 461, fundamenta no diploma processual civil a tutela inibitória, porque além de permitir ao juiz dar ordens e conceder tutela antecipatória, autoriza que o juiz, de ofício, estabeleça multa diária objetivando o
cumprimento da obrigação.
Em uma de suas obras dirigidas à antecipação da tutela, Luiz Guilherme
Marinoni15 explica que:
Ninguém prefere o ilícito à prevenção; negar o direito à
prevenção do ilícito é admitir que o cidadão é obrigado a
suportar o ilícito, tendo apenas direito à indenização, ou,
ainda, é dizer que todos têm direito a praticar um ilícito
desde que se proponham a reparar o dano. Na verdade, não
conferir à tutela inibitória expressão atípica é o mesmo que
criar um sistema de tutelas em que impera a “monetização”
14
Dispõe o artigo que “Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de
fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o
pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do
adimplemento. § 1º - a obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor
o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente. § 2º - a indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa
(artigo 287). § 3º - sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado
receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente
ou mediante justificação prévia, citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou
modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada. § 4º - o juiz poder’, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente
do pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo
razoável para o cumprimento do preceito. § 5º - para a efetivação da tutela específica
ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a busca e apreensão, remoção
de pessoas e coisas, desfazimento de obras, impedimento de atividade nociva, além de
requisição de força policial”.
15
MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela, p. 75.
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dos direitos, o que é absolutamente incompatível com os
direitos com conteúdo não patrimonial” (grifo nosso).
Ou seja, negar a tutela inibitória para os direitos que não podem ser
adequadamente tutelados através da técnica ressarcitória porque não são
direitos patrimoniais, é negar atuação concreta ao contido na norma constitucional.
Quanto ao artigo 287 do Código de Processo Civil, mostra-se insuficiente
para propiciar efetiva tutela preventiva, pois reserva a incidência da multa “para
o caso de descumprimento da sentença”, desconsiderando que o ilícito pode ser
praticado antes de findado o processo de conhecimento. Acabaria sendo conferido ao réu lícito exercício do ilícito, nesta situação.
Outras vantagens do artigo 461 do Código de Processo Civil sobre o art.
287 do CPC, é que possibilita a efetivação da tutela sem o processo de execução,
e dá ao juiz os poderes necessários para que a tutela possa ser realmente prestada
(com a obtenção do resultado prático equivalente ao do adimplemento).
5.
O MEIO AMBIENTE DO TRABALHO
Historicamente, as transformações na sociedade, decorrentes do desenvolvimento do sistema capitalista, significaram industrialização e urbanização,
fazendo surgir massas operárias e reivindicações a direitos sociais. Além dos
direitos civis e políticos, os indivíduos passaram a demandar outros interesses,
como os relativos às condições de trabalho dignas.
Na indústria moderna os perigos do trabalhador aumentaram a tal ponto
que a tutela aos interesses sociais adquiriu plano de matéria pública. Assim, a
Constituição da República, em seu artigo 7º, inciso XXII, já impõe a “redução
dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”. No inciso XXVII, “proteção em face da automação, na forma da lei”, e
no inciso XXVIII “seguro contra acidentes de trabalho, sem excluir a indenização a que está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa”.
Ou seja, o trabalhador, ao colocar à disposição sua força de trabalho, tem
direito não somente ao pagamento de salários mas também direito a um local salubre de labor, com adequadas condições ambientais, propícias ao desempenho
de suas atividades e livre de riscos acidentários. Portanto, a qualidade do ambiente de trabalho fica na dependência da adoção e efetividade de regras garantidoras da segurança e da saúde do trabalhador, preservando sua disposição física
e mental e evitando acidentes.
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Entretanto, o conceito de meio ambiente do trabalho não possui literalidade expressa na lei, sendo compreendido somente a partir da definição de “meio
ambiente”, em termos gerais16.
Assim, foi a lei federal nº 6938, de 31.08.1981, dispondo sobre a Política
Nacional do Meio Ambiente e sobre o Sistema Nacional do Meio Ambiente, que
definiu “meio ambiente”.
Nestes termos, especificando tal conceito para a área ora abordada, a do
direito trabalhista, pode-se dizer que é o “local em que se desenrola boa parte da
vida do trabalhador, cuja qualidade de vida está, por isso, em íntima dependência da qualidade daquele ambiente”17. Quer dizer, embora seja “artificial”, é digno de tratamento especial, haja vista o artigo 200, VIII da Constituição Federal
que estabelece que uma das atribuições do sistema único de saúde consiste em
colaborar na proteção do ambiente, nele implícito o do trabalho.
Diversas convenções internacionais trataram do tema, sendo destaque a de nº
155 de 1981, que dispõe sobre “o desenvolvimento pelos países de uma política
nacional de saúde, segurança e meio ambiente do trabalho, incluindo local de trabalho, ferramentas, máquinas, agentes químicos, biológicos e físicos; operações
e processos, as relações entre trabalhador e meio físico; ocupa-se da necessidade
de fiscalização através de um sistema apropriado; trata da determinação dos graus
de risco existente nas atividades e processos e operações proibidos, limitados ou
sujeitos a controle, bem como realização de pesquisas de acidentes de trabalho
e publicação de informações; dispõe sobre exigências às empresas voltadas para
a adoção de técnicas de garantia de segurança nos locais de trabalho e controle
dos agentes químicos”.18
Assim, o meio ambiente do trabalho é um complexo de proteção a direitos
invioláveis da saúde e da integridade física dos trabalhadores que o frequentam.
O meio ambiente do trabalho seguro representa direito social dos trabalhadores,
direito não patrimonial garantido na Constituição Federal de 1988.
6.
O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO E SUA LEGITIMIDADE PARA AGIR
A Constituição Federal, incentivando a prevenção de acidentes, ampliou
as atribuições do Ministério Público do Trabalho e “novas ações” passaram a ser
ajuizadas, obrigando o empregador no cumprimento das normas de segurança e
medicina do trabalho, assegurando um meio de trabalho sadio.
Foi o texto constitucional de 1988 que, ao prever, em seu artigo 114,
IX, a competência da Justiça do Trabalho para processamento e julgamento de
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“outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei”, que
possibilitou ações civis públicas e ações inibitórias trabalhistas.
Na própria Constituição, em seu artigo 129, III, foi atribuído ao Ministério Público a legitimidade para o ajuizamento de ações coletivas, civis públicas, ensejando a possibilidade da utilização deste instrumento processual pelo
Ministério Público do Trabalho, e, por via de consequência, a competência da
Justiça Obreira para o seu julgamento, na medida em que a esfera de atuação do
órgão ministerial circunscreve-se à jurisdição trabalhista, por força do disposto
no caput do artigo 83 da Lei Complementar nº 75/93.
É, aliás, expresso o inciso III do artigo 83 deste mesmo diploma legal
quanto à competência da Justiça Laboral para o julgamento de ações coletivas
propostas pelo órgão ministerial do trabalho. O artigo supracitado prevê que faz
parte do conjunto das atribuições do Ministério Público do Trabalho “promover
as ações que lhe sejam atribuídas pela Constituição Federal e pelas leis trabalhistas”.
No exame do artigo 6º, XIV da Lei Complementar nº 75/93 chega-se à
mesma conclusão, pois esta disciplina os instrumentos de atuação do Ministério
Público da União, em todos os seus ramos, e aponta a possibilidade de promoção de outras ações necessárias ao exercício de suas funções institucionais,
em defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e
individuais indisponíveis, especialmente quanto ao meio ambiente (alínea “g”).
Ocorrendo portanto, lesões a direitos e interesses coletivos dos empregados de empresa, e de trabalhadores que venham postular um emprego junto a
mesma, por meio de ações ou omissões violadoras de normas jurídicas trabalhistas, exsurge, de forma clara, a legitimidade do Ministério Público do Trabalho
para a providência de ações coletivas.
E isso em função do enfoque de que o direito individual deve ser complementado ao direito social, esse entendido como àquele ligado a grupos e regulando interesses de coletividades. Ou seja, conceitos como “interesses coletivos” vêm à tona, tendo como fundamento a superação da idéia de lides travadas
individualmente.
16
Otavio Brito Lopes, seguindo na esteira de Édis Milaré, entende que a disciplina jurídica do
meio ambiente comporta aspecto natural, cultural e artificial e que “o meio ambiente do trabalho,
que acolhe o indivíduo durante grande parte de sua vida, encontra-se inserido na espécie meio ambiente artificial, e suscita, como salientado, especiais cuidados”. In Segurança e saúde no trabalho:
situação atual das negociações entre empregadores e trabalhadores e as perspectivas de mudanças
nos sitemas de relações de trabalho, p. 150.
17
SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional, p. 04.
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Assim, ao Ministério Público compete, perante à Justiça Laboral, o
ajuizamento de ações para defesa de direitos coletivos desrespeitados, eis que
condições salubres, seguras e higiênicas são interesses indisponíveis dos trabalhadores, individualmente e coletivamente, conforme artigo 83, III, da Lei Complementar nº 75/93. O fundamento legal também está de acordo com o artigo 1º, IV,
da Lei 7347/85, que dispõe que a ação civil pública objetiva resguardar, entre
outros, qualquer interesse difuso ou coletivo lesado.
7.
CABIMENTO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA?
O texto legal, pioneiro na expressão “ação civil pública”, foi o artigo 3º,
III, da Lei Complementar federal 40/81. Contudo o instituto somente veio a ter
sua utilização consagrada depois da Lei 7347/85, que tratou da defesa do meio
ambiente, do consumidor e de valores culturais, diploma este que passou a ser
conhecido como Lei da Ação Civil Pública.
A importância de tal lei insere-se no reconhecimento pelo ordenamento
jurídico da necessidade de tutelar interesses transindividuais, diante da complexidade social e do aumento das suas demandas no contexto das transformações históricas e políticas. Seria o reconhecimento da proteção aos direitos de
terceira geração (BOBBIO, 1992; SARLET, 2003).
Entretanto, na tutela dos direitos não patrimoniais, como visto anteriormente, é mais importante a prevenção do ilícito do que o ressarcimento do dano.
E questiona-se o cabimento da ação civil pública quando, em situações de prevenção dos atos ilícitos, é mais apropriada a ação inibitória para proteção de tais
direitos transindividuais e não passíveis de monetarização.
Conforme o artigo 1º, IV da Lei 7347/85, a ação civil pública objetiva
resguardar, entre outros, qualquer interesse difuso ou coletivo lesado. Ou seja,
em essência, a ação civil pública é instrumento que visa, por meio da apuração
de responsabilidade por danos causados a interesses diversos, à reparação dos
bens lesados.
Em assim sendo, via ação civil pública os interesses difusos ou coletivos
são objetos de proteção somente quando houver “lesão” ao direito, confundindo-se o momento em que ocorre com o ilícito da prática.
Sobressai-se deste modo, a discussão ocorrida anteriormente a respeito
da diferença existente entre dano e ilícito e a importância do estudo da tutela
18
Idem, ibidem, p. 05.
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inibitória como sistema preventivo do ilícito e não do dano.
Assim, a necessidade de tutela preventiva, manifestada pelos novos direitos, requer, além de adequados instrumentos legais, também a revisão das técnicas de ressarcimento fundadas na confusão que ocorre entre ilícito civil e dano.
A ação civil pública mostra-se, deste modo, insuficiente para a tutela integral dos direitos transindividuais, que necessitam de proteção especial, independentemente da ocorrência do dano.
8.
A UTILIZAÇÃO DA AÇÃO INIBITÓRIA COLETIVA
Já tendo sido criado o instituto do mandado de segurança preventivo contra atos de autoridade, seria necessário ser erigido um instrumento equivalente
contra atos ou omissões de particulares.19
Na prática, ocorre a situação exposta a seguir.
O Ministério Público do Trabalho, recebendo autos de investigação de
acidente fatal de empregado de empresa, ocorrido por negligência na prevenção
de risco de choque elétrico, tem como providência a instauração de “procedimento de apuração” a fim de verificar a ocorrência de prática generalizada da
empresa no descumprimento da legislação trabalhista. A partir de então, passa
a acompanhar a atuação da empresa, realizando audiência em fase de inquérito,
e solicitando à Superintendência Regional do Trabalho fiscalizações específicas
nos locais de trabalho, para conhecer de irregularidades quanto a este meio ambiente, protegido por normas de segurança próprias.
Por meio desta conjuntura de informações, o Ministério Público é capaz
de apreender se a empresa é contumaz no descumprimento da legislação sobre
segurança e medicina do trabalho, deixando de garantir a seus empregados direitos sociais mínimos constitucionalmente assegurados e, ante a negligência
desta, de propor a ação inibitória.
Perante a falta de uma disciplina própria da tutela inibitória é que, com
o nome de “ação civil pública com pedido de tutela antecipada”, fundada nos
artigos 461 do Código de Processo Civil e artigo 83 do Código de Defesa do
Consumidor, era intentada ação de, na verdade, inibição do ilícito, já que o dano
ocorrera em um caso mas que, poderia vir a ocorrer outras vezes e havia neces-
19
José Carlos Barbosa Moreira, citado por Luiz Guilherme Marinoni, in Tutela inibitória. Tese apresentada ao Concurso de Professor Titular de Direito Processual Civil
da Universidade Federal do Paraná, p. 72.
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sidade de refrear a continuação do ilícito praticado.
A prova utilizada configura-se na existência de continuidade nas irregularidades, como uso incompleto de equipamentos de proteção individual pelos
empregados, a falta de proteção de correiras dos guinchos, falta de cancelas no
acesso ao elevador de materiais, etc.
Neste caso, cabível é a tutela inibitória positiva, porque o ilícito praticado
é a omissão. A obrigação é a da empresa em assegurar aos seus empregados as
normas assecuratórias no meio ambiente de trabalho.
Com isto, percebe-se que o ilícito e a possibilidade de lesão atingem interesses difusos e coletivos, inclusive de forma cumulativa.
Um parâmetro, no âmbito trabalhista, que diferencie esses dois tipos de
interesses está no fato dos integrantes do universo atingido pela lesão, ou sua
possibilidade, terem, ou não, um vínculo de emprego. Na hipótese positiva, se
estará frente a interesses coletivos; caso contrário, de interesses difusos de uma
massa formada por pessoas que ligam-se, somente, por uma situação fática.
Ou seja, quando a ilicitude atinge não só os atuais empregados da empresa mas também todos os trabalhadores que possam vir a postular um emprego
junto a mesma, se estará perante a proteção de interesses difusos e coletivos,
cumulados.
E se antes a ação civil pública, fruto de novas concepções instrumentais
do processo, era o mais eficiente meio na proteção coletiva do direito à saúde do
trabalhador, solucionando globalmente o que cada reclamação trabalhista procura
reparar individualmente, a ação inibitória coletiva está mais à frente, tutelando
não o dano, mas o ilícito, sua repetição ou sua continuidade.
Há casos porém, em que o ilícito e o dano ocorrem juntamente, e é mais
difícil separar tais conceitos. Prevenir o ilícito significa, ao mesmo tempo, prevenção do dano.
É o que ocorre quando, por exemplo, o empregador obriga o empregado
20
As normas jurídicas trabalhistas, protetivas do trabalhador são revestidas do princípio
da indisponibilidade, pois pressupõe que o empregado não aceitaria livremente trabalhar
em condições menos desfavoráveis do que as que a lei lhe garante. Por isso uma possível
disposição de direito significaria a sombra de coação. Desta forma, pondera Ives Gandra
M. Filho em seu artigo A defesa dos interesses coletivos pelo Ministério Público doTrabalho, que “a indisponibilidade dos direitos trabalhistas constitui a garantia de que o empregador não forçará o empregado a aceitar condições de trabalho prejudiciais, alegado
concordância deste, na medida em que se considerem indisponíveis os direitos trabalhistas mínimos”., p. 1298. No caso, caberia ação inibitória para impedir a continuidade
da prática ilícita do empregador em coagir os empregados a renunciarem a seus direitos.
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a assinar em branco documentos trabalhistas20, como condição de permanência
no emprego. Neste caso, a tutela inibitória agiria contra a prática violadora do
direito, contra a sua continuidade e, concomitantemente contra o próprio dano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Atualmente, o direito coletivo, transindividual como é considerado, adquiriu nova importância no contexto de tutelas. Para a proteção dos direitos
caminha-se para a tendência de deixar para trás a resolução de conflitos tipo
“Caio versus Tício”, dotados de individualismo, para se enfrentar questões que
atrelam vários indivíduos por meio de elos fáticos, observando uma melhora na
prestação jurisdicional e no acesso à justiça.
O direito trabalhista, em sua gênese, é coletivista, tendo surgido como
direito de segunda dimensão. Entretanto, historicamente, havendo resgate desta
origem, hoje é visto num contexto mais amplo, inserido num meio cuja preocupação é com tutelas sob formas transindividuais. Tal disciplina legal adotou, sob
certo sentido, cunho de ordem pública em muitas de suas questões.
Deste modo, sendo dever do Ministério Público do Trabalho a proteção
dos direitos coletivos e difusos no âmbito do ambiente laboral, observa-se que a
ação civil pública, principal instrumento para este fim, já não atende a todas as
necessidades para tutelar integralmente tais direitos.
A tutela inibitória surge, portanto, aqui, como um avanço processual de
proteção aos interesses difusos e coletivos que possuem os trabalhadores no
meio ambiente laboral, que tem como uma de suas preocupações a questão da
segurança e higiene.
Neste contexto, a ação inibitória é um efetivo meio para amparar direitos
não patrimoniais, como o direito a um ambiente sadio de trabalho, denominado
“novo direito”, ou transindividual, porque sua finalidade não é o de reparar um
direito já transgredido, mas sim a de impedir o prolongamento ou a reiteração do
ilícito praticado. Tal tutela é preventiva porque dirige-se ao futuro e, específica
porque destina-se à garantir o exercício integral do direito.
Desta maneira, vislumbra-se a não necessidade de aguardar que ocorra
dano, lesão ao direito, para que seja providenciada tutela devida de proteção.
Não é preciso que se espere a ocorrência, por exemplo, de morte em acidente de trabalho, para que se ataque o ilícito da falta de segurança no trabalho,
promovido pela empresa responsável. Por meio do artigo 461 do Código de Processo Civil, tutela-se perfeitamente este tipo de direito material, que é o de coletivamente, promover ao trabalhador um ambiente seguro e salubre de labuta.
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Artigo recebido em: 26/04/2010
Artigo aprovado para publicação em junho /2010.
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EFETIVAÇÃO DE DIREITOS ÉTNICOS E COLETIVOS: UMA BATALHA DAS COMUNIDADES
TRADICIONAIS DA REGIÃO SUL
Gladstone Leonel da Silva Júnior*
Roberto Martins de Souza**
Sumário: Introdução; 1. Os reconhecimentos jurídicos históricos, a partir da organização e da luta; 2. Aparatos normativos garantidores e a utilização do positivismo de
combate; 2.1. Normas gerais utilizadas pelas comunidades tradicionais; 2.2. Normas
específicas; 2.2.1. Quilombolas; 2.2.2. Faxinalenses; 2.2.3. Indígenas; 2.2.4. Pescadores
Artesanais; 2.2.5. Cipozeiras; 2.2.6. Ilhéus; 3. O choque entre as concepções liberais
do direito e os reconhecimento de direitos étnicos e coletivos; Conclusão; Referência
Bibliográfica
Resumo: Na região Sul, especialmente
no Paraná e Santa Catarina, a invisibilidade social é algo histórico para os povos
e comunidades tradicionais frente à sociedade. O reconhecimento de direitos por
estes grupos decorrentes da articulação e
organização dos mesmos, além de inédito,
mediante realização de diversas ações coletivas, tem gerado novos paradigmas no
campo jurídico. Tal “invisibilidade” dos
povos e comunidades tradicionais, tem,
historicamente, resultado na implementação de políticas públicas nas quais se
encontram fundados os processos como o
êxodo rural, a favelização nos centros urbanos, o aumento da pobreza e a degradação ambiental dos territórios tradicionais.
Existem normas positivadas tanto no ordenamento jurídico nacional, quanto no
internacional, as quais são utilizadas para
Abstract: In the south region, especially in
Paraná and Santa Catarina, the social invisibility is something historical to the people
and traditional communities in front the
society. The recognition of laws by these
groups appear for an articulation and organization of the same, by means of realization of some collective actions, originating
new paradigms in the juridical knowledge.
This “invisibility” of people and traditional
communities have, historically, produced
the implementation of public politics like
agrarian exodus, the poor neighbourhoods
of urban center, the increase of poverty and
the nature degradation of traditional territories. There are write laws in the national
laws and international, that can be utilized
to guarantee fundamental rights of people
and traditional communities. One of the
way to utilize these laws is called “positiv-
* Advogado, Mestrando em Direito Agrário - UNESP. Endereço eletrônico: [email protected]
** Sociólogo, Doutorando em Sociologia UFPR, Asssessor da Rede Puxirão dos Povos
e Comunidades Tradicionais. Endereço eletrônico: [email protected]
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garantir direitos fundamentais dos povos
e comunidades tradicionais. Uma das formas de utilização destas normas é conhecida como positivismo de combate, sendo
travada uma luta para prevalência de direitos dos grupos subalternos. Questiona-se
ainda a construção do Direito sob uma ótica individual e formalista, a qual dificulta
o reconhecimento de direitos coletivos e
plurais. Hoje, apesar do liberalismo ser o
paradigma da ciência jurídica, o Direito
está se inserido nas práticas sociais, produto proveniente da dialética de uma práxis
cotidiana, conforme estimulado pelas comunidades tradicionais.
ism of battle”, when is engaged a fight to
prevail the rights of subaltern groups. It is
wrangled the development of right with an
individual and formalist optical, that difficult the recognize of collective and plural
rights. Today, in spite of liberalism be the
paradigm of juridical science, the right is
insert in the social practice, product coming
from dialectical of a praxis produced day by
day, alike stimulated by the traditional communities.
Palavras-chave: comunidades tradiciona- Key words: traditional communities, ethnic
is, direitos étnicos, direitos coletivos, posi- laws, collectives laws, positivism of battle,
tivismo de combate e pluralismo jurídico. juridical pluralism.
INTRODUÇÃO
Identidades coletivas diferenciadas emergem no Brasil, revelando nas
últimas décadas a existência de diversos grupos étnicos, organizados em movimentos sociais, que buscam garantir e reivindicar direitos, que sempre lhes
foram negados pelo Estado. Desta forma, compreendem-se sem exaustão os
motivos para o qual um país tão diverso em sua composição étnica, racial e cultural, a persistência de conflitos oriundos de distintas visões de mundo e modos
de vida, que desencadeiam desde o período colonial, lutas pela afirmação das
identidades coletivas, territorialidades especificas e reconhecimento dos direitos
étnicos.
O processo de reconhecimento dessa imensa diversidade sociocultural do
Brasil é acompanhado de uma extraordinária diversidade fundiária e ambiental
ainda que pouco conhecida no país e, mais ainda, pouco reconhecida oficialmente pelo Estado brasileiro. As denominadas comunidades ou povos tradicionais encontram-se ainda, em sua grande maioria, na invisibilidade, silenciadas
por pressões econômicas, fundiárias, processos discriminatórios e excluídas da
formulação e proposição das políticas públicas. Todavia, buscam compor, cada
um deles, com suas formas próprias de inter-relacionamento, grupos e comuni52
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dades tradicionais autodefinidas coletivamente, juridicamente reconhecidas e auto-reguladas internamente pela gestão tradicional dos recursos naturais.
Destarte atualmente serem estimadas em cerca de 4,5 milhões de pessoas
pertencentes a distintos povos e comunidades tradicionais no Brasil, ocupando
uma área equivalente a 25% do território nacional, tais grupos na condição de
estigmatizados socialmente, são sistematicamente vítimas de diversas formas
de violência oriundas face conflitos contra seus antagonistas, bem como das
ações universalistas inscritas nas políticas de governo que diluem o fator étnico
nas diferenças econômicas, tratando tais grupos como segmentos populacionais
“carentes”, sujeitos à atenção das políticas assistenciais, desfocando das demandas prementes relacionadas ao reconhecimento jurídico-formal, o acesso ao território e aos recursos naturais essenciais à sua existência.
A mobilização social em torno dos direitos coletivos é observada, especialmente a partir de 1988, quando do início do processo de emergência e
visibilidade na sociedade brasileira, de grupos até então ocultados social e juridicamente, os quais passam a se organizar mediante realização diversas ações
coletivas visando seu reconhecimento. Grupos estes, que se desenvolvem sem
a necessidade de reproduzirem a lógica de uma sociedade eminentemente consumista, mas, prezando, de fato, pela sustentabilidade em seus diferentes aspectos atrelada, principalmente ao fator étnico. A visibilidade social e reconhecimento de direitos destes grupos decorrentes da articulação dos mesmos, além
de inédito, têm gerado novos paradigmas no campo jurídico. Paradigmas, até
então, desconhecidos, normas pouco reconhecidas ou ignoradas por tratarem de
“povos originários”.
Na região Sul, especialmente no Paraná e Santa Catarina, a invisibilidade
social é uma das principais características dos povos e comunidades tradicionais. Até pouco tempo atrás, a inexistência de estatísticas e censos oficiais fez com
que estes grupos elaborassem seus levantamentos preliminares numa tentativa
de afirmarem sua existência coletiva em meio a tensões, disputas e pressões que
ameaçam seus diretos étnicos e coletivos garantidos pela Constituição Federal
de 1988 e, diversos outros dispositivos jurídicos infraconstitucionais1.
Destas demandas surge, na região Sul, a Rede Puxirão dos Povos e Comunidades Tradicionais, fruto do 1º Encontro Regional dos Povos e Comunidades
Tradicionais, ocorrido no final do mês de Maio de 2008, em Guarapuava, interior
do Paraná. Neste espaço de articulação, distintos grupos étnicos, a saber: xetá,
guaranis, kaingangs, faxinalenses, quilombolas, pescadores artesanais, caiçaras,
1
Trecho do Relatório do 1º Encontro Regional dos Povos e Comunidades Tradicionais
realizado em Guarapuava, nos dias 27 e 28 de Maio de 2008.
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cipozeiras e ilhéus; tais segmentos se articulam na esfera regional fornecendo
condições políticas capazes de mudar as posições socialmente construídas neste
campo de poder. Ademais, a conjuntura política nacional corrobora com essas
mobilizações étnicas, abrindo possibilidades de vazão para as lutas sociais contingenciadas há pelo menos 3 séculos, somente no Sul do País.
1.
OS RECONHECIMENTOS JURÍDICOS HISTÓRICOS, A PARTIR DA
ORGANIZAÇÃO E DA LUTA
Na análise da formação e da luta destas comunidades tradicionais do Sul
do Brasil, cabe compreender exemplos de julgados nacionais que repercutirão
em todos estes grupos sociais espalhados pelo país. O julgamento do caso da
reserva indígena Raposa Serra do Sol é um dos marcos de efervescência e luta
por direitos das diversas comunidades tradicionais espalhadas Brasil a fora. Embora, os índios sejam os povos que possuem o maior amparo jurídico no tocante
a diversidade normativa, não tem seus direitos, inúmeras vezes, efetivados.
Este julgado, além de chamar a atenção das violações históricas praticadas contra os índios por pessoas que utilizavam daquelas terras como mero
instrumento mercadológico, mobilizou a Suprema Corte do país a encontrar respostas jurídicas que tem a possibilidade de garantir a permanência e sobrevivência destes povos de maneira digna nas terras que habitam originalmente.
Cabe citar alguns trechos do Voto do Ministro Relator deste caso, Dr.
Carlos Ayres Britto, apresentando um posicionamento paradigmático do STF
(Supremo Tribunal Federal) quanto à relevância de direito dos índios e consequentemente de comunidades, que lutam pelo reconhecimento de seus espaços
tradicionalmente ocupados.
Em determinada parte do voto, o eminente Ministro trata do histórico de
discriminação sofrida, omissão do Estado Brasileiro e deturpação de visão da
sociedade que analisa esta situação, de acordo com o apresentado superficialmente pelo senso comum. Vejamos.
Pelo que, entregues a si mesmo, Estados e Municípios,
tanto pela sua classe dirigente quanto pelos seus extratos
econômicos, tendem a discriminar bem mais do que proteger as populações indígenas. Populações cada vez mais
empurradas para zonas ermas ou regiões inóspitas do país,
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num processo de espremedura topográfica somente rediscutido com a devida seriedade jurídica, a partir, justamente
da Assembléia Constituinte de 1987/1988.2
Quanto à forma de atuação do Estado, o voto possui algo primoroso na
análise e papel devido quanto ao relacionamento com as comunidades tradicionais, expondo o seguinte;
Seja como for, é do meu pensar que a vontade objetiva da
Constituição obriga a efetiva presença de todas as entidades
federadas em terras indígenas desde que em sintonia com o
modelo de ocupação por ela concebido3.
Aqui, observa-se o lastro de autonomia e respeito garantido as comunidades tradicionais, que historicamente optaram por desenvolverem peculiar
meio de vida que deve ser, sobretudo, assegurado pelas entidades que compõe o
Estado. Por mais que, ao fim do julgamento, o Estado tenha garantido o acesso
a estas áreas.
Tanto os indígenas, exemplificadas pelo julgamento do caso Raposa Serra
do Sol, quanto às outras comunidades tradicionais existentes em nosso país buscam, cada vez mais, garantirem seus direitos, visto que as ameaças aos seus espaços ocupados estão sendo concretizadas pelo avanço do modelo econômico de
concentração fundiária aliado ao desrespeito ambiental em conflito e oposição
às modalidades de uso comum dos recursos naturais desenvolvidas secularmente pelas comunidades tradicionais como praticas inerentes à sua cultura.
À semelhança dos povos indígenas na Amazônia, os conflitos sociais em
voga no Sul do Brasil pouco se diferenciam, a não ser pela sua ocultação das
violentas formas de repressão aos movimentos sociais empreendidas por seus
antagonistas em regiões de ocupação agrária antiga, como no caso da Guerra do
Contestado. De outra maneira, o processo de produção da “invisibilidade social” dos povos e comunidades tradicionais no Sul, não teve um percurso muito
distinto do restante do País.
2
Numeração referente às folhas do relatório e do voto do Ministro Carlos Ayres Britto
no caso emblemático do julgamento da ação que envolve a demarcação indígena de Raposa Serra do Sol. Relatório publicado em Brasília, dia 27 de Agosto de 2008. BRASIL.
Supremo Tribunal Federal. Ação Popular nº 3388, Brasília, DF, 27 de agosto de 2008,
p. 32.
3
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Popular nº 3388, Brasília, DF, 27 de agosto
de 2008, p. 33.
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A ocupação territorial ancorada nas atividades econômicas e centradas
sequencialmente nos ciclos da mineração, do gado, erva-mate, madeira, iniciadas ainda no século XVII, conduziram ao domínio das terras, quem dispusesse
de capital econômico e social, capaz de inclusão no circuito mercadológico vigente. Sistematicamente, os povos e comunidades tradicionais, foram expulsos,
eliminados ou imobilizados em sua força de trabalho como componentes fundamentais do processo de expropriação e exploração econômica, sem a qual não
haveria extração produtiva e geração de riqueza.
Atualmente, o “silenciamento” destes grupos tem sido provocado por
empreendimentos econômicos de grande impacto socioambiental gerando a expropriação ou usurpação de seus territórios, como os impactos causados por
usinas hidrelétricas e mineradoras; grilagens de terras em áreas de apossamento;
aquecimento do mercado de terras motivado pelo agronegócio ou mesmo pela
invasão de empreendimentos de lazer (chácaras), assim como pela implantação
de Unidades de Conservação de uso integral, provocando gradualmente a dispersão e esvaziamento desses grupos sociais a partir obstrução de suas condições
de reprodução física e social.
Afinal, um breve cenário possibilita antever que as pressões sobre os povos e comunidades tradicionais ainda são intensas, sobretudo, desde a década
de 1960, a partir de 3 origens. A primeira é o avanço da “agricultura moderna”.
Notadamente reconhecido como “Celeiro agrícola do País”, o Paraná, desde a
década de 1970, sustenta sucessivamente a evolução nos recordes de produção
e exportação de commodities agrícolas e florestais, tais como, soja, gado, pinus,
eucaliptos e recentemente, cana-de-açúcar. Somente a soja em 15 anos (1990 a
2005) teve ampliada sua área plantada em 70,8%. Já o complexo madeira, perde
neste período apenas para o complexo soja. Sendo considerado o maior produtor
nacional de papel fibra longa, o Paraná ocupa 2,8% do seu território ou 560 mil
hectares, com a meta de ocupar até 5% da área do Estado até 2010.
A farta presença de recursos hídricos observadas na geografia do Estado
do Paraná, implicaram numa segunda tensão direta contra as comunidades tradicionais, qual seja, a implantação de projetos de usinas geradoras de energia,
produzida por meio de hidrelétricas, sobretudo, a partir da construção de Itaipu,
na década de 1980. Nos anos seqüentes, o Paraná ampliou sua produção energética, impulsionado pela construção de diversas barragens no Rio Iguaçu e, mais
recentemente, com os investimentos da COPEL – Companhia Paranaense de
Energia, dirigidos à construção de PCHs nos rios Piquiri e Ivaí, além do já avançado processo de pré-implantação (vencidas as barreiras jurídicas e ambientais)
da Usina Hidrelétrica de Jataizinho no baixo rio Tibagi.
Soma-se a esses empreendimentos impulsionados pelas políticas publi56
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cas desenvolvimentistas, as políticas conservacionistas, de cunho ambientalista,
referidas a implantação de unidades de conservação de uso integral, a partir de
1980, tal como o Parque Nacional de Superagui, criado em 1989, com 21.000
ha, e o Parque Nacional de Ilha Grande criado em 1997, com 78.875 ha, entre
outros.
Este período, marcado por grandes investimentos do Estado, associado
à capitais privados, produziu mais que o aclamado progresso econômico propalado pelas agências públicas. De um modo violento, gerou um desastre social
e ambiental sem precedentes na história da região. Demarcando a instalação de
um modelo de desenvolvimento extremamente impactante aos recursos naturais,
e violador dos direitos humanos, resultando na expropriação de bens, terras e direitos de grupos sociais culturalmente diferenciados.
Tal “invisibilidade” dos povos e comunidades tradicionais, reiteradas pela
ideologia dos “vazios demográficos” e associada ao desenvolvimento baseado
nas premissas do universalismo, tem, historicamente, resultado na implementação de políticas públicas nas quais encontram-se fundados os processos como
o êxodo rural, a favelização nos centros urbanos, o aumento da pobreza e a degradação ambiental dos territórios tradicionais. Isto também se traduz no atual
baixo investimento de esforços na promoção do desenvolvimento sustentável
dessas comunidades.
Tal afirmação faz consonância com a tônica dos relatos e manifestações
de mais de 120 representantes desses grupos étnicos participantes no 1º Encontro Regional de Povos e Comunidades Tradicionais. Invariavelmente, as exposições relatam conflitos relativos ao acesso à terra, ou, no caso, ao território.
Visto que estas comunidades sabem que assegurar o acesso ao território significa manter vivos na memória e nas práticas sociais os sistemas de classificação
e de manejo dos recursos, os sistemas produtivos, os modos tradicionais de distribuição e consumo da produção. Isso além de sua dimensão simbólica: no território estão impressos os acontecimentos ou fatos históricos que mantêm viva a
memória do grupo; nele também estão enterrados os ancestrais e encontram-se
os sítios sagrados.
Em que pese favorável que Xetás, Guaranis, kaingangs, Quilombolas,
Faxinalenses, Caiçaras, Pescadores Artesanais, Cipozeiros e Ilhéus, tenham conquistado de forma gradual reconhecimento jurídico-formal, por meio de suas mobilizações, ainda impõe-se na esfera do Estado, limites burocráticos, jurídicos e
políticos para sua efetivação, além do que é notório que suas principais demandas – especialmente a territorial – encontra-se “engessada”. Em outros casos,
nos deparamos com grupos sociais que ainda nem sequer possuem instrumenHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009
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tos disponíveis para o reconhecimento jurídico-formal pelo Estado, como é o
caso dos ilhéus, cipozeiros, caiçaras, pescadores artesanais, portanto não dispõe
de programas governamentais específicos dirigidos a garantia de seus direitos
diferenciados e fundamentais, registrando-se inúmeros conflitos territoriais com
empreendimentos governamentais, sejam parques de conservação ambiental ou
obras públicas.
O que significa dizer, que no âmbito da região Sul, especialmente no
Paraná e Santa Catarina, a Constituição Federal de 1988, marco histórico do processo de redemocratização política do Brasil, sendo entendida como elemento
primordial na solidificação dos direitos individuais e coletivos, ainda não opera
abertamente com o reconhecimento de formas diferenciadas de organização social e cultural de distintos segmentos da sociedade brasileira. Esse é o caso, por
exemplo, dos direitos diferenciados reconhecidos aos povos indígenas e comunidades quilombolas, mas não assimilados pela burocracia do Estado (Governos
estaduais e municipais, em especial) ao permanecer operando com adaptações
às políticas universalistas, evitando instituir uma “política de identidades”, assentada em novas instituições. No caso de identidades étnicas e coletivas emergentes, como dos caiçaras, pescadores artesanais, cipozeiros e ilheiros, se quer
há menção da existência desses grupos, sua localização, situações de conflito e
demandas. O que denota desconhecimento público e uso de pré-noções classificatórias que impelem estes grupos a categorias econômicas e situações sociais,
tal como “pobres”, “assalariados temporários”, “bóias-frias”, “pequenos agricultores”, “agregados”, “pescadores” ou “agricultores familiares”.
Ao estabelecer prerrogativas diferenciadas para esses povos e comunidades, a Carta Magna opera de forma direta nos princípios fundamentais da
constituição do próprio Estado Brasileiro, uma vez que se flexibilizam os conceitos vigentes sobre o que é a sociedade brasileira, a forma como ela é composta e como ocorreu a sua formação. Em última instância, a consolidação de
tais direitos revela não só o reconhecimento por parte do Estado da diversidade
sociocultural existente no Brasil, mas também a necessidade de se repensar conceitos atinentes às noções de desenvolvimento, propriedade e uso dos recursos
naturais, de forma que os mesmos passem a incluir princípios mais adequados
às realidades diferenciadas desses povos e comunidades.
Buscando fomentar a produção da visibilidade social desses grupos, desde 2003, tem sido estimulada no Paraná iniciativas que visam a identificação
desses grupos, tal como o Mapa da presença Indígena e o Mapeamento dos
Quilombolas no Paraná. Em 2005, inicia-se, em articulação com os movimentos
sociais, o Projeto Nova Cartografia Social, vinculado ao PPGSCA da Universidade Federal do Amazonas – UFAM com apoio do Centro Missionário de Apoio
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ao Campesinato - CEMPO e Instituto Equipe de Educadores Populares - IEEP,
na produção da Auto cartografia Social desses povos e comunidades tradicionais. Mais do que exercitar uma nova cartografia, tal pesquisa tem estimulado
processos organizativos associados ao auto-reconhecimento e reconhecimento
publico da existência coletiva desses grupos sociais. Neste percurso de quase
3 anos, contabilizamos a identificação de diversos povos e comunidades tradicionais interessados em constituir formas organizativas capazes de reivindicar
seu reconhecimento face ao Estado, bem como encaminhar suas demandas aos
órgãos competentes, numa explicita tentativa de que cessem violações e ameaças contra seus direitos. Todavia, ainda são muitos os obstáculos burocráticos,
políticos, jurídicos e econômicos para que os mesmos se realizem.
A formação da Rede Puxirão dos Povos e Comunidades Tradicionais no
Paraná, exemplifica bem toda esta movimentação, possibilitado entre outras
ações a identificação de demandas comuns à estes grupos, como as descritas no
direito aos territórios tradicionais. A despeito serem constatadas variadas formas de violações de direitos étnicos e coletivos, os referidos grupos apreendem
a necessidade de ocuparem seu lugar de direito assegurado pela Constituição
Federal, especialmente na percepção de que constituem identidade coletivas
motivadas por expressões culturalmente diferenciadas. Visando operacionalizar
tais demandas, sobressaem apoiadas por assessorias especificas inúmeros cursos
e oficinas intituladas de Formação de Operadores de Direito, organizadas e realizadas nas comunidades e tem a função de promover a apropriação e domínio
destes conhecimentos e instrumentos específicos qualificando a ação dos sujeitos. Esta estratégia resulta em pressão perante os poderes públicos por parte
destes grupos, além da consolidação de um ordenamento jurídico desconhecido
e pouco estimulado pelo Estado. Essa ação fica nítida no estabelecimento de
uma nova relação com o Ministério Publico Estadual e Federal, que gradualmente também se apropriam desses conhecimentos normativos posicionando-se
na defesa dos grupos citados.
Cabe então, apresentar algumas iniciativas e instrumentos normativos
utilizados frequentemente pelos povos e comunidades tradicionais no âmbito
da Rede Puxirão e, que tem dado um suporte mínimo, tanto de forma genérica,
como normas específicas, as quais relacionamos num segundo momento por
grupos específicos.
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2.
APARATOS NORMATIVOS GARANTIDORES E A UTILIZAÇÃO DO
POSITIVISMO DE COMBATE
Existem normas positivadas tanto no ordenamento jurídico nacional,
quanto no internacional, as quais são utilizadas para garantir direitos fundamentais dos povos e comunidades tradicionais. Estas normas, também, são fruto de
lutas históricas travadas em vários cenários e épocas, as quais hoje representam
um instrumento dentro do campo jurídico para a efetivação destes direitos que
chamamos de étnicos e coletivos.
Uma das formas de utilização destas normas é conhecida como positivismo
de combate. Isto significa que, estas normas postas são utilizadas pelos grupos
sociais de uma forma contra-hegemônica, combatendo as injustiças e desigualdades através da própria regra positivada, ou seja, gerando um conflito legal
com o propósito de derrubar o status quo.
É exatamente a luta, dentro do aparato oficial do Estado
(juízos, tribunais, repartições administrativas etc.), pela
efetivação das normas que expressam de modo autêntico os
interesses populares. Ou seja, por meio do “positivismo de
combate” trava-se uma luta pelo cumprimento das leis de
interesse das classes subalternizadas, as quais, na maioria
das vezes, permanecem apenas no plano retórico do ordenamento jurídico – são as chamadas leis que “não pegam”.
Essas leis e normas, em boa medida, integram a estrutura
jurídico-positiva do Estado tão somente com o objetivo de
atingir um efeito “encantatório”, proporcionando a sensação, desmentida pela realidade, de que os interesses da
maioria estão efetivamente assegurados pelo direito4.
O professor Antônio Alberto Machado chega a sugerir a troca do termo
“positivismo de combate”, para evitar que o termo se confunda com a ideologia
positivista, para o de “positividade de combate”. Certo é que, as normas a serem
analisadas servem para alimentar esta luta incessante por efetivação de direitos.
4
MACHADO, A. A. O Direito Alternativo. Franca, 1997. Disponível em: <http://neda.
ubbihp.com.br/direitoalternativo.pdf.>. Acesso em: 04 de Março de 2006. p.3-4.
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2.1.
NORMAS GERAIS UTILIZADAS PELAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
Começamos com a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional
do Trabalho). Esta estabelece algumas normas internacionais que devem ser
obedecidas em todos os países que assinaram a Convenção, inclusive o Brasil.
O conteúdo da Convenção trata das comunidades que estão estabelecidas
historicamente no território, desenvolvendo suas culturas próprias, costumes e
formas de vida. Reconhecendo então, as aspirações desses povos a assumir o
controle de suas próprias instituições, formas de existência e seu desenvolvimento
econômico, mantendo e fortalecendo suas identidades, culturas e religiões, dentro
do âmbito dos Estados onde estão situadas.
Esta Convenção por ser reconhecida internacionalmente, através do acordo estabelecido entre os países, possui uma força e importância na defesa dos direitos humanos em todo o planeta. Isto porque, a Organização Internacional do
Trabalho é uma agência ligada as Nações Unidas (ONU). Desta forma, podemos
afirmar que a luta e o direito das comunidades tradicionais tem reconhecimento
internacional.
Outro instrumento normativo necessário de explicitar-se é nossa Carta
Maior. A Constituição Federal é o conjunto de normas mais importantes de um
país. Ali, estão contidos os pontos principais e mais importantes para o desenvolvimento e organização do Brasil.
A partir do momento que uma destas normas preveja o direito dos diversos grupos formadores da nossa sociedade, fica demonstrada uma importância maior para este assunto. A partir desta lei maior, outras poderão continuar
surgindo, como ocorre nos dias de hoje. Vejamos o que dispõe o artigo 216 da
Constituição Federal;
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens
de natureza material e imaterial, tomados individualmente
ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à
ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais
espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,
paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,
ecológico e científico.
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Este artigo expõe que, os diferentes grupos e comunidades organizadas
em nosso país possuem um direito legítimo de terem sua identidade e modo
de vida preservado. Está claro, o objetivo de preservar o patrimônio cultural
brasileiro, que é formado por diversas comunidades espalhadas pelo país.
Além do mais, o artigo 215, § 1º da Constituição Federal dispõe sobre a
importância da manifestação cultural e, consequentemente dos hábitos e formas
de vida das diversas comunidades formadoras do nosso país.
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos
direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e
apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas
populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros
grupos participantes do processo civilizatório nacional.
(grifo nosso)
Outro instrumento que deve ser levado em consideração na garantia de
direitos das comunidades tradicionais de forma geral se trata do Decreto nº
6040/2007 e o Decreto nº 10884/2006.
O Decreto nº 6040/2007 reconhece a Comissão Nacional de Comunidades
Tradicionais, como entidade representativa dos Povos Tradicionais Brasileiros.
Contendo no Decreto, também, a importância dos Territórios Tradicionais e do
Desenvolvimento Sustentável das Comunidades como elementos necessários
para a ampliação de direitos.
Nele está instituído a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável
dos Povos e Comunidades Tradicionais. Hoje, finalmente existe uma norma que
reconhece a organização e os direitos dos diversos povos formadores do nosso
país, especificando o direito já concedido no artigo 216 da Constituição Federal.
Já o Decreto nº 10884/2006, trata de tema bem parecido com o decreto
anterior. Ele altera alguns pontos da Comissão Nacional de Desenvolvimento
Sustentável das Comunidades Tradicionais. Esta Comissão poderá coordenar a
elaboração e implementação de Políticas de Desenvolvimento Sustentável das
Comunidades Tradicionais.
Este Decreto apresenta ações que esta Comissão Nacional das Comunidades Tradicionais poderá tomar. Assim poderá ser fortalecido e garantido os
direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, com respeito e
valorização à identidade dos diferentes povos, suas formas de organização e
instituições.
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2.2.
NORMAS ESPECÍFICAS
2.2.1. QUILOMBOLAS
As comunidades quilombolas, sinônimo histórico de resistência, estão reconhecidas, não só pelas legislações já apresentadas, como também em aspectos
específicos e normas pontuais que asseguram alguns direitos.
Tal caso está exemplificado no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o qual garante as terras tradicionalmente ocupadas por
estes povos.
Art. 68. Aos remanescentes das comunidades de quilombos
que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
Observa-se que a Constituição Federal de 1998 explicitou bem o direito
das comunidades às suas terras, cabendo ao governo tomar as medidas necessárias para emitir os títulos de propriedade.
Apesar do aparato normativo, pouco foi feito para efetivação do ato.
O governo reconhecia a propriedade, mas nada fazia para que a comunidade
pudesse permanecer, retomar ou seguir vivendo em suas terras.
No início do governo Lula, um grupo de trabalho foi formado com a
missão de elaborar um plano para que o governo pudesse titular definitivamente
as comunidades quilombolas.
Isto resultou na promulgação e entrada em vigor do Decreto 4.887/2003,
que passou a valer em setembro de 2005. Este decreto criou um mecanismo para
o reconhecimento e titulação das terras e os instrumentos jurídicos para a garantia
do direito à terra das comunidades quilombolas.
Hoje, quem determina quem é quilombola, é a própria comunidade,
através da “auto-atribuição”. Após a auto–atribuição, a Fundação Palmares deverá expedir uma certidão, que é o documento oficial sobre o auto-reconhecimento da comunidade.
Atualmente, os direitos territoriais quilombolas vêm sendo questionados
e ameaçados com a edição de nova instrução normativa, em substituição a IN
20/2005 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). A
mudança afeta os procedimentos de identificação e titulação de tais territórios.
A justificativa do governo federal para a alteração é evitar que iniciativas em
curso, no Judiciário e no Congresso Nacional, suspendam ou anulem o Decreto
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nº4.887/2003 que regulamentou o processo administrativo de reconhecimento
dos direitos territoriais previstos no Art. 68 do ADCT da Constituição Federal5.
Apesar dos avanços conquistados, os resultados foram pequenos. Das
2.228 comunidades quilombolas conhecidas no Brasil, apenas em 27 o governo
conseguiu finalizar os procedimentos de titulação. Há 278 procedimentos iniciados pelo Incra, em todo o país.
2.2.2. FAXINALENSES
Quanto aos Povos Faxinalenses existem algumas normas que abarcam e
garantem na integralidade o direito destes povos.
A lei 15.673/2007 é o exemplo vigente disto, confirmando num patamar
estadual (no Paraná) algo já colocado em normas internacionais, nacionais e
também estaduais, reconhecendo plenamente os povos faxinalenses como comunidades tradicionais, inclusive seus acordos comunitários.
Este tipo de positivação dialética, decorrente da luta dos Povos Faxinalenses e seu Movimento Social, Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses,
dá ensejo a um processo transformativo que pode acontecer mesmo dentro das
esferas institucionais.
Várias questões devem ser ressaltadas para o entendimento das peculiaridades destes povos e o quão relevante são estes direitos. O primeiro ponto é a
descrição dos elementos peculiares das comunidades faxinalenses, salientando
a forma de vida e as características próprias deste povo.
Importante salientar também, o auto-reconhecimento da identidade faxinalense, onde cabe ao próprio grupo social se reconhecer como tal, desde que
seu modo de viver seja o característico desta comunidade tradicional, no caso a
faxinalense.
Um próximo ponto é a vinculação do poder público, no reconhecimento
dos faxinalenses através de certidão de auto-reconhecimento. Algo que deixa
mais evidente a necessidade de se assegurar o direito destes povos.
Por fim, o caráter de legitimidade existente nos acordos comunitários, feito
entre os próprios faxinalenses, sendo reconhecidos pelo poder público esta prática
da comunidade.
5
Informação encontrada as 17:30, do dia 11 de Setembro de 2008, no site http://www.
isa.org.br/inst/esp/consulta_previa/sites/default/files/carta_cp_terras_quilombolas%20.
pdf.
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Outra norma que pode ser citada é o Decreto nº 3446/97 – ARESUR (Áreas
Especiais de Uso Regulamentado). Este Decreto, por ser estadual, vale para as
áreas que se encontram dentro do Estado do Paraná. Ele reconhece e caracteriza
claramente, a existência do modo de produção denominado “Sistema Faxinal”,
buscando criar condições para a melhoria da qualidade de vida das comunidades
residentes, a manutenção do seu patrimônio cultural e preservação dos recursos
ambientais. Não cabendo então, nenhum outro modo de produção ou forma de
ações que diferenciem do jeito de ser dos faxinalenses dentro das áreas.
Alguns faxinais ainda não foram reconhecidos por este Decreto, pois o
reconhecimento se dá caso a caso, por faxinal. Nas áreas devem conter sua denominação, superfície, os limites geográficos, diretrizes para conservação ambiental, que deverão ser analisados pelo Secretário de Estado do Meio Ambiente,
que definirá a área através de um ato administrativo.
Assim, as áreas poderão ser registradas no Cadastro Estadual de Unidades
de Conservação – CEUC – desde que caracterizado o uso coletivo da terra para
produção animal, a produção agrícola de policultura alimentar e a conservação
ambiental, característica dos povos faxinalenses.
Além disso, os Municípios em que estão reconhecidas áreas de faxinais
através do Decreto ARESUR, podem receber o ICMS (Imposto de Circulação
de Mercadorias e Serviços) Ecológico, sendo uma fonte de renda a mais para
o Município, que através de leis municipais podem reverter estas verbas para
fomento do próprio Faxinal.
2.2.3. INDÍGENAS
Em 1750 a Espanha queria trocar com Portugal as terras das
missões dos jesuítas, conhecida como os Sete Povos das
Missões, pela colônia de Sacramento. O problema é que os
Sete Povos das Missões eram habitados por milhares de índios6.
Este trecho da lenda de Sepé Tiaraju ilustra bem o tratamento que historicamente é dado aos índios no Brasil, sendo apresentados desrespeitosamente
6
Informação obtida às 16:13 do dia 15 de Setembro de 2008 no endereço eletrônico
<http://www.clicklivro.com.br/content/view/8491/72/>.
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como uma questão problemática. Contudo, problemática quanto ao interesse
de grupos que só viam a terra e os recursos naturais com um olhar exploratório,
diferentemente da maneira sustentável e vital desenvolvida pelos índios.
Certamente os indígenas representam hoje no Brasil um dos povos organizados, mais ativos e radicalizados em defesa dos seus direitos frente ao Estado.
Estão em evidência por ocupações de prédios de órgãos do Estado como Funasa
e Funai, e lutando permanentemente pela retomada dos seus territórios invadidos, como no caso já citado de Raposa Serra do Sol.
Os indígenas reivindicam direitos ancestrais, de povos literalmente
originários, do que hoje constitui o território brasileiro. Segundo a descrição
do Ministro Carlos Ayres Britto, “o termo originários a traduzir uma situação
jurídico-subjetiva mais antiga do que qualquer outra, de maneira a preponderar
sobre eventuais escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor
de não índios.7” Como garantias, estes povos obtiveram o reconhecimento da
Constituição Federal brasileira, a qual reserva um capítulo8 específico só para
tratar dos indígenas. Vejamos um dos artigos;
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar
todos os seus bens.
§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as
por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para
suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e
as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo
seus usos, costumes e tradições. (...)
Aqui estão dispostos elementos importantes, os quais reconhecem e garantem direitos essenciais ao desenvolvimento do modo de vida das diferentes
tribos indígenas espalhadas por todo o país.
Na Constituição do Estado do Paraná, também podem ser encontradas
normas específicas garantidoras dos direitos indígenas. Assim está disposto no
7
Trecho do voto do Ministro Carlos Ayres Brito relator no julgamento do caso Raposa
Serra do Sol, no Supremo Tribunal Federal (STF).
8
Capítulo VII, Título VIII, da Ordem Social, Constituição da República Federativa do
Brasil.
66
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artigo 216 da referida norma.
Art. 226. As terras, as tradições, usos e costumes dos grupos indígenas do Estado integram o seu patrimônio cultural
e ambiental, e como tais serão protegidos.
Parágrafo Único. Esta proteção estende-se ao controle das
atividades econômicas que danifiquem o ecossistema ou
ameacem a sobrevivência física e cultural dos indígenas.
Existem ainda, outras normas que tratam de temas específicos dos direitos indígenas, como Decreto 1.775/1996 sobre demarcação de Terras indígenas;
Decreto 1.141/94 dispondo sobre ações de proteção ambiental saúde e apoio “as
atividades produtivas para as comunidades indígenas; diversas normas relacionadas à Fundação Nacional do Índio (FUNAI), entre outras.
2.2.4. PESCADORES ARTESANAIS
Os pescadores artesanais, ainda possuem um reconhecimento específico,
existindo pouca incidência normativa direcionada a este tipo de comunidade
tradicional.
Áreas marítimas e de águas interiores tem sido, nas últimas décadas objetos de conflitos, muitas vezes violentos entre a pesca industrial, geralmente de
fora da região, e a artesanal, feita pelos pescadores das comunidades litorâneas.
Recentemente, uma norma específica foi sancionada, a qual dispõe sobre
as colônias e federações de pescadores, tratando de características mais organizativas. Observa-se o conteúdo limitado da lei 11.699/2008, embora demonstre
um primeiro passo para o reconhecimento concreto e integral de toda e qualquer
comunidade de pescadores artesanais, seja qual for suas respectivas formas de
se organizarem.
Existem ainda, algumas leis municipais específicas espalhadas pelo país,
que buscam garantir e reconhecer alguns direitos aos pescadores artesanais, sendo importante fomentar este debate nos municípios em que estas comunidades
estão inseridas.
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2.2.5. CIPOZEIRAS
Os povos caracterizados como “cipozeiras”, por viverem e se identificarem quanto grupo, justamente pelo trabalho tradicionalmente desenvolvido de
extração do cipó em Santa Catarina, constituem outro tipo de comunidade que
busca sair da invisibilidade jurídica e social fazendo valer seus direitos históricos.
Estes grupos, atualmente, se concentram na região de Garuva, município
de Santa Catarina. Além da extração do cipó imbé, atuam como pequenos
produtores rurais. Assim, os grupos que trabalham com esta matéria-prima e
desenvolvem uma forma de vida por conta da cultura desenvolvida no manejo
do cipó, estão situados entre as pessoas mais desfavorecidas do município.
Hoje, eles são perseguidos e diversas vezes confundidos, equivocadamente com extratores de palmitos. Por isso, apesar de não existirem normas
específicas, estão se organizando e lutando pelo reconhecimento da forma de
vida desenvolvida por estes grupos.
2.2.6. ILHÉUS
Ainda existem os povos ilhéus, comunidades tradicionais que habitam
ou habitavam o arquipélago da Ilha Grande, localizadas no alto do Rio Paraná,
próximo às divisas do Paraná e Mato Grosso do Sul.
Alguns deixaram as terras por conta da construção de Itaipu, depois da
Usina da Ilha Grande e finalmente, do Parque Nacional da Ilha Grande na região.
As alternativas que se apresentam para aqueles que permanecem nos municípios
ribeirinhos são poucas: o trabalho assalariado em propriedades agrícolas; os volantes (bóia-fria); os pequenos comércios (biscateiros) e alguns serviços ligados
ao turismo e à pesca9.
Atualmente, os ilhéus enfrentam problemas frente a órgãos como IBAMA
(Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis),
INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e IAP (Instituto
Ambiental do Paraná). Existe ainda, falta de compreensão frente ao Ministério
Público, sendo inclusive, estes povos pressionados a deixarem as ilhas que ocupam.
9
GODOY, A. M. G. Populações Tradicionais no Parque Nacional da Ilha Grande. Informação obtida as 14:50 do dia 16 de Setembro de 2008 no endereço eletrônico http://
www.dge.uem.br/geonotas/vol5-4/amalia.shtml.
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Esta é uma luta, que apesar de antiga, começa a se articular com outras e
busca possibilidades de garantir a retomada dos direitos coletivos deste tipo de
comunidade.
3. O CHOQUE ENTRE AS CONCEPÇÕES LIBERAIS DO DIREITO E OS RECONHECIMENTO DE DIREITOS ÉTNICOS E COLETIVOS
Começar uma movimentação na sociedade civil reivindicando direitos
atribuídos a uma coletividade, e não meramente particulares e localizados, apresenta um panorama real de percepção e concretização de garantias constitucionais devidas, e consideração de fato das comunidades tradicionais em nosso
país. Muitas destas comunidades brasileiras se formaram à margem do processo
socioeconômico hegemônico e sobreviveram pelos tempos mantendo muitas
tradições e práticas sociais antigas. Daí, a importância em valorizar a diversidade
social, econômica e cultural produzida por eles. Ademais, aliado as próprias necessidades humanas fundamentais, novos tipos de conflitos de massa surgem e
o direito deve ter uma resposta adequada e garantidora a estas novas questões.
Uma grande dificuldade na efetivação destes direitos passa pela visão
jurídica formalista, dogmática e liberal-individualista dentro da história do direito, além da concepção monista que eleva a figura do Estado como a única
grande fonte normativa, excetuando em algumas oportunidades em que concedem também aos costumes e outros, certamente em menor relevância, este
status de fonte do direito.
Como primeiro exemplo, podemos destacar uma categoria operacional do
direito, que é o conceito de relação jurídica apreendido em nossas Universidades.
Este geralmente ocorre de um sujeito a outro prevendo demandas que vinculam
de forma individual, em sua essência, a busca por um bem da vida. O bem é
suscetível de apropriação, quase sempre pautada na linguagem possessiva do
meu, seu, posso, tenho, entre outras, tipicamente individualista. O sujeito que se
reproduz no conceito de relação jurídica tem sido essencialmente privatístico.
É lançado o dilema de um conceito de relação jurídica próprio, que preveja e dê respostas adequadas às demandas coletivas. Algo que não ousaremos
adentrar neste momento.
Logo, observa-se a derrocada de um modelo jurídico estatal, que através de
seus Códigos e de seu próprio Poder Judiciário, limita-se a regulamentar conflitos de
cunho individualistas e patrimoniais, afastando-se das demandas sociais coletivas.
Estes problemas tornam-se visíveis, visto que nos encontramos “formados numa
cultura jurídica incapaz de entender a sociedade e seus conflitos e há má vontade
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em discutir a democratização efetiva deste ramo do Estado,10”no caso específico,
o Judiciário.
Outra questão emergencial que dificulta a efetivação, em muitas oportunidades, destes direitos postos é a visão estreita utilizada para as fontes normativas, enfatizando a figura do Estado, influenciado por entes privados, tendo em
vista a própria organização da sociedade dentro da lógica capitalista. O monismo estatal “se explica ideologicamente, eis que o Estado moderno é construção
da classe dominante no mundo ocidental, organizado burocraticamente para servir
seus próprios interesses de proprietários.11” Dessa forma, os grupos subalternos
absorvem aquilo como o único direito, submetendo-se a todo e qualquer tipo
legal posto.
Por mais, que a luta das comunidades tradicionais consiga avançar pontualmente, com normas garantidoras advindas dentro da lógica formalista do Estado, cabe ainda lutar para que estas normas, além de emanar deste ente, brotem,
de fato, destes povos e organizações populares.
Tendo presente a perspectiva de um pluralismo comunitário-participativo, há de se chamar a atenção para o fato
de que a insuficiência das fontes clássicas do monismo
estatal determina o alargamento dos centros geradores de
produção jurídica mediante outros meios normativos nãoconvencionais, sendo privilegiadas neste processo, as práticas coletivas engendradas pelos movimentos sociais.12
O que se busca salientar com estas indagações é que, este princípio monista de alcance ontológico, o qual possui sua gênese na figura do Estado, é tão
só uma das faces do Direito. A outra face deve ser considerada e “seu projeto
político é o da conquista dos espaços normativos pela organização social dos
oprimidos, primeiro passo no sentido da libertação.13”
O Direito autêntico e global não pode ser isolado em campos de concentração legislativa, pois indica os princípios
10
FARIA, J. E.; LOPES, J. R. L. Pela democratização do Judiciário. In: FARIA, José
Eduardo. Direito e Justiça. A função social do Judiciário. São Paulo: Ática, 1989. p.163.
11
COELHO, Luiz Fernando. Teoria Crítica do Direito. 2ªed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 263.
12
WOLKMER, A. C. Pluralismo Jurídico:. Fundamentos de uma nova cultura no Direito. 2ªed. São Paulo: Ed. Alfa Omega, 1997, p.137.
13
COELHO, L. F. Op. cit., p. 291.
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e normas libertadores, considerando a lei um simples acidente no processo jurídico, e que pode, ou não, transportar
as melhores conquistas14.
O Direito deve estar inserido nas práticas sociais, produto proveniente
da dialética de uma práxis do dia-a-dia e não encastelado nos gabinetes institucionalizados de funcionamento do burocratismo do Estado, tão gerador de
injustiças. Infelizmente, após tantos anos de estudo os juristas conhecem melhor
os corredores dos Fóruns e Tribunais, do que os caminhos e as trilhas das comunidades que contribuem para a construção do meio cultural, há séculos em nosso
país.
Podemos estar vivendo momentos pré-paradigmáticos. Os paradigmas jurídicos e políticos estão em crise, sem ainda terem nascido novos. O liberalismo é
paradigma da ciência jurídica. Os novos direitos exigem nova teoria.
CONCLUSÃO
Tendo por base o estudo realizado, alguns direcionamentos podem ser
visualizados diante da luta das comunidades tradicionais, sobretudo do Sul do
Brasil, e os delineamentos jurídicos apresentados.
Nota-se uma inquietação e organização crescente entre os povos e comunidades tradicionais, na ânsia de serem reconhecidos, de fato, como sujeitos
coletivos de direitos. Contudo, nem sempre o Direito dá as respostas esperadas
por estas comunidades, mas tão só, reproduz seus feitos de maneira disforme
a uma situação que nada se equipara a uma relação entre indivíduos e lógicoformalista.
Sendo assim, além da batalha por reconhecimento de direitos que germinam
da própria luta histórica, advinda destas comunidades, desconstruindo a mística da
teoria monista estatal, em diversas situações, o entrave ocorrerá entre as normas
postas, vigentes no ordenamento. Roberto Lyra Filho oferece o fundamento para
resolução desta questão e efetivação destes direitos humanos;
o padrão de legitimidade, na concorrência das normas, está
no vetor histórico, donde se extrai a resultante mais avançada duma correlação de forças em que se torna reconhecível
14
LYRA FILHO, R. O que é Direito. 12ªed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1991, p.10.
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a vanguarda, marca-se o posicionamento progressista e se
atua para garantir suas reivindicações, tratando de espremer
o sumo e o extrato do processo libertador a que se dá o
nome de direitos humanos15.
Nessa monta, os direitos humanos são postos, de fato, como garantias
decorrentes e possibilitadas diante de uma luta histórica, em que novos sujeitos
continuamente são forjados, enquanto perdurar a desigualdade social e de direitos no país.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988), I. Pinto, Antonio Luiz de Toledo. II. Windt, Márcia Cristina Vaz dos Santos. III. Céspedes,
Lívia. 29° ed., São Paulo: Ed. Saraiva, 2002;
________. Supremo Tribunal Federal. Ação Popular nº 3388. Brasília, DF, 27
de agosto de 2008;
COELHO, L. F. Teoria Crítica do Direito. 2ªed. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 1991;
FARIA, J. E.; LOPES, J. R. L. Pela democratização do Judiciário. In: FARIA,
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GODOY, A. M. G. Populações Tradicionais no Parque Nacional da Ilha
Grande. Informação obtida as 14:50 do dia 16 de Setembro de 2008 no endereço
eletrônico http://www.dge.uem.br/geonotas/vol5-4/amalia.shtml;
15
LYRA FILHO, R.. A Nova Filosofia Jurídica. In: MOLINA, Mônica Castagna, SOUSA
JÚNIOR, J. G.; TOURINHO NETO, F. C. (org.). Introdução Crítica ao Direito Agrário.
Brasília, Universidade de Brasília, Decanato de Extensão, Grupo de Trabalho de Apoio
à Reforma Agrária, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 90.
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LYRA FILHO, R.. A Nova Filosofia Jurídica. In: MOLINA, M. C.; SOUSA
JÚNIOR, J. G; TOURINHO NETO, F. C. (org.). Introdução Crítica ao Direito
Agrário. Brasília, Universidade de Brasília, Decanato de Extensão, Grupo de
Trabalho de Apoio à Reforma Agrária, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado,
2002;
________O que é Direito?. 12ªed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1991;
MACHADO, A. A. O Direito Alternativo. Franca, 1997. Disponível em: <http://
neda.ubbihp.com.br/direitoalternativo.pdf.>. Acesso em: 04 de Março de 2006;
Relatório Final do 1º Encontro Regional dos Povos e Comunidades Tradicionais. Elaborado pelo Projeto Nova Cartografia Social, Instituto Equipe de Educadores Populares, Terra de Direitos, Pastoral da Terra Diocese de Guarapuava,
AGAECO e CEMPO. Guarapuava-PR, 2008;
WOLKMER, A. C. Pluralismo Jurídico. Fundamentos de uma nova cultura no
Direito. 2ªed. São Paulo: Ed. Alfa Omega, 1997.
Artigo recebido em: 29/05/2010
Artigo aprovado para publicação em junho /2010.
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QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU DO ARAGUAIA-TOCANTINS: ESTRATÉGIAS LOCAIS DE
REPRODUÇÃO SOCIAL E CULTURAL
Nirson Medeiros da Silva Neto*
Sumário: Introdução; 1. Sofrimento e mobilização: a vida e o trabalho das quebradeiras
de coco babaçu e sua organização em movimento social; 2. Quebradeiras de coco face
às “novas estratégias empresariais”; Considerações Finais; Referências.
RESUMO: O artigo que segue apresenta
os resultados de uma investigação empírica junto às quebradeiras de coco babaçu
da região do Araguaia-Tocantins. O texto
considera a existência da vida econômica,
embora muito peculiar, dos grupos tradicionais, assim como a possibilidade de o
contanto com o sistema de mundo capitalista reafirmar os pontos de vistas tradicionais e, por conseguinte, produzir desenvolvimento da cultura local. Veremos que
as trabalhadoras pesquisadas, através do
Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, não somente produzem objetivando a comercialização como
inclusive têm buscado intervir no mercado
a fim de garantir condições mais competitivas aos produtos manufaturados tradicionalmente por suas famílias de pequenos
produtores rurais. Isto, todavia, não elimina a possibilidade de relações simbolicamente violentas das quebradeiras com a
economia de mercado, também sobremodo
comuns, que, ao invés de reafirmar, descaracterizam o modo de viver e trabalhar
tradicional, tal como o fazem as chamadas
ABSTRACT: This article presents the
results of an empirical inquiry about
breaking coconut babassu ladies from
Araguaia-Tocantins region, that objectified to understand the strategies, practical and representations of related agricultural workers in regards to the protection
of their traditional knowledge. The text
consider the existence of the economic
life, though so peculiar, of the traditional
groups, and the possibility of the contact
with the capitalist world system to reaffirm
traditional points-of-view and, therefore,
to produce the local culture development.
The interviewed workers, through the Interstate Movement of the Breaking Coconut Babassu Ladies, do not produce objectifying the commercialization as also they
have look to interact in the market in order
to guarantee more competitive conditions
to the products manufactured traditionally for their families of small agricultural
producers. This, however, does not eliminate the possibility of symbolically violent
relations of the breaking coconut babassu
ladies with the market economy, which is
*
Doutorando em Antropologia pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal do Pará. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará.
Bolsista da CAPES.
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“novas estratégias empresariais” que hoje
realizam uma “modernização conservadora e predatória” da Amazônia. Por estas e outras razões que serão expostas, as
quebradeiras buscam a reprodução de seus
elementos sociais e culturais por intermédio de uma vasta pauta de reivindicações,
gestadas no âmbito de um movimento social, associadas à garantia das condições
de produção e reprodução de seu modo
de vida e trabalho e de sua cultura, que
vão desde uma melhor inserção de seus
produtos no mercado até a valorização da
mulher no campo e o reconhecimento de
uma forma de juridicidade, por elas desenvolvida e praticada, que lhes garante o
livre acesso e uso comum dos babaçuais,
independentemente se localizados em propriedades privadas ou terras públicas, ou
seja, a denominada “lei” do babaçu livre
ou do coco liberto.
also very common, that, instead of reaffirming, they deprive of characteristics the
way of traditional living and working, as
the called “new enterprise strategies” do
that today carry through a “conservative
modernization” of the Amazon. For these
and other reasons that will be displayed,
the breaking coconut babassu ladies look
for the reproduction of their social and
cultural elements through a vast guideline
of claims associate to the guarantee of the
production conditions and reproduction
of their products in the market until the
woman’s valuation in the field and the acknowledgment of a legality from, for them
developed and practiced, which guarantee the free access and use of the babassu
palms, independently if they are located in
private properties or public lands, that is,
the “law” called free babassu or free coconut.
PALAVRAS-CHAVE: Quebradeiras de KEYWORDS: Breaking Coconut BaCoco Babaçu; Araguaia-Tocantins; Movi- bassu Ladies; Araguaia-Tocantins; Social
mento Social; Populações Tradicionais.
Movement; Traditional Populations.
INTRODUÇÃO
As quebradeiras de coco babaçu encontram-se entre aquelas populações
cujas lutas e mobilizações têm contribuído para a construção contemporânea da
noção de “tradicional”, ao se definirem enquanto uma “comunidade tradicional”,
ajustando-se aos termos da Convenção sobre Diversidade Biológica que obtiveram clara expressão na conceituação do artigo 7°, III, da MP n. 2.186-16/01:
“comunidade local: grupo humano, incluindo remanescentes de comunidades
de quilombos, distinto por suas condições culturais, que se organiza, tradicionalmente, por gerações sucessivas e costumes próprios, e que conserva suas
instituições sociais e econômicas”. O processo de identificação destas mulheres
enquanto população tradicional, a um só tempo social e político, é concomitante
à construção de uma identidade coletiva a partir do I Encontro Interestadual
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das Quebradeiras de Coco Babaçu, realizado entre os dias 24 e 26 de setembro
de 1991, onde reside a gênese do Movimento Interestadual das Quebradeiras
de Coco Babaçu (MIQCB), reunindo no âmbito desta identidade, objetivada
em movimento social, um conjunto de mulheres que realizavam variadas atividades (parteiras, artesãs, professoras, costureiras, doceiras, boleiras, etc.) entre
as quais se destacava o trabalho comum a todas de coleta e quebra do coco babaçu (ALMEIDA, 1995).
A coleta e quebra do coco babaçu – realizada tradicionalmente mediante
o uso de um jacá (cesto produzido com palha de palmeira de babaçu, destinado
à cata dos frutos), um machado e um macete (pedaço de madeira especialmente
talhado para golpear os cocos sobre a lâmina do machado) – é uma prática extrativista e de beneficiamento destinada tanto ao consumo na esfera familiar
como à comercialização, no mais das vezes em pequena escala, e que funciona
localmente como uma forma de complementação de outras práticas laborais desenvolvidas preferencialmente por homens, tais como: a agricultura ou roça, segundo a linguagem local; o trabalho com a capina e/ou preparo de pasto, chamada pelas trabalhadoras rurais pesquisadas de trabalhar na juquira; as atividades
como vaqueiro nas fazendas próximas aos povoados, eminentemente masculina
e por isso destinada geralmente aos maridos e filhos das quebradeiras; e, em
alguns casos, a pecuária, seja de gado bovino, seja de caprino ou mesmo suíno,
no âmbito doméstico. Além disso, trabalhar no coco, expressão que as mulheres
estudadas costumam usar para designar sua forma de trabalho, é uma atividade
laboral capaz de gerar alguma renda, ainda que bastante reduzida, que propicia a
aquisição de certos bens de consumo não disponibilizados pela produção nativa
e que, todavia, são imprescindíveis à economia e subsistência familiares.
O processo organizativo das quebradeiras de coco babaçu, conforme
veremos abaixo, é orientado não só ao planejamento de sua integração na
produção, mas igualmente à demanda por melhores condições de vida, por um
mais amplo acesso à terra em áreas onde os grandes latifúndios têm avançado,
por melhorias do óleo de babaçu para enfrentar as baixas dos preços nos mercados local, nacional e internacional, pela proteção legal das palmeiras de babaçu
e, até mesmo, pelo enfrentamento de alguns tabus quanto a questões de gênero
e sexualidade (SIMONIAN, 2001). Alfredo Wagner Berno de Almeida (2006b)
explica ainda que o movimento das quebradeiras de coco encontra-se entre
aqueles que apresentam uma consciência ambiental aguçada, posicionando-se
contra a devastação e o desmatamento e realizando assim um processo de politização da natureza. Além desta sensibilidade especial para as questões ambientais,
estes movimentos apresentam por característica o estabelecimento de intensas
lutas por processos de territorialização pautados em representações e práticas de
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uso comum da terra que, segundo Almeida (2006c, pp. 23-4):
[...] designam situações nas quais o controle dos recursos
básicos não é exercido livre e individualmente por um determinado grupo doméstico de pequenos produtores diretos
ou por um de seus membros. Tal controle se dá através de
normas específicas, combinando uso comum de recursos
e apropriação privada de bens, que são acatadas, de maneira consensual, nos meandros das relações sociais estabelecidas entre vários grupos familiares, que compõem
uma unidade social. Tanto podem expressar acesso estável à terra, como ocorre em áreas de colonização antiga,
quanto evidenciam formas relativamente transitórias características das regiões de ocupação recente. Tanto podem
se voltar prioritariamente para a agricultura, quanto para
o extrativismo, a pesca ou para o pastoreio realizados de
maneira autônoma, sob forma de cooperação simples e com
base no trabalho familiar. As práticas de ajuda mútua, incidindo sobre os recursos naturais renováveis, revelam um
conhecimento aprofundado e peculiar dos ecossistemas de
referência. A atualização destas normas ocorre, assim, em
territórios próprios, cujas delimitações são socialmente reconhecidas, inclusive pelos circundantes. A territorialidade
funciona como fator de identificação, defesa e força, mesmo em se tratando de apropriações temporárias dos recursos naturais, por grupos sociais classificados muitas vezes
como “nômades” e “itinerantes”.
As ações políticas destas populações tradicionais, nas palavras de Edna
Castro e Rosa Acevedo (1998), centram-se em reivindicações de permanência na
terra, visto que o território é-lhes condição de existência, de sobrevivência física,
e fator imprescindível, somado a outros (por exemplo, etnicidade e gênero),
para a construção de sua identidade: remanescentes de quilombos, quebradeiras de coco babaçu, ribeirinhos, indígenas, etc. A concepção de territorialidade
destas populações, porém, “só pode ser percebida no interior das relações que
estruturam a organização dessas comunidades” por não estar “subordinada portanto à lógica da propriedade privada que preside o direito brasileiro, por ser de
natureza distinta”, mantendo, “na concepção e na prática, terras comuns, pois
institucionalizam um sistema de regras que alimentam o seu modo de produção”
(CASTRO & ACEVEDO, 1998, p. 158).
No âmbito de tais lutas pela afirmação de práticas e representações de uso
comum da terra, o movimento das quebradeiras de coco apresenta um elemento
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muito peculiar, que é a estratégia de enfrentamento da noção jurídica de propriedade privada por intermédio da sustentação de uma concepção, inscrita nos usos
e representações sociais das quebradeiras e reconhecida pelos habitantes locais da
circunvizinhança (inclusive por alguns fazendeiros afetados, que estão entre seus
principais adversários políticos, acompanhados pelas empresas de produção de ferro-gusa e de celulose, assim como dos chamados catadores de coco e carvoeiros),
de acesso livre às terras privadas – no mais das vezes, fazendas voltadas para a
produção de monoculturas agrícolas ou para a pecuária – onde há incidência de
babaçuais e utilização comum dos frutos das palmeiras. Este fato também aproxima
as quebradeiras de coco babaçu de outros grupos sociais que têm posto em causa as
políticas públicas que “continuam sendo pensadas de forma ‘universal’, levando à
constituição do ‘reino de um único direito’, o que mais tem servido para ‘apagar’
as diferenças existentes do que para garantir o direito às diferenças” (SHIRAISHI NETO, 2006, p. 13). Em outras palavras, as quebradeiras possuem uma considerável afinidade com aqueles agentes coletivos que, pelo seu próprio modo de
viver e processo histórico, têm demonstrado e buscado reconhecimento para o
fenômeno do pluralismo jurídico, isto é, a coexistência em um mesmo espaço
geopolítico de duas ou mais ordens jurídicas não raramente contraditórias entre si
(SANTOS, 2005b).
A forma de vida das quebradeiras de coco, seu processo de mobilização e
as estratégias que desenvolvem para garantir a reprodução material e simbólica
de seus elementos culturais e modo de organização social e trabalho, é verazmente interessante para se refletir quanto à proteção das formas de vida tradicionais, especialmente porque trata-se de uma população que tem contribuído para
a ampliação dos cânones do que seja “tradicional” e cuja forma de ser tradicional
está intimamente relacionada com a construção social e política de uma identidade coletiva, ou seja, um processo de (re)tradicionalização ou (re)invenção de
tradições, nos termos de Eric Hobsbawn (2006), assim como oferece elementos
para questionar a fecundidade ou não da relação entre o sistema capitalista e o
sistema de mundo das populações tradicionais. A experiência vivenciada pelas
quebradeiras é ainda um caso exemplar de estratégias localmente desenvolvidas
por grupos sociais nativos, relativamente bem sucedidas, a fim de preservar suas
tradições diante dos dilemas locais que enfrentam cotidianamente, questionando
cânones do direito, como a idéia de monismo jurídico e a rigidez da noção de
propriedade privada.
As linhas que seguem resultam de uma incursão empírica junto às quebradeiras de coco babaçu do Araguaia-Tocantins, ou região tocantina, que ocorreu
entre os dias 30 de julho e 19 de agosto de 2007. Neste período, foram realizadas observações diretas e entrevistas semi-estruturadas – algumas individuais,
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outras em grupos – com quebradeiras de coco e agricultores nos Sindicatos dos
Trabalhadores Rurais e sedes regionais do MIQCB, localizados nas principais
cidades da região tocantina, assim como na Reserva Extrativista do Ciriaco
(município de Cidelândia) e nos povoados de Petrolina (Imperatriz) – Estado
do Maranhão –, Sete Barracas (São Miguel), Piquizeiro (Axixá), Juverlândia
(Sítio Novo) – Estado do Tocantins –, Santa Rita (Brejo Grande), Vila Metade
(São Domingos do Araguaia) e outros dois localizados nos municípios de São
João do Araguaia e Palestina – Estado do Pará. Todas as entrevistas ocorridas
nos povoados deram-se nas casas de lideranças comunitárias locais, a maioria
engajada no MIQCB, e foram antecedidas ou sucedidas por observações nas
proximidades destas residências que objetivaram visualizar in locus o modo de
vida e o ofício das trabalhadoras pesquisadas. Além destas entrevistas, houve
colóquios com representantes do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e do CENTRU (Centro de Educação
e Cultura do Trabalhador Rural), em Imperatriz (MA).
1.
SOFRIMENTO E MOBILIZAÇÃO: A VIDA E O TRABALHO DAS
QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU E SUA ORGANIZAÇÃO EM MOVIMENTO SOCIAL
“O bom das quebradeiras, o lado bom, é a mobilização”.
Querubina Neta, do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu
(MIQCB)1.
Vimos na introdução deste artigo que as quebradeiras de coco babaçu
constituem um conjunto de mulheres identificadas por uma forma de trabalho
comum (coleta e quebra de coco babaçu e atividades correlatas de beneficiamento do fruto) e cuja identidade é objetivada em movimento social, sendo integrantes de famílias de trabalhadores rurais nativos do Maranhão ou migrantes do
Nordeste que vivenciaram um processo histórico de ocupação da zona ecológica
do babaçu e que, no dizer de Jair do Amaral Filho (1990), desdobram-se em três
categorias de pequenos produtores: 1) pequenos produtores com propriedade de
terra, ou pequenos produtores-proprietários; 2) pequenos produtores “autônomos”, ou posseiros, ocupantes de terras devolutas; e 3) pequenos produtores inseridos em grandes propriedades, ou pequenos arrendatários e foreiros. Dentro
da terceira categoria deveriam ainda ser incluídos aqueles que têm livre acesso
1
Entrevista realizada no dia 31.07.2007.
80
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aos babaçuais e, no entanto, não pagam nem renda nem foro, embora Amaral Filho não os mencione. Por este motivo, são as considerações de Almeida
(1995, p. 39) mais precisas na classificação das quebradeiras conforme os meios
de produção que estas detêm:
Há “quebradeiras sem terra”, ou seja, sem acesso direto à
terra para moradia, cultivo e extração, residindo nas chamadas pontas de rua e na beira das rodovias com atividades
acessórias de assalariamento eventual (empregadas domésticas e de prestação de serviços de lavadeira, doceiras,
confeiteiras). Há também trabalhadoras extrativistas com
acesso garantido. Localizam-se em terras desapropriadas,
adquiridas e decretadas (Reserva extrativista) por órgãos
governamentais ou com posses consolidadas. Há ainda
quebradeiras em terras de herança tituladas ou não, com ou
sem [documentação] formal de partilha; bem como as que
se localizam em terras de terceiros, pagando aforamento ou
ocupando-as centenariamente com ou sem consentimento
de terceiros (Caso “terras dos índios” de Viana).
Antes do processo de organização das quebradeiras não era raro ditas
trabalhadoras rurais serem representadas através de imagens folclóricas ou pictóricas que as confundiam com a própria natureza, quer dizer, com a paisagem
dos cocais, o exotismo da floresta, as matas onde havia incidência de babaçu,
afirma Almeida (1995). A estruturação da identidade coletiva foi um fator decisivo para desfazer esta “imobilidade iconográfica”, inserindo as trabalhadoras,
de modo organizado, “nas estruturas do campo do poder e nos circuitos do mercado”, desnaturalizando-as e dando-lhes uma nova condição. O universo das
quebradeiras passa então a ser política e economicamente (re)construído, não
mais se confundindo, “necessariamente, com as áreas de ocorrência de babaçuais”. A elaboração de uma identidade coletiva, destarte, confere “significado
político a uma categoria historicamente de uso cotidiano” (ALMEIDA, 1995,
p. 19), re-significando, por seguimento, não somente a vida das quebradeiras,
mas igualmente suas ações sociais especialmente nos mundos da política e da
economia, embora também, e de forma bastante acentuada, no âmbito doméstico
e de seus pares, os demais trabalhadores rurais. Concomitantemente, e no sentido
diametralmente oposto, a organização das quebradeiras em movimento social
autônomo politiza a natureza, elas separando-se dos babaçuais e construindo-se
como sujeitos sociais, pois a defesa e conservação dos recursos naturais são,
no dizer de Almeida (2006b), atos políticos que estabelecem novas formas de
solidariedade.
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Esta re-significação da vida das quebradeiras de coco e de suas relações
com os demais agentes sociais, sem embargo, não descaracteriza – ao contrário,
até mesmo reforça – certos aspectos da condição original do modo de viver de
tais mulheres trabalhadoras. Na zona ecológica do babaçu, desde há muito, a
ligação do fruto com as práticas agrícolas é sobremaneira notável, estando intimamente relacionada com a divisão do trabalho familiar ao longo do calendário
agrícola. Geralmente entre os meses de agosto a novembro, a mão-de-obra masculina está ocupada no preparo da terra, realizando limpeza, queima e capina.
E este é exatamente o período em que os cocos de babaçu alcançam o auge de sua
maturação, sendo então abundantemente encontrados nos pés das palmeiras – as
quebradeiras costumam coletar tão-somente os frutos maduros caídos, ao invés
de derrubar os cachos verdes, prática esta (a derrubada dos cachos) que representam como predatória, visto que a única utilidade que o coco imaturo apresenta é a feitura de carvão.
O trabalho feminino e infantil na preparação da terra, durante tal período,
faz-se prescindível, sendo, no entanto, essencial na coleta e quebra dos cocos,
de sorte a extrair as amêndoas oleaginosas e vendê-las in natura ou beneficiá-las,
obtendo assim um complemento de renda. As atividades de quebra e principalmente de coleta do coco, em alguns núcleos familiares, apresentam também a
participação de homens nesta época do ano, especialmente naqueles casos em
que o babaçu é a única fonte de renda em tal período2. A feitura de carvão e a
colheita da palha não raro são igualmente práticas partilhadas entre homens e
mulheres. Já no período de final de dezembro a fevereiro, quando intensificamse as chuvas, um maior número de membros da família, incluindo mulheres e
crianças, é comumente alocada para as atividades de plantio e capina, transfor-
2
De forma um tanto bem-humorada, algumas quebradeiras costumavam dizer que o
“bom marido” é justamente aquele que “cata os cocos no mato” e traz para a mulher
quebrar em casa. Esta representação do “bom marido”, porém, desvela a dura realidade
que é a coleta do coco babaçu, normalmente realizada por mulheres que, com cestos
feitos da palha da palmeira, carregam às vezes por longas distâncias os cocos quando
os fazendeiros autorizam a coleta mas não a quebra dos frutos em suas propriedades.
3
Um depoimento que corrobora estas informações foi dado por Emília Alves da Silva
Rodrigues, em entrevista realizada no dia 02.08.2007: “Sempre a gente trabalhou na
área de babaçu e na agricultura, consorciado os dois, porque quando é tempo de entressafra a gente ia trabalhar na roça”. “A entressafra começa em janeiro, fevereiro,
março, abril, aí em maio já começa, aí é o tempo em que a gente já tem colhido o arroz,
etc. Também quando é época da colhida do feijão, a gente deixa de quebrar o coco para
colher o feijão. Então, a gente trabalha as duas coisas, não é só com a quebra do coco,
mas também a gente trabalha na roça”.
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mando as atinentes ao babaçu em secundárias. Todavia, no período entre a capina e a colheita, a extração do babaçu volta a se intensificar, só sendo novamente
reduzida quando é chegado o tempo de se colher o que foi plantado no início do
ciclo agrícola (MAY, 1990)3.
O trabalho no coco, entretanto, não é absolutamente cessado em nenhum
período do ano, especialmente porque, além de um complemento de renda, certa quantidade de produtos que possuem tanto valor-de-uso doméstico quanto
valor-de-troca (e aqui leia-se efetivamente troca e venda) é manufaturada pelas
quebradeiras. Entre tais produtos destacam-se: o azeite e o leite de coco, produzidos a partir das amêndoas e que são utilizados no preparo de alimentos,
substituindo o óleo de cozinha convencional e funcionando como condimento;
o sabão de coco, também produzido do óleo da amêndoa, só que em um estágio
mais bruto; a massa ou farinha de babaçu, confeccionada através do uso do
mesocarpo do fruto, que, entre outras utilidades, é usada para fazer mingaus
e bolos, constituindo uma alternativa ao amido de milho e ao trigo; o carvão,
feito, depois de retiradas as amêndoas, das cascas ou dos frutos apodrecidos,
sendo a principal fonte de combustível de que as quebradeiras se valem para
o cozimento de alimentos, pois apresenta um custo consideravelmente menor
em relação ao gás de cozinha; o artesanato, como bolsas, cestos, abanadores,
pingentes, etc., produzidos a partir da palha das palmeiras e do endocarpo dos
cocos; entre outros produtos menos usuais4. Estes são apenas alguns exemplos
de produtos que integram, atualmente, o cotidiano das famílias das quebradeiras
e a economia do babaçu. Dentre eles, os produtos oriundos do mesocarpo e o
artesanato, hoje amplamente difundidos entre as quebradeiras e que são tomados por estas como tradicionais, já são resultado da ação do MIQCB que, com
relativa freqüência, promove cursos a fim de ampliar a capacidade produtiva
dos camponeses e diversificar os produtos, gerando assim maior renda para as
unidades familiares. Os demais produtos, entretanto, constituem práticas tradicionais transmitidas de geração para geração, e sempre com valor-de-uso e de
troca, segundo afirma uma quebradeira do povoado de Petrolina5:
[...] os homens trabalhava na roça, as mulheres ia deixar
comida e o resto do dia a gente ia quebrar coco, vendia,
4
Como, por exemplo, o sabão-em-pó de babaçu que, durante a incursão empírica, observei ser produzido apenas por uma quebradeira, dona Romana, no município de Palestina
(PA), que afirmara ter aprendido a técnica em um curso ministrado no âmbito do MIQCB.
5
Entrevista realizada em 15.08.2007.
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para fazer o complemento da renda, aquela rendazinha de
vender amêndoa, tinha aquele dinheirinho que já ajudava
para comprar alguma coisa para dentro de casa e também
tirava o óleo. Ali a gente não comprava o óleo, aquilo já servia para temperar a comida, daquele óleo já fazia o sabão
para lavar roupa, já era uma economia que não era preciso
a gente comprar; da casca fazia o carvão6, como ainda até
hoje a gente faz isso, já faz parte desde que eu me entendo
por gente. Eu via a minha mãe praticando e eu aprendi a
fazer e até hoje eu faço.
Este fragmento de entrevista começa por indicar, também, uma outra face
dos dilemas vivenciados pelas quebradeiras de coco. Trata-se de sua condição
de mulher trabalhadora em um meio, o rural, de heranças patriarcais e, com efeito, de histórica predominância da dominação masculina. O patriarcalismo, neste
caso, relaciona-se de uma maneira muito próxima à dicotomia entre a “casa” e
a “rua”, isto é, o espaço doméstico, onde existe maior controle das relações sociais, ambiente de afeto, intimidade, calma, harmonia e descanso, sendo também
o local das preocupações com a família, regido e formado pelo parentesco, e de
uma normalizada, e por isso muito comum, dominação masculina e dos mais
velhos; e o espaço da “rua”, ao contrário, universo do castigo, do perigo, da luta
e do trabalho, assim como das coisas públicas, tal qual a atividade política, onde
existe alguma incerteza nas relações, hierarquias não pautadas no parentesco ou
idade e, por fim, aproximações não “naturais” entre pessoas, mas sim eletivas
(DAMATTA, 1997). O dilema das quebradeiras, no relativo a estes espaços,
consiste no fato de que, mesmo antes da instituição do Movimento (que potencializou ainda mais tal dilema ao inserir as mulheres no cenário político, como
veremos mais adiante), a divisão do trabalho agroextrativista não elimina de
todo a separação entre os universos de “casa” e da “rua”, todavia não a realiza
igualmente de todo, existindo uma dialética casa/rua na forma de organização
social e do trabalho nas áreas onde se observa a presença de babaçuais explorados por camponeses. Esta dialética se, por um lado, minora a hegemonia do
masculino nas atividades extra-domésticas, sobrecarrega, por outro, o feminino
de funções laborais externas e domésticas, inserindo-o no âmbito da “rua”, mas
não o aliviando do da “casa”.
As trabalhadoras rurais, ao tempo que dividem com os homens as atividades produtivas características da “rua” – segundo ensina Roberto DaMatta
(1997, p. 93), “a rua é equivalente à categoria mato ou floresta do mundo rural”
–, não deixam de estar incumbidas das atividades da “casa”, como o preparo e
transporte de alimentos para os maridos e filhos que trabalham na roça, quando
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não estamos tratando de quebradeiras com maridos adoentados, separadas ou
viúvas, o que, conforme observei na pesquisa de campo, é uma condição corriqueira entre as mulheres entrevistadas, fato que amplia ainda mais seus dilemas
ao exigir-lhes a concentração das atividades da roça e da coleta e quebra de coco;
oferecimento dos suportes material (alimentação, saúde), simbólico (educação,
cultura) e afetivo necessários aos filhos menores, muitos, no caso das quebradeiras mais jovens, em tenra idade; transmissão do oficio de quebrar coco e das
tradições correlatas; e, por fim, as dificuldades inerentes à reprodução biológica,
como gestação, pós-parto, amamentação, acompanhamento de filhos pequenos,
entre outras. Sobre esta questão, é interessante anotar que foi deveras comum as
mulheres pesquisadas relatarem que criaram todos os seus filhos, 05 a 08 filhos em
média, ou às vezes até mais, trabalhando no coco, e retirando desta atividade a renda
mínima necessária ao sustento de sua família. Por reiteradas vezes ouvi palavras
como estas, extraídas das entrevistas realizadas nos povoados de Juverlândia e
Petrolina e dos depoimentos obtidos no município de Praia Norte:
1) Casadas e dividindo o trabalho no coco com o trabalho
doméstico:
Eu criei 05 filhos aqui em Praia Norte trabalhando exatamente exercendo a profissão do coco. O meu marido trabalhava
de roça e sempre a minha profissão foi essa.
[...] eu tive 07 filhos, tive oportunidade de criar 06 [...].
Então, toda vida foi na luta do coco, quebrando coco para
sobreviver com minha família. Eu era pobre e eu não renego mesmo, o marido na roça e eu no coco, então viemos de
lá para cá. Quando chegamos aqui a mesma luta, no coco,
então para mim o coco é tudo, tudo mesmo, para mim o
coco é tudo, porque do coco foi que eu quebrei e criei meus
filhos, 06 filhos, e a luta de casa.
2) Marido adoentado:
[...] criei 10 filhos quebrando babaçu, quebrando babaçu eu
comprava roupa, calçado, carne no fim da semana, material
de escola, porque os filhos de 06 anos para frente já iam me
ajudar a juntar e quebrar para nós sobreviver, porque nós só
tinha o babaçu e o marido muito doente trabalhava na roça
e não tinha como dar de comer, aí nós tinha que trabalhar
porque era só no babaçu [...].
3) Separada do marido:
[...] eu criei a minha família separada do meu marido, criei
05 filhos aqui no Praia Norte, e esse tempo todo da minha
vida trabalhando de roça e de coco. Agora, já estou assim
cansada da idade, não estou mais agüentando ir para a roça,
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mas vou para o coco, né?
4) Viúva:
[...] eu era casada, nós trabalha muito de roça e eu quebrando
o coco, deixava filho em casa, deixava a bóia já feita para os
meninos que não eram grandes, eram pequenos, e não sabiam ainda fazer, aí a gente comia e ia para a roça. Quando
nós chegava lá eu deixava a comida para eles e ia quebrar
coco, ia fazer o carvão para fazer o almoço do outro dia,
chegava com o coco, a gente botava a água na panela para
tirar o azeite. Aí o meu marido adoeceu, morreu, aí fiquei
só, adoeci, até hoje vivo doente, mas vou levando a vida, e
não quebro coco mais.
A condição de mulher trabalhadora, ainda que partilhe as atividades laborais e a geração de renda com os trabalhadores homens, dispõe as quebradeiras
em estruturas ainda mais complexas de desapreço à e exclusão da posição feminina dentro de uma sociedade herdeira de habitus do patriarcado rural de séculos
anteriores. A divisão do trabalho da “rua” não é suficiente para retirar do estado
oculto a violência simbólica, que às vezes se converte em física, que coloca o
gênero feminino e seus respectivos interesses em degraus inferiores na hierarquia social. A dominação masculina aparece então naturalizada, como se fizesse
parte da “ordem das coisas”, ensina Bourdieu (1999, p. 18): “a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos
que visem a legitimá-la”. Isto explica porque, a despeito de sua importância
econômica, muitas quebradeiras afirmaram que, antes da organização em movimento social, a atividade de coleta e quebra de coco babaçu era percebida como
depreciativa, e, na realidade, ainda é assim vista por muitas pessoas da região
tocantina, incluindo algumas quebradeiras e seus maridos, mas principalmente
as jovens filhas de quebradeiras que não desejam seguir a profissão de suas mães
por entender que se trata de uma atividade indigna. Esta visão androcêntrica da
atividade de coleta e quebra do babaçu, em uma outra dimensão, a dos fazendeiros e seus empregados, toma ainda proporções sobremaneira mais violentas e
perversas, certamente em razão dos antagonismos de classe – que funcionam, no
caso, como fatores de maximização da discriminação de gênero –, havendo sido
registradas na pesquisa relatos sobre violências sexuais por parte de jagunços e
atrocidades como a seguinte:
Uma mulher estava quebrando coco lá na área de um fazendeiro e ele mandou o capataz dele ver quem é que estava lá
dentro, e encontrou a mulher. Ele chegou, começou a tirar
uma prosa com ela e tudo, ele se levantou para dizer que
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ia embora, jogou um laço nela, laçou no pescoço, amarrou
no cavalo e saiu arrastando ela; ela se segurou com as duas
mãos, mas ele arrastou muito, ela ficou toda estraçalhada,
toda rasgada, toda...7
Além destes estruturais reforçadores negativos da prática extrativa por
mulheres, o medo das cobras (muito freqüentes no mato onde se coleta o babaçu), o baixo preço dos produtos, a necessidade de entrar em terras alheias (prática que, quando não autorizada pelo fazendeiro, mesmo existindo uma lei municipal que a legaliza, chegou a ser depreciativamente chamada de “roubo” por
uma quebradeira8, o que explicita como a atividade é vista por muitas pessoas
da região tocantina) – passando por debaixo dos arames farpados, enfrentando o
gado e às vezes cachorros ou mesmo empregados da fazenda –, o duro trabalho
de carregar cestos de cocos ou de amêndoas, a baixa escolaridade da maioria das
quebradeiras e a vida eminentemente rural – apesar de, não raro, desenvolvida
em locais próximos de centros urbanos como as cidades de Imperatriz (MA),
Marabá (PA) e Araguatins (TO) –, todos estes fatores parecem contribuir ainda
mais para a desvalorização do trabalho das camponesas estudadas, embora tais
fatores, que também são comuns aos homens, não costumem ser chamados para
avaliar de forma degradante o trabalho masculino. O excerto de entrevista9 que
segue é exemplificativo do modo como era ou é percebida a atividade de coleta
e quebra do babaçu:
[...] minha mãe não queria não que a gente fosse quebradeira, porque ela queria que a gente deixasse de viver aqui, ela
achava que ia acontecer a questão da reprodução sempre: a
7
Palavras de Emília Alves da Silva Rodrigues, em entrevista realizada no dia 02.08.2007.
“Cata o coco nas terras dos outros. Esse daqui deixa, nós apanha; esse daqui não deixa,
nós vamos bem escondidinha, nós rouba, nós rouba o coco. É! Minha irmã, trabalho, né?
Porque o dono não deixa, mas nós tem que apanhar, meu amigo, nós tem que apanhar
daqui. Minha amiga, nós vamos bem devagarzinho, para o dono não perceber. Nós sai,
com um saco aqui no ombro, reparando se vem ou se não vem; quando não vem, nós
enche o saco e bota aqui e faz de conta que nós estamos quebrando, se fazendo de besta,
né? Nós rouba coco porque nós não temos terra. É o jeito de nós trabalhar para nós dar
de comer à nossa família. Quando não tem mais nas terras que dê para nós quebrar, nós
vamos quebrar na terra dos outros” (entrevista realizada em 14.08.2007, no município
de Praia Norte – TO).
9
Realizada em 31.07.2007 com Vanusa da Silva Lima, filha e irmã de quebradeira de
coco.
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filha já era quebradeira, casou, mas aí casou com uma pessoa que as possibilidades financeiras não eram tão grandes,
então ela tinha que continuar quebrando.
[...] a minha mãe deixou de quebrar coco definitivamente
porque ela tinha pavor. Ela acha que não tinha vantagem,
que também era denegrir a imagem.
[...]
Tinha uma imagem que não era boa e economicamente não
era viável. Minha mãe quebrava coco, quebrava coco, quebrava coco, e quando era no final do ano ela dizia que não
tinha um vestido novo para ir para a reunião da escola da
minha irmã. Ela ia com havaiana com um pé de uma e um
pé de outra, aproveitando as havaianas, e o vestido remendado. Ela dizia isso. [...] E aí ela teve foi muita dificuldade,
sempre teve muita dificuldade. Então quando ela conseguiu
sair da roça, do coco, ela definitivamente não quis mais
voltar, ela não tinha vontade. [...] Ela via isso de forma
muito negativa, porque realmente era muito desvalorizado.
Diante destas dificuldades e dilemas enfrentados pelas quebradeiras
de coco, acrescidos da ampliação quase desgovernada de diversas atividades
econômicas de alto impacto ambiental, especialmente a pecuária extensiva, gerando um processo de devastação dos babaçuais, e do cerceamento das práticas
tradicionais de acesso livre às palmeiras de babaçu e uso comum da terra, algumas lideranças locais – que já integravam os movimentos sociais de trabalhadores rurais do Araguaia-Tocantins – começaram a promover a organização da
categoria em movimento social autônomo, afirmando a identidade das quebradeiras e suas reivindicações de classe e gênero. O primeiro grande evento que
marca esta história foi o I Encontro Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, ocorrido em 1991, a partir do qual emergiu o MIQCB. Entretanto, desde a
década de 1980 já havia se iniciado um processo de fundação de cooperativas e
associações representativas das mulheres trabalhadoras rurais, bem como a busca por avanços tecnológicos no beneficiamento do babaçu, montando-se prensas
(denominadas de forrageiras pelos camponeses) e adotando-se técnicas mais
aprimoradas de processamento (ALMEIDA, 1995). Um caso exemplar disso foi
a ASMUBIP (Associação Regional das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Bico
do Papagaio), fundada em 1992. Segundo Raimunda Nonata Nunes Rogrigues10,
atual presidente da associação, esta teve sua origem dentro do próprio Sindicato
10
Entrevista realizada em 14.08.2007, na sede da ASMUBIP, em São Miguel (TO).
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dos Trabalhadores Rurais do município de São Miguel (TO), a partir de discussões
sobre “coisa de mulher, da saúde da mulher, da reprodução, como ela poderia
estar fazendo um exame, porque na época morria muita gente de doenças que
poderiam ser curadas, como um câncer do colo do útero”, as mulheres sendo
“muito massacradas pela sociedade em geral, não só pelos maridos, também
pela questão da perda da propriedade”.
Acontece que dentro do próprio sindicato, um universo até então dominado pela masculinidade, o espaço das mulheres era bastante reduzido, e na
divisão interna do trabalho só restava ao feminino uma função muito aproximada às do domínio da “casa”, embora se estivesse no da “rua”, no espaço
público e de atividade política: o serviço de secretária “que ficava lá o tempo
todinho servindo, o trabalho lá dentro do escritório”, diz Raimunda Nonata. E
nas pautas de discussão política quase não havia momento para debater coisas
de mulher. Então as trabalhadoras rurais começaram a estruturar uma associação
que cuidasse mais detidamente de seus interesses e peculiaridades. De conformidade com Raimunda Gomes da Silva11, uma das fundadoras da ASMUBIP e
do MIQCB, as discussões em torno do babaçu foram antes de tudo estratégias
para debater a questão da mulher trabalhadora rural: “Não era também só a
questão do babaçu, era também a questão da mulher ter discernimento da vida
dela, na questão da saúde, da vivência da família que estava muito difícil”, posto
que “era difícil os maridos deixar as suas mulher estar discutindo suas vidas, e a
gente começou pelo babaçu”. A ASMUBIP, no entanto, não foi criada como uma
associação de quebradeiras de coco, o que justifica-se, segundo a entrevistada, por
suas fundadoras entenderem que o trabalho extrativista do babaçu, realizado quase
totalmente por mulheres, não pode ser compreendido de forma desarticulada da
agricultura, parcialmente também praticada por pessoas do gênero feminino:
A gente não quis fazer uma associação só de quebradeiras;
fazer uma associação só de quebradeiras é difícil porque
não existe ninguém que viva só de extrativismo, não existe,
mesmo a pessoa tendo terra, ela pode até viver quebrando
coco para comprar o que comer, mas na época assim pega
um pedaço de roça, um pedaço de terra, ela faz assim uma
divisão, ela colhe arroz, feijão, de qualquer maneira para
botar para dentro de casa para ajudar na manutenção da
família; nem o cara que tira a seringa, nem a quebradeira
de coco, nem ninguém, quem vive da natureza, não vive só
das coisas que natureza produz, vive também daquilo [que]
11
Entrevista realizada em 14.08.2007, na casa da entrevistada, em São Miguel (TO).
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produz na terra, que brota debaixo da terra, que se planta
debaixo da terra e que se colhe.
Porém, além das questões inerentes à condição feminina no meio rural,
havia indiscutivelmente a necessidade de oferecer-se respostas a outros problemas
estruturais correlacionados com os da mulher no campo, como a desvalorização
social do babaçu e, por conseguinte, do trabalho das quebradeiras, a baixa nos
preços dos produtos, a proibição de acesso aos babaçuais e a destruição ostensiva destes, que apresentavam efeitos diretos na vida de tais mulheres, problemas
estruturais estes que estavam muito proximamente associados à expansão da pecuária
e de monoculturas como a soja e o eucalipto na pré-Amazônia, acrescidos do acirramento dos conflitos sociais entre fazendeiros e grileiros e os trabalhadores rurais
na segunda metade da década de 1980. Conforme ressalta Raimunda Nonata:
[...] quando a gente criou a associação essa questão da valorização do produto, das atividades da quebradeira, ela era
uma coisa que já estava acabando aqui na região, nós estava
assim desde 1987. Parou a atividade, nós estava largando
de quebrar coco. Logo, a região estava tomada de fazendeiro, tinha poucos assentamentos, o povo estava na luta
pela terra nos anos 80 e a região estava no auge do conflito.
Então, nesse tempo o conflito vinha de todo lado, e aí o pessoal que se dizia dono das terras estava degradando tudo,
né? Não deixava as companheiras pegar coco para quebrar,
então o valor do coco foi lá para baixo, não tinha ninguém
mais comprando coco na região, elas não tinha o que quebrar, as companheiras não podia entrar para pegar, aí o conflito estava muito grande, as pessoas tinham medo de... né?
Foi até arrastado mulher de dentro de quinta, amarrada no
cavalo, para não pegar o coco [...].
A fim de reverter este quadro de parca valorização do trabalho extrativista
de babaçu, a ASMUBIP desenvolveu, segundo Miguel Henrique P. Silva (2000),
três estratégias principais: 1) a instalação de núcleos que, aliás, foram implantados antes mesmo da formalização da associação, objetivando discutir os problemas associados às mulheres, entre eles a violência, o preço das amêndoas e a
preservação do meio ambiente, obtendo-se através destas discussões uma ligação mais intensa das lutas de gênero com as ações de conscientização ambiental
e política; 2) a implantação de cantinas nos povoados mais afastados das sedes
localizadas na área urbana dos municípios, visando suprir as necessidades básicas das sócias da associação, sendo então vendidas ou trocadas por amêndoas de
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babaçu mercadorias como café, açúcar, querosene, esponja de aço, lápis, creme
dental, etc., incluindo o próprio babaçu; e 3) após o surgimento de mercadinhos
nos referidos povoados, as cantinas foram gradativamente substituídas por postos de compra, onde a associação compra as amêndoas sem, no entanto, oferecer
a alternativa de troca por mercadorias. Atualmente, apenas as estratégias 1 e 3
continuam sendo utilizadas. Estas estratégias estimularam as quebradeiras, que
estavam abandonando o trabalho no coco enquanto uma forma de geração de
renda (o babaçu enquanto valor-de-troca, pois jamais deixou de ter valor-deuso), a retomar e expandir a atividade extrativista, contribuindo, além disso,
para a elevação no preço dos produtos derivados do babaçu e até mesmo para
uma mudança no modo como o extrativismo do coco era socialmente percebido,
conferindo maior visibilidade à, por assim dizer, causa das quebradeiras, consoante afirmação de Raimunda Nonata:
[...] com a vinda da associação começou a comprar o coco
também delas, aí elas voltaram a quebrar coco porque a
associação não ia incentivar elas a quebrar porque é uma
coisa que elas sabiam quebrar, não é uma coisa que você
vai aprender hoje aqui, começar a aprender, né? Mas é uma
coisa que você já sabia, parou de fazer e aquela renda que
tu tinha acabou, não tinha mais. Aí, com a vinda da associação, elas começaram a quebrar e até hoje a associação
precisa de comprar, comprar babaçu, mas se ela não tem
dinheiro, eles estão comprando por aí o babaçu, né? Tem
alguém comprando, então a associação é um concorrente
deles, então nós temos dinheiro nas contas, mas se não tem,
eles compram o babaçu por pouquinho dinheiro, assim por
60, 70 [centavos de real por quilo], mas quando a associação chega para comprar aí eles aumentam o preço, então,
quer dizer, a associação é uma coisa que está obrigando
eles a colocar um valor no babaçu, né? Porque se nós compra, eles também compram, e se nós compra de um preço
eles aumentam mais o preço, então eu acho que é uma coisa
positiva isso aí. E depois da associação o preço também...
a divulgação também do babaçu, da atividade aumentou
muito nesses últimos anos. Eu estou sentindo assim que a
sociedade mesmo está falando muito do babaçu, né?
O MIQCB surgiu, temporalmente, em paralelo à ASMUBIP, embora espacialmente abrangendo quatro Estados: Maranhão, Piauí, Tocantins e Pará. Apesar disso, as relações entre ambas as instituições são deveras muito próximas,
algumas quebradeiras de coco entrevistadas chegando a considerar que ambas
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constituem um único movimento social: “as pessoas que criaram o Movimento
Interestadual eram as mesmas pessoas que estavam no movimento aqui”12, “as
quebradeiras de coco, onde tem o núcleo da ASMUBIP, são as mesmas pessoas
que estão sendo trabalhadas no Movimento Interestadual, então é uma coisa
só, né? É só o nome que muda”. A institucionalização do Movimento conferiu
maior força material e simbólica às iniciativas das associações de trabalhadoras
rurais que lhe antecederam, reforçando não somente as reivindicações comuns
aos demais trabalhadores rurais – como as lutas por acesso e uso da terra –, mas
principalmente algumas particularidades do modo de vida das quebradeiras de
coco que lhes faziam defrontar com questões próprias, isto é, peculiaridades que
diferenciavam as quebradeiras dos outros trabalhadores rurais e geravam
uma identificação (identidade coletiva) entre aquelas, como as questões da
preservação dos babaçuais, do livre acesso às palmeiras de babaçu e do uso
comum dos frutos. Na pauta das lutas e reivindicações do MIQCB, segundo
consta em um abaixo-assinado constituído no II Encontro Interestadual das
Quebradeiras de Coco Babaçu, estavam e ainda estão, por exemplo:
1. Desapropriação de todas as áreas de conflito na região
dos babaçuais.
2. O coco liberto: acesso às palmeiras de babaçu para as
mulheres e crianças extrativistas, mesmo nas propriedades
privadas que não cumpram sua função social.
3. Fim da derrubada das palmeiras de babaçu.
4. Fim da violência contra trabalhadores rurais nas áreas
dos babaçuais.
5. Recursos para o desenvolvimento de cooperativas. [...].
6. Imediata implementação das ações de assentamento nas
áreas já desapropriadas e das reservas extrativistas.
7. Cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente
na zona rural.
8. Medidas que assegurem o cumprimento do Decreto de
Reservas Extrativistas (ALMEIDA, 1995, p. 40).
O Movimento Interestadual, do mesmo modo que a ASMUBIP, tem
adotado um conjunto de estratégias a fim melhorar as condições de vida e trabalho das quebradeiras, retirando-as da invisibilidade que só tende a reproduzir
12
Evidentemente que a entrevistada se referia às pessoas da região do Araguaia-Tocantins que contribuíram para a institucionalização do MIQCB, sendo ela sabedora de que
este Movimento para ser criado contou com a participação de quebradeiras dos quatro
Estados onde atua.
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as violências físicas e simbólicas que historicamente vêm sofrendo e conferindo uma nova dignidade às suas atividades agroextrativistas: “essas mulheres
tinham até vergonha de dizer que eram quebradeiras, tinham vergonha de estar
colocando sua identidade como quebradeira, mas depois desse trabalho que a
gente vem fazendo melhorou muito, desde a apresentação da mulher, a auto-estima e também a questão da renda familiar”13. Uma das principais estratégias é a
implantação de prensas, denominadas localmente de forrageiras, nos povoados
que, apesar de poderem apresentar – se não utilizados equipamentos de proteção
(que, de fato, conforme as observações de campo, não costumam ser usados)
– prejuízos à saúde das quebradeiras em razão do volume de barulho e poeira
produzido pela máquina14, contribuem sobremaneira para o melhoramento das
condições de trabalho, agilização do beneficiamento do babaçu (manufatura de
produtos como o azeite, o sabão e a massa ou farinha de babaçu) e, conseqüentemente, inserção dos produtos no mercado e aumento dos preços, não deixando
o controle destes somente a cargo de comerciantes-atravessadores, o que têm
inclusive estimulado que um número maior de trabalhadoras rurais da região
dedique-se à atividade extrativista, tudo isto ocorrendo pelo fato de que o uso
da forrageira substitui o trabalho artesanal de moer as amêndoas, após torradas,
estritamente com o uso de pilão, uma atividade demorada e extremamente desgastante, segundo afirmam as quebradeiras:
Antes da forrageira era dificuldade demais, a gente quebrava 10 quilos de coco, torrava no pilão e era muito difícil
dar 05 litros de azeite. Quando a gente estava com muita
coragem de pilar até ele ficar fininho, dava mais, mas só
quando a gente estava com coragem, mas cansada de fazer
esse serviço não dava para tirar muitos litros. Hoje é uma
facilidade. Antes uma dona de casa que tirava azeite de 10
quilos de coco ela passava um tempão, porque só para torrar e passar um pilão era custoso demais. Agora não, a pessoa faz 10 quilos de coco e volta para casa, rapidinho eu
môo ele volta aí. [...] 40 quilos que já moí hoje15.
Tinha delas que nem tiravam azeite e depois da forrageira
hoje já tira o coco e traz, gente mesmo que nunca quebrou
assim, apesar de eu nunca ver ela quebrar coco para tirar
13
Palavras de Emília Alves da Silva Rodrigues, em entrevista realizada no dia 02.08.2007.
De acordo com Denise, do Centro de Educação do Trabalhador Rural (CENTRU), em
entrevista realizada no dia 01.08.2007.
15
Depoimento de uma quebradeira do povoado de Juverlândia, em 11.08.2007.
14
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azeite, até mesmo eu estava admirando essa companheira
com o coco dela. Ela disse assim: “Ah! Hoje eu fiz 20!”.
Eu disse: “Ah! Então está bom.” Porque ela não moia coco,
nunca tinha moído o coco dela, nunca tinha nem visto ela
quebrando; agora ela mói coco, então é uma oportunidade
muito grande para gente16.
Nossa, Denise, eu estou tão feliz porque chegou essa forrageira aqui, porque agora eu pego o meu coco, boto aqui,
passo o óleo, pronto! Acabou num minuto. A gente vai
fazer o azeite, rapidinho, rapidinho. Isso diminui muito o
nosso trabalho17.
Outra das principais estratégias utilizadas pelo MIQCB é a diversificação
dos produtos e o estudo da cadeia produtiva do babaçu. Tal estratégia vem sendo
desenvolvida mediante o oferecimento de cursos, oficinas e debates públicos
cuja finalidade é empreender um levantamento dos diversos usos domésticos e comerciais possíveis tendo o babaçu como matéria-prima, assim como
através de estudos técnicos acerca da economia do babaçu e seus entraves sócioeconômicos, como os trabalhos “Economia do babaçu: levantamento preliminar
de dados”, de Almeida, Shiraishi Neto e Mesquita (2000), e “Guerra ecológica
nos babaçuais: o processo de devastação dos palmeirais, a elevação do preço de
commodities e o aquecimento do mercado de terras na Amazônia”, de Almeida,
Shiraishi Neto e Martins (2005). A diversificação dos produtos é um efeito mais
imediato e visível desta estratégia sobre a vida das quebradeiras, passando-se a
desenvolver derivações do babaçu como a farinha ou massa do mesocarpo, uma
das mais bem sucedidas e promissoras iniciativas, que vem sendo produzida,
embalada e vendida pelas quebradeiras, tendo uma boa aceitação no mercado local – por exemplo, as trabalhadoras do povoado de Petrolina estão vendendo sua
produção para escolas da rede municipal localizadas na zona rural do município
de Imperatriz (MA), para ser usada como merenda escolar de alunos do ensino
fundamental, o produto também sendo encontrado nas prateleiras de farmácias
de manipulação da região; a abertura de mercados como estes incentivou tais
camponesas a buscar financiamento junto ao Banco do Brasil para a construção
16
Dizeres de outra quebradeira do povoado de Juverlândia, em entrevista realizada na
mesma data.
17
Palavras de Denise, relatando uma conversa pregressa que tivera com uma quebradeira do povoado de Petrolina. É importante anotar que, no caso de Petrolina, a prensa
não foi obtida por intermédio do MIQCB, mas sim através do CNS (Conselho Nacional
dos Seringueiros) e da comunidade católica dos Irmãos do Campo.
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da Casa e da Fábrica do Mesocarpo, a fim de empreender um armazenamento
e produção da massa ou farinha em maior escala18. O artesanato, embora em
estágio bem mais incipiente que os produtos do mesocarpo – fato que se dá ao
menos entre as quebradeiras entrevistadas –, é uma outra alternativa promissora
à geração de renda para as famílias agroextrativistas da região pesquisada, mas
que carece ainda de um desenvolvimento maior para apresentar efeitos mais
significativos na vida e na renda das quebradeiras de coco babaçu.
Uma terceira entre as estratégias primaciais do MIQCB é a tentativa de
afirmação reiterada do direito de acesso livre das quebradeiras aos babaçuais,
flexibilizando o direito de propriedade privada e ainda, o que é uma conseqüência direta da realização plena do direito de acesso, exigindo dos proprietários
a conservação de uma certa quantidade de palmeiras por hectare de terra. Esta
estratégia recorre inicialmente à formação histórica de um direito tradicional,
não-oficial e, portanto, não-escrito, de usufruto comum das palmeiras e de
acesso livre aos babaçuais preexistente ao processo de apropriação privada das
terras da zona ecológica do babaçu e, com efeito, paralelo em relação à ordem
jurídica estatal. Não se trata, pois, de um recurso tão-somente a costumes, isto é,
a comportamentos regulares e irrefletidos, repetidos apenas por serem habituais.
Trata-se, mais do que isto, de uma juridicidade informal, de uma “lei” do coco
livre praticada há várias gerações pelos trabalhadores agroextrativista da zona
do babaçu e que é representada por estes como constituindo uma “legalidade”
que então deve ser respeitada pelos proprietários de terra e garantida pelo Estado, até mesmo porque, antes da intensificação dos conflitos sociais na região
nos anos 1980, os fazendeiros locais não costumavam se opor à referida prática,
fazendo ela parte da cultura nativa.
Dita estratégia desdobra-se na reivindicação, perante o Poder Legislativo dos municípios onde há incidência de babaçuais e atuação do MIQCB, da
aprovação de leis municipais do babaçu livre, garantindo o acesso aos palmeirais pelas famílias das quebradeiras e proibindo a derrubada não racionalizada
das palmeiras, sendo autorizado somente o desbaste ou raleamento, mantendose no mínimo 40 a 80 (o que varia de conformidade com cada lei municipal)
palmeiras adultas e novas (chamadas de pindovas ou pindobas) por hectare.
Diante das pressões sociais e políticas, diversos municípios dos Estados do Maranhão, Piauí, Tocantins e Pará aprovaram as chamadas “Leis do Babaçu Livre”,
legalizando e, assim, formalizando o direito que as quebradeiras repetidamente
alegam como tradicional. Sobre esta estratégia, porém, tratarei mais detidamente no Capítulo III. Mas por agora importa mencionar que ela funcionou,
18
Informações obtidas em entrevista coletiva realizada no dia 15.08.2007.
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e funciona até hoje – apesar das dificuldades, observadas durante a incursão
empírica em todos os povoados pesquisados, de efetividade principalmente no
tocante à preservação das palmeiras –, como um instrumento de valorização das
práticas de usufruto comum dos babaçuais ao retirá-las do estado de ilegalidade
perante a ordem jurídica oficial, servindo como um mecanismo de defesa, e
mesmo de prevenção, diante das arbitrariedades de alguns proprietários. Nas
palavras de duas quebradeiras do município de Praia Norte (TO):
1) O que eu acho assim da “Lei do Babaçu Livre” é que ela
melhorou um pouco para nós... De primeiro, para a gente
pegar um coco era a maior dificuldade, era os donos das
terras correrem atrás da gente, às vezes dizia nome para
a gente. Hoje, não, está mais melhor, hoje a gente entra, a
gente pega os cocos.
2) Bastante, mudou, porque antigamente nós não tinha esse
direito de nós chegar, entrar. Era os donos bem na foto, né?
Hoje, nós tem, para dizer para os donos que nós não vamos
[caçar] vaca e sim catar coco. Por que eles podem caçar
uma vaca e nós não pode catar o coco? Nós cata por eles...
eles não dizem nada, então mudou, né?
A luta pela implementação de Reservas Extrativistas (RESEXs) de babaçu é também uma forma estratégica que, localmente, as quebradeiras e suas
famílias, respaldadas pelo Movimento Interestadual, têm utilizado para reproduzir suas práticas e representações tradicionais. Conforme um diagnóstico
sócio-econômico realizado pelo MIQCB (SHIRAISHI NETO et al., 2003), a
criação das RESEXs de babaçu, quais sejam, a do Ciriaco, a da Mata Grande e
a do Extremo Norte, todas localizadas na região do Araguaia-Tocantins, não foi
resultante de um processo de reivindicação das trabalhadoras rurais, as quais,
à época, concentravam suas disputas no sentido da garantia do acesso e uso da
terra. Por esta razão, o critério utilizado para a seleção de que áreas seriam convertidas em Reserva foi o de maior densidade de babaçu em terrenos contínuos.
Tais áreas, de consonância com Shiraishi Neto et al. (2003), porém, não possuíam vasta presença de camponeses que trabalhavam com o agroextrativismo,
visto que estes trabalhadores costumam exercer a atividade em terrenos que
não lhes pertencem, estando sujeitos ou não a contratos de arrendamento ou
aforamento.
Este fato, somado à inação do Estado no tocante à desapropriação das
fazendas afetadas e às demais providências legais necessárias à implementação efetiva das RESEXs, ocasionou que, até os dias de hoje, as Reservas de
babaçu ainda não fossem totalmente implementadas. Atualmente, no entanto,
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as quebradeiras entendem que ditas Reservas constituem uma forma alternativa de reforma agrária, algo assemelhado aos PAs mas com peculiaridades,
como expressa bem Euvaldo19, funcionário do IBAMA que há mais de dez anos
acompanha as lutas das quebradeiras: “eu aprendi desde cedo que a Reserva
Extrativista é uma forma também de reforma agrária, porém mais voltada para a
preservação ambiental”. Por força disso, as trabalhadoras agorextrativistas vêm
lutando para garantir a efetividade das RESEXs, que desde 1992 estão por ser
plenamente viabilizadas. Não obstante, uma quebradeira da Reserva do Ciriaco – cuja implementação é a mais adiantada, em comparação com a da Mata
Grande e a do Extremo Norte, tendo sido desapropriadas cerca de 70 a 75% das
fazendas situadas em sua área de abrangência, segundo Euvaldo e o diagnóstico
do MIQCB (SHIRAISHI NETO et al., 2003) – insiste em quanto a RESEXs
onde reside foi importante para a reafirmação das tradições de coleta e quebra
de coco babaçu e para a geração de renda familiar:
Eu percebo que mudou muito, é porque os companheiros
que não tinham hoje têm, hoje ele tem como alimentar a
família dele. Muitas coisas que aconteciam aqui dentro
hoje não acontecem. Os fazendeiros que tinham aqui dentro
hoje não estão mais, só está os trabalhadores rurais. Hoje
se eles vão plantar uma banana eles já dizem: “Aqui eu vou
plantar banana, ali eu vou plantar mandioca, ali o feijão”. E
naquele tempo não podia fazer isso até porque o fazendeiro
já estava com o material na mão dizendo assim: “Essa daqui é para tu trabalhar!” E aí foi uma das coisas que mudou
muito, porque no tempo dos fazendeiros não podia fazer
isso, plantar feijão aqui e mandioca para acolá, tinha que
encher de arroz. Mas como hoje nós estamos com o pedacinho
de trabalho na mão, agora pode fazer isso. Hoje nós temos
a cantina aí para comprar babaçu, hoje vêm pessoas de fora
que já diz: “Hoje nós vamos passear, mas já vamos prevenidos para comprar um azeite, uma amêndoa do coco para
nós trazer, vamos comprar o mesocarpo”.
Para além do Movimento Interestadual, as quebradeiras de coco babaçu
desenvolvem histórica e localmente outras ações com o intuito de garantir a
reprodução material e simbólica de suas práticas e representações tradicionais.
Uma destas ações é a cooperação para a coleta e quebra do babaçu, ainda que
19
Em entrevista realizada no dia 16.08.2007, no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de
Imperatriz (MA).
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tenha sido bastante comum, nas observações de campo, perceber quebradeiras realizando suas atividades isoladamente, no mato ou nos quintais de suas
casas. Conforme relata Almeida (1995, p. 38), principalmente quando existe
a probabilidade de confrontos direitos com fazendeiros e seus empregados, as
“mulheres dirigem-se em grupo para os babaçuais e, não obstante ser individual
o ato da quebra, elas o fazem próximas umas das outras, conversando” e, comumente, cantando, suas “posições, entremeadas com os montes de coco
respectivos”, descrevendo “a figura aproximada de um círculo”.
Em alguns povoados, como o de Juverlândia, no município de Sítio Novo
(TO), é possível se observar a prática de uma outra forma de cooperação que não
se dá no interior das fazendas, mas sim no âmbito doméstico ou na pequena propriedade de uma quebradeira. Trata-se do que as mulheres pesquisadas chamam
de quebra de meia, prática que consiste na coleta individual dos cocos e na quebra destes em cooperação com outras quebradeiras, sendo que parte da produção
é então compartilhada com a camponesa que coletou os cocos. Habitualmente
a quebra de meia é realizada na residência ou na propriedade da quebradeira
coletora do babaçu. Em alguns casos, as trabalhadoras rurais realizam uma espécie de revezamento entre casas ou terrenos e, naturalmente, pessoas coletoras.
Entretanto, foi percebido na pesquisa de campo que a concentração da atividade
de coleta na pessoa de uma única quebradeira também ocorre em alguns povoados, tal fato não raro suscitando entre as camponesas um certo desconforto dada
a proximidade desta relação com a de sujeição – o pagamento ao fazendeiro de
parte do babaçu extraído em suas terras é também chamado pelas quebradeiras
de quebra de meia –, embora ela poupe as trabalhadoras que quebram de meia
do duro trabalho de catar e transportar os cocos para suas casas. A quebra de meia
é ainda uma alternativa estratégica à escassez de babaçu causada pela devastação
e pelo cerceamento do acesso aos palmeirais – não raramente violento, física e
simbolicamente – por parte dos proprietários de terras, de consonância com o
que depõe a quebradeira Silene20:
A dona B. junta coco, a dona L. junta coco no terreno delas
ou então em casa; a gente vem, tem direito a 05 quilos. Se
esse coco tivesse aí, se não tivesse a derrubação das palmeiras, se a gente tivesse livre acesso aos babaçuais a gente não
tinha essa necessidade de quebrar coco de meia para elas.
Não que elas faça uma má coisa, eu até elogio o ato delas,
porque é muito difícil juntar coco, é um trabalho enorme.
Sem falar no esforço físico, elas dão almoço para a gente,
20
Entrevista realizada em 11.08.2007, no povoado de Juverlândia, em Sítio Novo (TO).
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a gente pode trazer a família toda, até o marido em casa se
não for para a roça vem almoçar junto; aqui é uma grande
facilidade que elas fazem para a gente, mas se esse babaçual fosse livre, com livre acesso para nós quebradeira, nós
não tinha necessidade de quebrar coco de meia para os outros
porque a gente tinha esse babaçual, mas os fazendeiros não
deixam que a gente quebre coco, tem fazendeiro aí derrubando palmeira, jogando veneno na pindoba, e disse se
achar uma quebradeira dentro do terreno dele, se tiver com
os cachorros, põe os cachorros, se não tiver cachorro vai
amarrar a quebradeira, vai buscar os cachorros e pegar a
quebradeira e jogar os cachorros nela. [...]
Ela cata, traz junto na carga e dá. Junto, em casa, a gente
quebra, só depois de quebrado é que divide com ela, aí leva
o da gente para casa. Aí dá de ajudar na luta de casa porque
coco é fundamental na vida aqui das quebradeiras [...].
Outra estratégia controvertida – porque estabelece uma forma de sujeição
das trabalhadoras rurais a um conglomerado empresarial –, embora bastante
eficaz para a reafirmação material e simbólica das tradições associadas à coleta
e quebra de coco babaçu, é a adotada pelas quebradeiras de coco do povoado de
Petrolina, em Imperatriz (MA). Referido povoado está localizado em uma área
circundada de plantações de eucalipto destinadas à produção de papel e celulose
pertencente a um megaconsórcio formado, segundo Helciane de Fátima Abreu
Araújo (2000), pela associação das empresas Votorantim e Ripasa (com 55% do
capital), Companhia Vale do Rio Doce (30%) e Nissho Iwai Corporation (15%).
Este projeto, no entanto, pertencia originalmente a CELMAR (Papéis e Celulose do Maranhão S/A)21. À época que o projeto era conduzido pela empresa
maranhense, e isto foi transmitido para o consórcio de empresas que hoje o conduz, as quebradeiras de Petrolina – todas camponesas sem terra, residentes em
um pequeno vilarejo –, pressionadas pela expansão de carvoarias e pela queima
do coco inteiro que ameaçavam sua subsistência (ARAÚJO, 2000), assim como
pela devastação ambiental e pelo cerceamento do acesso aos babaçuais por parte
21
Os dados obtidos durante a pesquisa apresentaram contradições no referente a que
consórcio de empresas dá hoje prosseguimento ao projeto da CELMAR. Segundo Almeida, Shiraishi Neto e Martins (2005, p. 60), a “CELMAR passou a ser denominada
legalmente como Ferro Gusa Carajás, que é um projeto siderúrgico apoiado numa associação entre a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) e a empresa norte-americana
Nucor”. Já conforme Almeida (2000), trata-se de um consórcio entre a CVRD, a Nissho
Iwai e a Suzano/Feffer.
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de fazendeiros, firmaram, em 1998, um contrato de comodato com a CELMAR
a fim de garantir o acesso aos palmeirais existentes na Reserva Legal do projeto,
local, portanto, de preservação ambiental obrigatória, a quatro quilômetros do
povoado.
É importante anotar que este contrato foi acordado muito antes da promulgação da “Lei do Babaçu Livre” do município (que se dera em 2003), consistindo, portanto, em um caminho alternativo inédito e controvertido, mas sobremaneira eficiente do ponto de vista nativo, de garantir o “livre” acesso aos
babaçuais, sob, evidentemente, condições impostas pela empresa e atendendo
também a interesses desta, como o de demonstrar, a partir disso, sua “responsabilidade” sócio-ambiental (ainda que esteja desenvolvendo um projeto de alto impacto
social e ao meio ambiente e a relação com as quebradeiras tenha iniciado, segundo informações obtidas nas entrevistas, por iniciativa destas, que procuraram a
empresa por sentirem-se ameaçadas). A partir da garantia de matéria-prima que
o contrato proporcionou, as quebradeiras puderam desenvolver projetos como
a construção da Casa e Fábrica do Mesocarpo, que já têm, incipientemente, colaborado para o aumento da renda familiar, o que funciona como um estímulo
à atividade extrativista no povoado. Nas palavras de Teresinha22, presidente da
Associação das Quebradeiras de Coco Babaçu de Petrolina (fundada três meses
antes da celebração do contrato objetivando, justamente, consolidá-lo formalmente):
A empresa... quando a gente chegou até eles para falar que
estava queimando o carvão, como nenhuma de nós (nós somos 44) tinha terra, nós ficamos preocupadas onde que nós
ia coletar o coco, se os fazendeiros não estavam deixando a
gente entrar mais, a gente viu que era uma empresa muito
grande e que a gente tinha que se apegar a eles, que eles
não tem precisão, eu acho, não sei, né? Não tem muita precisão desse coco. Na verdade eles disseram, quando a gente
chegou até eles, disseram que nem conhecia o que era isso,
a gente foi e explicou para eles o que é que nós estava precisando, o que é que a gente queria, que era entrar e coletar
o coco igual como a gente já vinha fazendo; eles disseram
que sem problema, que a gente podia entrar, mas depois
trouxeram o contrato para nós assinar. Esse contrato, como
eu já falei, a gente não paga nada, é só zelar a área. [...]
Na verdade a área em que a gente trabalha, com o contrato
de comodato com a empresa, ela é uma área de reserva da
22
Entrevista realizada em 15.08.2007, no povoado de Petrolina, em Imperatriz (MA).
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empresa, nela tem uma área de eucalipto muito pequena,
aqui próximo, toda é uma área de reserva da empresa que
ele tem obrigação de botar, e nessa área, como ela já falou,
a gente tem o direito de extrair só o coco de babaçu, a gente
não tem direito a tocar em outras [árvores]. Até porque a
nossa vontade é preservar mesmo, preservar a árvore, nós
somos contra a derrubada das palmeiras, nós se organizamos foi justamente por isso, para evitar, para denunciar a
derrubada. [...]
Eu não sei as companheiras, eu ainda dou graças a Deus
deles ter cedido essa área para nós porque os fazendeiros
não iam fazer isso, arrendar essas terras para nós, porque
eles não querem aproveitar que nem nós aproveita, eles
querem o mais fácil porque eles queimam hoje e amanhã
eles têm dinheiro, e assim... Já a empresa, ela deixou nós
montarmos essa estrutura aí que nós já falamos com eles
que eles não vão deixar de ceder essa área aí para nós
porque a gente está trabalhando esse tempo todo, de 98 para
cá, e nunca tivemos problema com a empresa, nunca teve
problema, a família da gente nunca teve problema, e eles
disseram que é para nós não se preocupar não que não vai
faltar coco. Aí eu digo assim: eu agradeço porque mesmo
tendo muito coco nessa área e eles não precisam, mas se
não fosse a firma nós não tinha mais onde entrar não, os
fazendeiros não deixam não, mas não deixam mesmo, e a
firma apesar de ter o contrato nós pode entrar, nós tem barraco dentro da área, nós vamos para lá, passa o dia lá na
beira do brejo, aquela paz e, ave Maria, nem se compara,
muito bom, pedindo a Deus que eles continuem cedendo
essa área para nós.
As estratégias descritas apenas exemplificativamente acima, e os casos
das mulheres de Juverlândia e Petrolina são dos mais exemplares justamente
por não serem “bem vistos” por parcela das camponesas integrantes do MIQCB,
demonstram que as quebradeiras de coco babaçu constituem uma população
que, como as estudadas por Marshall Sahlins (1988), é produtora de sua própria
história, ainda que estabeleça relações muito próximas com o colonizador sistema capitalista – o movimento social das quebradeiras, conforme percebido, sempre buscou relacionar-se com a economia de mercado, o babaçu jamais deixando
de possuir para as trabalhadoras pesquisadas valor-de-uso e valor-de-troca, ainda
que esta interação nem sempre lhes favoreça –, visando, no entanto, através
destas relações de interculturalidade, garantir uma forma de desenvolvimento
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do ponto de vista local, isto é, das quebradeiras, o que Sahlins chamara de “develop-man” (no presente caso, um verdadeiro “develop-woman”), reafirmando
assim os projetos nativos de garantir a reprodução material e simbólica das
práticas e representações das quebradeiras por intermédio de uma melhor inserção no mercado, ou seja, em condições competitivas mais favoráveis ou menos
desfavoráveis, dos produtos oriundos do babaçu manufaturados localmente.
Sem embargo, a institucionalização do movimento das quebradeiras de
coco babaçu, principalmente a partir do MIQCB, foi um evento de sobeja importância para estabelecer rupturas significativas com uma história reificada de
sujeição das trabalhadoras rurais aos pecuaristas herdeiros do antigo sistema
do patriarcado rural e suas respectivas relações de patronagem. Trata-se de um
evento importante também para transformar as relações entre as quebradeiras
e os interesses masculinos predominantes nas lides dos trabalhadores rurais do
Araguaia-Tocantins, re-significando o papel, outrora passivo e agora pró-ativo,
da mulher no meio rural e nas disputas de natureza político-econômica, além
de re-significar igualmente as relações domésticas de dominação, conferindo
uma relevância cada vez maior ao trabalho feminino tanto dentro quanto fora,
mas principalmente fora, do âmbito da “casa”. Isto, porém, não elimina outros
problemas estruturais que as quebradeiras de coco babaçu têm enfrentado atualmente, com o surgimento de novos agentes econômicos na pré-Amazônia e,
por conseguinte, novos conflitos sociais, que vêm transformando a paisagem e
as formas de trabalho na região do Araguaia-Tocantins e afetando sensivelmente
a vida das quebradeiras.
2. QUEBRADEIRAS DE COCO FACE ÀS “NOVAS ESTRATÉGIAS EMPRESARIAIS”
Na zona ecológica do babaçu, hodiernamente, é perceptível uma ofensiva sobre os modos de produção tradicionais denominada pelos documentos do
MIQCB de “novas estratégias empresariais”, as quais apóiam-se precipuamente
na elevação do preço de commodities como carne in natura, soja, papel e celulose, ferro-gusa, biodiesel e madeira. A elevação no preço destas commodities
conduz a uma concomitante expansão de atividades como a pecuária, a sojicultura, o plantio de eucalipto e mamona, a exploração madeireira, entre outras,
na região tocantina. Tais estratégias empresariais demandam vastas extensões de
terra, o que acentua as já intensas pressões sobre os recursos naturais e o mercado
de terras na pré-Amazônia, pondo assim em situação de risco as terras tradicionalmente ocupadas pelas quebradeiras de coco babaçu e, consequentemente, a forma
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de vida e trabalho destas mulheres.
As “novas estratégias empresariais” realizam um processo predatório
bastante singular, pois não se trata da subida de preço de uma commodity em
particular, como outrora já ocorrera na história da região – por exemplo, quando
do despertar de interesse empresarial pela pecuária extensiva e pelo plantio de
soja –, mas sim de diversas commodities paralelamente (ALMEIDA, SHIRAISHI
NETO & MARTINS, 2005). A devastação dos palmeirais e sua consecutiva substituição por pastagens e monoculturas agrícolas, conforme Almeida, Shiraishi
Neto e Martins (2005, p. 34), aparece agora “combinada com a intensificação
da extração ilegal de madeiras, com a disseminação de plantações de eucalipto
e a produção ilegal de carvão vegetal”, principalmente do carvão produzido a
partir do coco de babaçu inteiro, isto é, não-beneficiado. Estas estratégias, dadas
as suas características, acabam por contribuir para um aumento vertiginoso no
preço das terras, visto que “os preços mais elevados das commodities estimulam
as transações de compra e venda de terras, os atos de arrendamento de imóveis
rurais, bem como estimulam as ações de apossamento ilegítimo por grupos empresariais interessados em extensas áreas” (ALMEIDA, SHIRAISHI NETO &
MARTINS, 2005, p. 34).
Além de novas motivações para o cerceamento do acesso livre aos babaçuais, as “novas estratégias empresariais” ocasionam alguns outros efeitos
predatórios, como a devastação dos palmeirais para a plantação de capim, destinado à pecuária, ou de monoculturas agrícolas e como a coleta e queima indiscriminada do coco inteiro que, juntamente com o advento de novas categorias de
trabalhadores rurais com um grau bastante elevado de imobilização e sujeição
a setores dominantes do sistema capitalista (grandes empresas e latifundiários,
por exemplo), ou seja, os catadores e carvoeiros, afetam a sustentabilidade dos
cocais e desestruturam o modo de vida e trabalho das quebradeiras, que se recusam, principalmente as mais organizadas, a serem convertidas – tal como o
empresariado planeja e gostaria – em meras catadeiras e/ou carvoeiras, abrindo
mão assim das atividades tradicionais de beneficiamento do babaçu. As quebradeiras enfrentam na atualidade, portanto, problemas como a intensificação
da derrubada das matas onde exercem seu ofício e as iniciativas que pretendem reduzir as atividades das famílias extrativistas à simples coleta do coco
babaçu que, além de afetar o modo de produção tradicional, ameaça a própria
identidade das quebradeiras, segundo atentamente observa Almeida, Shiraishi
Neto e Martins (2005). Os mesmos autores lembram ainda que estas iniciativas empresariais fomentam a comercialização do coco inteiro, utilizado como
matéria-prima por empresas que beneficiam mecanicamente e em larga escala
o babaçu, e sua transformação em carvão, que é usado seja como insumo nas
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usinas que produzem ferro-gusa, seja como combustível de uso doméstico
para famílias de baixa renda sitas em núcleos urbanos próximos às áreas de
coleta.
Os catadores de coco e carvoeiros diferenciam-se das quebradeiras e dos
demais trabalhadores rurais organizados em movimentos sociais principalmente
por sua condição de imobilização e dependência estrutural dos proprietários de
terra e empresas, estabelecendo com estes contratos, no mais das vezes informais, de trabalho, arrendamento ou fornecimento dos cocos de babaçu transformados em carvão ou in natura. Os carvoeiros são nada mais do que uma modalidade de catadores que, além da coleta, incumbem-se de produzir o carvão a
partir da matéria-prima catada nos babaçuais de sua propriedade ou de terceiros,
arrendados ou não, mediante contrato de trabalho ou não. Conforme uma das
obras elaboradas no âmbito do MIQCB, os catadores de coco, geralmente do
gênero masculino (embora se encontre entre eles também quebradeiras, a maioria desarticulada do Movimento):
Consistem em trabalhadores aliciados por interesses das
carvoarias e indústrias guseiras e de óleos vegetais para
o desempenho de tarefas remuneradas por produção. Trata-se de atividades eventuais de coletar o coco inteiro e
transportá-lo para os fornos. Tais tarefas são executadas
em condições análogas ao trabalho escravo. Os trabalhadores passam dias arranchados nos cocais, sobrevivendo
em condições subumanas e sem nenhum direito trabalhista
assegurado. Imobilizados por dívidas e adiantamentos não
têm como resistir a seus contratantes e acabam aceitando
toda sorte de imposições (ALMEIDA, SHIRAISHI NETO
& MARTINS, 2005, pp. 24-25).
O trabalho dos catadores, de acordo com Almeida, Shiraishi Neto e Martins (2005), dá-se mediante o uso de um saco ou cesto, o chamado jacá, carregado às costas e no qual o trabalhador vai colocando os cocos coletados, que
podem ser verdes ou maduros, velhos ou ainda umedecidos, estando nos cachos
ou no chão. Os catadores amontoam os cocos catados para, em seguida, serem
recolhidos por veículos transportadores de propriedade de atravessadores, denominados de gaiolões ou caçambas, que fazem a intermediação informal entre
os catadores e as empresas de ferro-gusa e de óleos vegetais ou prestam serviços
contratados por estas. Referida forma de trabalho, de conformidade com os autores acima mencionados, opõe-se diametralmente ao trabalho realizado pelas
quebradeiras, caracterizado por uma relativa autonomia em relação aos setores
empresariais e pela condição eminentemente feminina das extrativistas, além do
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trabalho de cata dos cocos não requerer maiores qualificações, enquanto que o
das quebradeiras exige saberes práticos acerca do ecossistema e de como proceder na coleta e quebra do babaçu, o conjunto destes saberes, acrescidos de
regras relativas ao saber-fazer produtos derivados do babaçu e à arte de elaboração de objetos artesanais a partir das folhas, fibras e palhas, constituindo um
conhecimento tradicional. Por estes motivos, a atividade das quebradeiras apresenta, diferentemente do que ocorre no caso dos catadores, uma consciência
ambiental aguçada e uma sabedoria transmitida de geração para geração quanto
ao manejo dos palmeirais, muito nítidas no cuidado que estas trabalhadoras têm
com os olhos d’água, no desbaste que realizam a fim de “evitar uma densidade
de palmeiras que coloque em risco a quantidade produzida”, na seleção de árvores com melhores frutos, no respeito às regras de não cortar os cachos, no
modo de beneficiar o fruto, “rompendo compassada e manualmente a casca e
separando o núcleo para extrair a amêndoa, intacta e sem danos”23 (ALMEIDA,
SHIRAISHI NETO & MARTINS, 2005, p. 44).
Segundo Querubina Neta24, coordenadora da Regional Imperatriz do
MIQCB, a tendência de cata do coco inteiro confere maiores justificativas para
23
Ainda sobre este conhecimento tradicional, dissera Querubina Neta, em entrevista
realizada no dia 31.07.2007: “A palmeira... é muito interessante o seu processo. Você
planta ela, com 09 meses começa a sair o olhinho, racha o coco, planta ele na terra
fértil. Com 09 meses brota a primeira palhinha. Com 15/16 anos ela brota o primeiro
cacho, brotando aquele cacho, quando ela está abrindo o pendão, ela geme igualzinho a
mulher parindo, do mesmo jeito [...]. Quando se escutar aquele gemido, pode procurar
que tem uma palhinha soltando o pendão. E com 09 meses aquele coco começa a cair, é
igualzinho a uma mulher, não tem o que tirar.Tem que ter a lua para você utilizar a palha
do coco, tanto para cobrir casa para ela durar mais, quanto para fazer esses artesanatos.
Tem que ter o período da lua para se retirar a palha. Se tu tirares na lua nova, ele rende
muito pouco, quebra demais, seca mais rápido, dá um trabalho desgramado. Tu tens que
aproveitar a crescente da lua, chegamos à conclusão de o porquê que o trabalho é exclusivo para mulher. É uma ciência. Para tirar o óleo, tem que ter horário para isso: tem
que cerrar o coco à noite, moer cedo para aproveitar o crescer do sol, o nascer do sol,
porque o óleo é limpo e rende mais. Então, é uma ciência muito grande, e uma ciência
de mulher. Para fazer sabão do óleo do coco ou sabonete, desses que eu sei fazer, tu não
podes fazer com muita gente, o máximo que tu podes trabalhar são 04 pessoas. Na hora
de processar sabão ou sabonete, ou o que for que esteja fazendo, de 04 pessoas para
frente é uma ciência que eu não sei, porque se mistura um momento com o outro, um
aumenta, outro diminui, não dá certo. É uma ciência”.
24
Entrevista realizada no dia 31.07.2007, no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Imperatriz (MA).
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o cerceamento do acesso aos babaçuais “porque ele [o proprietário] agora está
arrendando o coco, está vendendo. Antes ele impedia só para não entrar, hoje
ele está impedindo para não entrar porque ele já ganha uma porcentagem nesse
aluguel desse babaçu que está vendendo para a Ferro Gusa”. A estrita coleta do
coco babaçu e a feitura do carvão a partir dele vêm tornando-se uma alternativa
de geração imediata e relativamente constante de renda não somente para os trabalhadores rurais, mas igualmente para fazendeiros e arrendatários. Isto oferece
mais uma motivação para impedir que as quebradeiras acessem os palmeirais,
justamente porque se estabelece uma relação de concorrência não apenas entre
estas e os catadores, mas também entre quebradeiras e fazendeiros e arrendatários, e sem dúvida as indústrias de ferro-gusa contribuem sobejamente para o
acirramento destes conflitos ao disseminarem baterias de fornos para a produção
de carvão, estimulando assim o cerceamento e o arrendamento das terras tradicionalmente ocupadas pelas quebradeiras.
Estes são conflitos, porém, que nem sempre se dão dentro dos babaçuais e
diariamente. No interior dos palmeirais, no entanto, há o embate mais cotidiano
entre quebradeiras e catadores, antagonismo que tem requerido das primeiras
novos cuidados no trabalho de coleta, tais como a prática de esconder os cocos,
a fim de que não sejam roubados por outra mulher (dada a “escassez” de matéria-prima que a atividade dos catadores ocasiona) ou pelos próprios catadores, e
o transporte dos cocos para locais mais remotos e de difícil acesso (ALMEIDA,
SHIRAISHI NETO & MARTINS, 2005). Sobre os impactos que as “novas estratégias empresariais” têm produzido na vida das quebradeiras do Estado do
Pará, Shiraishi Neto (2000, pp. 165-6) afirma, referindo-se à situação da Vila
São José, no município de São Domingos do Araguaia:
A derrubada das palmeiras tem reduzido as áreas de coleta
e diminuído os recursos disponíveis, provocando situações
não vivenciadas pelas quebradeiras em outras regiões,
como a própria disputa pelo coco ou uma pegar o coco
juntado pela outra quebradeira. Ou seja, o recurso que era
comum, acessível a todas as mulheres e famílias, após ser
privatizado, passa a ser destruído.
[...]
Outra situação que decorre é que as áreas de coleta de babaçu e as próprias palmeiras entre si acabam ficando cada
vez mais distantes de suas residências, acabando por aumentar o trabalho das mulheres de juntar e trazer os cocos,
tornando mais penosa a atividade. Para as mulheres está
cada vez mais difícil a atividade do babaçu. Elas têm de
coletar o coco em lugares cada vez mais distantes.
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As quebradeiras desenvolvem estratégias próprias para enfrentar estes
problemas estruturais nos quais estão inseridas. Uma destas estratégias – aliás,
mais uma tática emergencial de sobrevivência – é mencionada por Shiraishi
Neto (2000) e consiste na burla à vigilância dos fazendeiros e arrendatários,
entrando nos cocais escondidas, sorrateiramente. Segundo uma quebradeira do
povoado do Piquizeiro25, quando os fazendeiros proibiam a entrada nos cocais,
“a gente ficava na pesquisa, entrando escondidinho porque era obrigado, porque
você sabe que aqui as pessoas são fraca de condição”, tendo, portanto, precisão
(expressão nativa que indica estado de necessidade) de acessar aos babaçuais.
Maria Batista26, de um povoado do município de Praia Norte (TO), descreve
com mais detalhes esta prática, representando-a, no entanto, como roubo ainda
que legítimo: “nós vamos bem escondidinha, nós rouba, nós rouba o coco”,
“nós vamos bem devagarzinho, para o dono não perceber”, “nós sai, com um
saco aqui no ombro, reparando se vem ou se não vem”, “quando não vem, nós
enche o saco e bota aqui e faz de conta que nós estamos quebrando, se fazendo
de besta”. Esta é uma estratégia que, entretanto, possui limitações por criar um
clima de desconfiança entre quebradeiras e fazendeiros e arrendatários, intensificando os conflitos.
Durante a pesquisa de campo, em um rumo diverso, foi possível observar
iniciativas tendentes a estabelecer parcerias entre adversários estruturais. Uma
delas foi a discussão das quebradeiras do Pará e do Tocantins, por intermédio do
MIQCB, quanto à possibilidade de estabelecer um contrato de fornecimento de
cerca de mil litros/mês de óleo de babaçu à uma indústria de sabão localizada no
município de Redenção (PA). Além desta iniciativa, observou-se uma reunião
de planejamento com representantes do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e
do SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) que objetivou, entre
outras coisas, reconstruir a cadeia produtiva do babaçu na mesorregião do Bico
do Papagaio, com a participação das quebradeiras, e sensibilizar o empresariado
para sua efetiva realização (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 2007). Estes dois exemplos consistem em partes de uma estratégia menos conflitante, mas
ainda bastante incerta quanto aos benefícios que trará a médio e longo prazos às
trabalhadoras extrativistas, com os interesses empresariais dominantes: a de estabelecer parcerias diretas – sem intermediários (comerciantes-atravessadores)
– com empresas que sob outras condições apresentar-se-iam como antagonistas.
As incertezas patentes destas relações e a possibilidade de elas imiscuírem-se
25
26
Entrevista realizada no dia 11.08.2007, no povoado do Piquizeiro, em Axixá do Tocantins.
Entrevista realizada em 14.08.2007, no município de Praia Norte (TO).
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tão-somente nos interesses capitalistas em detrimento dos interesses das quebradeiras, são assemelhadas às que exigem de Almeida (2000, pp. 33-4) algumas
ponderações, quando afirma que as “novas estratégias empresariais”:
[...] querem discutir a economia do babaçu através das possibilidades de seu uso como carvão nas usinas de ferro-gusa
da região de Carajás ou através de ações associativas propostas por indústrias de papel e celulose. Percebe-se que
tais estratégias empresariais estão se confundindo com
políticas governamentais [...]. Ambas falam de “parceria”
com as trabalhadoras agroextrativistas e apontam para o
reconhecimento de um novo capítulo do extrativismo na
Amazônia, porém essa interlocução parece eivada de confusões que, inclusive, podem resultar em medidas desorganizadoras da economia do babaçu27.
Ditas incertezas apresentam-se justamente porque, além de nem sempre
corresponderem às expectativas e necessidades das quebradeiras, as “novas estratégias empresariais” realizam o que os documentos do MIQCB chamam de
“modernização predatória”, pois tendem a devastar rápida e quase inteiramente
os recursos naturais, menosprezando a fragilidade dos ecossistemas. Por enfatizarem o mercado de commodities, empreendem uma exploração desregulada,
despreocupada com a preservação sócio-ambiental, depreciando celeremente o
meio ambiente e os modos de organização social e trabalho nativos, a intensidade
da exploração flutuando de conformidade com as variação dos preços naquele
mercado. Esta “modernização predatória” é também “modernização conservadora”, favorecendo os projetos de dominação tradicional (no sentido weberiano,
descrito alhures) ao restringir o acesso livre aos palmeirais e confrontar as famílias de quebradeiras e catadores, produzindo formas de imobilização social e
27
Um indicativo desta possibilidade de desorganização da economia tradicional foi observado exatamente em uma reunião de planejamento promovida pelo MMA, onde um
representante do SENAI insistia reiteradamente na necessidade de utilização de máquinas para o beneficiamento do babaçu, especialmente para a retirada das amêndoas, por
ser este um trabalho penoso e demorado, em face das resistências e contra-argumentos também reiterados das quebradeiras participantes da reunião, que então buscavam
demonstrar que se a prática de quebra fosse substituída por maquinários o trabalho das
quebradeiras se reduziria à coleta e queima do babaçu, transformando-as em catadeiras
e carvoeiras, descaracterizando sua própria identidade.
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dependência estrutural (ALMEIDA, SHIRAISHI NETO & MARTINS, 2005).
Além do caso dos catadores e, por seguimento, dos carvoeiros, o caso do
advento da CELMAR em Imperatriz é um outro exemplo da “modernização predatória e conservadora” de que estou falando, pois converteu trabalhadores agroextrativistas relativamente autônomos em empregados temporários incumbidos
da devastação dos babaçuais (outrora sua única fonte de renda e subsistência,
acompanhada apenas da roça), que então foram gradativamente substituídos por
vastas plantações de eucalipto, também realizadas pelos camponeses locais por
ordem da empresa contratante, que exploraria tal matéria-prima para a produção
de papel e celulose, a médio e longo prazos prejudicando a forma de sobrevivência dos moradores locais, conforme relata uma quebradeira do povoado
de Petrolina:
Quando foi um dia, que eu não estou lembrada o dia da
semana, os homem da firma chegaram, já chegaram com
a roupa e os calçado e tudo, meu marido nessa época passou 09 meses trabalhando e o meu cunhado passou 01 ano,
aí entraram nessa mata, nesses mato para estar sendo as
veredas. [Pesquisador pergunta: “Trabalhando para a firma?”] É! Trabalhando para a firma. [...] Era fazenda picada,
como a gente chama vereda, sabe? No mato faz aquelas
divisas, coloca aqueles cantos, não sei quantos metros. E
aí chegou o tempo de plantar o eucalipto, o eucalipto já
estava desse tamanho. [Pesquisador pergunta: “O pessoal
aqui também trabalhava no plantio do eucalipto?”] Sim, do
eucalipto... Chegou nessa época, antes do eucalipto chegou
a desmatação, derrubava a palmeira... É! Derrubava para
separar a área que eles iam plantar o eucalipto. Antes do
eucalipto era tudo palmeiral, e foi derrubando a palmeira
e acabando e hoje nós estamos assim... Está fraco de roça.
Além do projeto da antiga CELMAR, hoje Ferro Gusa Carajás, as siderúrgicas do município de Açailândia (MA), a TOBASA Bioindustrial, sita no município
de Tocantinópolis (TO), e as indústrias de ferro-gusa localizadas em Marabá
(PA), como a COSIPAR, tornam-se as grandes antagonistas das quebradeiras
de coco babaçu do Araguaia-Tocantins, exatamente porque contribuem para a
mudança na paisagem rural e nas formas de viver e trabalhar tradicionais que
têm, há várias gerações, garantido a subsistência dos camponeses nativos e migrantes do leste maranhense e do semi-árido nordestino. Trata-se agora de uma
colisão de interesses que se adere aos confrontos habituais entre quebradeiras e
proprietários de terra; no entanto, difere destes confrontos especialmente por enHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009
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volver projetos de interesse econômico ainda mais poderosos do que a pecuária
expansiva e não menos predatórios que esta.
Exemplo de tais projetos é a ainda incipiente, mas iminente, discussão
quanto à produção de biodiesel na pré-Amazônia. Os debates consistem, segundo informações tomadas em entrevistas com Denise Leal e Emília Rodrigues28,
também em uma colisão de interesses: por um lado, as estratégias empresariais que defendem que o biodiesel deve ser produzido tomando por insumo a
mamona, o que exigiria vastas plantações (monocultura agrícola) obedecendo
um modelo assemelhado ao das antigas plantations, requerendo naturalmente a
devastação dos babaçuais e a conversão do trabalho agroextrativista em trabalho
assalariado destinado ao plantio e colheita da mamona; e, por outro lado, as
quebradeiras defendendo a produção do biodiesel a partir do babaçu, cuja coleta
e beneficiamento inicial então seria realizado pelos trabalhadores locais, o que,
porém, requereria uma verdadeiramente improvável agilização do processo de
reforma agrária (por intermédio de PAs ou de RESEXs) na região tocantina
a fim de que os camponeses pudessem ocupar legítima e legalmente as terras
onde há incidência de babaçuais, não estando condicionados aos interesses dos
grandes proprietários que, em havendo a valorização do babaçu, certamente tenderiam a pretender explorar os recursos dos palmeirais localizados no interior
de suas propriedades, convertendo – mais uma vez, embora por outra via – os
trabalhadores agroextrativistas em assalariados e dependentes economicamente
do setor empresarial.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, esboço algumas conclusões:
1. Em função do movimento social das quebradeiras reafirmar, desde sua
formação, e de modo reiterado, a cultura associada ao trabalho no coco, reinventando-a cotidianamente, pode-se inferir que suas ações promovem um processo de
(re)tradicionalização ou (re)invenção de tradições. Este processo é sinônimo de
“reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a situações
anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que
obrigatória”, forçando assim a visualização de “contrastes entre as constantes
mudanças e inovações do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira
28
Entrevistas realizadas nos dias 01 e 02.08.2007, respectivamente.
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imutável e invariável ao menos alguns aspectos da vida social” (HOBSBAWN,
2006, p. 10). A tradicionalidade, no caso das quebradeiras, refere-se então a
reivindicações contemporâneas de um grupo social que vem participando do
processo de construção da própria definição do que seja tradicional, através de
mobilizações e da elaboração de uma identidade coletiva objetivada em movimento social (ALMEIDA, 2006a). Desta forma, o tradicional é social e politicamente construído, lembra Alfredo Wagner Berno de Almeida (2006a). Tradição,
nestes termos, não deve ser confundida necessariamente com regularidade e
repetição não-consciente e/ou irrefletida, noções que mais bem se ajustam ao
conceito weberiano de costume (WEBER, 1999). Ao contrário, como explica
Almeida (2006a, p. 11), tradicionalidade, aqui, diz melhor respeito a processos
reais de uma população que transforma “dialeticamente suas práticas, mesmo
quando” as converte “em normas para fins de interlocução, redefinindo suas
relações sociais e com a natureza, tais processos nos levando a pensar em” uma
comunidade dinâmica, “cujos princípios encontram-se em transformação”.
2. Em razão deste processo de (re)tradicionalização, as quebradeiras de
coco babaçu constituem uma população que, como as estudadas por Marshall
Sahlins (1988), é produtora de sua própria história, ainda que estabeleça relações muito próximas com o colonizador sistema capitalista – pois o movimento social das quebradeiras tem buscado relacionar-se com a economia de
mercado, o babaçu possuindo para as trabalhadoras pesquisadas valor-de-uso e
valor-de-troca –, visando, no entanto, através destas relações, garantir uma forma de desenvolvimento do ponto de vista local, isto é, das quebradeiras, o que
Sahlins chamara de “develop-man” (no presente caso, um verdadeiro “developwoman”), reafirmando assim os projetos nativos de garantir a reprodução material e simbólica das práticas e representações das quebradeiras por intermédio
de uma melhor inserção no mercado, ou seja, em condições competitivas mais
favoráveis ou menos desfavoráveis, dos produtos oriundos do babaçu manufaturados localmente. A institucionalização do movimento das quebradeiras de
coco babaçu foi um evento de sobeja importância para estabelecer rupturas significativas com uma história reificada de sujeição das trabalhadoras rurais aos
pecuaristas herdeiros do antigo sistema do patriarcado rural e suas respectivas
relações de patronagem. Trata-se de um evento importante também para transformar as relações entre as quebradeiras e os interesses masculinos predominantes
nas lides dos trabalhadores rurais do Araguaia-Tocantins, re-significando o papel,
outrora passivo e agora pró-ativo, da mulher no meio rural e nas disputas de
natureza político-econômica, além de re-significar igualmente as relações domésticas de dominação, conferindo uma relevância cada vez maior ao trabalho
feminino tanto dentro quanto fora do âmbito da “casa”.
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3. Todavia, nem todas as relações estabelecidas entre quebradeiras de
coco e setores dominantes do capitalismo são promissoras para o grupo de
mulheres trabalhadoras rurais. O caso das chamadas “novas estratégias empresariais” é exemplar disto. Trata-se de uma forma de contato de dada população
tradicional, a das quebradeiras e seus familiares, com esferas do capitalismo
direcionadas eminentemente para uma exploração ostensiva, expansiva e desregulada dos recursos naturais, tendente ainda a uma crescente intervenção no
e descaracterização do sistema cultural, sócio-organizativo e laboral dos trabalhadores agroextrativistas da região do Araguaia-Tocantins. Um dos efeitos
destrutivos destas estratégias é a conversão de quebradeiras e agricultores em
catadores e carvoeiros, quer dizer, em formas mais imobilizadas de trabalho
no campo, dependentes dos proprietários ou arrendatários e que não raramente
chegam a assemelhar-se ao trabalho escravo, o que é uma forma de violência simbólica (BOURDIEU, 2005; 2008), que às vezes transmuta-se em física,
ocultando o arbitrário de uma cultura e um determinado modo de produção cuja
afirmação e reprodução, em longo prazo, interessa mormente ou tão-somente a
setores hegemônicos do capitalismo, como os médios e grandes latifundiários e
as indústrias de óleos vegetais e ferro-gusa. Estas estratégias do empresariado
que exerce suas atividades na região tocantina têm produzido impactos sociais e
ambientais notadamente agressivos, em especial porque inculcam habitus laborais diametralmente opostos à forma de trabalho e aos esquemas de ação, pensamento, apreciação e percepção que caracterizam o modo de vida e a cultura das
quebradeiras e suas famílias de pequenos produtores rurais.
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Artigo recebido em: 29/05/2010
Artigo aprovado para publicação em junho /2010.
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ÍNDICE - PARTE II
COMPETÊNCIAS MATERIAIS NO CONTROLE E REGULAMENTAÇÃO
DA ATIVIDADE PESQUEIRA
Thaísa Rodrigues Lustosa de Camargo
Serguei Aily Franco de Camargo.................................................................121
Introdução
1. Desenvolvimento da Atividade Pesqueira
2. Histórico das Políticas Setoriais da Pesca
3. Competências Materiais: O Ministério da Pesca e suas atribuições
4. Competências
4.1. Política Nacional
4.2. Normatização
4.3. Fiscalização
4.4. Educação e pesquisa
4.5. Ações conjuntas
Conclusões
Referências
TERRAS INDÍGENAS NAS FAIXAS DE FRONTEIRA DA AMAZÔNIA
BRASILEIRA: UMA BREVE ANÁLISE DOS DISCURSOS CONTRÁRIOS
AO SEU RECONHECIMENTO
Alex Justus da Silveira
Fernando Antonio de Carvalho Dantas.......................................................141
Introdução
1.A proposital indiferença em relação aos povos indígenas no Brasil
2. Um breve panorama dos discursos contrários à demarcação de Terras Indígenas
3. A ausência de compreensão das diferentes territorialidades indígenas
Conclusão
Referências
A FARRA DO BOI E A QUESTÃO DO BALANCEAMENTO DE PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS
Denison Melo de Aguiar
Serguei Aily Franco de Camargo.................................................................159
Introdução
1. A farra do Boi
2. Da decisão do Supremo Tribunal Federal
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3. Do Balanceamento ou ponderação entre o Direito à proteção da fauna e flora à
extinção ou crueldade (art. 225, parágrafo primeiro, inciso VII, CF/88) e o Direito à tutela de manifestação e expressão de cultura (art. 215, parágrafo primeiro e 216, CF/88)
Considerações Finais
Referências
CONSIDERAÇÕES ACERCA DA VIABILIDADE DA ARBITRAGEM:
CONTRATOS DE REPARTIÇÃO EQUITATIVA PELO ACESSO E USO DA
BIODIVERSIDADE E JUSTIÇA DEMOCRÁTICA DE PROXIMIDADE
Liana Amin Lima da Silva
José Augusto Fontoura Costa.......................................................................181
Introdução
1. Admissibilidade da Arbitragem
2. Antinomia Jurídica
3. Diálogo entre a Lei da Arbitragem e o Código de Defesa do Consumidor
4. Viabilidade da Arbitragem Ambiental
5. (In) Disponibilidade dos Direitos Difusos
6. Cláusula arbitral nos contratos de utilização do patrimônio genético e de repartição
de benefícios
Conclusão
Referências Bibliográficas.
A NECESSIDADE DE TUTELA PENAL CONTRA A BIOPIRATARIA NA
AMAZÔNIA
Aline Ferreira de Alencar
Fernando Antônio de Carvalho Dantas
Maria Auxiliadora Minahim........................................................................207
Introdução
1. Biopirataria na Amazônia Brasileira
1.1 A necessidade de Tutela do Direito Penal sobre o Crime de Biopirataria
1.2 A importância da identificação do bem jurídico a ser tutelado pelo direito penal no
crime de Biopirataria
1.3 Reflexões sobre formas de evitar e combater a biopirataria na Amazônia Brasileira
Considerações Finais
Referências
A PESSOA JURÍDICA E O CONCURSO DE AGENTES NO CONTEXTO DA
REPONSABILIZAÇÃO PENAL AMBIENTAL
Antônio Ferreira do Norte Filho
Serguei Aily Franco de Camargo.................................................................235
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Introdução
1. Pessoa jurídica: definição e classificação
2. Previsão legal da responsabilidade penal da pessoa jurídica por lesão ao meio ambiente
3.Penas cominadas à pessoa jurídica por lesão ao bem ambiental
4. Da discussão acerca do cabimento ou não da responsabilização penal da pessoa
jurídica
5. Concurso de agentes perpetradores do injusto ambiental
Conclusão
Referências
NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS E PADRÕES JURÍDICOS NO PROCESSO DE REDEFINIÇÃO DA REGIÃO AMAZÔNICA
Joaquim Shiraishi Neto................................................................................253
1. Disputa pela redefinição da Região Amazônica
2. “Novo” Direito e “Novos Movimentos Sociais”
3. “Práticas Jurídicas” localizadas: “Novos” padrões jurídicos
Considerações Finais
Bibliografia
Documentos e Periódico
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COMPETÊNCIAS MATERIAIS NO CONTROLE E
REGULAMENTAÇÃO DA ATIVIDADE PESQUEIRA
Thaísa Rodrigues Lustosa de Camargo 
Serguei Aily Franco de Camargo **
Sumário: Introdução; 1. Desenvolvimento da Atividade Pesqueira; 2. Histórico das
Políticas Setoriais da Pesca; 3. Competências Materiais: O Ministério da Pesca e suas
atribuições; 4. Competências; 4.1. Política Nacional; 4.2. Normatização; 4.3. Fiscalização; 4.4. Educação e pesquisa; 4.5. Ações conjuntas; Conclusões; Referências.
Resumo: Com a criação do o Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) em
1989, centralizou-se o controle e a regulamentação da atividade pesqueira, mas
não houve a unificação da competência
material no que se refere à pesca, havendo, simultaneamente, conflitos e lacunas.
A recente criação do Ministério da Pesca
e Aqüicultura (MPA) dá nova importância
à temática, levantando a questão das competências. Atualmente, o MPA encontra-se
em fase de estruturação. Com isso, esperase que questões relativas à distribuição de
atribuições entre os órgãos do sistema do
MMA e o novo Ministério sejam sanadas,
evitando maiores entraves ao desenvolvimento do setor.
Abstract: Through the creation of Brazilian Institute of Environment and Renewable Natural Resources (IBAMA) in 1989,
fisheries control and ruling were centralized in this bureau, but it was not material
competences unification concerned to fisheries, remaining conflicts and gaps. The
nearly creation of Fishery and Aquaculture
Ministry (FAM) highlighted this subject,
demonstrating the importance of the discussion about material competences. Nowadays, FAM is beginning the institutional
building process. In this case it is expected
that questions about administrative attributions distribution among environmental
bureaus and the new Ministry be solved,
avoiding obstacles to the development of
fishery sector.
Palavras-chave: Atividade pesqueira; Keywords: Fishery activity; Material comCompetência material; Ministério da Pes- petence; Fishery and Aquaculture Minisca e Aqüicultura.
try.
* Advogada, pesquisadora e mestranda em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas. Bolsista do CNPq.
** Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da
Universidade do Estado do Amazonas e do Departamento de Direito da Uninilton Lins.
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INTRODUÇÃO
Criado através da Lei nº 7.735/89, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) foi um marco na história
brasileira, pois, pela primeira vez, a gestão ambiental passou a ser integrada.
Antes, a temática era tratada por diferentes Ministérios. O Ministério do Interior, através da Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA), desde 1973 cuidava do trabalho político e de gestão de responsabilidade. Vinculados ao Ministério da Agricultura havia o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal
(IBDF), responsável pela gestão das florestas; e a Superintendência de Pesca
(SUDEPE), gestão do ordenamento pesqueiro. Por fim, atrelado ao Ministério
da Indústria e Comércio, a Superintendência da Borracha (SUDHEVEA) tinha
o objetivo era viabilizar a produção da borracha. A união destes quatro órgãos
deu origem ao IBAMA.
Neste período de descentralização, deram-se importantes passos em matéria ambiental como a elaboração da Política Nacional do Meio Ambiente Lei nº 6.938/81, em que se estabeleceu o Sistema Nacional de Meio Ambiente
(SISNAMA) e o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), único
conselho com poder de legislar. Recepcionada pela Constituição Republica de
1988, a Lei ainda está em vigor.
Na década de 90, a questão ambiental cresceu em importância. Foi criado
o Ministério do Meio Ambiente (1992); o Conselho Nacional de Recursos Hídricos (1997); a Agência Nacional das Águas (2000); o Conselho Nacional de
Recursos Genéticos (2001); o Serviço Florestal Brasileiro (2006) e o Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (2007). Também houve o surgimento de novas legislações: Lei das Águas (1997); Lei dos Crimes Ambientais
(1998); a lei que estabelece a Política Nacional de Educação Ambiental (1999);
a que estabelece o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (1999) e a Lei
de Gestão de Florestas Públicas (2006).
Atualmente, têm-se, em nível federal, os Ministérios da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento; do Meio Ambiente; da Pesca e Aqüicultura (recémcriado), além das autarquias - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - Instituto Chico Mendes.
Nesse sentido, busca-se, através deste trabalho, identificar as competências materiais no que se refere à atividade pesqueira, principalmente, as competências do recém-criado Ministério da Pesca e Aqüicultura.
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1. DESENVOLVIMENTO DA ATIVIDADE PESQUEIRA
Nos termos do art. 7° da Lei n° 11.959/09, o desenvolvimento da atividade pesqueira deve se dar de forma sustentável, através da gestão do acesso e
uso dos recursos pesqueiros (I); da determinação de áreas especialmente protegidas (II); do controle e a fiscalização da atividade pesqueira (IX), entre outros.
Ao poder público compete a regulamentação da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Atividade Pesqueira, devendo estabelecer, no que
concerne aos recursos pesqueiros (art. 3°): os regimes de acesso (I); a captura
total permissível (II); o esforço de pesca sustentável (III); os períodos de defeso (IV); as temporadas de pesca (V); os tamanhos de captura (VI); as áreas
interditadas ou de reservas (VII); as artes, os aparelhos, os métodos e os sistemas de pesca e cultivo (VIII); a capacidade de suporte dos ambientes (IX); as
necessárias ações de monitoramento, controle e fiscalização da atividade (X);
a proteção de indivíduos em processo de reprodução ou recomposição de estoques (XI).
Para o exercício da atividade (art. 24), toda pessoa (física ou jurídica, além
da embarcação) deve estar previamente inscrita no Registro Geral da Atividade
Pesqueira (RGP) e no Cadastro Técnico Federal (CTF). Segundo a Instrução
Normativa nº 03/04 da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca, que dispõe
sobre operacionalização do Registro Geral da Pesca, o RGP contemplará as seguintes categorias de registro (art. 3º):
I - Pescador Profissional, devendo ser classificado como:
a) Pescador Profissional na Pesca Artesanal; e
b) Pescador Profissional na Pesca Industrial.
II - Aprendiz de Pesca;
III - Armador de Pesca;
IV - Embarcação Pesqueira;
V - Indústria Pesqueira;
VI - Aqüicultor; e
VII - Empresa que Comercia Organismos Aquáticos Vivos.
Parágrafo único. O registro de que trata o caput poderá ser
precedido de permissões de pesca e autorizações, conforme
disposto na presente Instrução Normativa ou previsto em
legislação.
A documentação necessária varia de acordo com a categoria de registro.
Contudo, de modo geral, não se constitui num entrave burocrático, uma vez
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que são exigidos documentos simples, como: identidade, CPF, comprovante
de residência, documento de inscrição no PIS/PASEP, duas fotos 3x4, além do
pagamento de taxa
Além do RGP, também se faz necessário ato prévio autorizativo da autoridade competente, que podem ser (art. 25 da Lei n° 11.959/09):
I – concessão: para exploração por particular de infra-estrutura e de terrenos públicos destinados à exploração de
recursos pesqueiros;
II – permissão: para transferência de permissão; para
importação de espécies aquáticas para fins ornamentais e
de aqüicultura, em qualquer fase do ciclo vital; para construção, transformação e importação de embarcações de
pesca; para arrendamento de embarcação estrangeira de
pesca; para pesquisa; para o exercício de aqüicultura em
águas públicas; para instalação de armadilhas fixas em
águas de domínio da União;
III – autorização: para operação de embarcação de pesca e
para operação de embarcação de esporte e recreio, quando
utilizada na pesca esportiva; e para a realização de torneios
ou gincanas de pesca amadora;
IV – licença: para o pescador profissional e amador ou esportivo; para o aqüicultor; para o armador de pesca; para a
instalação e operação de empresa pesqueira;
V – cessão: para uso de espaços físicos em corpos d’água
sob jurisdição da União, dos Estados e do Distrito Federal,
para fins de aqüicultura. (grifo nosso)
O ato autorizarivo deve assegurar (art. 5°): a proteção dos ecossistemas e
a manutenção do equilíbrio ecológico, observados os princípios de preservação
da biodiversidade e o uso sustentável dos recursos naturais (I); a busca de mecanismos para a garantia da proteção e da seguridade do trabalhador e das populações com saberes tradicionais (II); e, por fim a busca da segurança alimentar e
a sanidade dos alimentos produzidos (III).
2. HISTÓRICO DAS POLÍTICAS SETORIAIS DA PESCA
A questão ambiental de modo geral, e a pesca mais especificamente, é
assunto de competência de diversos órgãos executivos, cujas atribuições apresentam-se conflitantes em algumas oportunidades, e vagas em outras. Ao longo
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da construção da estrutura organizacional da República, houve a criação e a
extinção de órgãos voltados à temática ambiental, bem como a modificação de
suas competências.
Inicialmente, o Decreto nº 73.030/73 cria a Secretaria Especial do Meio
Ambiente (SEMA), subordinada ao Ministério do Interior, com a orientação
voltada à conservação do meio ambiente, e o uso racional dos recursos naturais,
destacando-se que a mesma atuava em articulação com o Ministério do Planejamento e Coordenação Geral. Entre suas atribuições, tinham-se (art. 4°):
a) acompanhar as transformações do ambiente através de
técnicas de aferição direta e sensoreamento remoto, identificando as ocorrências adversas, e atuando no sentido de
sua correção;
b) assessorar órgão e entidades incumbidas da conservação
do meio ambiente, tendo em vista o uso racional dos recursos naturais;
c) promover a elaboração e o estabelecimento de normas
e padrões relativos à preservação do meio-ambiente, em
especial dos recursos hídricos, que assegurem o bem-estar
das populações e o seu desenvolvimento econômico e social;
d) realizar diretamente ou colaborar com os órgãos especializados no controle e fiscalização das normas e padrões
estabelecidos;
e) promover, em todos os níveis, a formação e treinamento
de técnicos e especialistas em assuntos relativos à preservação do meio ambiente;
f) atuar junto aos agentes financeiros para a concessão de
financiamentos a entidades públicas e privadas com vista
à recuperação de recursos naturais afetados por processos
predatórios ou poluidores;
g) cooperar com os órgãos especializados na preservação
de espécies animais e vegetais ameaçadas de extinção, e na
manutenção de estoques de material genético;
h) manter atualizada a Relação de Agentes Poluidores e
Substâncias Nocivas, no que se refere aos interesses do
País;
i) promover, intensamente, através de programas em escala
nacional, o esclarecimento e a educação do povo brasileiro
para o uso adequado dos recursos naturais, tendo em vista a
conservação do meio ambiente.
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Em 1989, tal Secretaria é extinta com a criação do Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), através da Lei
n°7.735/89 (conversão da MP n° 34/89), como se verá mais a frente. O Art. 4º
da referida Lei estabelece a transferência de toda estrutura e competência da
SEMA ao IBAMA:
O patrimônio, os recursos orçamentários, extra-orçamentários e financeiros, a competência, as atribuições, o pessoal, inclusive inativos e pensionistas, os cargos, funções e
empregos da Superintendência da Borracha - SUDHEVEA
e do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal IBDF, extintos pela Lei nº 7.732, de 14 de fevereiro de 1989,
bem assim os da Superintendência do Desenvolvimento da
Pesca - SUDEPE e da Secretaria Especial do Meio Ambiente - SEMA são transferidos para o Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis,
que os sucederá, ainda, nos direitos, créditos e obrigações,
decorrentes de lei, ato administrativo ou contrato, inclusive
nas respectivas receitas. (grifo nosso)
Outro órgão de destaque é o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. O Ministério é originário da Secretaria de Estado de Negócio da
Agricultura, Comércio e Obras Públicas, criada pelo Decreto Imperial n° 1067
de 1860. Em 1892, a Secretaria foi transformada no Ministério da Indústria,
Viação e Obras Públicas, que, após 17 anos, reincorporou a pasta da agricultura,
com a nova denominação de Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio.
Na década de 30, passou a fazer parte da estrutura governamental da República
e nos anos 80 perdeu a competência sobre assuntos relativos à reforma agrária e
recursos florestais e pesqueiros.
Como autarquia federal subordinada ao Ministério da Agricultura, a Lei
Delegada n° 10/62 criou a Superintendência do Desenvolvimento da Pesca
(SUDEPE), com as seguintes atribuições (art. 2°):
I - elaborar o Plano Nacional de Desenvolvimento da Pesca
(PNDP) e promover a sua execução;
II - prestar assistência técnica e financeira aos empreendimentos de pesca;
III - realizar estudos, em caráter, permanente, que visem
à atualização das leis aplicáveis à pesca ou aos recursos
pesqueiros [fauna e flora de origem aquática], propondo as
providências convenientes;
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IV - aplicar no que couber, o Código de Pesca e a legislação
das atividades ligadas à pesca ou aos recursos pesqueiros;
V - pronunciar-se sobre pedidos de financiamentos destinados à pesca formulados a entidades oficiais de crédito;
VI - coordenar programas de assistência técnica nacional
ou estrangeira;
VII - assistir aos pescadores na solução de seus problemas
econômico-sociais.
Referida Lei dispõe ainda que a antiga SUDEPE podia (art. 3°):
I - executar, diretamente, ou mediante convênio, acordo ou
contrato, projetos relativos ao desenvolvimento da pesca;
II - complementar, quando conveniente a ação dos órgãos
estaduais e exercer, supletivamente, a fiscalização do
cumprimento das normas federais no âmbito de suas atribuições;
III - propor a fixação de preços de produtos pesqueiros para
efeito do redesconto de títulos negociáveis representativos
de mercadorias depositadas;
IV - propor a fixação de preços do gelo e outros produtos
essenciais à pesca e ao beneficiamento e distribuição do
pescado;
V - avaliar a necessidade de importações em função do
PNDP fixando quantitativos e recursos para satisfazê-la,
em cooperação com os órgãos de controle do comércio exterior;
VI - formar e aperfeiçoar pessoal especializado;
VII - efetuar operações de revenda e financiamento de
embarcações, equipamentos e outros artigos essenciais às
atividades pesqueiras;
VIII - efetuar quaisquer operações financeiras com as entidades oficiais de crédito, inclusive sob garantia do Tesouro
Nacional;
IX - propor a concessão de licenças especiais visando à boa
execução do PNDP;
X - subscrever capital de empresas que executem projetos
industriais essenciais no âmbito do PNDP;
XI - assumir, através de convênio, a administração de
setores federais e estaduais ligados às atividades pesqueiras;
XII - pronunciar-se sobre iniciativas de órgãos públicos,
que afetem a pesca;
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XIII - praticar quaisquer outros atos necessários ao desempenho de suas atribuições.
Na década de 90, a competência do Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento sofreu diversas adequações através de novas legislações. Com
a Medida Provisória n° 150, convertida na Lei nº 8.028/90, recuperou-se tradicionais atribuições, com exceção do abastecimento, além das ações de coordenação política e da execução da reforma agrária e dos assuntos de irrigação.
Posteriormente, incorporou os assuntos de abastecimento, de política agrícola e
de desenvolvimento rural (Lei nº 8.344/91).
Assim como sua competência, sua denominação também sofreu alterações.
Em 1992, passou a ser designado de Ministério da Agricultura, Abastecimento e Reforma Agrária (Lei nº 8.490/92), contudo, manteve suas atribuições. Em 1996, a
Medida Provisória n° 1450/96, convertida na Lei nº 9.649/98, trouxe novamente
a temática dos recursos pesqueiros e redistribuiu a competência referente à condução e execução da política de reforma agrária. Na oportunidade, o Ministério,
que passou a se chamar Ministério da Agricultura e do Abastecimento, recebeu a competência relacionada ao apoio da produção e ao fomento da atividade pesqueira, a ser exercida através do Departamento de Pesca e Aqüicultura
(DPA). Dessa forma, o MMA e o IBAMA permaneceram com as atribuições da
política de preservação, conservação e do uso sustentável dos recursos naturais.
Com a Medida Provisória n° 1911-8/99, são incorporadas competências
do Ministério da Indústria e Comércio, como os assuntos relativos à política do
café, açúcar e álcool e ao planejamento e exercício da ação governamental nas
atividades do setor agro-industrial canavieiro. O termo “pecuária” é agregado à
denominação ministerial através da MP n° 2.216-37/01, tornando-se, assim, o
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
Com a edição da MP n° 103/03, convertida na Lei n° 10.683/03, novamente, os assuntos pesqueiros são retirados da competência ministerial, passando
à responsabilidade da criada Secretaria Especial da Aqüicultura e Pesca (SEAP),
ligada diretamente à Presidência da República. Possuindo status de Ministério, a SEAP surge com o intuito de fomentar e desenvolver o setor pesqueiro,
permanecendo a gestão compartilhada do uso dos recursos pesqueiros com o
Ministério do Meio Ambiente (MMA).
Criado em 1992, o MMA possui o intuito de
[...] promover a adoção de princípios e estratégias para o
conhecimento, a proteção e a recuperação do meio ambiente, o uso sustentável dos recursos naturais, a valorização
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dos serviços ambientais e a inserção do desenvolvimento
sustentável na formulação e na implementação de políticas
públicas, de forma transversal e compartilhada, participativa
e democrática, em todos os níveis e instâncias de governo e
sociedade.1
A Lei nº 10.683/03 (art. 27, XV) estabeleceu sua competência sobre:
a) política nacional do meio ambiente e dos recursos hídricos;
b) política de preservação, conservação e utilização sustentável de ecossistemas, e biodiversidade e florestas;
c) proposição de estratégias, mecanismos e instrumentos
econômicos e sociais para a melhoria da qualidade ambiental e o uso sustentável dos recursos naturais;
d) políticas para a integração do meio ambiente e produção;
e) políticas e programas ambientais para a Amazônia Legal; e
f) zoneamento ecológico-econômico.
Seus órgãos colegiados são os Conselhos Nacional do Meio Ambiente
(CONAMA); Nacional da Amazônia Legal (CONAMAZ); Nacional de Recursos Hídricos; Deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente; de Gestão
do Patrimônio Genético; e as Comissões de Gestão de Florestas Públicas; e Nacional de Florestas (CONAFLOR). Como entidades vinculadas, o MMA possui
quatro autarquias: a Agência Nacional de Águas (ANA); o Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ); o Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA); e o Instituto Chico
Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), estes dois últimos de interesse do presente plano de atividades.
A Medida Provisória n° 34/89, posteriormente convertida na Lei n°
7.735/89, extinguiu a Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA) do Ministério do Interior e a Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE),
autarquia vinculada ao Ministério da Agricultura (art. 1°), e criou o Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA),
como autarquia vinculada ao Ministério de Meio Ambiente (art. 2°).
1
MMA, 2009.
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Com a Lei nº 11.516/07, é criado o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - Instituto Chico Mendes, como autarquia federal vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, com a finalidade de (art. 1°):
I - executar ações da política nacional de unidades de conservação da natureza, referentes às atribuições federais
relativas à proposição, implantação, gestão, proteção, fiscalização e monitoramento das unidades de conservação
instituídas pela União;
II - executar as políticas relativas ao uso sustentável dos
recursos naturais renováveis e ao apoio ao extrativismo e
às populações tradicionais nas unidades de conservação de
uso sustentável instituídas pela União;
III - fomentar e executar programas de pesquisa, proteção,
preservação e conservação da biodiversidade e de educação
ambiental;
IV - exercer o poder de polícia ambiental para a proteção
das unidades de conservação instituídas pela União; e
V - promover e executar, em articulação com os demais
órgãos e entidades envolvidos, programas recreacionais, de
uso público e de ecoturismo nas unidades de conservação,
onde estas atividades sejam permitidas.
Frente à criação do Instituto, as finalidades do IBAMA são re-estabelecidas pela referida Lei (art. 5°), que altera o art. 2° da Lei n° 7.735/89, quais
sejam:
I - exercer o poder de polícia ambiental;
II - executar ações das políticas nacionais de meio ambiente, referentes às atribuições federais, relativas ao licenciamento ambiental, ao controle da qualidade ambiental, à
autorização de uso dos recursos naturais e à fiscalização,
monitoramento e controle ambiental, observadas as diretrizes emanadas do Ministério do Meio Ambiente; e
III - executar as ações supletivas de competência da União,
de conformidade com a legislação ambiental vigente.
O parágrafo único do art. 1° Lei nº 11.516/07 destaca ainda que o IBAMA
passa a exercer o poder de polícia de forma suplementar ao Instituto.
Em 1998, com a criação do Departamento de Pesca e Aqüicultura (DPA),
o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento fica com algumas atri130
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buições do IBAMA. No entanto, como demonstra Surgik2, na prática, houve
uma sobreposição de competências entre o DPA e o citado órgão fiscalizador.
Recentemente, a Lei n° 11.958, de 26 de junho de 2009 dispõe, em seu
art. 2°, sobre a transformação da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da
Presidência da República em Ministério da Pesca e Aqüicultura. A criação e as
competências desse novo Ministério serão objeto de análise no próximo tópico.
A Lei nº 11.959/09, que dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aqüicultura e da Pesca, regula as atividades pesqueiras,
revoga a Lei nº 7.679/88, e dispositivos do Decreto-Lei nº 221/67. Entre os tópicos mantidos do Decreto-Lei, tem-se: a exigência de inscrição das embarcações
na Superintendência do Desenvolvimento da Pesca – SUDEPE; a exigência de
inscrição das indústrias pesqueiras no Registro Geral da Pesca, sob responsabilidade de SUDEPE; a concessão de licença anual para o exercício da pesca a
amadores, nacionais ou estrangeiros; a exigência do registro de aquicultores
amadores ou profissionais; o estabelecimento do pagamento de taxas às empresas que comercializam animais aquáticos; e a instituição do Registro Geral
de Pesca. Apesar de mantidos, referidos artigos referem-se, na atualidade, ao
Ministério da Pesca, uma vez que a SUPEDE é um órgão extinto.
A nova lei modificou o conceito de pesca, que era compreendida pelo
Decreto-Lei 221/67, como “[...] todo ato tendente a capturar ou extrair elementos animais ou vegetais que tenham na água seu normal ou mais freqüente meio
de vida” (art. 1°). Com a Lei n° 11.959/09, tem-se a pesca como “toda operação,
ação ou ato tendente a extrair, colher, apanhar, apreender ou capturar recursos
pesqueiros” (art. 2°, III).
Dessa forma, verifica-se a mudança da nomenclatura de “elementos animais ou vegetais” para “recursos pesqueiros”, tornando, assim, a legislação mais
técnica e com conceitos específicos. Nos termos do inciso I do art. 2° da citada
Lei, recursos pesqueiros são “os animais e os vegetais hidróbios passíveis de
exploração, estudo ou pesquisa pela pesca amadora, de subsistência, científica,
comercial e pela aqüicultura”.
Referida Lei também trouxe a definição de atividade pesqueira, como
“[...] todos os processos de pesca, explotação e exploração, cultivo, conservação, processamento, transporte, comercialização e pesquisa dos recursos
pesqueiros”. (art. 4° da Lei n° 11.959/09). Dessa forma, toda a cadeia de pesca é
englobada – captura, transporte, beneficiamento, estocagem e comercialização.
A Lei 11.959/09 estabeleceu ainda no art. 33 que a punição das condutas
2
Avaliação Crítica da aplicabilidade da Legislação do Setor Pesqueiro. In: O setor
pesqueiro na Amazônia, 2007, p.101.
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e atividades lesivas aos recursos pesqueiros e ao meio ambiente será feita nos
termos da Lei n° 9.605/98, e de seu regulamento; além de prever que o estímulo
às pessoas físicas ou jurídicas que desenvolvem a atividade pesqueira será feito
através dos benefícios da política agrícola, como o crédito rural, da capacitação
da mão-de-obra, voltada ao desenvolvimento sustentável, e do estímulo à pesquisa.
O art. 2° do Decreto-Lei n° 221/67 estabelecia que a pesca poderia se
efetuar com fins comerciais, desportivos (amadores) ou científicos. Referido
artigo foi expressamente revogado pela Lei n° 11.959/09 que, por sua vez, classifica a pesca (art. 8°) em comercial (artesanal ou industrial) ou não comercial
(científica, amadora e de subsistência); e a aqüicultura (art. 19) em: comercial;
científica ou demonstrativa; de recomposição ambiental; familiar ou ornamental.
O art. 27, XXIV, h da Lei n° 10.683/03 (alterado pela Lei n° 11.958/09)
apresenta como modalidades de pesca: comercial, compreendendo as categorias
industrial e artesanal; de espécimes ornamentais; de subsistência e; amadora ou
desportiva.
Desta forma, verifica-se a existência de diversos órgãos competentes, assim como a evolução legislativa e normativa sobre o tema que, ao longo dos
anos, vem modificando conceitos referentes à pesca e às atribuições dos atores
envolvidos. Razão pela qual, faz-se necessário verificar claramente as competências de cada entidade, os gargalos e as lacunas normativos existentes.
3. COMPETÊNCIAS MATERIAIS: O MINISTÉRIO DA PESCA E SUAS ATRIBUIÇÕES
Conforme já disposto, o Ministério da Pesca foi criado pela Lei n° 11.958,
de 26 de junho de 2009, que altera a Lei n° 10.683/03, a partir da transformação
da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República em
Ministério da Pesca e Aqüicultura. Entre suas competências, têm-se (art. 27,
XXIV da Lei n° 10.683/03):
a) política nacional pesqueira e aquícola, abrangendo
produção, transporte, beneficiamento, transformação, comercialização, abastecimento e armazenagem;
b) fomento da produção pesqueira e aquícola;
c) implantação de infra-estrutura de apoio à produção, ao
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beneficiamento e à comercialização do pescado e de fomento à pesca e aqüicultura;
d) organização e manutenção do Registro Geral da Pesca;
e) sanidade pesqueira e aquícola;
f) normatização das atividades de aqüicultura e pesca;
g) fiscalização das atividades de aqüicultura e pesca no âmbito de suas atribuições e competências;
h) concessão de licenças, permissões e autorizações para
o exercício da aqüicultura e das seguintes modalidades de
pesca no território nacional, compreendendo as águas continentais e interiores e o mar territorial da Plataforma Continental, da Zona Econômica Exclusiva, áreas adjacentes e
águas internacionais, excluídas as Unidades de Conservação federais e sem prejuízo das licenças ambientais previstas na legislação vigente [...];
i) autorização do arrendamento de embarcações estrangeiras de pesca e de sua operação, observados os limites de
sustentabilidade estabelecidos em conjunto com o Ministério do Meio Ambiente;
j) operacionalização da concessão da subvenção econômica
ao preço do óleo diesel instituída pela Lei n° 9.445, de 14
de março de 1997;
l) pesquisa pesqueira e aquícola; e
m) fornecimento ao Ministério do Meio Ambiente dos
dados do Registro Geral da Pesca relativos às licenças,
permissões e autorizações concedidas para pesca e aqüicultura, para fins de registro automático dos beneficiários
no Cadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente
Poluidoras e Utilizadoras de Recursos Ambientais.
Apesar da transformação da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca
em Ministério, os dispositivos da Lei n° 10.683/03 que tratavam sobre a transferência de competências do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento para referida Secretaria foram mantidos:
Art. 32. São transferidas as competências:
[...]
VI - do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, relativas à aqüicultura e pesca, para a Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca;
Art. 33. São transferidos:
[...]
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III - o Departamento de Pesca e Aqüicultura, da Secretaria
de Apoio Rural e Cooperativismo do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento para a Secretaria Especial
de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República
O Ministério compreenderá, em sua estrutura organizacional, as Superintendências Federais de Pesca e Aqüicultura, unidades descentralizadas cuja
jurisdição limita-se a cada Estado da Federação e ao Distrito Federal, que possuem a competência de (art. 9° da Lei n° 11.958/09): fomento e desenvolvimento
da pesca e da aqüicultura (I); apoio à produção, ao beneficiamento e à comercialização
do pescado (II); sanidade pesqueira e aquícola (III); pesquisa e difusão de informações científicas e tecnológicas relativas à pesca e à aqüicultura (IV); assuntos
relacionados à infra-estrutura pesqueira e aquícola, ao cooperativismo e associativismo de pescadores e aqüiculturas e às Colônias e Federações Estaduais
de Pescadores (V); administração de recursos humanos e de serviços gerais
(VI); programação, acompanhamento e execução orçamentária e financeira dos
recursos alocados (VII); qualidade e produtividade dos serviços prestados aos
usuários e aperfeiçoamento da gestão da Superintendência (VIII).
O Conselho Nacional de Aquicultura e Pesca, por seu turno, possui a
competência de formular a política nacional de sua área, propondo diretrizes
para o desenvolvimento e fomento da produção; apreciar as diretrizes para o
desenvolvimento do plano de ação da pesca e aquicultura e propor medidas
destinadas a garantir a sustentabilidade da atividade, nos termos do art. 29, §7°
da Lei n° 10.683/03.
O § 4o do art. 27 da supracitada Lei dispõe ainda que a competência do
Ministério do Meio Ambiente para o zoneamento ecológico-econômico “[...]
será exercida em conjunto com os Ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; da Integração
Nacional; e da Pesca e Aquicultura”.
O MMA também deverá atuar em conjunto e sob a coordenação do MPA
nas temáticas relacionadas ao uso sustentável dos recursos pesqueiros (art. 27,
§ 6o da Lei n° 10.683/03), quais sejam: “fixar as normas, critérios, padrões e
medidas de ordenamento do uso sustentável dos recursos pesqueiros, com base
nos melhores dados científicos e existentes, na forma de regulamento” (I); e
“subsidiar, assessorar e participar, em interação com o Ministério das Relações
Exteriores, de negociações e eventos que envolvam o comprometimento de direitos e a interferência em interesses nacionais sobre a pesca e aqüicultura” (II).
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4. COMPETÊNCIAS
4.1. POLÍTICA NACIONAL
O MMA possui competência sobre a política nacional do meio ambiente
e dos recursos hídricos e a política de preservação, conservação e utilização
sustentável de ecossistemas, e biodiversidade e florestas, nos termos do art. 27,
XV, a e b da Lei nº 10.683/03. O Conselho Nacional de Pesca, do MPA, por seu
turno, tem competência sobre a política nacional pesqueira e aquícola, abrangendo produção, transporte, beneficiamento, transformação, comercialização,
abastecimento e armazenagem (Lei n° 11.958/09, art. 27, XXIV).
O primeiro conflito encontra-se na própria política, uma vez que os recursos pesqueiros integram diversos ecossistemas, possuindo diversidade específica e, em grande parte desconhecida (v.g. na bacia Amazônica, onde estimativas
mais conservadoras indicam cerca de 2000 espécies de peixes, enquanto outras
chegam a indicar até 5.000, para um universo descrito de algumas poucas centenas). Cabendo, dessa forma, aos dois Ministérios versarem sobre o assunto. A
duplicidade de regulamentação sobre um mesmo recurso natural, proveniente
de ministérios com orientações distintas pode ensejar problemas práticos, interferindo na distribuição das competências materiais.
As ações de execução das políticas fazem parte da esfera das autarquias
do MMA: IBAMA e Chico Mendes. No primeiro caso, as ações referem-se
“[...] às atribuições federais, relativas ao licenciamento ambiental, ao controle
da qualidade ambiental, à autorização de uso dos recursos naturais e à fiscalização, monitoramento e controle ambiental [...]” (Lei nº 7.735/89, art. 2°, II). O
Instituto Chico Mendes possui uma atribuição mais restrita, sendo competente
especificamente para executar ações em unidades de conservação instituídas
pela União (Lei nº 11.516/07, art. 1°, I), o que também está incluído nas atribuições genéricas do IBAMA.
4.2. NORMATIZAÇÃO
O Ministério da Pesca e Aqüicultura incorporou a competência da extinta
SUDEPE de normatizar as atividades de aqüicultura e pesca (Lei n° 10.683/03,
art. 27, XXIV, f – alterado pela Lei n° 11.958/09). No entanto, o Conselho Nacional do MMA é o único com poder verdadeiramente normativo. A legislação
também prevê que o MMA deverá atuar em conjunto e sob a coordenação do
MPA nas temáticas relacionadas ao uso sustentável dos recursos pesqueiros (art.
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27, § 6°, I), quais sejam: “fixar as normas, critérios, padrões e medidas de ordenamento do uso sustentável dos recursos pesqueiros, com base nos melhores dados científicos e existentes, na forma de regulamento”. Esta “parceria” forçada
tende a entravar a normatização em função das diferenças de orientação dos dois
ministérios: enquanto o MMA possui visão tradicionalmente conservacionista,
o MPA parece ter sido criado com uma orientação mais produtivista.
4.3. FISCALIZAÇÃO
A fiscalização das atividades de aqüicultura e pesca é competência do
MPA no âmbito de suas atribuições e competências (Lei n° 10.683/03, art. 27,
XXIV, g). Contudo o poder de polícia ambiental pertence ao IBAMA (Lei n°
7.735/89, art. 2°, I), excetuando a fiscalização nas unidades de conservação
instituídas pela União, onde passa ter um poder de polícia suplementar ao do
Instituto Chico Mendes (Lei nº 11.516/07, art. 1°, IV).
Na prática, este tipo de distribuição de atribuições provoca problemas
operacionais. Na região do Pantanal do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul,
quem fiscaliza a atividade de pesca esportiva são órgãos estaduais, que ignoram
se os pescadores portam licenças federais (expedidas até então pelo IBAMA),
exigindo apenas o porte das estaduais. Esta prática provoca evasão de divisas da
esfera federal para as estaduais.3
4.4. EDUCAÇÃO E PESQUISA
Cabe às Superintendências Federais de Pesca e Aqüicultura do MPA
a competência pela pesquisa pesqueira e aquícola (Lei n° 10.683/03, art. 27,
XXIV, l). Ao Instituto Chico Mendes, fomentar e executar programas de pesquisa, proteção, preservação e conservação da biodiversidade e de educação
ambiental (Lei nº 11.516/07, art. 1º, III).
A questão da promoção da educação ambiental era melhor explicitada na
legislação da extinta Secretaria Especial do Meio Ambiente (Dec. nº 73.030/73,
art. 4), cujas competências incluíam: promover, em todos os níveis, a formação
e treinamento de técnicos e especialistas em assuntos relativos à preservação do
meio ambiente; promover, intensamente, através de programas em escala nacio3
BERNADINO, Geraldo. Gestão de recursos pesqueiros. Manaus, Universidade do
Estado do Amazonas, 17 de abril de 2009.
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nal, o esclarecimento e a educação do povo brasileiro para o uso adequado dos
recursos naturais, tendo em vista a conservação do meio ambiente.
4.5. AÇÕES CONJUNTAS
Há ainda as previsões de parcerias entre o MMA e o MPA. O MMA também deverá atuar em conjunto e sob a coordenação do MPA nas temáticas relacionadas ao uso sustentável dos recursos pesqueiros (Lei n° 10.683/03, art. 27,
§6o, I), como, por exemplo, o estabelecimento de limites de sustentabilidade
para autorização de embarcações estrangeiras (art. 27, XXIV, i), conforme já
citado.
O MPA deve fornecer ao Ministério do Meio Ambiente os dados do
Registro Geral da Pesca relativos às licenças, permissões e autorizações concedidas para pesca e aqüicultura, para fins de registro automático dos beneficiários
no Cadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente Poluidoras e Utilizadoras de Recursos Ambientais (Lei n° 10.683/03, art. 27, XXIV, m).
O MMA também deve atuar em parceria com o Ministério das Relações
Exteriores para “subsidiar, assessorar e participar de negociações [...] e eventos
que envolvam o comprometimento de direitos e a interferência em interesses
nacionais sobre a pesca e aqüicultura” (Lei n° 10.683/03, art. 27, XXIV, §6°, II).
IBAMA deve executar as ações supletivas de competência da União, de conformidade com a legislação ambiental vigente.
CONCLUSÕES
Antes da criação da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca e, posteriormente, do Ministério da Pesca e Aqüicultura, a atividade pesqueira estava
ligada ao Ministério do Meio Ambiente, que possui visão mais conservacionista
(incentivando o manejo adequado e a utilização racional desses recursos). Após
o lançamento do Programa Fome Zero e o início das atividades da SEAP, a visão
passa a ser produtivista, com enfoque maior sobre a aqüicultura e insumos de
produção pesqueiros, principalmente sobre o fomento ao setor.
Com o Ministério da Pesca e Aqüicultura, a discussão em torno das competências toma maior relevância e especificidade, apesar da falta de clareza e
incertezas futuras, posto que o MPA encontra-se em fase de estruturação.
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Mesmo sabendo-se que a temática ambiental é única e que os recursos
pesqueiros não podem ser observados e compreendidos separadamente do meio
ambiente como um todo, as diversas previsões de ações conjuntas entre o MMA
e o MPA ou das previsões de competências ministeriais simultâneas geram
problemas práticos, como sobreposição de regras e/ou lacunas.
No momento, com o final recente do período de vacatio legis da norma
que criou o MPA, e início do seu processo de estruturação, resta aguardar pelas
articulações interministeriais, minimizando eventuais conflitos de competência
e atuação prática dos órgãos da administração pública.
REFERÊNCIAS
BERNADINO, G. Gestão de recursos pesqueiros. Manaus, Universidade do
Estado do Amazonas, 17 de abril de 2009. Entrevista concedida a Serguei Aily
Franco de Camargo.
BRASIL. Decreto nº 73.030, de 30 de outubro de 1973. Cria, no âmbito do
Ministério do Interior, a Secretaria Especial do Meio Ambiente - SEMA, e da
outras providências. Disponível em: http://www6.senado.gov.br/legislacao/
ListaPublicacoes.action?id=2025 56. Acessado em 20 de julho de 2009.
_____. Decreto-Lei n° 221, de 28 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre a proteção
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em Ministério da Pesca e Aqüicultura; cria cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores – DAS e Gratificações de Representação da
Presidência da República; e dá outras providências. Disponível em: http://www.
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Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L11959.htm. Acessado
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_____. Lei Delegada n° 10, de 11 de outubro de 1962. Cria a Superintendência
do Desenvolvimento da Pesca e dá outras providências. Disponível em: http://
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Artigo recebido em: 30/05/2010
Artigo aprovado para publicação em junho /2010.
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TERRAS INDÍGENAS NAS FAIXAS DE FRONTEIRA DA AMAZÔNIA BRASILEIRA: UMA BREVE
ANÁLISE DOS DISCURSOS CONTRÁRIOS AO SEU
RECONHECIMENTO
Alex Justus da Silveira *
Fernando Antonio de Carvalho Dantas **
Sumário: Introdução; 1.A proposital indiferença em relação aos povos indígenas no
Brasil; 2. Um breve panorama dos discursos contrários à demarcação de Terras Indígenas; 3. A ausência de compreensão das diferentes territorialidades indígenas; Conclusão;
Referências.
Resumo: O presente artigo tem como objeto de análise alguns dos discursos que tem
sido difundidos no sentido de questionar
o reconhecimento das terras indígenas na
faixa de fronteira da Amazônia brasileira,
sob o argumento de que essas representam
vazios demográficos e que, por isso, implicam num risco à segurança e à soberania
nacional. Este trabalho também trata, ainda
que de forma sucinta, sobre o histórico de
esquecimento e negligência em relação aos
povos indígenas brasileiros, que refletiu diretamente na formação de um inconsciente
coletivo fortemente marcado pela marginalização do índio na sociedade nacional, de
forma a velar a importância deste povo à
memória da sociedade Brasileira.
Abstract: The current article aims to
analyse the speeches that has been spread
with the objective to question the recognition of indigenous territories in the borderline zone in Brazilian Amazon, under
the argument that this territories has very
reduced demographic density, which represents a risk to sovereignty and national
safety. Moreover, the article still propose
to point out the historic of forgetness and
negligence about the indigenous people in
Brazil, wich reflected directly to create an
inconscient collective at the national society in sense of hide the importance of indigenous people in the Brasilian memory.
Palavras-chave: direito indigenista, di- Key-words: indigenous law, indigenous
reito territorial indígena, Estado Nacional, territory, National State, border zone.
fronteiras nacionais,
* Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA.
**Doutor em Direito e Professor do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental
da Universidade do Estado do Amazonas-UEA.
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INTRODUÇÃO
Os processos de reconhecimento de terras indígenas nas faixas de fronteira do território brasileiro vêm suscitando inúmeros debates nos ambientes
político, social, econômico, ambiental e jurídico. Discursos alarmistas, como os
que propagam a idéia de que as terras indígenas constituem vazios demográficos, ou então, que as extensões territoriais indígenas são muito vastas proporcionalmente ao número de indígenas, tratam o reconhecimento das terras indígenas
em faixas de fronteira como ameaça à segurança e à soberania nacional.
A grande questão é que tais fundamentos vêm sendo incorporado por vários segmentos da sociedade brasileira, e o mais importante, estão sendo tratados
como verdades absolutas, de maneira a desconsiderar qualquer versão contrária
e de forma a incitar demais atores sociais a se posicionarem como antagonistas
aos interesses e direitos indígenas.
A difusão de discursos que questionam a necessidade de grandes extensões de terras aos indígenas, ou então, o argumento de que a demarcação de
Terras Indígenas significa a ausência do Estado brasileiro e a possibilidade de
atuação estrangeira nessas regiões, é constituído por argumentos preconceituosos, desconhecedores da legislação em vigor e repleto de interesses obscuros
com objetivos bem definidos.
A idéia que a sociedade tem sobre os povos indígenas é de que o índio
já deixou de existir, e o que resta são meros descendentes ou remanescentes de
índios que um dia habitaram idilicamente as terras que hoje compõem o Brasil.
A própria educação que o Estado e as instituições de ensino particular oferecem
reforça a imagem dos índios apenas como personagem coadjuvante da história
do Brasil.
O que se pretende com este artigo é demonstrar que alguns discursos
que tem se difundido no cenário nacional omitem o verdadeiro sentido de sua
existência. Alguns segmentos sociais tem se apropriado de discursos diversos a
fim de legitimar interesses obscuros que muitas vezes passam despercebidos aos
olhos dos menos atentos.
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1. A PROPOSITAL INDIFERENÇA EM RELAÇÃO AOS POVOS INDÍGENAS
NO BRASIL
Na história econômica brasileira, João Pacheco de Oliveira Filho lembra
que o índio é constantemente apontado como um óbice ao desenvolvimento da
colônia, depois do Império, e por fim, um obstáculo à evolução econômica do
Estado brasileiro. O índio só é retratado na historiografia econômica do Brasil no período das drogas do sertão, “certamente pelas suas características de
nomadismo e rusticidade de que estava investida tal atividade.” (OLIVEIRA
FILHO, 1999, 197)
Outro exemplo do descaso em relação à figura do índio se deu no ciclo
da borracha, período no qual o índio é mencionado apenas por sua ferocidade
e agressividade; esquece-se, entretanto, de sua importância no trato com a seringa, no conhecimento da floresta, na arte da caça e da pesca, e ignoram-se os
milhares de indígenas que trabalhavam sob um cruel e indigno trabalho escravo
regido pelo sistema de aviamento característico dos seringais da Amazônia.
Esta idéia preconceituosa e simplista sobre os povos indígenas brasileiros,
na visão de Benedito do Espírito Santo Pena Maciel, ainda persiste no imaginário
de grande parte da sociedade brasileira. A memória escrita pelos “vencedores” e
difundidas por meio dos livros de ensino primário e secundário “se transforma
em ideologia e mostra seu poder de dominação e destruição da memória indígena”. (MACIEL, 2006, 195)
É neste contexto de destruição e menosprezo da memória indígena na historiografia de construção do Brasil, que se esquece da importância que os grupos
indígenas tiveram na consolidação das fronteiras brasileiras atuais. A expansão
das fronteiras da colônia portuguesa contou com a contribuição dos bandeirantes paulistas e dos sertanistas da Amazônia, no sentido de garantir um espaço à
Coroa portuguesa que não era previsto no Tratado de Tordesilhas anteriormente
firmado, na medida em que essas áreas que vinham sendo ocupadas pelos portugueses estavam fora das linhas traçadas pelo pacto tordesilhano.
A fronteira fora empurrada sem cessar e sem quase incidente, em direção oeste, sobre as posições espanholas.
Aplaudindo a marcha serena e segura, o governo de Lisboa
estabeleceu novas entidades administrativas nesses sertões,
desbravados pela energia e pelo espírito aventureiro de seus
homens da América. Vilas, cidades, comarcas, paróquias,
bispados tinham sido criados. O povoamento e a exploraHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009
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ção da terra pelo trabalho agrário, pela criação de gado,
pela exploração do subsolo, pela coleta da matéria prima
ativa eram uma realidade incontestável. (REIS, 1947, 47)
Como o Tratado de Tordesilhas não teve eficácia no seu cumprimento,
iniciou-se a partir de 1730 novas negociações, que culminou com a assinatura
do Tratado de Madri, em 1750. O Tratado de Madri também não surtiu o efeito
esperado, no entanto, sua importância para a consolidação das fronteiras lusitana é de grande relevância, na medida que inseriu nos cenários de discussão
sobre fronteiras, o princípio do uti possidetis, que em linhas gerais, garantia o
direito de propriedade àquele que estivesse ocupando efetivamente o território.
(GOES FILHO, 1999)
A partir deste momento, Portugal se dá conta da importância e das vantagens que teria no caso de sustentar o conceito de fronteira que tivesse como
característica fundamental a presença antrópica de seus “aliados” e passa a sustentar esta definição. O Império lusitano, neste momento, tomou “consciência
da importância dos índios amazônicos como seus partidários e também como
mão-de-obra indispensável, principalmente nos serviços de coleta de drogas do
sertão, na caça e na pesca.” (TORRES, 2006, 129)
Neste período, a Metrópole passa a dar uma importância enorme aos indígenas, sobretudo na região amazônica, incentivando
a ocupação de pontos estratégicos, a organização de núcleos de povoamento com a própria gentilidade, o estabelecimento da ordem política, com equipamento administrativo representado pelas autoridades civis e militares, o
amansamento e incorporação, à cristandade e à soberania
lusa, das multidões gentias, pela ação direta e oficial dos
missionários a serviço do Estado, a experiência agrária,
a distribuição das sesmarias aos colonos que foram chegando, a miscigenação intensiva que aos poucos criou novos tipos sociais suficientemente integrados na região, os
muitos outros aspectos de atividade que dão fundamento
às empresas coloniais e ao estabelecimento dos domínios
e constituíram elementos impressivos no empreendimento
lusitano no vale. (REIS, 1947, 48-49)
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Apreende-se que uma das estratégias de ocupação da Amazônia sempre
levou em consideração a presença indígena no sentido de fortalecer os núcleos
de povoamento português na região. O índio, portanto, era considerado elemento essencial para a consolidação da hegemonia portuguesa na região Amazônica.
Anos mais tarde, verificar-se-á que a definição das fronteiras levou em consideração a posse dos seus colonos numa dada região, fato este que não se
concretizaria sem a presença do índio para fortalecer os núcleos de povoamento
na Amazônia.
Mesmo diante de fatos historicamente comprovados, na memória coletiva
do povo brasileiro não indígena, pouco se sabe da importância destes povos
para a constituição do território brasileiro atual. Verifica-se por meio de estudos
historiográficos, que as autoridades portuguesas dos séculos XVIII, XIX, e XX
se legitimaram do discurso de ocupação portuguesa na região a fim de obter as
vantagens que posteriormente foram consagradas nos Tratados de Madri e de
Utrecht. Não se pode esquecer que essa ocupação se deu na forma de núcleos de
povoamento que Portugal afirmava ter consolidado, legitimando-se, portanto,
do uti possidetis para garantir seu direito de domínio de vastas regiões. O que se
esquece de trazer à tona é o fato de que o povoamento destes núcleos “portugueses” era constituído predominantemente por indígenas.
Sobre essa memória coletiva, é de suma importância apreendermos que
ela “pode ser manipulada e dominada pelo estado e pela sociedade majoritária,
que através de vários mecanismos (religião, escola, imprensa, arte etc) pode
decidir o que é importante lembrar e o que deve ser esquecido ou silenciado”.
(MACIEL, 2006, 213)
Pode-se dizer que esta estratégia de invizibilização dos povos indígenas
brasileiros e de negligência da sua importância histórica se deu em razão da
pretensa formação de uma unidade étnica idealizada primeiramente pela Metrópole e posteriormente pelo Estado Moderno. Esta imagem que pretendia ser
mostrada aos demais Estados impunha o ideal imaginário de um único povo,
cuja coesão fortaleceria e consolidaria a nação brasileira, na qual os povos indígenas deveriam estar inseridos.
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2. UM BREVE PANORAMA DOS DISCURSOS CONTRÁRIOS À DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS
Na atualidade, grande parte dos argumentos que têm sido utilizados contra os interesses e direitos indígenas e que tem se difundido nos mais variados
meios de comunicação, constituem-se em discursos falaciosos e tendenciosos,
que negam a existência de práticas sociais constitutivas de formas diferenciadas de organização social, de usos e costumes diferentes dos da sociedade majoritária brasileira, e que escondem a obscura relação de poder cujo objetivo é
velado.
Difunde-se a idéia de que nas terras indígenas situadas na faixa de fronteira brasileira existe uma maior atuação de organizações internacionais do que
da própria máquina do Estado. Alega-se, também, que os índios terão autonomia
plena nas terras indígenas, o que pode torná-las em Estados Indígenas autônomos e independentes.
Esses discursos vêm sendo usados no sentido de rever, flexibilizar e até
mesmo limitar alguns dos direitos territoriais indígenas; e isso está refletido na
própria decisão da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cujo acórdão impôs uma
série de limitações aos direitos constitucionais indígenas. As terras indígenas
situadas nas faixas de fronteira brasileira são um exemplo nítido das forças exercidas por alguns segmentos da sociedade brasileira que objetivam uma revisão ou
até mesmo, uma reelaboração dos direitos territoriais indígenas.
Propaga-se a idéia de que as Terras Indígenas constituem uma grave
ameaça à soberania e à segurança nacional, e alega-se, neste contexto, que o
reconhecimento de direitos territoriais indígenas é somente um subterfúgio das
grandes potências para promover a internacionalização da Amazônia. João Pacheco de Oliveira Filho ainda lembra que neste momento delicado de fortalecimento de argumentos, resgatam-se antigas teorias que conjuram a possibilidade
da existência de “enclaves étnicos” e “quistos culturais” para a promoção da tão
almejada unidade nacional. (OLIVEIRA FILHO, 1999)
Francisco de Oliveira nos lembra que o receio ante a cobiça internacional
sobre a Amazônia data de meados do século XIX, quando em 1853 propôsse a abertura do Amazonas à navegação internacional. Essa proposição estaria
baseada no pouco aproveitamento produtivo da região, e com isso, havia a necessidade de “tornar a fronteira amazônica uma fronteira viva, isto é, dinâmica,
produtiva. (OLIVEIRA, 1994, 04)
Tendo como base antigas teses que defendiam a relativização da soberania na Amazônia, como a mencionada por Francisco de Oliveira, foi no período
militar que o Estado brasileiro implementou uma urgente política de desenvolvi146
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mento e de integração da região Amazônica, a fim de evitar possíveis intervenções internacionais numa região onde o Estado não estivera presente. A política
de abertura de estradas e de incentivo à ocupação da região foi muito constante
neste período, cuja concepção sobre a região estava pautada na política do “integrar para não entregar"1.
A síntese da “intervenção” pode ser resumida em tamponar
fronteiras, vulneráveis tanto pela sua rarefação demográfica quanto por estarem habitadas por indígenas, menores
de idade, definidos assim pela própria Constituição e pela
longa prática da relação entre “civilizados” e as nações indígenas, prática e teoria às quais não faltava a legitimidade
“científica” de uma antropologia tradicional que considerava os índios como faltos de história, portanto sem passado,
sem presente e sem futuro. (OLIVEIRA,1994, 05)
Foi neste contexto que o Estado brasileiro iniciou ações combinadas de
diplomacia e militarização no sentido de “tamponar as fronteiras” da região
amazônica. O Pacto Amazônico2, do qual o Projeto Calha Norte3 é um desdo1
O lema ‘integrar para não entregar’ apareceu primeiro no Projeto Rondon. Que tratava
de substituir o trabalho dos ‘missionários’ pelo trabalho dos técnicos: ofereceu-se a
milhares de universitários a oportunidade de prestar diversos serviços nas comunidades
pobres do interior do Brasil. (OLIVEIRA; 1994: 06)
2
O Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) foi celebrado em Brasília, no dia 3 de
julho de 1978, pelos oito países amazônicos (Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela). Trata-se de um instrumento jurídico de natureza técnica que tem por objetivo promover o desenvolvimento harmonioso e integrado da bacia
amazônica, de maneira a permitir a elevação do nível de vida dos povos daqueles países,
a plena integração da região amazônica às suas respectivas economias nacionais, a troca
de experiências quanto ao desenvolvimento regional e o crescimento econômico com
preservação do meio-ambiente.
3
O Programa Calha Norte (PCN) tem como objetivo principal contribuir com a manutenção da soberania na Amazônia e contribuir com a promoção do seu desenvolvimento ordenado. Foi criado em 1985 pelo Governo Federal e atualmente é subordinado ao Ministério da Defesa. Visa aumentar a presença do poder público na sua área
de atuação e contribuir para a Defesa Nacional. Na sua etapa de implementação, o Projeto tinha sua atuação limitada, prioritariamente na área de fronteira; hoje o programa
foi expandido e, visando proporcionar a vigilância da fronteira, proteção e assistências
às populações, as ações do Programa pretendem fixar o homem na região amazônica.
Extraído da página eletrônica: https://www.defesa.gov.br/programa_calha_norte/index.
php Acesso em 21/06/09, às 15h33min. .
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bramento, foi uma das estratégias utilizadas no sentido de mitigar o receio ante a
cobiça internacional. A abertura de estradas também foi uma política estratégica
adotada pelo Governo brasileiro porque julgava condição indispensável para o
controle das fronteiras nacionais.
Nesta época, a recusa na demarcação de terras indígenas se constituiu na
política de fronteiras adotada pelo Governo Militar, que já enfrentava combativamente a idéia de haver uma supranacionalidade dos povos indígenas nas suas
respectivas terras. Francisco de Oliveira, em análise sobre este momento vivido
no período militar e na região amazônica, assinala que
a “síndrome ianomâmi” denuncia precisamente o medo à
supranacionalidade desta e de outras nações indígenas. O
reconhecimento da supranacionalidade indígena teria como
conseqüência pôr em xeque o Estado-Nação brasileiro e os
mais da Grande Amazônia. (OLIVEIRA, 1994, 05)
Apreende-se que no regime militar houve uma preocupação intensa com
uma definição geopolítica que convergisse com a segurança nacional, razão pela
qual tanto se priorizou a construção de infra-estrutura que interagisse as fronteiras nacionais com as demais regiões do país.
Segundo Francisco de Oliveira, quando a idéia do governo militar incentivou as frentes de expansão para a região amazônica, oferecendo infra-estrutura, incentivos fiscais e apoio aos Grandes Projetos para a fixação do homem
nessa região, olvidava-se que
a Amazônia não era uma “terra sem homens para homens
sem terra”, mas sim uma região habitada por índios, posseiros e seringueiros, atravessada por conflitos fundiários
que se agravaram depois da construção das estradas, dos
Grandes Projetos e dos incentivos fiscais. (OLIVEIRA,
1994, 08)
Com isso, os problemas fundiários na Amazônia pioraram ainda mais,
pois as terras que julgavam inabitadas eram ocupadas por povos indígenas e
outros povos tradicionais. De acordo com Francisco de Oliveira, isso gerou
grandes conflitos na região, pois essas terras que acreditavam estar vazias eram
ocupadas por não-gente, e que segundo os critérios do branco, não tinham capacidade cultural para cuidar das vastas riquezas da região. (OLIVEIRA, 1994)
Este controle estratégico-político exercido pelo Estado ainda hoje tem
dificuldade, ou até mesmo, não tem interesse no reconhecimento de territórios
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sociais dos povos tradicionais como parte da problemática fundiária brasileira.
Com isso, muitas das terras indígenas têm seu reconhecimento sido questionado
em face de interesses antagonistas que representam os mais variados interesses,
dentre esses, o interesse econômico.
Os interesses sobre as terras indígenas são tão escusos e os mais variados possíveis que se chega a construir discursos que afirmam que os índios
constituem parcela privilegiada da população rural brasileira, e que esse privilégio se dá em função dos povos indígenas deterem grandes extensões territoriais,
as quais tem sido exploradas de forma predatória e de onde obtém grandes lucros “(seriam então ‘índios ricos’ e também virtualmente ‘antiecológicos’, pois
seriam predadores do meio ambiente’)”. (OLIVEIRA FILHO, 1999, 206)
Observa-se, desse modo, que a busca por discursos com conteúdo de
abrangência diversificado tem sido apropriado por atores sociais que almejam
legitimar interesses setoriais. Faz- se um apelo à exploração predatória das terras indígenas por ter consciência que o campo dos conflitos ambientais - intrínseco à problemática de escassez de recursos - pode ser utilizado para persuadir grande parcela da sociedade brasileira a se voltar contra os interesses e
direitos indígenas. E isso como forma de legitimar o acesso às terras indígenas
e, portanto, ao acesso de recursos do meio material, utilizando-se de argumentos
que simbolizem o equilíbrio ambiental, a qualidade de vida, o bem comum e a
resolução do problema da fome no mundo.
Isso dá uma idéia do quanto tais discursos são ameaçadores aos direitos
territoriais indígenas, pois as estratégias veladas de sua real intenção podem
trazer à discussão propostas que venham a comprometer e a relativizar os direitos dos povos indígenas. Discursos como este, no entanto, não são difíceis
de serem desconstruídos, na medida em que as terras indígenas são as maiores
áreas de preservação e conservação da natureza, superando até mesmo as Unidades de Conservação de Proteção Integral no que concerne o grau de eficácia
na preservação e conservação dos recursos naturais.
Na Cartilha denominada ‘Povos e Terras Indígenas e seu papel na conservação da Floresta Amazônica’, elaborada em conjunto pela Coordenação das
Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB -, Fundação Vitória
Amazônica – FVA -, e pelo Instituto de Conservação Ambiental The Nature
Conservancy do Brasil, constatou por meio da análise de imagens de satélite
que:
O desmatamento no entorno das Terras Indígenas é muito
maior do que dentro delas. O estudo constatou que em uma
faixa de 10 quilômetros ao redor destas Terras, o nível de
desmatamento é quase 10 vezes maior que no seu interior.
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Em Rondônia, como já foi falado, as áreas desmatadas dentro das Terras Indígenas são um pouco maiores que 3%. No
entorno destas mesmas Terras, os índices aumentam quase
dez vezes! No Maranhão, enquanto o desmatamento dentro das Terras Indígenas atinge cerca de 25%, no entorno
essa porcentagem chega 60% de desmatamento. No Pará,
o desmatamento no entorno chega a quase 25% e as taxas
de desmatamento para o interior das áreas analisadas são de
11%. No Mato Grosso estes índices são bem parecidos com
os encontrados no Pará. Esses dados mostram que, mesmo
nos Estados com maiores índices de desmatamento dentro
das Terras Indígenas, os valores verificados ainda são muito menores do que os encontrados no entorno das Terras
Indígenas. (POHL; POHL; BORGES; VENTICINQUE;
DURIGAN; BATISTA; SZTUTMAN & FLORES, 2009,
07)
Apoiando-se num forte controle da mídia, os antagonistas dos interesses
indígenas apresentam esta parcela da população brasileira como um obstáculo
à consolidação da soberania nacional e até mesmo à proteção ambiental, como
já analisado. Tratam-se de justificativas caluniosas que incitam cada vez mais a
sociedade brasileira contra os povos indígenas.
Essas afirmações consistem e refletem uma relação de poder que está em
jogo, em interesses cujos meios obscuros para atingir os fins idealizados não
se preocupam em reiterar um discurso antigo e preconceituoso sobre os povos
indígenas. João Pacheco de Oliveira Filho afirma que os argumentos contrários
aos interesses indígenas simbolizam a “tentativa de construção de um ‘bode expiatório’ para o distorcido panorama agrário obrigatório”. (OLIVEIRA FILHO,
1999, 206)
O presente artigo tem como objetivo trazer à reflexão do leitor a
problemática do discurso que difunde as terras indígenas em faixas de
fronteira como fator de insegurança e de risco à soberania nacional. Será
que realmente as Terras Indígenas constituem um risco à soberania nacional ou
os discursos que tem sido proferido neste sentido ocultam interesses escusos de
alguns segmentos sociais?
Esse questionamento vem se refletindo nas atuais discussões sobre terras
indígenas em faixas de fronteira, o que demonstra uma forte tensão relativa ao
reconhecimento jurídico da categoria jurídica “terra indígena”. O argumento
utilizado para contestar o dispositivo constitucional que atesta o reconhecimento das terras tradicionalmente ocupadas através da territorialidade específica de
cada grupo indígena, é que as terras indígenas em faixas de fronteira represen150
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tam um risco à soberania nacional.
Esse risco se daria em função da livre atuação de Organizações Internacionais Não-Governamentais, o perigo de extensões tão grandes de terra possuir
tão baixa ocupação, o receio de que os povos que habitam estas terras sejam
influenciados internacionalmente a buscar autonomia e independência organizacional, e o fato de se tratar de áreas estratégicas para conter a ação “inimiga”.4
Ora, caso o discurso contrário à demarcação de terras indígenas em faixas
de fronteira seja realmente a atuação estrangeira nessas áreas sem a devida autorização do Poder Público, deve-se ter em mente que o problema não são os
índios e tampouco suas terras, e sim, a omissão do Estado no que se refere às
políticas de segurança nacional.
Muitos comentários sobre a impossibilidade das Forças Armadas e Polícia Federal ingressarem nas terras indígenas para poder realizar o trabalho de
fiscalização das fronteiras nacionais, ou então, dos indígenas não permitirem a
entrada de brasileiros em suas terras, admitindo, porém, a presença estrangeira
- que lhes pagam bons frutos -, tem-se difundido nos mais variados meios de
comunicação.
Trata-se de um discurso equivocado, na medida existir um Decreto datado
de 07 de outubro de 2002, que trata especificamente sobre a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal nas terras indígenas e, sobretudo, nas terras
indígenas situadas nas faixas de fronteira nacional. Esse Decreto, de número
4412/02, estabelece que no exercício das atribuições constitucionais e legais das
Forças Armadas e da Polícia Federal nas terras indígenas, estão compreendidas
as seguintes atividades:
4
Em matéria publicada no jornal “Estadão”, veiculado em sua maior parte no Estado
de São Paulo, o jornalista José Maria Tomazela escreveu sobre a defesa nacional por
meio de suas fronteiras: “Dos 25 mil homens de que o Exército dispõe para defender a
Amazônia de ameaças que vão do tráfico de drogas à cobiça internacional pelas nossas
riquezas naturais, apenas 240 vigiam mais de 2 mil quilômetros de fronteira com as
Guianas e o Suriname, na chamada Amazônia oriental. Destes, um contingente de 17
soldados tem a missão de proteger uma faixa de 1.385 quilômetros de fronteira seca no
extremo norte do Pará. Se fossem distribuídos nesse território, caberia a cada homem
a vigilância sobre 12.150 quilômetros quadrados, dez vezes a área da cidade do Rio
de Janeiro. Informação obtida através do site http://www.estadao.com.br/nacional/not_
nac159692,0.htm em 21/05/2008.
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Art. 1° [...]
I)
A liberdade de trânsito e acesso, por via aquática,
aérea ou terrestres, de militares e policiais para a realização
de deslocamentos, estacionamentos, patrulhamento, policiamento e demais operações ou atividades relacionadas à
segurança e integridade do território nacional, à garantia da
lei e da ordem e à segurança pública;
II)
A instalação e manutenção de unidades militares
e policiais, de equipamentos para fiscalização e apoio à
navegação aérea e marítima, bem como das vias de acesso
e demais medidas de infra-estrutura e logística necessárias;
III)
A implantação de programas e projetos de controle
e proteção da fronteira.
Apreende-se que a legislação infra-constitucional, prevê expressamente a
liberdade de trânsito, patrulhamento, policiamento, instalação e manutenção de
unidades militares e policiais. Prevê, também, a construção de vias de acesso e
demais medidas de infra-estrutura e logística necessária às Forças Armadas e à
Polícia Federal nessas terras, além de possibilitar implantação de programas e
projetos de controle e proteção da fronteira.
O Decreto retrata a falácia do discurso que se difunde no sentido de orientar a sociedade brasileira a acreditar que as terras indígenas constituem fator
impeditivo do Estado brasileiro ingressar nessas áreas e exercer a fiscalização
que julgar conveniente, o que representaria um risco à segurança e à soberania
nacional.
Esses discursos omitem o fato de que cabe ao Poder Público assegurar a
defesa nacional, e o reconhecimento de terras indígenas em faixas de fronteira
não impedem o pleno exercício do dever constitucional das Forças Armadas de
manter a integridade e a soberania nacional, sobretudo nessas regiões.
As estratégias discursivas e persuasivas demonstram o quanto a situação
é conflituosa. Os interesses dos mais diversos segmentos sociais estão em jogo,
e as terras indígenas, pode-se afirmar, estão no epicentro deste terremoto, onde
a justificativa para deslegitimar terras indígenas tem sido constantemente reforçadas por atores sociais que são porta-voz de “discursos competentes” capazes
de influenciar e mobilizar a sociedade de forma contrária aos interesses e aos
direitos indígenas.
Por discurso competente, Marilena Chauí entende tratar-se de um instrumento de dominação no mundo contemporâneo, por meio do qual
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a linguagem sofre uma restrição que poderia ser assim
resumida: não é qualquer um que pode dizer a qualquer
outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância. O discurso competente confunde-se, pois, com
a linguagem institucionalmente permitida ou autorizada,
isto é, com um discurso no qual os interlocutores já foram
previamente reconhecidos como tendo o direito de falar e
ouvir, no qual os lugares e as circunstâncias já foram predeterminados para que seja permitido falar e ouvir e, enfim,
no qual o conteúdo e a forma já foram autorizados segundo
os cânones da esfera de sua própria competência. (CHAUÍ,
2000, 07)
Pode-se afirmar que muitos desses discursos estão institucionalmente autorizados e munidos de um conteúdo nacionalista, na medida em que vários são
os meios de comunicação que anunciam essas falas no intuito de re-legitimar
a teoria integracionista sobre os povos indígenas. Trata-se de um discurso que
historicamente proclamou e ainda persiste em aclamar a idéia da integração/assimilação dos índios na sociedade nacional.
Esta é apenas uma das formas pela qual os discursos são acionados no
sentido de justificar os objetivos desejados. Neste contexto, “não são decisivas
nestes embates a ‘veracidade’ ou a capacidade de ‘atestação’ científica dos argumentos, mas as estratégias discursivas de persuasão enquanto a tornar gerais
objetivos determinados.” (ACSELRAD, 2004, 20)
Percebe-se que em algumas problemáticas indígenas, sobretudo nas
questões fundiárias, o discurso nacionalista e discriminatório é bastante invocado, fazendo referência ao índio como um ser aculturado, que não comunga a
cultura do não índio e que ao mesmo tempo não manteve ou mantém seus antigos usos, costumes e tradições, isto é, sua “antiga” cultura - como se essa fosse
algo estático no tempo e no espaço.
3. A AUSÊNCIA DE COMPREENSÃO DAS DIFERENTES TERRITORIALIDADES INDÍGENAS
A política integracionista que vigorou no Brasil até o advento da Constituição Federal de 1988, não logrou êxito completo nos cinco séculos de contato
com esses povos, esbulho de suas terras e escravidão. Esta mesma política gerou
um estigma de inferioridade aos índios, que não eram considerados integrados/
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assimilados, e tampouco considerados índios, uma vez que o sincretismo cultural – como ocorre em toda e qualquer sociedade - foi intenso devido a proximidade e influência com o não indígena.
Nesse contexto, Carlos Frederico Marés de Souza Filho afirma que até o
presente momento a diversidade cultural dos povos indígenas brasileiros ainda
não foi compreendida. “O próprio termo índio, genérico, insinua que todos estes
povos são iguais. O senso comum acha que todos têm uma mesma cultura, língua, religião, hábitos e relações jurídicas civis e de família.” (SOUZA FILHO,
2006, 38)
A falta de compreensão dos modos de criar, fazer e viver dos grupos indígenas brasileiros acaba por resultar na incompreensão da sociedade nacional no que se refere à demarcação das terras indígenas. Cada grupo possui sua
territorialidade específica, na medida em que a apropriação cultural do mundo
material é única de grupo para grupo. A própria demarcação das terras indígenas
é interpretada por muitos grupos indígenas como um fator de limitação de sua
liberdade, já que muitos povos indígenas tem como característica o nomadismo.
A idéia de negação ao direito territorial indígena, representada por meio
de “discursos competentes” contrários a demarcação de terras indígenas nas
faixas de fronteira, de maneira contínua e em grandes parcelas territoriais, induz
a sociedade a questionar o por que certas terras indígenas são tão grandes comparadas com outras que são tão pequenas. Por que essa discrepância?
Existem algumas comparações que são veiculadas nos meios de comunicação que são dignas de menção, como por exemplo: a Terra Indígena Yanomâmi equivale a um país europeu, ou então, mais de 40% do Estado de Roraima
é terra indígena. Essas informações induzem a população a se questionar realmente da necessidade de demarcações tão grande de terras, uma vez que o senso
comum de grande parte da população brasileira desconhece as peculiaridades
dos diversos grupos indígenas brasileiros.
A ilusão de que as terras indígenas são muito vastas e que seriam muito
maiores do que o necessário para a reprodução física, social e cultural dos povos
indígenas, não procede, ao passo que a forma de ocupação e o nível tecnológico utilizado nessas terras não são os mesmos empregados nas áreas ocupadas
por não indígenas, portanto, jamais se poderá ter como padrão comparativo os
paradigmas etnocêntricos da sociedade urbano-industrial ou até mesmo do
campesinato brasileiro.
Essas afirmações, que em geral são proferidas por autoridades governamentais e atores sociais que detêm grande poder econômico ou prestígio político, conferem uma parcela de “legitimidade” a um discurso que para prevalecer
depende da aceitação dos sujeitos sociais e políticos. Esses sujeitos, por sua
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vez, muitas vezes acabam por apreender esses discursos como imparciais e neutros, razão pela qual “não é paradoxal nem contraditório em um mundo como
o nosso, que cultua patologicamente a cientificidade, surgirem interdições ao
discurso científico”. (CHAUÍ, 1997, 07)
Apreende-se, com isso, que a difusão de discursos preconceituosos,
alarmistas e eivado de interesses obscuros de relação de poder sobre as questões
territoriais indígenas, tem sido analisado sem o devido estudo científico, omitindo, dessa forma, o alcance objetivo destes discursos.
CONCLUSÃO
Discursos preconceituosos e alarmistas tem se fortalecido num cenário
de especulação econômica onde as terras indígenas são tidas como óbices ao
desenvolvimento do Estado e fatores impeditivos para o progresso da nação,
cuja característica precípua é a homogeneidade. Aqui reside o perigo de um
discurso que se utiliza de uma unidade inexistente, que é a nação brasileira, para
contrapor e fortalecer argumentos que são contrários aos direitos territoriais indígenas arduamente reconhecidos.
Verifica-se que alguns atores sociais tem procurado se apropriar de discursos que tem uma conotação nacionalista - como é o argumento de risco à
soberania nacional - para que a sociedade nacional se mobilize em prol do interesse desses atores, a fim de que unidos e mobilizados socialmente, passem
a idealizar a relativização dos direitos territoriais indígenas estabelecidos pela
Constituição Federal de 1988.
As terras indígenas situadas nas faixas de fronteira são as que tem sido
mais frequentemente questionadas, sob o argumento de que vastas extensões
territoriais nessas áreas colocam em risco à segurança e à soberania nacional.
Nesta mesma perspectiva, afirma-se que essas áreas em faixas de fronteira estão
suscetíveis à intervenção estrangeira. Esquece-se, entretanto, que nos casos de
interferência estrangeira nesses locais, pressupõe-se a ausência, a omissão do
Estado, e não a culpa dos povos indígenas, cujo conceito de território é distinto
da lógica instituída pelo Estado Moderno.
O inconsciente coletivo de grande parte do povo brasileiro carrega uma
herança negativa acerca dos povos indígenas. Desconhece-se o fato de que as
territorialidades indígenas transcendem as fronteiras políticas instituídas pelos
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Estados modernos, da mesma forma que se negligencia a importância desses
povos na consolidação das atuais fronteiras do Estado brasileiro. O fato é que
muitos discursos tem se difundido no sentido de relativizar os direitos originários
dos índios sobre suas terras tradicionalmente ocupadas, e isso em detrimento de interesses bastante variados, dentre eles e o mais importante: o interesse econômico. Com isso, verifica-se a necessidade de mais estudos a respeito do tema, na
medida em que ainda são muito incipientes os debates e as reflexões críticas a
respeito do assunto.
REFERÊNCIAS
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Conflitos ambientais no Brasil. Org.: Henri Acselrad. Rio de Janeiro: Relume
Dumará. 2004.
CHAUÍ, M. S. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 7°
Ed. . São Paulo: Cortez, 1997.
GOES FILHO, S. S. Navegantes, bandeirantes, diplomatas: um ensaio sobre a
formação das fronteiras do Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
MACIEL, B. E. S. P. Entre os rios da memória: história e resistência dos Cambeba na Amazônia brasileira. In: Rastros da Memória: histórias e trajetórias
das populações indígenas na Amazônia. Orgs.: Patrícia Sampaio e Regina de
Carvalho Erthal. Manaus: EDUA, 2006.
OLIVEIRA, F. A reconquista da Amazônia. Novos Estudos. N° 38. São Paulo:
CEBRAP, 1994.
OLIVEIRA FILHO, J. P. Ensaios de Antropologia histórica. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 1999.
POHL, L.; POHL, L.; BORGES, S. H.; VENTICINQUE, E.; DURIGAN, C.
C.; BATISTA, F. A.; SZTUTMAN, M. & FLORES, L. Povos e terras indígenas
e seu papel na conservação da floresta amazônica. Cartilha; Manaus: COIAB,
2009.
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REIS, A. C. F. Limites e Demarcações na Amazônia brasileira. 1° Tomo. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1947.
TORRES, S. M. S. Definindo fronteiras lusas na Amazônia colonial: O Tratado
de Santo Ildefondo (1777-1790). In: Rastros da memória: histórias e trajetórias
das populações indígenas na Amazônia. Org.: Patrícia Sampaio Melo; Regina
de Carvalho Erthal. Manaus: EDUA, 2006.
Artigo recebido em: 01/06/2010
Artigo aprovado para publicação em junho /2010.
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A FARRA DO BOI E A QUESTÃO DO BALANCEAMENTO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
Denison Melo de Aguiar*
Serguei Aily Franco de Camargo **
Sumário: Introdução; 1. A farra do Boi 2. Da decisão do Supremo Tribunal Federal; 3.
Do Balanceamento ou ponderação entre o Direito à proteção da fauna e flora à extinção
ou crueldade (art. 225, parágrafo primeiro, inciso VII, CF/88) e o Direito à tutela de
manifestação e expressão de cultura (art. 215, parágrafo primeiro e 216, CF/88); Considerações Finais; Referências.
Resumo: Este artigo trata da relação da
farra do boi, com a análise e aplicação
jurídica do princípio da ponderação na
colisão de dois direitos fundamentais. Procura-se mostrar como a relação e a interferência desses institutos podem acontecer
no contexto da ponderação, sem que haja
a anulação de um princípio. Inicialmente,
procura-se compreender antropologicamente a farra do boi e suas peculiaridades;
depois, a descrição do julgado do Supremo
Tribunal Federal – STF e por fim, a relação entre a farra do boi e a ponderação de
direitos.
Abstract: This article deals with the relationship of a particular case, the farra do
boi, with the legal analysis and application
of the principle of balance in the collision
of two fundamental rights. It aims to show
how the relationship and the interference
of these institutes can happen in the context of weight, without the cancellation of
a principle. Initially, we seek to understand
the anthropological the farra do boi and its
peculiarities, then the description of the trial of the Supremo Tribunal Federal - STF,
and finally, the relationship between farra
do boi and the balance of rights.
Palavras chaves: farra do boi, princípio
da proporcionalidade; colisão de direitos
Fundamentais.
Key words: farra do boi, the principle of
proportionality; collision of fundamental
rights.
* Mestrando em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas; Advogado; Bolsista da CAPES. Contato: [email protected].
** Professor, Pesquisador e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direto
Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas - UEA e Professor Adjunto I junto
ao Departamento de Direito da Uninilton Lins.
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INTRODUÇÃO
A farra do boi é uma manifestação cultural bastante atacada pela mídia.
A partir do momento em que a farra do boi ganhou notoriedade, o evento foi
traduzido em sinônimo de tortura e crueldade animal.
Dentro deste contexto, houve a judicialização do caso, e como resposta
o Supremo Tribunal Federal - STF decidiu, por maioria proibir a prática da
farra do boi no litoral catarinense. O princípio do balanceamento ou proporcionalidade, conforme Silva (2002) possui “uma estrutura racionalmente definida, que se traduz na análise de suas três sub-regras (adequação, necessidade e
proporcionalidade em sentido estrito) e tem como finalidade harmonizar dois
princípios, neste caso concreto, em colisão, assim sendo, é uma maneira jurídica
de compatibilizar a farra do boi com os preceitos legais contra a crueldade animal. Ressalte-se que independente da decisão do STF, a prática continua.
Assim sendo, a farra do boi, é um exemplo da necessidade da ponderação
entre o direito ao bem estar animal e a crueldade contra os mesmos (art. 225, par.
1o., inc. VII, CF/88) como forma de expressão cultural (art. 215, par. 1o. e 216
caput, CF/88), no que tange ao balanceamento a ser feito através do conteúdo
essencial dos direitos fundamentais.
1. A FARRA DO BOI
A farra do boi1 é uma manifestação cultural praticada na região de Florianópolis. conforme Conceição (2003), possui origem açoriana e no Brasil ganhou
outras conotações De acordo com Conceição2, a Ilha de Florianópolis foi colonizada por açorianos, levados pelos portugueses em 1747. Com aqueles imigrantes vieram as “Brincadeiras de Boi”, tendo como principais: Dança do Boi
Mamão; Boi de Campo; Boi de Vara e Farra do Boi. De acordo com o mesmo
1
A farra do boi é uma manifestação cultural considerada como saudável, e a violência
consentida e empregada nos bois desta brincadeira, faz parte da ritualística desta, conforme a cultura, já a “farra do boi” (com aspas), é a brincadeira feita sem ponderações,
que nos termos de Lacerda, seria o “judiar” o boi, ou seja, empregar violência sem
ponderações e sem a ritualística da festa, desvirtuando a brincadeira e sendo altamente
criticada internamente pelos farristas.
2
CONCEIÇÃO, José Antonio da. A polêmica Farra do boi. 2003. Disponível em: http://
schollar.com.br . Acesso em: 23 de janeiro de 2010.
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Autor, a origem dessas brincadeiras remonta ao final do século XII e início do
século XIII, onde os bois eram sacrificados na semana santa em substituição ao
bode, como representação de Judas.
Neste sentido, Conceição (2003) afirma que esta tradição, também denominada “brincadeira do boi”, “boi do campo”, “boi na vara”, consiste em se
comprar um boi arisco, bravo e corredor, que antes de ser abatido é solto nos
pastos e ruas, provocando correrias generalizadas. Ressalte-se que atualmente
a “farra” também precede aniversários, casamentos, jogos de futebol e outras
ocasiões. Segundo Dias3, a farra do boi antes ocorria nos pastos e a construção e
ruas e loteamentos não impossibilitaram tal prática, envolvida em cada vez mais
distúrbios e confusões.
Para Lacerda4 a farra do boi “[...] se trata de uma manifestação folclórica
dentre outras no contexto das festas populares brasileiras que envolvem este
animal, a exemplo das vaquejadas nordestinas e dos rodeios gaúchos”, com a
finalidade de fustigar o animal, e depois matá-lo e por fim repartir a carne entre
os participantes.
Ainda de acordo com Lacerda (2003), a problematização relacionada
com a farra do boi, só começa na década de 1980, quando ficou classificado
pelos folcloristas, como um folguedo popular, enquanto a mídia, entre 1987 e
1994, falava em selvageria, crueldade e tortura. Estes fatos ocasionaram protestos e campanhas internacionais e nacionais, questionando se a farra do boi é
uma manifestação cultural ou simplesmente uma forma de crueldade contra os
animais. Seria folclore ou violência; tradição popular ou degeneração cultural,
poderia ser folclore uma tradição popular baseada na violência?
Neste sentido, Lacerda (2003) relaciona a farra do boi, como manifestação cultural, e a segurança pública. As mediações ético-populares acabam por
legitimar ou não as tradições populares. Entretanto, não é da mesma maneira
que uma tradição folclórica passa a ser um caso de justiça.
Para Lacerda (2003), a farra do boi remete aos atos praticados quando algum boi se apartava do grupo e os vaqueiros respondiam com violência às essas
tentativas. Esses atos possuem relação com o modo de domesticação de animais
3
DIAS, Rafael Damasceno. Lembrança e nostalgia nos desacordos da memória: a cidade de Florianópolis nas últimas décadas do século XX. Disponível em: http://schollar.
com.br. Acesso em: 23 de janeiro de 2010.
4
LACERDA, Eugênio Pascele. Os Usos do Folclore: A propósito da polemica sobre a
Farra do Boi. Disponível em: http://www.nea.ufsc.br/artigo_engenio.php . Acesso em:
23 de janeiro de 2010.
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bravios no meio rural. Para tal brincadeira o boi tinha que ser do campo. Note-se
que já no século passado os arquivos da polícia municipal e de posturas municipais de Florianópolis, a existência de tais brincadeiras já eram preocupações das
autoridades públicas.
Conforme Lacerda (2003) o “boi-no-campo” é uma dança dramática, que
mostra o combate com o boi, sendo uma taurimaquia, em dois tempos. O primeiro é a negociação da compra e venda do animal e a segunda a própria brincadeira da farra do boi, sendo que esta é motivo de grande euforia. Centenas de
pessoas aguardam a chegada do animal que é motivo de festa e paralisação de
cidades e vilarejos, sendo que o centro desta brincadeira é desafiar a fúria do boi.
Na semana santa, o boi fica solto até o sábado de aleluia e no domingo de
Páscoa, o boi é sacrificado. A “matança” ou “carneação” do boi é o sinal do final
da festa. Lacerda menciona que:
Durante todo o tempo de festa não se notam regras de exclusão baseadas em sexo, idade, ou autoridade. O que se
nota é uma contínua valorização da decisão individual em
querer participar o que significa adequar-se aos parâmetros
tidos como legítimos da brincadeira. A farra do boi é certamente uma brincadeira perigosa, ligada ao mundo do excesso. De fato não estamos lidando com um acontecimento
da norma, mas da suspensão dela. Quando é tempo da farra
do boi a rotina normal do trabalho e da família é posta em
parâmetros.
Tradicionalmente, na festa só se pode brincar com o boi. Neste contexto,
atos de crueldade são punidos com uma “rixa na cabeça”, ou até mesmo uma
“surra”. Quem brinca com o boi recebe o carinho dos camaradas e a chancela
das mulheres. O farrista, geralmente é o pescador do litoral, pois são eles que recolhem os barcos, durante a semana santa, e nesse período improdutivo as brincadeiras da farra do boi são mais freqüentes. Lacerda menciona que a urbanização
e alterações sazonais na pesca parecem estar modificando a regularidade da festa.
Afirma Lacerda (2003) que até meados de 1970, a farra do boi não tinha
uma interpretação de crueldade animal, mas sim, de manifestação cultural, no
entanto, com o aumento do turismo no litoral catarinense, este conceito foi sendo
paulatinamente modificado. A brincadeira acontecia era própria das populações
nativas, mas com a intensificação do turismo nos balneários, as brincadeiras
começam a depender da tolerância dos novos moradores.
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As farras nativas, visibilizadas, fogem desse padrão de consumo. Torna-se objeto de tribunização pelo cosmopolitismo ecológico em voga, por meio de censura cultural e de
repressão oficial. Penso que todo esse processo se vincula a
uma das peculiaridades da dinâmica cultural brasileira que
consiste na apropriação de manifestações através de mecanismos manipuladores de seus significados e, muitas das
vezes, transformados em símbolos de identidade nacional.
[...] Muitas vezes, estas formas de apropriação implicam
numa assepsia generalizada daqueles aspectos que possam
conferir perigo ou ameaça à cultura dominante e ao estado..
Quando não ocorre via repressão pura e simplesmente, adotam-se outros mecanismos mais sutis de domesticação que
consistem em recuperar as práticas populares como ‘exótica lembrança de um mundo extinto, que pode ser exposta
ao turista e ser exibida como relíquia nos teatros’(Chauí,
1982:132). (Lacerda, 2010)
Neste sentido, portanto, ao se analisar a farra do boi, no contexto conjuntural e polemico desta e na perspectiva dos protestos dos jornais, Lacerda (2003)
verifica que houve uma desqualificação da farra do boi, como folclore, devido a
tribunização a que foi submetido.
[...] não encontrando mais o reconhecimento e a tipicidade
comuns dada ao termo, como um costume exótico e ao
mesmo tempo palatável da cultura popular. Interessante é
que este reconhecimento é dado a outras manifestações locais como o Pau-de-fita, o Boi-mamão,o terno-de-Reis e as
folias do Divino. Ocorre que o cantador do Terno, o dançador do auto e o folião do Divino, em muitas comunidades é
o “farrista” do boi. Sem dúvida podemos incorporar o caso
da farra do boi neste processo mais amplo de domesticação
cultural. Mas, no seu caso, o processo ainda é o de tribunização, estando a festa proibida em todo território nacional.,
fruto de um recente Acórdão (1997) do Supremo Tribunal
Federal, sem que isso, no entanto, tenha impedido a sua
ocorrência a cada ano.(Lacerda).
Lacerda (2003) questiona quais seriam os ingredientes que colocariam a
cultura dominante em perigo e tira três conclusões. Em primeiro lugar, a farra
é um rito de inversão, ou seja, é um “tempo louco”, que se suspende a rotina e
seus consensos normais. É um tempo em que o individuo começa a brincar com
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outros sentidos e ter uma convivência muito similar a do carnaval, reinventando-se a festa a cada momento. Em segundo lugar, o fator violência. Para os
“farristas” o fator é o boi e na festa o fator é o rito, qual seja, a morte ritual do
animal e a sua transformação em comida extraordinária. Nesse sentido, a violência é tratada como valor envolvente na polêmica da farra do boi. Em terceiro
lugar, a farra do boi é uma festa de orgia, tratada como transgressões noturnas,
sexualidade ou jogos de prazer.
Sussekind5 descreve que a polêmica da farra do boi está relaciona-se às
formas de legitimação e restrição de violência. Especialmente em torno dos códigos de ética da festividade popular, que é herdeira das touradas e o ideal de
proteção dos animais numa sociedade brasileira dita “civilizada”. Dentro de um
contexto socioeconômico do litoral de Santa Catarina, qual seja, transformação
histórica das comunidades tradicionais de pescadores do litoral, em balneário
turístico, da qual se insurgiu protesto das sociedades protetoras dos animais,
sobre a crueldade contra os mesmos. Tendo como conseqüência a repressão
policial, que revela diferentes esferas de violência: uma relacionada aos animais
e outra relacionada aos moradores locais e o poder público, especialmente em
reportagens de jornais, que as consideram como “sadismo” e “tortura”.
O “judiar”, na descrição de Sussekind (2003), é uma categoria anômala, uma forma que violência ilegítima, que por isso, desvirtua a ética ritual da
brincadeira, considerando que são duas visões diferentes, com o mesmo fundamento ético. Seja de um lado, seja de outro, a violência contra os animais são
toleráveis, no plano político religioso, não se condena o sacrifício animal em si,
mas a forma como é praticado; no plano das sociedades protetoras de animais, o
ato de comer a carne é um problema de legitimação da violência, incentivando
a prática da alimentação vegetariana, daí se questionar o modo de produção de
carne na sociedade urbana moderna, isto é, enquanto algumas espécies são tratadas brutalmente e transformadas em carne, como produção de alimentos, como
os bovinos, outras são tratadas como filhos, por exemplo, os animais de estimação como os cães. Neste sentido, Sussekind descreve que “O ato do sacrifício
animal dos hábitos alimentares e do modo de vida urbana, mas a violência nele
contida é desvinculada simbolicamente do alimento consumido.”
Portanto, o sacrifício do animal para o consumo é mantido distante do
consumidor, enquanto, no ritual da farra do boi, a violência consentida é parte
legítima do momento da “matança” e divisão de carne. Relevante é saber que o
5
SUSSEKIND, Felipe. Resenha de: Lacerda, Eugênio Pascele. Bom para brincar, bom
para comer: a polêmica da farra do boi no Brasil. Florianópolis: UFSC. 127p. 2003.
Disponível em: http://schollar.com.br. Acesso em: 23 de janeiro de 2010.
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animal, opera diferentes símbolos na sociedade e estas relações ora são mantidas
ocultas, ora são mostradas, bem como, a representação do boi no meio urbano
(relação de consumo) é diferente do meio rural (relação subjetiva), no que tange
às comunidades litorâneas catarinenses, o boi é um alimento extraordinário, que
não faz parte do cotidiano. Assim, a farra do boi é conectada a um universo
mágico-religioso, o animal é sacralizado, e neste sentido, não banalizado como
alimento para consumo somente, quando a relação é de comer e brincar e “O
par brincar/judiar aponta uma forma de violência considerada legítima e outra
ilegítima”. (Sussekind, 2003)
Ao se elencar o modo de sacrifício dos animais em abatedouros, “a
polêmica não é tanto a condenação estrutural da violência, mas o rompimento
com o código social estabelecido em que a violência pode se dar”. Os movimentos ecológicos buscam quebrar os preceitos, mecanização e impessoalidade;
condenando a crueldade, no entanto, o tratamento nas formulações de restrições
e métodos humanitários caracterizados no dispositivo de regulação da violência
que depende da dominação humana e do controle do sacrifício dos animais ser
consentida, o que se parece assim ambíguo e contraditório. Dentro desse contexto, a farra do boi é uma uma dramatização que faz parte da cultura catarinense.
A farra do boi é um jogo de vida e de morte, que não deve ser analisado do
referencial distante das comunidades tradicionais litorâneas, mas compartilhado
com elas, já que a experiência da farra do boi é uma experiência de risco vivida
socialmente, num contexto de brincar e comer. (Sussekind, 2003)
Laraia (2009), descreve que a cultura tem uma lógica própria descrevendo:
Que todas as sociedades humanas dispõem de um sistema
de classificação para o mundo natural parece não haver
mais dúvida, mas é importante reafirmar que esses sistemas divergem entre si porque a natureza não tem meios de
determinar ao homem um só tipo de taxonômico. Por isso
o morcego é muitas das vezes colocado numa mesma
categoria com as aves, da mesma forma que a baleia é
vulgarmente considerada um peixe. No norte de Goiás,
uma dona de pensão afirmou que “o rato era um inseto
impertinente”. Constatamos, então, que como inseto eram
classificados todos os seres vivos que perturbem o mundo
doméstico. Finalmente, entender a lógica de um sistema
cultural depende da compreensão das categorias constituídas pelo mesmo. (p. 93)
[...], cada sistema cultural está sempre em mudança. Entender essa dinâmica é importante para atenuar o choque
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entre as gerações e evitar comportamentos preconceituosos. Da mesma forma que é fundamental para a humanidade a compreensão das diferenças entre povos de culturas
diferentes, é necessário saber entender as diferenças dentro
do mesmo sistema. Este é o único procedimento que prepara o homem para enfrentar serenamente este constante e
admirável mundo novo do porvir. (p.101)
Neste sentido, apreender cultura é um processo que o ponto de referência
é o das comunidades litorâneas. Se estas assim entendem e continuam a praticar,
mesmo depois da decisão judicial, é porque faz parte de sua própria identidade
e não iram se desfazer do que lhes caracterizam. Isto ocorre pelo fato de terem a
liberdade de se autodeterminarem como culturalmente autônomas.
2. DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Em 1997, foi julgado um Recurso Extraordinário (RE 153531/SC – Santa
Catarina)6 contra o Estado de Santa Catarina pela APANDE – Associação Amigos de Petrópolis Patrimônio, Proteção aos animais e defesa da Ecologia , LDZ
– Liga de Defesa dos animais, a SOZED – Sociedade Zoológica Educativa e a
APA – Associação protetora dos animais, referente a farra do boi. Alegando vulnerabilidade ao artigo 225, parágrafo primeiro, inciso VII, da Carta Magna, que
trata do Direito à proteção da fauna e flora à extinção ou crueldade, iniciada por
uma Ação Civil Pública que obteve a condenação o Estado de Santa Catarina,
sobre a farra do boi e manifestações culturais assemelhadas, sob o manto de suposta comprovação de crueldade e de repercussão negativa no exterior. Rezek
Afirma: “[...] não só que a ‘farra do boi’, manifestação cultural bastante entranhada em significativas parcelas da sociedade, seja uma prática intrinsecamente
cruel ou violenta, como também estivesse configurada a omissão do Poder Público Estadual, que adotou várias iniciativas para coibir os excessos”.
No Tribunal de Justiça de Santa Catarina a Ação civil Pública, assim foi
julgada:
Ação Civil Pública. Ajuizamento contra o estado de Santa
Catarina. Pedido consistente na proibição da prática, nos
municípios, distritos, subdistritos e outras localidades da
faixa litorânea catarinense, da denominada farra do boi.
Presença marcante do Estado através da Polícia Civil e Militar, com a finalidade de disciplinar o folguedo popular, sem
maus tratos aos animais. Solicitação, ademais, por parte da
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administração do concurso de cientistas sociais para estudo
e solução que se localiza apenas em segmento da população
de origem açoriana. Inconfiguração de omissão do Estado
na área em que cumpre atuar. Indispensável, por outro lado,
não confundir com tradição, de origem açoriana, conhecida
sob a determinação de tourada à corda ou boi na vara, com
a violência descriteriosa infligida nos próprios bois. O erro
aqui praticado, configurativo de contravenção, uma vez expungido desse contexto, por meios preventivos ou repressivos, não justifica a proibição dessa manifestação popular,
desde que se mantenha à feição tradicional do boi na vara,
sem a menor violência de malefícios à alimária. Recurso
desprovido para, alterado o dispositivo da sentença, julgar
improcedente o pedido.
Neste julgado vários aspectos foram analisados, que por si só já evidenciam ponderações. Inicialmente a delimitação de territorialidade da prática da
farra do boi, isto é, o litoral catarinense, que é segmento da tradição açoriana; a
diligência estatal, em disciplinar o folguedo popular através das polícias civil e
militar, sem maus tratos; acepção da farra do boi, consistente em não confundíla com a tourada corda ou boi na vara, com a violência descriteriosa infligida
nos próprios bois; tipificação criminal: contravenção penal; Tradição cultural:
que se deva manter a feição tradicional do Boi na vara , que possui a menor
violência ou inflição de malefícios nos animais. Neste sentido do TJ/SC, não
proibiu a prática da farra do boi, mas a ponderou com a prática de violência
descriteriosa.
Ao tratar do art. 225, parágrafo primeiro, inciso VII, o relator, considera
que:
[...] concluindo, em sentido oposto ao que concluiu o E.
Tribunal a quo, em primeiro lugar que a prática da ‘farra do
boi’ é necessariamente cruel e violenta e, em segundo lugar,
que o poder público estadual tem sido omisso a respeito.
Semelhante pretensão infelizmente não pode ser acolhida.
6
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE - RECURSO EXTRAORDINÁRIO Processo: 153531 UF: SC - SANTA CATARINA Relator Ministro FRANCISCO REZEK,
30/01/2007. Disponível em: www.justicafederal.jus.br. Acesso em 14/12/2009.
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O Ministro Francisco Rezek votou pela proibição da farra do boi. Começa
a argumentar no sentido de que o art. 225, parágrafo primeiro, inciso VII, da
Carta magna, em que no caso da farra do boi, está na iniciativa do poder público
objetivando coibir a prática da farra do boi, conforme a interpretação constitucional “na forma da lei”, para se coibir tal prática, isto é, seguindo a norma
estadual, de forma coibir prática inconsistente com a norma fundamental.
Para o Ministro, não se deva ser submetido a duas tentações, intituladas
como sombras metajurídicas, que devem ser repelidas pelo julgador. Estas são:
1. a consideração metajurídica das prioridades, consistente em saber quais são
os motivos para num país, no qual possui tantos problemas, se tem a preocupação com a integridade física ou sensibilidade com os animais.
Para o ministro, para que haja o exame de controversas, há que se considerar que:
Esse argumento é de uma inconsistência que rivaliza com
sua impertinência. A ninguém é dado o direito de estatuir
para outrem qual será a linha de ação, qual será, dentro da
Constituição da República, o dispositivo que, parecendolhe ultrajado, deva merecer seu interesse e sua busca de
justiça. De resto, com a negligencia no que se refere à sensibilidade de animais anda-se meio caminho até a indiferença a quanto se faça a seres humanos.
Com isso, não se institucionaliza o sofrimento humanos mas se quer o
fazer com o sofrimento dos animais. De outra monta, como assumir, o que é
chamado de “manifestação cultural”, nesta percepção, o Ação Civil Pública não
foi direcionada às comunidades tradicionais litorâneas, mas ao Poder Público,
objetivando honrar a Constituição.
A segunda tentação, diz Rezek, está no fato, de que o Recurso Extraordinário ser interposto por instituições distantes geograficamente do meio
catarinense, sediadas no Rio de Janeiro. O Ministro considerou que a Região,
em questão, possui um índice virtualmente nulo de fraudes e de incidentes, um
índice maior de apuração e dinamismo, visto que, na realidade do Rio de Janeiro,
há problemas sociais de mais emergências, que seus próprios não almejam para
resolvê-las, bem como não faltando instituições para reagir pelo cumprimento
da Constituição. Sobre esta questão, conclui que é dever cívico de todo cidadão,
querer ver honrada a Constituição em qualquer parte do território nacional, bem
como procrastinou o caso, com a esperança de que o caso se resolveria sem
a chancela do judiciário, no entanto, a prática se reiterou como cronicamente
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violenta.
Sobre a relação de fato e direito, discutido no STF sobre o caso e a notoriedade do caso, postula que: “Além do mais, os fatos são de uma gritante
notoriedade, que ultrapassa nossas fronteiras; poucas coisas são tão tristemente
notórias quanto o ritual da chamada farra do boi e o que nela acontece no litoral
catarinense a cada ano.”
O ministro defende que:
Não posso ver como juridicamente correta a idéia de que
em prática dessa natureza a Constituição não é alvejada.
Não há aqui uma manifestação cultural com abusos avulsos; há uma prática abertamente violenta e cruel com animais, e a constituição não deseja isso.
Bem disse o advogado da Tribuna: manifestações culturais
são as práticas existentes em outras partes do país, que
também envolvem bois submetidos à farra do público, mas
de pano, de madeira, de ‘papier maché’; não seres vivos,
dotados de sensibilidade e preservados pela Constituição
da República contra esse gênero de comportamento.
Por fim, ele decide em prover o Recurso extraordinário, julgando o feito
procedente nos termos da Ação Civil Pública.
O Ministro Maurício Corrêa contextualiza no que o ministro Rezek o fez
e faz alguns questionamentos. O Ministro contesta se haveria possibilidade de
se proibir a prática da farra do boi, com fulcro no art. 215, par. 1o. da Constituição Federal, que trata do pleno exercício dos direitos culturais, bem como,
sua proteção no processo de civilização nacional e considerando o art. 216, da
carta Magna, que trata do patrimônio cultural. Responde a tais indagações, com
a resposta não.
Pontua sobre antinomias na Constituição Federal da seguinte maneira:
Não há antinomia na Constituição Federal. Se por um lado
é proibida a conduta que provoque a extinção de espécies
ou submetam os animais à crueldade, por outro ela garante e protege as manifestações das culturas populares, que
constituem patrimônio imaterial do povo brasileiro.
Este ministro lembra que a farra do boi, é de origem açoriana e cita Lacerda:
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Na realidade, o povo do litoral catarinense é pescador e
agricultor, descende dos portugueses açorianos, tem consigo com uma visão do mundo peculiar; um universo cultural
que deve ser pesquisado, não reprimido. No caso da farra,
são pegas e correrias de boi pelo mato afora, em época santa; depois o boi é tornado objeto sacrificial, oferecido como
hóstia repartida aos consortes. A farra do boi é uma prática
cultural resistente; está ligada a raízes rituais, pilares da
história da humanidade. Diz respeito aos sacrifícios rituais
com função de celebração, condenação ou encantamento.
Podemos buscar suas origens rituais nos cultos da Mithra
da Pérsia ou nos cultos de Dionisíacos da Grécia Antiga.
Isso reclama explicação em linguagem antropológica.
Defendendo que como manifestação cultural, deva-se ser tutelada pelo
art. 215, par. 1o. da CF/88, o elencando como patrimônio cultural imaterial,
bem como que a partir desta análise expressar, conforme o artigo 216, CF/88,
como Memória cultural açoriana, que faz parte da formação cultural da Sociedade Brasileira. Portanto, não se pode confundir uma manifestação cultural com
exacerbações de violência.
Não conhecendo o recurso extraordinário o Ministro conclui:
Desta forma, como costume cultural, não há como coibir
a denominada “farra do boi”, por ser uma legitima manifestação popular, oriunda dos povos formadores daquela
comunidade catarinense. Os excessos, esses sim, devem,
ser reprimidos, para que não se submetem o animal a tratamento cruel. Mas esta é outra história.
Resumidamente, os seguintes Ministros, com argumentos similares aos
descritos anteriormente, acompanharam o voto do Ministro Francisco Rezek:
Ministro Marco Aurélio; Ministro Néri da Silveira, complementando que art.
225 tem uma vinculação direta com o art. 1º, ambos da Constituição Federal,
especialmente no que tange à dignidade da pessoa humana e cidadania, na
construção de uma sociedade livre, justa e solidária; e que a preocupação não
está em se ter a dignidade, mas sim no dever agir da dignidade, para promoção
da cultura. Por fim, a decisão foi por maioria, para se proibir a prática da farra
do boi, nos seguintes termos da ementa:
COSTUME - MANIFESTAÇÃO CULTURAL - ESTÍMULO - RAZOABILIDADE - PRESERVAÇÃO DA FAUNA
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E DA FLORA - ANIMAIS - CRUELDADE. A obrigação
de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos
culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, no que veda
prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado
"farra do boi".
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE - RECURSO
EXTRAORDINÁRIO Processo: 153531 UF: SC - SANTA CATARINA Relator Ministro FRANCISCO REZEK,
30/01/2007. Fonte: www.justicafederal.jus.br. Acesso em
14/12/2009.
Mesmo muito tempo depois da decisão o STF a prática da brincadeira da
farra do boi é presente em Santa Catarina. Em 09 de janeiro de 20107, a Polícia
Militar deste estado capturou um bovino, no bairro Pantanal de Florianópolis,
que estava sendo utilizado na brincadeira da farra do boi.
3. A PONDERAÇÃO ENTRE A PROTEÇÃO DA FAUNA E DA FLORA CONTRA
A EXTINÇÃO OU CRUELDADE E O A MANIFESTAÇÃO E EXPRESSÃO DE
CULTURA
Na Constituição Brasileira de 1988, o art. 225, parágrafo primeiro, inciso
VII, trata da proteção da fauna e flora em prática de risco que podem provocar
a extinção ou que as submetem animais à crueldade e os artigos 215, parágrafo
1º e 216, que tratam respectivamente de que o Estado protegerá os direitos
culturais e acesso à fontes da cultura nacional; bem como a tutela de expressão
dessas culturas. No caso da farra do boi, houve uma tentativa de balanceamento
ou ponderação entre esses dois direitos, aparentemente contraditórios.
7
ANIMAL usado na Farra do boi em Florianópolis é capturado. O GLOBO, Caderno:
Cidade, 10 de janeiro de 2010. Disponível em:< http://news.google.com.br>. Acesso
em: 14 de fevereiro de 2010.
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Para Bobbio8, pode-se entender o evento conhecido como a farra do boi
nos termos, do art. 215, parágrafo primeiro e 216, ambos da Constituição Federal,
como elemento do meio ambiente cultural. Meio ambiente cultural, para Silva9,
é o que é “integrado pelo patrimônio histórico, artístico [...], que embora artificial, em regra é obre do homem [….] pelo sentido de valor especial que adquiriu
ou de que se impregnou”, considerando-o como manifestação cultural por ser
desenvolvido pelo homem. Assim sendo, a farra do boi, é uma manifestação
cultural, mesmo considerando o art. 225, parágrafo primeiro, inciso VII, da
Constituição Federal.
Para Bobbio (1999), antinomia é a situação de normas incompatíveis entre si, tendo–se de ter duas condições10 para que seja caracterizada: as duas normas devem pertencer ao mesmo ordenamento e devem ter o mesmo âmbito de
validade, existente no caso citado, sendo que o Direito não tolera antinomias e
se as tivessem, dentro do direito romano, seriam eliminadas. Na classificação de
Bobbio (1999) esta antinomia é classificada da seguinte maneira: por contrariedade, antinomia de princípio, na doutrina. Valendo-se disso, art. 225, parágrafo
primeiro, inciso VII, da Constituição Federal, estabelece ser proibido as práticas
de crueldade ou tortura contra animais, e no caso em tela, submeter os animais
à crueldade, já o art. 215, parágrafo 1º e 216 são considerados como normas de
obrigação, de ordenação a fazer algo, referente ao Estado se obrigar a garantir
a todos os direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional, e protegerá
as expressões e manifestações das culturas populares, configurada na farra do
boi. Por sua extensão essas normas têm igual âmbito de validade, por isso, ser
total-total, em que neste caso uma dessas normas pode ser aplicada sem entrar
em conflito com a outra.
Mesmo considerando uma manifestação cultural, o STF não deixou de
proibi-la, utilizando-se do entendimento de ser uma crueldade. No entanto, no
plano doutrinário, há antinomia entre as normas insculpidas no parágrafo primeiro, inciso VII do art. 225, e parágrafo 1º do art. 215, visto que esse tema
foi tratado pelo voto do Ministro Maurício Correa, argumentando que não há
antinomias na Constituição Federal.
8
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 10ºed., 1999.
9
SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 7ºed., atualizada. São Paulo: Malheiros, 2009, p.21.
10
Op. Cit. BOBBIO, p. 86-87
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No caso da farra do boi, se está diante de uma contrariedade11. O parágrafo 1º do art. 215, é uma norma de obrigação, de ordenação a fazer algo,
referente ao Estado se obrigar a garantir a todos os direitos culturais e acesso
às fontes de cultura nacional, e protegerá as manifestações das culturas populares, configurada na farra do boi; já a segunda norma, o inc. VII, do parágrafo
primeiro do art. 225 da Constituição Federal, estabelece ser proibido as práticas
de crueldade ou tortura contra animais Por sua extensão essas normas têm igual
âmbito de validade, por isso, ser total-total, em que em nenhum caso uma dessas
normas pode ser aplicada sem entrar em conflito com a outra.
Configura-se ainda, se valendo dos ensinamentos de BOBBIO, em uma
antinomia de princípio, considerando que há valores opostos, inseridos na norma,
e que um vai sobrepor ao outro, no caso, a não crueldade de animais sobre as
manifestações culturais; solúvel ou aparente, por ser um caso no qual se podem
aplicar duas ou mais regras em conflito entre si.
Por fim, é de se salientar dois aspectos diferentes do caso em tela. Primeiro, pela decisão do STF, isto é, juridicamente, não houve antinomia, já que o
mesmo considerou a manifestação cultural e mesmo assim a proibiu e; no plano
doutrinário há a antinomia por contrariedade (norma que ordena versus norma
que proíbe).
Na procura por uma resposta correta, os juízes devem fazer uma interpretação do caso concreto. Aliando os princípios à democracia, Dworkin (2007)
propõe três problemas, três direções: a) Distinção geral entre direitos individuais (homogêneos) e objetivos sociais: Grandes direitos (liberdade, igualdade, direito ao respeito), “Estes grandes direitos não parecem relevantes para
decisão de casos difíceis em direito, exceto, talvez, no direito constitucional”
(Dworkin, 2007:139). Deve-se demonstrar a distinção entre argumentos de
princípio e argumentos de política; b) Precedentes e história institucional dos
casos difíceis. É o juiz que deva realmente decide, ninguém pensa que o direito
é perfeitamente justo. Mesmo que o juiz se distancie dos precedentes, ele é impulsionado pela “doutrina da consistência articulada” que exige. A impressão é
equivocada, há no processo um direito político genuíno e c) Decisão por julgamento de moralidade política: é indefensável “por iludir a maioria com relação
a seu direito a decidir, por si própria questões de moralidade política”.
Daí se analisar o princípio da proporcionalidade, de acordo com Bonavides (2009) o conceito do princípio da proporcionalidade, possui acepções
diferenciadas. Este autor se utiliza da classificação de Muller, no qual no sentido mais amplo “é uma regra fundamental a que devem obedecer tanto os que
11
Op. Cit. BOBBIO, p. 86.
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exercem quanto os que padecem do poder” (p.393); numa escala menos ampla,
o princípio é caracterizado pelo fato de se presumir a existência de relação
adequada entre um ou vários fins destinados e os meios com que são levados a
cabo, neste sentido, há a violação desse princípio com a ocorrência de arbítrio;
quando os meios não são apropriados e quando há a desproporção dos meios
utilizados e o fim manifestado.
Assim, o princípio da proporcionalidade procura fazer uma relação compatível entre os meios e os fins de maneira que haja um controle do excesso, no
qual, para corrigir possíveis insuficiências da dualidade anterior, estabelecendo
uma relação triangular, entre o fim, meio e situação (caso concreto). Daí poder
haver o princípio da proporcionalidade aliado à interpretação do legislador e do
julgador, especialmente quando se trata da interpretação conforme a Constituição, o que, em conseqüência, não abala a divisão de poderes e resvala o
“governo dos juízes”. Neste sentido, o princípio da proporcionalidade é um
axioma para o Direito Constitucional Brasileiro, isto é, que tolhe a ação ilimitada dos poderes do Estado no quadro da juridicidade, bem como, de limitar o
legislador, ou até o juiz, quando julgar legislando.
Valendo-se de Barroso (2009), o princípio da proporcionalidade é empregado, na Constituição do Brasil, de modo fungível, isto é, não está expressa
nesta, mas tem seu fundamento na idéia do devido processo legal substantivo e
na de justiça. É um instrumento valioso de defesa dos direitos fundamentais e
controle da discricionariedade do poder público, utilizado para que melhor se
aplique os fins que acaba por tornar a norma embutida ou decorrente no sistema
jurídico, mesmo sentido, quando não tiverem: adequação; necessidade/vedação
do excesso ou proporcionalidade em sentido estrito.
Barroso (2009: 375) ainda ensina que o princípio pode operar também:
“no sentido de permitir que o juiz gradue o peso da norma, em uma determinada
incidência, de modo a não permitir que ela produza um resultado indesejado pelo
sistema, assim fazendo a justiça do caso concreto”, corroborado a ele, Dimolius
& Martins (2008) postulam que a proporcionalidade no momento da análise da
necessidade e adequação serve para aferir desrespeitos às normas envolvidas e
“não para substituir a decisão política do legislador pela decisão política do órgão
jurisdicional constitucional” (p. 232), isto é, o STF. Canotilho (2008) ensina que é
através da regra da razoabilidade ou da proporcionalidade que: “[...] o juiz tentava
e (tenta) avaliar caso a caso as dimensões do comportamento razoável tendo em
conta a situação de facto e a regra precedente” (p. 267).
Ademais Silva (2002) complementa que, se cobra a coerência nos julgados do STF e não a aplicação da regra da proporcionalidade. Isso ocorre, por
causa da concepção de direitos humanos ou a forma de controlar as colisões en174
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tre os direitos fundamentais, para ele poder-se-ia criticar tal concepção, mas não
a sua coerência, entretanto, a partir do momento em que o STF trata da regra da
proporcionalidade como forma de deslindir a colisão dos direitos fundamentais,
não somente com o intuito de ser expresso, mas também, com o intuito de ser
um modelo pré-existente, e assim então, em se cobrar a coerência dos julgados
do STF.
Domingos (2001) afirma que os direitos em conflitos impõem-se a existência de um equilíbrio ou mesmo que um princípio prevaleça sem que se importe
na negação do outro, sendo necessário o efetivo balanceamento dos direitos em
conflitos. Mas para isso é necessário se ter os três aspectos dos princípios da
proporcionalidade: adequação, entre a medida a ser adotada e o fim a ser buscado; exigibilidade, para que o fim tenha uma menor desvantagem ao cidadão
e estrito, no sentido silogístico, que se o meio utilizado é proporcional ao fim
buscado, pesando-se as vantagens e desvantagens do Poder Público.
Domingos (2001) pondera que o princípio da proporcionalidade:
Contudo, a grande discussão que se trata sobre a aplicabilidade do princípio da proporcionalidade está no grau de
subjetividade de uma decisão a ser proferida em um caso
concreto, porque o julgador poderia pender mais para um
princípio ou direito que para outro segundo sua livre convicção, e daí não mais se falaria em ponderação adequada.
[...] Essa ponderação deve ser tomada sob um aspecto de
relatividade, uma vez que não existem princípios ou direitos absolutos entre si mesmo, mas sempre dentro de uma
racionalidade objetiva, o que afasta procedimentos abstratos ou gerais.
Diante das colisões os direitos fundamentais, conforme FARIAS12, não
são intangíveis, mas encontram-se suscetíveis de restrições. A preocupação
máxima que se tem que ter é em relação ao legislador e ao julgador, haja vista
que pode haver abuso na determinação das restrições aos direitos fundamentais,
o que o inviabiliza no exercício da vida social. Assim, a doutrina se preocupa
em desenvolver critérios racionais para ponderar e controlar a discricionariedade da interpositio legislatoris, no que refere aos Direitos Fundamentais. Para
isso, desenvolve-se o núcleo ou conteúdo essencial dos Direitos Fundamentais.
12
FARIAS, Edilsom. Liberdade de expressão e comunicação:Teoria e proteção constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 25-51
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Entende Farias (2004) que o núcleo essencial é o limite às leis e decisões
restritivas, com a finalidade de não deixar a mercê do legislador e julgador os
Direitos Fundamentais. Possuindo dois problemas de definição: um no que
tange ao objeto deste: seja no direito individual ou garantia objetiva e o outro,
ao valor deste, se absoluto ou relativo.
Para a primeira problemática tem-se a teoria objetiva e a subjetiva. A primeira refere-se à proteção geral e abstrata prevista na norma, de forma a evitar
que a redução seja de tal forma que perda a importância para a vida social; já a
segunda teoria postula que se sacrificar de tal modo o direito de um individuo
que o Direito Fundamental perda o sentido de ser para este. Sobre ambas as
restrições dos Direitos Fundamentais devam compatibilizar, harmonizar ambas.
Referente ao valor do núcleo essencial tem-se também duas teorias. A
teoria absoluta consiste em que há um núcleo próprio de cada direito que é intangível e determinável em abstrato, de outro modo a teoria relativa postula que
se reduz o núcleo essencial até o atendimento da máxima proporcionalidade,
isto é, a restrição só seria legitima quando fosse obrigatória para se exercer outro
direito ou bem constitucional, bem como na proporção de se imponha para um
direito fundamental. Nestes termos, o núcleo essencial pode ser atacado.
No caso de haver a colisão de direitos fundamentais ou quando estes se
contrapõem aos interesses da comunidade. Vale ressaltar que, os interesses coletivos são todos mas somente aqueles que estão assegurados pelas normas constitucionais, em colisão com os valores comunitários. É de se destacar , que a farra
do boi continua, mesmo depois do julgamento do STF. Ainda para FARIAS13,
quando isso ocorrer, poderá resolver esses casos, comprimindo os direitos sem
jogo e respeitando os requisitos do núcleo essencial dos direitos envolvidos e a
regra da proporcionalidade, e considerando os limites determinados pela Constituição.
Ao se tratar da farra do boi e do balanceamento ou ponderação entre o
Direito à proteção da fauna e flora à extinção ou crueldade (art. 225, parágrafo
primeiro, inciso VII, CF/88) e o Direito à tutela de manifestação e expressão de
cultura (art. 215, parágrafo primeiro e 216, CF/88), se trata de um controle da
norma constitucional. BIELEFELDT14 ensina que:
O controle normativo constitucional que, eventualmente,
também deve preservar os valores dos direitos humanos
perante o legislador democrático, acabam por caracterizar
13
Op. Cit. FARIAS, Edilsom, p. 47
BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos Direitos Humanos. Coleção Focus, vol. 4. São
Leopoldo: Unisinos, 2000, p. 245-248.
14
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a própria democracia como teor libertário [...] a reivindicação por liberdade dos direitos humanos refere-se tanto
contra as imposições estatais e comunitárias, como contra a
involuntária exclusão da sociedade. Assim, os direitos humanos comprovam ser parte integrante de uma ética social
política e jurídica [...] ultrapassar a perspectiva individualista pelas possibilidades de livre congregação e engajamento republicano.
A elaboração doutrinária de conteúdo ou núcleo essencial dos Direitos
Fundamentais e de seus limites, é um forma de promoção da Democracia na
República Brasileira, a partir da Constituição Federal. Por isso, ter-se a segurança jurídica ao se ter a possibilidade de releitura doutrinária no âmbito legal,
de se flexibilizar um Direito Fundamental, com o objetivo de promovê-lo, garantindo-o no ordenamento jurídico, como eficiente e democrático. A existência
desses institutos jurídicos assegura os Direitos Fundamentais e seu exercício,
mesmo que legalmente restringidos.
Para MELO15, seguindo o entendimento de BARQUER, ao se centralizar
o balanceamento ou proporcionalidade de dois direitos fundamentais, há de se
levar em conta, o conteúdo essencial de direito, que é o limite para a atividade
legislativa, limitadora dos direitos, ou seja, “o limite dos limites”. O conteúdo
essencial é uma fronteira que o legislador - o que no caso do julgado da farra do
boi, também vale para o julgador - não tem autorização e não pode ultrapassar,
pois se assim o fizer, estará incorrendo em inconstitucionalidade, o conteúdo
essencial, em suma, é o núcleo fundamental, e sendo-se ao contrário, se estaria colocando em questão a própria existência do Direito Fundamental. Assim
sendo, os Direitos Fundamentais não são absolutos, com a finalidade de dar a
possibilidade de exercê-los, dentro da proporcionalidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A farra do boi diante do balanceamento ou ponderação entre o Direito à
proteção da fauna e flora à extinção ou crueldade (art. 225, parágrafo primeiro,
inciso VII, CF/88) e o Direito à tutela de manifestação e expressão de cultura
15
MELO, Sandro Nahmias. A Garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais.
Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo: Revista dos Tribunais,
Ano 11, Abril – junho, nº 43, 2003, p. 82-97
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(art. 215, parágrafo primeiro e 216, CF/88) é um exemplo da complexidade
social e jurídica que o Brasil possui. Há duas problemáticas: 1. a farra do boi é
uma manifestação cultural e; 2. a crueldade infligida a animais neste caso é um
forma de violência legítima e/ou consentida?
Mas a pergunta dos antropólogos, que questionam o Direito é se a violência da farra do boi (ritualística e de confraternização social) é ilegítima? O STF
responde, mesmo se utilizando do princípio da ponderação, que são ilegítimas,
ao mesmo tempo em que considera a farra do boi como cultura, no entanto,
como a considerar cultura, sem que se permita os meios de efetivá-la? Não seria
o caso de se ter a alteridade, de se perguntar às comunidades envolvidas se é o
não cultura? Ao se valer do princípio da ponderação, a farra do boi está, ainda,
em uma área nebulosa do Direito e é indubitável que é uma cultura, que deva
ser valorizada.
A ponderação ou balanceamento, quando forem claramente antagônicos,
tem-se de ter claro as soluções, no entanto, nos casos difíceis poderá haver a
terceira via ou resposta, qual seja, a não exclusão dos dois Direitos supra, entretanto, os relativizando, de maneira que seus respectivos núcleos essenciais
sejam tutelados e respeitados, pois assim se compatibiliza esses dois direitos em
um caso concreto.
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BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos Direitos Humanos. Coleção Focus, vol. 4.
São Leopoldo: Unisinos, 2000, p. 245-248.
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janeiro de 2010.
Artigo recebido em: 27/04/2010
Artigo aprovado para publicação em junho /2010.
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CONSIDERAÇÕES ACERCA DA VIABILIDADE
DA ARBITRAGEM: CONTRATOS DE REPARTIÇÃO EQUITATIVA PELO ACESSO E USO DA
BIODIVERSIDADE E JUSTIÇA DEMOCRÁTICA
DE PROXIMIDADE
Liana Amin Lima da Silva *
José Augusto Fontoura Costa **
Sumário: Introdução. 1. Admissibilidade da Arbitragem; 2. Antinomia Jurídica; 3.
Diálogo entre a Lei da Arbitragem e o Código de Defesa do Consumidor; 4. Viabilidade
da Arbitragem Ambiental; 5. (In) Disponibilidade dos Direitos Difusos; 6. Cláusula arbitral nos contratos de utilização do patrimônio genético e de repartição de benefícios;
Conclusão; Referências Bibliográficas.
Resumo: O presente trabalho trata da admissibilidade da via arbitral como solução
de controvérsias no plano interno, suas
vantagens e desvantagens. É traçado um
estudo da relação da Lei da Arbitragem
com o Código de Defesa do Consumidor,
especificamente no que tange as possíveis
normas antinômicas (artigo 4˚, §2˚ e art.
51, VII, respectivamente). Neste sentido,
é feito uma abordagem crítica da teoria
clássica de Norberto Bobbio sobre solução
de conflitos de leis, bem como o dever de
coerência do ordenamento jurídico, para
que possamos compreender acerca do
diálogo das fontes, teoria de Erik Jayme,
que considera o pluralismo contemporâneo, adotada no Brasil por Claudia Lima
Marques e já corroborada pelo Ministro
Joaquim Barbosa. Um raciocínio que
Abstract: This article deals with the domestic allowance of arbitration as a dispute resolution system, as well as its pros
and cons. A study on the relations between
the Arbitration Statute and the Consumers’
Protection Code is presented, specifically
regarding possible antinomies (article 4˚,
§2˚ and art. 51, VII, respectively). In this
regard, an approach to the classical theory
of Norberto Bobbio on solution of antinomies is made, as well as the duty of coherence of the legal system, in order make
clear the need to proceed the Erik Jayme’s
dialogue of sources, which considers the
contemporary pluralism, since Claudia
Lima Marques and the Minister Joaquim
Barbosa also adopt such view. Since the
balance of rules on consumption, environment and arbitration might be reached by
* Mestranda em Direito Ambiental, Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental
da Universidade do Estado do Amazonas, PPGDA-UEA. Bolsista do CNPq.
** Doutor e Livre Docente em Direito Internacional pela USP. Professor da Universidade Católica de Santos e da Universidade do Estado do Amazonas.
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caminha para a plena compatibilidade
da Arbitragem com o Direito Ambiental.
Desta forma, fundamentaremos acerca da
viabilidade da arbitragem ambiental e suas
condições e restrições. Traremos à tona a
discussão dos contratos de repartição equitativa pelo acesso e uso da biodiversidade
na Amazônia, exemplificando a possibilidade da inclusão de cláusulas arbitrais nos
mesmos e sua contribuição para um acesso
democrático da Justiça, considerando a
peculiaridade desta temática e a hipossuficiência das comunidades envolvidas.
such dialogue. Therefore, this article aims
to discuss the underpinnings of environmental arbitration, as well as its conditions
and limits. As instance, the contracts of
equitable distribution and access to Amazon’s biodiversity will be discussed, focusing the inclusion of arbitration clauses as a
possible contribution to a more democratic
legal system, which takes into consideration the vulnerability of the communities
involved.
Palavras-chave: Antinomia. Arbitragem Key-words: Antinomy. Environmental arambiental. Contratos. Acesso à biodivers- bitration. Contracts. Access to biodiversity.
idade.
INTRODUÇÃO
Tendo em vista o pluralismo pós-moderno, verifica-se a necessidade de se
retomar e insistir no estudo da viabilidade da Arbitragem como meio de solução
extrajudicial de controvérsias. Há uma resistência por parte de muitos juristas
em se admitir o instrumento arbitral como um meio eficaz, célere e justo. O
instrumento da arbitragem ainda é visto pela maioria dos doutrinadores com
preconceito e ainda há uma perversa insistência em uma ótica antinômica e excludente. De acordo com Oppetit (2006), há desconfiança da possível elisão da
regulação estatal mediante uma privatização da justiça.
A discussão acerca da constitucionalidade da Lei da Arbitragem já se encontra esgotada. Agora, possuímos o dever de caminhar pensando no futuro,
abertos para novas possibilidades. Neste sentido, encontramos respaldo na terminologia criada por Erik Jaymes e adotada no Brasil por Claudia Lima Marques,
qual seja, o diálogo das fontes. Caminharemos vislumbrando a harmonia e coerência do ordenamento jurídico, inclusive no que tange às fontes plúrimas e extrajudiciais.
Mostrar-se-á neste trabalho inicial, sem qualquer pretensão de se esgotar a discussão, a viabilidade da Arbitragem Ambiental. Para tanto, abordare182
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mos a polêmica dos direitos difusos e sua disponibilidade e visualizaremos a
possibilidade da aplicação da arbitragem ambiental aos contratos de repartição
equitativa pelo acesso e uso da biodiversidade na Amazônia Brasileira, como
instrumento de concretização da justiça democrática de proximidade e tendo em
vista também o regime jurídico diferenciado requerido por esta matéria.
1. ADMISSIBILIDADE DA ARBITRAGEM
Conforme as disposições gerais da Lei da Arbitragem (LArb), Lei 9.307
, de1996, as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para
dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, sendo que a arbitragem poderá ser de direito ou de equidade, a critério das partes. As partes
poderão escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública. As
partes também poderão convencionar que a arbitragem se realize com base nos
princípios gerais de direito, nos usos e costumes e nas regras internacionais de
comércio.
O artigo 3˚ dispõe que as partes interessadas podem submeter a solução
de seus litígio ao juízo arbitral mediante convenção de arbitragem, assim entendida a cláusula compromissória e o compromisso arbitral. O artigo 4˚, que é
do nosso interesse em estudo, define a cláusula compromissória como sendo a
convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato.
Desde a edição da Lei 9.307, a arbitragem teve um grande progresso no
Brasil, sobretudo no plano doméstico. O Judiciário tem favorecido os tribunais
arbitrais, revelando maturidade na sua relação com o instituto. Neste sentido, o
STJ tem afirmado a prevalência da cláusula arbitral, com a extinção do processo
sem julgamento do mérito (ARAUJO, 2008: 495).
No REsp 712.566 /RJ, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi (3ªTurma,
DJ de 5.9.2005), ficou consignado que, "com a alteração do art. 267, VII, do
CPC pela Lei de Arbitragem, a pactuação tanto do compromisso como da cláusula arbitral passou a ser considerada hipótese de extinção do processo sem
julgamento do mérito".
Isso significa uma maior aceitação do instituto da arbitragem como
solução de controvérsias bem como, que se dê prioridade para a solução do
conflito pela forma convencionada, evitando-se, assim, o excesso de demandas
no Judiciário.
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Importante destacarmos que defendemos o posicionamento de que a
eleição de um árbitro para solucionar a lide não significa renuncia ao direito de
ação. Também salientamos que a discussão acerca da constitucionalidade da
LArb foi esgotada pelo Supremo Tribunal Federal, STF, e não restam dúvidas
que esta lei é devidamente compatível com a Constituição Federal, CF, e que
respeita o princípio da simetria das normas.
Conforme Informativo 254 (SE-5206), o Tribunal, por maioria, declarou
constitucional a Lei 9.037/96, por considerar que a manifestação de vontade
da parte na cláusula compromissória no momento da celebração do contrato e
a permissão dada ao juiz para que substitua a vontade da parte recalcitrante em
firmar compromisso não ofendem o art. 5˚, XXXV, da CF, que dispõe que “a
lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
(ARAUJO, 2008: 493)
Seguindo a orientação de Nelson Nery Júnior (2007), com a celebração
do compromisso arbitral, as partes estão apenas transferindo, deslocando a jurisdição que, de ordinário, é exercida por órgão estatal, para um destinatário privado. Como o compromisso só pode versar sobre matéria de direito disponível, é
lícito às partes assim proceder.
No que concerne aos recursos contra a sentença arbitral, o art. 30 da
LArb, em seus incisos I e II, dispõe sobre a possibilidade de se corrigir qualquer
erro material da sentença arbitral e se esclarecer alguma obscuridade, dúvida ou
contradição da mesma, ou que o árbitro ou tribunal arbitral se pronuncie sobre
ponto omitido a respeito do qual devia manifestar-se a decisão.
O parágrafo 2˚, do artigo 21, dispõe que serão sempre respeitados no
procedimento arbitral os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da
imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento. Esclarece-se que o procedimento arbitral possui os meios de se corrigir possíveis erros ou omissões,
havendo a previsão das hipóteses de nulidade (art. 32 da LArb), destacando-se,
inclusive, as hipóteses de nulidade devidas a prevaricação, concussão ou corrupção passiva, bem como que se respeitem os princípios basilares processuais,
garantindo, desta forma, uma justa solução para o litígio.
Ressalta-se também que o artigo 32 da LArb dispõe que “a sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença
proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título
executivo”.
Nadia de Araujo (2008: 490) observa que a jurisprudência brasileira entende que, a exemplo do que se dá com o processo judicial, não se deve declarar
a invalidade da arbitragem quando ela alcança o seu objetivo, não obstante a
ocorrência de irregularidades formais (STJ, 4ª Turma, REsp 15.231 – RS). O
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que nos revela que até mesmo o procedimento arbitral deve seguir o princípio
da celeridade e da eficiência, não permitindo que irregularidades formais irrelevantes possam prejudicar a decisão de mérito do litígio, quando não se compromete
a justa solução.
2. ANTINOMIA JURÍDICA
Torna-se necessário expormos sobre a teoria clássica de Norberto Bobbio,
no que se refere às antinomias e seus critérios de solução de conflitos de leis, para
que possamos compreendê-las, em face do atual “pluralismo pós-moderno”, e
do necessário diálogo das fontes, expressão criada por Erik Jayme, defendida no
Brasil, por Claudia Lima Marques, e corroborada pelo Ministro Joaquim Barbosa,
no Supremo Tribunal Federal.
Na Teoria do Ordenamento Jurídico, de Bobbio (1999), temos a definição
de antinomia como àquela situação na qual são colocadas em existência duas
normas, das quais uma obriga e a outra proíbe, ou uma obriga e a outra permite,
ou uma proíbe e a outra permite o mesmo comportamento. Para que possa ocorrer antinomia são necessárias duas condições, quais sejam: 1) as duas normas
devem pertencer ao mesmo ordenamento jurídico; 2) as duas normas devem ter
o mesmo âmbito de validade.
Deve-se observar também que, tratando das antinomias impróprias, ressalta-se o fato de que um ordenamento jurídico pode ser inspirado em valores
contrapostos, em opostas ideologias. A Constituição de 1988, por exemplo, ao
estabelecer os princípios gerais da atividade econômica (art.170), traz à tona
princípios antinômicos, pois além de prever a livre iniciativa e a livre concorrência, também prevê a função social da propriedade, a defesa do consumidor
e a defesa do meio ambiente. As antinomias de princípios não são antinomias
jurídicas propriamente ditas.
No âmbito das antinomias próprias, temos a distinção entre as antinomias solúveis e insolúveis. Denominam-se “aparentes” as solúveis e “reais” as
insolúveis. Os critérios clássicos para a solução das antinomias são três: critério cronológico (lex porterior derogat priori), critério hierárquico (lex superior
derogat inferiori) e critério da especialidade (lex specialis derogat generali).
(BOBBIO: 1999).
No que concerne à insuficiência dos critérios, no caso de conflito entre
duas normas para o qual não valha nenhum dos três critérios acima expostos,
o intérprete, valendo-se das técnicas hermenêuticas, tem as possibilidades de
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eliminar uma norma (interpretação ab-rogante simples), eliminar as duas (dupla ab-rogação) ou conservar ambas (eliminação da incompatibilidade). Nesta
última hipótese, deve-se demonstrar que a incompatibilidade é puramente aparente. Bobbio já se referia à tendência de o intérprete não mais eliminar as normas incompatíveis, mas sim eliminar a incompatibilidade, através da forma de
interpretação corretiva.
Passamos agora ao estudo da relação existente entre o art.51, VII, da Lei
8.078/90 (CDC) e o art.4˚, §2˚ da Lei 9.307/96 (LArb).
Lei 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor: Art. 51.
São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços
que: (...) VII - determinem a utilização compulsória da arbitragem.
Lei 9.307/96 – Lei da Arbitragem: Art.4˚. A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um
contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato.
(...)
§2˚ Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só
terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a
arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em
negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa
cláusula.
Sob a ótica dessa possível “antinomia”, alguns autores, como Carvalho e
Silva (2008: 234), consideram a LArb incompatível com o CDC, pois induziria
à aceitação da arbitragem em contratos de adesão, infringindo os princípios da
vulnerabilidade, boa-fé e equidade que devem presidir as relações de consumo.
O autor conclui que a norma do artigo 4˚, §2˚ da Lei da Arbitragem é válida para
as relações civis e comerciais, conquanto não se aplique às relações de consumo.
Para Bessa (2009, p. 304), em que pese o cuidado da Lei 9.307/96 com a
vontade real do aderente, a doutrina sustenta majoritariamente que, em face da
vulnerabilidade do consumidor, principalmente quando pessoa natural, a instituição da arbitragem em contratos de adesão é extremamente desvantajosa para
o consumidor, e, portanto, nula de pleno direito.
Bessa (2009) também defende a indisponibilidade das normas do CDC,
pois cuida-se de norma de ordem pública e interesse social, não podendo ser
afastada por conjugação de vontade. Mostrando desta forma, a possível incompatibilidade do CDC com o procedimento da arbitragem, que legalmente só
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pode ser instituído para “dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis” (art.1˚).
É válido mostrarmos o posicionamento de Nelson Nery Júnior (2007),
ao se referir ao juízo arbitral como importante fator de composição dos litígios
de consumo, razão por que o Código não quis proibir sua constituição pelas
partes do contrato de consumo. A interpretação a contrario sensu da norma sob
comentário indica que, não sendo determinada compulsoriamente, é possível
instituir-se a arbitragem. Neste sentido, considerando que apenas são vedadas
as cláusulas que impliquem a utilização compulsória da arbitragem, Fontoura
Costa (2009) reitera que está longe o CDC, portanto, de vedar, mesmo antes da
vigência da Lei 9.307/96, a arbitragem em matéria de consumo.
Ressaltando-se a constitucionalidade da LArb, o que se exclui pelo compromisso arbitral é o acesso à via judicial, mas não à jurisdição. Como nos
mostra Nelson Nery Junior, não se poderá ir à justiça estatal, mas a lide será
resolvida pela justiça arbitral, havendo em ambas a atividade jurisdicional.
Fontoura Costa (2009) ressalta que aquilo que não está isento do crivo
dos órgãos jurisdicionais estatais são as questões de ordem pública, não todo
e qualquer juízo arbitral. Constituindo-se injustiça negar ao consumidor, convencido de eventuais vantagens, in casu, das formas alternativas de solução de
controvérsias, adotar, de comum acordo com o fornecedor, solução alternativa
à jurisdição.
Importante torna-se observarmos que o próprio §2˚ do art. 4˚ da LArb,
ao estabelecer que a cláusula compromissória, nos contratos de adesão, só terá
eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, demonstra estar em consonância com os princípios do CDC,
visando um equilíbrio na relação contratual, de forma a se respeitar a bilateralidade, principalmente nos contratos de adesão, que dariam margem para possíveis
cláusulas abusivas.
Em sua conclusão, Nelson Nery Júnior (2007), afirma que o art. 4˚, §2˚
da LArb não é incompatível com o CDC, art.51, VII, razão pela qual ambos
os dispositivos legais permanecem vigorando plenamente. Com isso queremos
mostrar a possibilidade de nos contratos de consumo, haver a instituição de
cláusula de arbitragem, desde que obedecida, efetivamente, a bilateralidade na
contratação e a forma da manifestação da vontade.
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3. DIÁLOGO ENTRE A LEI DA ARBITRAGEM E O CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR
No que concerne à coerência do ordenamento jurídico, Bobbio (1999)
nos revela que não é condição de validade, mas é sempre condição para a justiça
do ordenamento. O autor, fazendo referência ao dever de coerência, no caso
das normas de mesmo nível, contemporâneas, nos mostra que não há nenhuma
obrigação juridicamente qualificada, por parte do legislador, de não contradizerse, no sentido de que uma lei, que contenha disposições contraditórias, é sempre
uma lei válida, e são válidas, também, ambas as disposições contraditórias.
Claudia Lima Marques (2009) introduziu na doutrina brasileira a teoria
de Erik Jayme, que, em seu Curso Geral de Haia de 1995, ensinava que “em
face do atual “pluralismo pós-moderno” de um direito com fontes legislativas
plúrimas, ressurge a necessidade de coordenação entre as leis no mesmo ordenamento, como exigência para um sistema jurídico eficiente e justo”.
Pode-se conciliar o pensamento de Erik Jayme com o dever de coerência
defendido por Bobbio. Todavia, com a devida vênia, pensamos ser possível atualizar a Teoria do Ordenamento Jurídico, acrescentando o diálogo das fontes, de
Erik Jayme, de forma que, não mais haja necessidade de se excluir ou desaplicar a norma antinômica, mas sim compatibilizar as normas através do possível
diálogo. Marques (2009, p. 89) nos orienta que:
o uso da expressão do mestre, “diálogo das fontes”, é
uma tentativa de expressar a necessidade de uma aplicação coerente das leis de direito privado, co-existentes no
sistema. É a denominada “coerência derivada ou restaurada” (coherénce dérivée ou restaurée), que, em um momento
posterior à descodificação, à tópica e à microrrecodificação, procura uma eficiência não só hierárquica, mas funcional do sistema plural e complexo do nosso direito contemporâneo, a evitar a “antinomia”, a “incompatibilidade” ou
a “não-coerência”.
Considera-se ultrapassada a acomodada visualização antinômica das normas acima, pois devemos ir além dos ensinamentos de Bobbio. Consideramos
relevante toda sua teoria para a construção da ciência jurídica, no entanto, ela
por si só não se basta. Deve-se considerá-la como bagagem teórica, mas não
se pode olvidar que, na contemporaneidade, torna-se plenamente possível uma
aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas.
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Claudia Lima Marques (2009: 90) nos orienta que as influências recíprocas podem se dar
seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção pela fonte prevalente ou mesmo permitindo uma opção por uma das leis em conflito abstrato – uma
solução flexível e aberta, de interpenetração, ou mesmo a
solução mais favorável ao mais fraco da relação (tratamento diferente dos diferentes).
Há um grande avanço não só na doutrina, como também na jurisprudência
brasileira, por exemplo, quando o Supremo Tribunal Federal, julgando a ADIn
2.591, concluiu pela constitucionalidade do CDC a todas atividades bancárias,
reconhecendo a necessidade do atual diálogo das fontes. O Ministro Joaquim
Barbosa (MARQUES, 2009, p. 100), referindo-se à esta técnica, observa:
Não há, a priori, por que falar em exclusão formal entre essas espécies normativas, mas, sim, em “influências recíprocas”, em “aplicação conjunta das duas normas ao mesmo
tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja
subsidiariamente, seja permitindo a opção voluntária das
partes sobre a fonte prevalente”.
A autora exemplifica, por meio do “conflito” de uma lei anterior, como o
Código de Defesa do Consumidor de 1990, e uma lei posterior, como o Código
Civil, de 2002:
daí a necessária “solução” do “conflito” através da prevalência de uma lei sobre a outra e a consequente exclusão
da outra do sistema (ab-rogação, derrogação, revogação).
A doutrina atualizada, porém, está a procura, hoje, mais da
harmonia e da coordenação entre as normas do ordenamento jurídico (concebido como sistema) do que da exclusão.
Busca-se “uma eficiência não só hierárquica, mas funcional do sistema
plural e complexo do nosso direito contemporâneo, uma relação mais fluida e
flexível, tratando diferentemente os diferentes”. Claudia Lima Marques (2009)
também se refere a convivência de leis com campos de aplicação diferentes,
campos por vezes convergentes e, em geral, diferentes (no que se refere aos
sujeitos).
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Nesse sentido, havendo um diálogo entre as Leis 8.078/90 e 9.307/96, é
possível vislumbrarmos uma aplicação de ambas ao mesmo caso concreto, sem
que isso signifique uma desconsideração dos princípios do CDC, sem que se
prejudique a parte hipossuficiente e vulnerável da relação contratual, de forma
que não se trate de direitos indisponíveis, respeitando-se a base principiológica
de ambas as normas e, sobretudo, do ordenamento jurídico brasileiro, visto de
forma sistemática.
O CDC se originou graças a base principiológica de nossa Constituição
Cidadã (artigo 5˚, XXXII), por haver estabelecido como direito fundamental
a defesa dos consumidores, agentes econômicos mais vulneráveis no mercado globalizado, devendo ser conferido um tratamento diferenciado, conforme
princípio da isonomia.
A LArb prevê, no §2˚ do art. 21, que serão, sempre, respeitados no procedimento arbitral os princípios do direito processual civil, notadamente o
princípio do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro
e de seu livre convencimento. Isso significa que, ao se respeitar tais princípios,
bem como os previstos no CDC e na CF, e observando as restrições cabíveis,
torna-se plenamente possível estabelecer um diálogo sistemático de coerência,
complementaridade e subsidiariedade.
Importante torna-se esclarecermos que o posicionamento da Professora
Claudia Lima Marques é taxativo ao se mostrar contrário à utilização da via
arbitral nas relações de consumo, considerando que “cria um falso equilíbrio
(Scheingleicheit, na doutrina alemã), uma falsa bilateralidade de chances no
contrato, a qual não ocorrerá na prática. A passividade e vulnerabilidade do consumidor são a regra” (MARQUES, 2004, p. 1032/1037).
A professora mostra que seria incompatível o parágrafo 2° do art. 4° da
LArb com o CDC, tratando das cláusulas compromissórias, considerando inaplicável a Lei 9.307/96 às relações de consumo reguladas em contratos de adesão. Registra-se, portanto, que utilizamos a teoria adotada pela autora (diálogo
das fontes) para nossa fundamentação, mas isso não significa que ela considere
possível a utilização da LArb nos contratos de consumo, “relações per se tão
desequilibradas e afeitas a abusos”.
Todavia, reiteramos o posicionamento de que a relação entre o CDC e
a LArb não deve mais ser visualizada como “conflito”, mas sim como comunicação, realizando uma coordenação flexível e útil das normas, a fim de restabelecer a sua coerência, que se dá com a convivência das mesmas. Portanto,
entendemos ser possível a aplicação da teoria do diálogo das fontes nesse caso,
estando, ainda, em consonância com os argumentos de Nery Júnior (2007) e
Fontoura Costa (2009) já expostos no presente trabalho, sobre a utilização da
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arbitragem nas relações de consumo.
E em oportunidade em que se pôde debater pessoalmente sobre a temática
com a respeitada autora, esta concordou que, em situações peculiares, onde o
acesso à justiça é dificultado (nos referimos aos exemplos de comunidades na
Amazônia), a utilização da arbitragem seria viável e legítima, pois a solução do
conflito pela via judicial se mostra repleta de obstáculos, logo, seria uma situação excepcional.
Ressalta-se ainda que a hipótese central mostrada no presente estudo
(contratos de repartição equitativa de benefícios) sai da esfera das relações de
consumo, mas se considerou relevante ilustrar com essa polêmica discussão da
(in) compatibilidade entre a LArb e o CDC, por termos em comum matéria que
envolve direitos difusos e vulnerabilidade das partes.
4. VIABILIDADE DA ARBITRAGEM AMBIENTAL
A proteção do meio ambiente é um direito fundamental, consagrado
constitucionalmente (art. 225, caput; art. 170, VI, art.5˚, LXXIII). Com uma
visão antropocêntrica, o direito ao meio ambiente se baseia na dignidade da pessoa humana. A Carta Magna reconhece que se trata de um bem de uso comum
do povo, essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e a
coletividade defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Como afirma Teles da Silva (2007: 230), é necessário considerar que não
há possibilidade da concretização dos demais direitos fundamentais sem o direito ao meio ambiente, que se traduz em última análise como o próprio direito
à vida.
Um grande avanço da CF/88 é prever a solidariedade transgeneracional,
bem como a dimensão coletiva e difusa do direito e dever quanto à proteção do
meio ambiente, de forma a garantir um desenvolvimento socialmente justo e
ecologicamente correto.
E é também na CF que podemos encontrar as respostas para as antinomias modernas e a complexidade do pluralismo contemporâneo. Nesse sentido,
destaca-se sobre a garantia fundamental do conteúdo essencial dos direitos fundamentais.
Nahmias Melo (2003: 85) salienta que, partindo da premissa que os direitos, ainda que fundamentais, não são absolutos, é que temos que admitir a
limitação dos mesmos, até para possibilitar o seu exercício e dada a necessidade
de harmonização entre direitos fundamentais, torna-se imperiosa a relativização
dos mesmos.
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Para o presente trabalho, importa compreender a necessidade de harmonização em prol da visão sistemática e coerente do ordenamento jurídico
brasileiro, mesmo que signifique alguma relativização de um direito fundamental em face de outro, desde que não atinja seu núcleo essencial, desde que não
o exclua.
E é com base numa ótica sistemática e harmoniosa do ordenamento jurídico brasileiro, que vislumbramos ser possível compatibilizar o instituto da
arbitragem também quando se tratar de controvérsias que envolvam a proteção
do meio ambiente, desde que respeitadas limitações e restrições para sua utilização, conforme o caso concreto.
É válido destacarmos que o instituto da arbitragem em matéria ambiental
é muito utilizado no âmbito internacional. Um exemplo é o funcionamento da
Corte Internacional de Arbitragem Ambiental (International Court of Environmental Arbitration and Conciliation, ICEAC), constituída em 1994, no México.
Para os fins do presente estudo, no que tange ao âmbito internacional,
vamos nos limitar ao exemplo da Convenção da Diversidade Biológica (CDB),
ocorrida em 1992, durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, Rio-92.
Adam Samuel (2005), nos mostra que há dois tipos de razões para o uso
da arbitragem internacional. A primeira é que a arbitragem é desejável. A segunda é que não há alternativa a ela. Neste sentido, Fontoura Costa (2009a),
citando a aula, “International Arbitration is Not Arbitration”, em Montreal, de
Jan Paulsson, um dos mais conhecidos e atuantes árbitros internacionais, nos faz
refletir sobre a arbitragem internacional não como arbitragem, mas como única
possibilidade para os casos com elevada densidade de aspectos internacionais.
Apesar dessas considerações da arbitragem internacional como única alternativa, ela tem sido uma tendência para solucionar conflitos que envolvam
discussão ambiental. Para Silvana Colombo (2009: 763), a aplicação do instituto
da arbitragem para a solução de controvérsias em matéria ambiental é promissora no Brasil, argumentando pela comprovada utilidade da arbitragem ambiental
no âmbito internacional e também por se tratar de um instrumento mais célere,
contendo capacitação técnica nas decisões tomadas pelos árbitros especializados.
Entre as vantagens e características da arbitragem expostas pela autora
supracitada, no que concerne ao âmbito interno, está a escolha do árbitro de
acordo com as qualidades que consideram relevantes para o caso; a utilização
dos princípios gerais do direito e da equidade para decidir o conflito; a submissão do árbitro a certos parâmetros, entre eles, o dever de observar os comandos legais; o espírito de cooperação que circunda a relação entre as partes;
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a celeridade do juízo arbitral; e a possibilidade de obtenção de uma solução
eficiente, rápida e justa.
Na arbitragem, uma vantagem é cumular, na mesma pessoa, a qualidade
de conhecedor dos aspectos relevantes para a decisão e a de juiz. Outra vantagem exclusiva da via arbitral, é a de permitir que as partes contratantes possam
eleger o árbitro ou comissão arbitral que solucionará possíveis controvérsias, e
isso permite que haja um consenso na escolha, de forma a garantir a imparcialidade e também permitir que um expert, conhecedor e especialista da matéria
objeto do contrato, possa decidir com base no direito ou equidade.
Logo, considerando a complexidade das questões ambientais, a via arbitral se apresenta como uma alternativa, como mais um instrumento legítimo
que pode ser utilizado em prol da proteção ambiental e deve ser devidamente
proporcional à dimensão do problema ambiental in casu.
Deve-se, portanto, em termos da utilização da arbitragem ambiental, ser
considerado o princípio da precaução, que emerge do artigo 225 da Carta Magna, princípio este dotado de caráter de generalidade e que deve ser utilizado
para nortear as ações, possibilitando a proteção e a gestão ambiental, em face
das incertezas científicas. Frangetto (2006) refere-se a inclusão do conteúdo
ambiental da cláusula contratual compromissória também como forma de se
aproveitar beneficamente desta via para a prática de ações ambientais positivas.
Diante do exposto, considera-se a arbitragem ambiental como uma possibilidade não de substituição do Poder Judiciário, nem de exclusão de sua apreciação lesão ou ameaça de direito (art. 5˚, XXXV). Mas sim como mais uma opção de dirimir questões ambientais, respeitando-se certas restrições. Isso revela
um caráter não só de solução de lides para a arbitragem, mas também de um
meio de garantir, de forma eficaz, a proteção do meio ambiente, em consonância
com o princípio da precaução.
5. (IN) DISPONIBILIDADE DOS DIREITOS DIFUSOS
Importante lembrar que a LArb prevê sua utilização para dirimir conflitos
de natureza disponível. Nas disposições gerais da LArb, em seu artigo 1˚, caput,
dispõe que “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para
dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”.
Aqui se encontra nosso fundamento para a utilização do instrumento da
Arbitragem Ambiental, bem como a ressalva que deve ser observada. Na primeira parte do caput, temos que “as pessoas capazes de contratar poderão valerse da arbitragem”. Considerando que o objeto dos contratos é direito que se
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pode dispor e considerando, que há diversas situações em que se é lícito dispor
de bens ambientais (os considerados microbens), estando em jogo inclusive direito patrimonial e interesses econômico-financeiros (com os devidos cuidados
e limites que se deve observar, tendo em vista a supremacia da proteção ambiental sobre os interesses privados), vislumbraremos a existência de hipóteses de
cabimento da Arbitragem Ambiental.
Os direitos que podem ser objeto da arbitragem, portanto, são apenas
aqueles que podem ser avaliados em termos pecuniários (patrimoniais) e, ao
mesmo tempo, podem ser alienados ou cedidos pela parte (disponíveis). Ocorre,
porém, que o bem jurídico ambiental é aquele constitucionalmente considerado
como bem de uso comum do povo. Todavia, devemos retomar ao exposto acima
acerca da relativização de um direito fundamental, sem que se atinja sua essência. Ou seja, havendo determinadas limitações, torna-se possível a flexibilização
do direito difuso em questão, adotando o critério da ponderação.
A previsão do artigo 1˚ da LArb, nos mostra a coerência do ordenamento
jurídico e mais uma vez, a simetria desta lei com os mandamentos constitucionais, pois a própria LArb estabelece a limitação legal para a instituição da
arbitragem, qual seja quando se tratar de direitos disponíveis, o que nos revela
a nulidade da cláusula arbitral que não estiver em consonância com esta ordem
principiológica. Destaca-se, neste sentido, que não há que se falar que a LArb
fere interesses das partes hipossuficientes envolvidas, pois só caberá a cláusula
arbitral, quando elas são aptas a contratar, livremente e de comum acordo, envolvendo bens que possam dispor.
Percebe-se que muitos dos problemas ambientais não são objeto de processo que os dirima, por se tratarem de questões aparentemente irrisórias e,
por isso, raramente levados à apreciação de um terceiro. Quando muito, as
próprias partes, em conjunto, chegam a um acordo, conforme nos alerta Frangetto (2006). Ressalta-se que a via arbitral é cabível para questões relacionadas
aos microbens ambientais, diferentemente de quando se afeta o macrobem, que
constitui aquele complexo conjunto da universalidade do ambiente.
Microbens são aqueles de que as pessoas podem dispor, mesmo possuindo o caráter de bem ambiental. Encontram-se, porém, delimitados pelo direito
privado, pois são disponíveis, mas estão sempre amparados e sofrem influências
diretas dos princípios constitucionais e de interesse público, como a função social da propriedade, por exemplo. Trata-se da concretização de uma interpretação e interpenetração de princípios “antinômicos”, é a materialização do dever
de coerência e do diálogo das fontes.
Adotamos a ótica da transversalidade do Direito Ambiental, e com o
escopo de corroborar este entendimento, importante ressaltar o que Cristiane
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Derani (2008) nos ensina, pois normas de diversos ramos compõem o direito
ambiental. A autora reitera que a visão setorizada não deve prosperar, se se quer
tornar efetivos os princípios da Constituição Federal, prescritos sobretudo nos
seus arts. 170 e 225, pois a Constituição não pode ser interpretada aos pedaços.
Retomando a discussão da indisponibilidade dos direitos difusos, encontramos a conceituação de interesses ou direitos difusos, no artigo 81, I do CDC,
assim entendidos os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstância de fato.
Considerando que a transação é um ato jurídico bilateral que implica em
renúncias e concessões recíprocas, em geral, só quem tem o poder de dispor dos
direitos pode transacionar. Interessa, portanto, verificar se os direitos difusos podem ser objeto de transação, especialmente, porque não pertencem a um sujeito
determinado. (COLOMBO: 2006).
A admissibilidade da arbitragem ambiental se torna óbvia, ao refletirmos
sobre a afirmativa de Silvana Colombo, de que “o fato do bem jurídico ambiental, qualificado como uso comum do povo, ter natureza difusa, não exclui a possibilidade de a proteção ambiental ser submetida ao regime jurídico de direito
privado”.
Destaca-se acerca da utilização do TAC – termo de ajustamento de conduta, previsto na Lei da Ação Civil Pública, e também citamos o instrumento
da transação penal para as infrações de menor potencial ofensivo para a solução
de conflitos ambientais. Neste sentido, é possível vislumbrarmos a utilização do
instrumento da arbitragem, visando justamente uma proteção ambiental mais
eficiente, o que confere ao instrumento da arbitragem, um meio de tutela ambiental extrajudicial.
6. CLÁUSULA ARBITRAL NOS CONTRATOS DE UTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO GENÉTICO E DE REPARTIÇÃO DE BENEFÍCIOS
A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), objetiva a conservação
da diversidade biológica, o aproveitamento sustentável dos recursos e a justa e
equitativa repartição dos benefícios decorrentes da utilização de recursos genéticos. É necessária uma regulamentação do acesso aos recursos genéticos, para
um maior desenvolvimento de medidas que assegurem uma justa e equitativa
repartição de benefícios para os estados detentores do conhecimento tradicional.
Neste sentido, o artigo 8 da CDB exige que as partes:
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Respeitem, preservem e mantenham o conhecimento, as
inovações e práticas das comunidades locais e indígenas
que incorporem estilo de vida tradicionais, relevantes para
a conservação e o uso sustentável da diversidade biológica
e promovam sua maior aplicação, com a aprovação e o envolvimento dos portadores desse conhecimento, inovações
e práticas e encorajem a equitativa repartição dos benefícios originários de sua utilização.
Para entendermos a problemática que envolve a utilização da biodiversidade, devemos atentar que, embora as patentes possam de fato proteger os
interesses de todas as partes envolvidas, no que se refere à bioprospecção, isto
muito raramente acontece, pois pouquíssimas vezes ou nunca comunidades indígenas são convidadas a ter conjuntamente uma patente ou que os curandeiros
tradicionais sejam chamados de inventores (DUTFIELD: 2004).
Dutfield expõe como outra possível razão para a falha da justa repartição
de benefícios é que as empresas que usam material genético e conhecimento
tradicional associado preferem negociar com os governos e manter distância das
comunidades indígenas. Outras questões que, para o autor, tornam o sistema de
patentes inútil, na promoção da repartição justa e equitativa dos benefícios são
a extensão de patentes a substâncias descobertas na natureza e o problema da
concessão de patentes que não seriam concedidas se os critérios de inovação e
passo inventivo fossem respeitados. Sendo outra questão a oportunidade que o
sistema dá a empresas e pesquisadores para que adquiram direitos exclusivos de
patente por invenções que não ocorreriam sem prévio acesso ao conhecimento
tradicional.
Há normas legais que consideram a biodiversidade como bem público,
implicando a possibilidade de restringir direitos de propriedade, enquanto outras
preferem classificá-la como bem de uso comum do povo ou interesse público.
Para Varella, no contexto jurídico brasileiro não cabe classificar a biodiversidade
como bem público, pois a natureza jurídica dos contratos, a possibilidade de comercialização dos bens por particulares e o caráter das limitações impostas pelo
Poder Público demonstram a melhor caracterização como um bem de interesse
público.
Considerando que as comunidades locais ou grupos indígenas formam
a parte hipossuficiente no contrato de repartição de benefícios, não sendo uma
relação contratual equilibrada, em geral, as comunidades não têm condição para
efetivamente controlar o cumprimento do contrato. Desta forma, além da fiscalização do cumprimento do contrato e respectiva repartição equitativa de benefícios, ser
feita pelos próprios atores diretamente envolvidos, deve também ser realizado
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pelo poder público, pela sociedade civil organizada, universidades, etc.
Como Varella (2004) nos mostra, uma alternativa é que o governo assista
as comunidades na implementação e sanção das cláusulas contratuais, exemplificando com o caso do contrato ICBG (Grupos Cooperativos Internacionais da
Biodiversidade) da Nigéria, em que se contratou a Universidade Howard para
garantir os pagamentos de royaltyies.
E, por que não se acrescentar o instrumento da arbitragem como forma
de solução de possíveis conflitos, com árbitros especializados e imparciais nos
casos de repartição de benefícios quando a União não for parte no contrato, ou
seja, quando o regime jurídico for o de direito privado.
A Constituição de 1988, assim como a Lei n. 388/97 , do Estado do Amapá,
propõe a efetiva participação dos povos indígenas e comunidades locais. No que
tange ao contexto nacional, o Projeto de Lei do Senado, PLS 306/95, de autoria
da Senadora Marina Silva (PT-AC), previa uma comissão mista para análise dos
pedidos de acesso, composta de representantes do governo federal, estadual e
DF, da comunidade científica, de povos locais ou tradicionais, povos indígenas,
ONG’s e empresas privadas. Todavia, em 2001, o Executivo editou uma MP
2.186 e, através do Decreto 3.945, foi definida a composição do Conselho de
Gestão do Patrimônio Genético, composto por órgãos e entidades da Administração Pública Federal.
A Lei Ordinária n.388/97 do Estado do Amapá prevê uma proteção
mais ampla e participação plural ao dispor sobre os instrumentos de controle
do acesso à biodiversidade do Estado do Amapá, pois prevê que a autorização
para acesso aos recursos genéticos não implica em autorização para sua remessa
ao exterior, a qual deverá ser previamente solicitada e justificada à autoridade
competente, sendo ilegal o uso de recursos genéticos com fins de pesquisa, conservação ou aplicação industrial ou comercial que não conte com o respectivo
certificado de acesso.
Pontos interessantes previstos na referida lei são a responsabilidade solidária
e a criação de comissão plural, composta por representantes do Governo Estadual,
dos municípios, da comunidade científica e de organizações não-governamentais,
valendo-se da colaboração das empresas privadas para desenvolver planos, estratégias e políticas com o escopo de conservar a diversidade biológica e assegurar
que o uso dos seus elementos seja sustentável, estimular a criação e o fortalecimento de unidades de conservação e capacitar pessoal para proteger, estudar e
usar a biodiversidade, entre outros.
Não é por acaso que as repartições de benefícios que vem ocorrendo no
Estado do Amapá são uns dos poucos casos positivos, pois a Lei n.388/97 do
Estado do Amapá também é um exemplo a ser seguido pelos demais Estados.
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Considerando também, que em diversos casos na Amazônia, não há nem sequer
contratos, poucos destes casos nos quais há ausência de repartição de benefícios pela exploração econômica de acesso a recursos genéticos e conhecimentos tradicionais na Amazônia vem sendo denunciados, e, através de ações civis
públicas, discutidos com morosidade, mas com expectativas de decisões justas
pelo Judiciário.
A coincidência de no Estado do Amapá haver um histórico de contratos
e mobilização das comunidades (através da COMARU, Cooperativa Mista dos
Produtores e Extrativistas do rio Iratapuru, por exemplo), nos mostra que há influência da legislação estadual pertinente, pois, com os rigores, restrições e sanções previstas para a exploração econômica de produtos oriundos da floresta, de
forma preventiva, ações são direcionadas visando uma maior sustentabilidade
com o manejo florestal adequado e uma maior justiça social.
É nesse sentido que vislumbramos o ideal de desenvolvimento sustentável,
com as comunidades indígenas e tradicionais sendo convidadas a participar,
sem que sejam exploradas. Conforme expõe OLIVEIRA (1999), “a recuperação
da história dos dominados é muito recente”, devemos, portanto, buscar superar
o “consenso imposto”, o que significa o próprio questionamento da repartição
de riqueza.
Portanto, espera-se que a realidade dos contratos de repartição possa estar
cada vez mais expandida pela Região Amazônica, que as comunidades possam estar se organizando, se conscientizando e se beneficiando com a justiça
democrática de proximidade, através da informação e acesso à justiça, podendo
optar por soluções extrajudiciais para suas lides.
Devemos atentar ao cumprimento efetivo do contrato e se a repartição
está sendo equitativa realmente. Nesse sentido, pode-se observar a situação precária da comunidade descrita no resumo público de certificação da COMARU,
feita com o propósito de avaliar a sustentabilidade ecológica, econômica e social do manejo florestal da cooperativa.
Tendo em vista a grande lucratividade com a comercialização de produto
oriundo do recurso genético e conhecimentos tradicionais dos povos da floresta,
é nítida a situação de desigualdade, pois a porcentagem da renda aferida com
a venda dos produtos convertida em benefícios para a comunidade local ainda
é pequena, ao compararmos à relevância que possui o acesso e utilização do
recurso.
O artigo 25 da MP 2.186-16/2001 estabelece que os benefícios decorrentes da exploração econômica de produto ou processo desenvolvido a partir
de amostra do patrimônio genético ou de conhecimento tradicional associado,
poderão constituir-se, dentre outros, de divisão de lucros, pagamento de roy198
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alties, acesso e transferência de tecnologias, licenciamento, livre de ônus, de
produtos e processos, e capacitação de recursos humanos.
Todavia, devemos ressaltar que é tênue a linha que separa a repartição
de benefícios equitativa e efetiva de uma política assistencialista e publicitária.
Ainda estamos longe de alcançar um equilíbrio na relação contratual. Mas ressalta-se que as perspectivas são positivas e, quanto maior a mobilização social,
a conscientização e participação da comunidade, mais justa será a repartição,
dependendo, é claro, de um maior acesso, dos povos da Amazônia, à educação
e informação, para lutarem por seus direitos.
Assim como se reconhece a vulnerabilidade do consumidor, a exigência
de observância à boa-fé objetiva, o dever do fornecedor de agir com transparência para se estabelecer o equilíbrio e a harmonia entre as partes contratantes e,
sobretudo, o respeito aos interesses econômicos do consumidor, reconhecemos
também que há uma maior vulnerabilidade e hipossuficiência quando trata-se
dos povos tradicionais e indígenas e seus acordos com empresas, geralmente
multinacionais, concedendo o acesso e uso dos seus conhecimentos sobre a biodiversidade.
No entanto, a utilização da arbitragem ambiental nos contratos de repartição equitativa, longe de ser um meio em que as partes economicamente mais
fortes teriam para se beneficiar, pode ser utilizada, conforme os preceitos constitucionais e de defesa do meio ambiente, como um instrumento para garantir
o cumprimento das cláusulas contratuais que beneficiam as comunidades tradicionais, já que são explícitas as dificuldades que os povos indígenas e as comunidades tradicionais têm para exigir o cumprimento dos deveres e obrigações
expressos nos contratos, seja por má informação, índice não satisfatório de alfabetização e conscientização política, dificuldades de transporte e locomoção até
os centros mais urbanizados, onde se encontram os órgãos que poderão oferecer
assistência judicial, entre outros fatores.
Um dos princípios elencados por Francisco Arcanjo (1997), ao tratar da
Convenção sobre Diversidade Biológica e Projeto de Lei do Senado n. 306/95,
está a “definição clara da atribuição jurídica das comunidades para firmar contratos ou outros instrumentos de acesso e defender seus direitos, administrativa
e judicialmente”.
No sentido de firmar a referida atribuição das comunidades, entendemos
que com a devida orientação e um acesso mais direto que estas comunidades
terão em buscar auxílio com os árbitros que foram por elas eleitos para dirimir
possíveis conflitos de interesses, teremos uma maior eficiência e garantia de que
os direitos destes povos estarão sendo protegidos na prática, uma vez que não
há que se questionar sobre as facilidades de acesso à justiça, quando se trata de
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formas de conciliação e solução, através de vias extrajudiciais.
Boaventura de Souza dos Santos (2008) mostra a viabilidade de se adotar
novas medidas que combatem à morosidade e a dificuldade do acesso à justiça,
inclusive no que concerne a questão das custas judiciais. O autor menciona alguns exemplos de inovações institucionais que caminham em consonância com
o raciocínio aqui exposto. Para SANTOS (2008: 57), “o que precisamos é de
uma justiça democrática de proximidade”, o que exemplifica com os juizados
especiais que valorizam os critérios de autocomposição, da equidade, da oralidade, da economia processual, da informalidade, da simplicidade e da celeridade.
A criação de um regime jurídico verdadeiramente específico e apropriado
para a proteção dos conhecimentos tradicionais associados deve se basear nas
concepções do pluralismo jurídico e no reconhecimento da diversidade jurídica
existente nas sociedades tradicionais (SANTILLI, 2005: 217).
Nesta mesma linha de pensamento e visando a concretização de um acesso à justiça democrática de proximidade é que entendemos ser a arbitragem ambiental plenamente possível como um instrumento de solução de controvérsias nos
contratos de acesso e uso da biodiversidade, visando uma isonomia na relação
contratual, objetivando, sobretudo, uma tutela eficaz e extrajudicial socioambiental, com base nos princípios da precaução, da supremacia do bem ambiental
sobre o interesse privado e do desenvolvimento sustentável.
Nesse sentido, entendemos que a arbitragem em matéria ambiental pode
contribuir para o desafio de se construir um regime jurídico diferenciado e apropriado para a proteção dos conhecimentos tradicionais, tendo em vista o caráter
facilitador do acesso à justiça democrática de proximidade que este instituto
possui.
Salienta-se que, entre os princípios da LArb, há o da imparcialidade do
árbitro. Respeitando-se esse princípio, temos uma grande vantagem na arbitragem ambiental, pois a tecnicidade, a maior especialização do árbitro ou tribunal
arbitral, colabora para um maior discernimento acerca das questões socioambientais, o que poderá ensejar uma solução justa para os litígios.
É válido ressalvarmos que, das vantagens sempre atribuídas à arbitragem – celeridade, tecnicidade e sigilo – não se poderá insistir na última quando
em face de controvérsias sobre repartição de benefícios, nas quais o interesse
público na maior transparência possível sobrepuja, com larga folga, quaisquer
interesses privados de sigilo que vão além de aspectos estritamente técnicos cuja
divulgação venha a acarretar indevido prejuízo a qualquer das partes na relação.
Observando a convergência entre o CDC e a LArb, destaca-se que a
maior resistência prática e doutrinária se opõe aos contratos padronizados e de
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adesão, o que não é o caso das complexas relações enfeixadas nos contratos de
repartição de benefícios. Se os instrumentos de adesão contam com a possível
desatenção ou fragilidade do consumidor, em instrumentos nos quais cada detalhe
é revisado e a arquitetura das obrigações cuidadosamente traçada, há pouco espaço para a desinformação ou o engano. Se as comunidades envolvidas, sujeitos
capazes de transacionar sem a necessidade de assistência paternalista, desejam,
por qualquer razão que seja, submeter todo ou parte do acordo à arbitragem, não
é legítimo impor formas mais caras, lentas e imprecisas de solução de controvérsias.
No que concerne à tutela jurídica de apropriação do meio ambiente, ao
comentar o §3˚ da Medida Provisória n. 2.186-16/01, que regulamenta a Convenção sobre Diversidade Biológica, Cristiane Derani (2003), nos mostra que
o dispositivo limita a interpretação do direito de acesso ao valor ambiental e
propriamente ao exercício da propriedade da coletividade detentora do bem.
A autora nos mostra que o direito de propriedade intelectual é previsto
no caso de uso econômico do conhecimento acessado, ou seja, para uso de mercado. O conhecimento como valor de uso prescinde da atribuição de direito de
propriedade, basta ao direito resguardá-lo e assegurar o seu uso definindo, seus
titulares e correlatos poderes (DERANI: 2003). E ainda:
Quando a apropriação da cultura passa a gerar direitos de
propriedade individualizados, é importante cuidar para que
a fonte desta riqueza apropriada não seja destruída. A cultura representa uma riqueza, que poderá ser traduzida por
um preço ao ser privatizada e inserida no mercado. Porém,
nem sempre preço equivale ao valor da riqueza, sobretudo
se esta riqueza não é produzida no interior do mercado.
Neste sentido e aplicável ao presente estudo e propostas apresentadas, é a
afirmação da autora, tratando das dimensões da tutela da relação de apropriação
do meio, em que “não se trata de idealizar um e satanizar outro. O importante é
conhecer as possibilidades e os limites ofertados por cada uma destas categorias
para a construção do verdadeiro desenvolvimento das potencialidades humanas
e do poder criativo da cultura para construir o bem-estar das sociedades humanas” (DERANI: 2003).
Em suma, entende-se como viável a aplicabilidade do instrumento arbitral
nos contratos de repartição equitativa de benefícios, quando o escopo da arbitragem ambiental se encontra em consonância com a proteção do meio ambiente,
incluindo os aspectos sociais e culturais, além do aspecto natural; quando se
respeita a isonomia na relação contratual, considerando o tratamento diferenciado
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dado aos hipossuficientes; quando há o acesso pleno à informação, o consenso
ao se estabelecer a cláusula arbitral, e escolha dos árbitros, com imparcialidade
e princípios éticos e de honestidade; quando se tratar de direitos disponíveis,
ou seja, passíveis de apropriação e exploração econômica, e em conformidade
com os preceitos da Constituição, da Convenção sobre Diversidade Biológica,
por conseguinte, da MP 2.186-16/2001 e, quando houver, da legislação estadual
pertinente (exemplo do Estado do Amapá).
CONCLUSÃO
Considerando que, mesmo sendo o bem ambiental um bem de uso comum do povo, esta previsão constitucional de sua natureza difusa, não é empecilho para que haja hipóteses legais e legítimas onde ocorra apropriação do
Meio Ambiente, considerando também a supremacia do bem ambiental sobre os
interesses privados e o princípio da precaução, além de sua essência de solucionar controvérsias, a arbitragem em matéria ambiental poderá adquirir, quanto
maior for sua credibilidade, um caráter de garantia da eficácia na proteção do
meio ambiente, através de ações ambientais positivas.
Com base na visão sistemática e da transversalidade do direito ambiental,
conclui-se como possível a utilização da cláusula arbitral nos contratos de repartição equitativa de benefícios pelo acesso e uso da biodiversidade e conhecimentos tradicionais associados. E o fundamento desta aplicação se baseia
na necessária concretização da justiça democrática de proximidade, pois com
a celeridade e as facilidades de acesso à justiça pela via extrajudicial e a maior
informalidade que se tem na provocação do árbitro para dirimir os conflitos,
considera-se a arbitragem como um meio justo e eficaz para que haja realmente
o cumprimento das cláusulas estabelecidas no contrato de acesso a conhecimentos tradicionais e uso da biodiversidade, garantindo uma concreta proteção
socioambiental.
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A NECESSIDADE DE TUTELA PENAL CONTRA A
BIOPIRATARIA NA AMAZÔNIA
Aline Ferreira de Alencar*
Fernando Antônio de Carvalho Dantas **
Maria Auxiliadora Minahim***
Sumário: Introdução; 1. Biopirataria na Amazônia Brasileira; 1.1 A necessidade de Tutela do Direito Penal sobre o Crime de Biopirataria; 1.2 A importância da identificação
do bem jurídico a ser tutelado pelo direito penal no crime de Biopirataria; 1.3 Reflexões
sobre formas de evitar e combater a biopirataria na Amazônia Brasileira; Considerações
Finais; Referências.
Resumo: Embora não possua definição
jurídica ou legal, a Biopirataria pode ser
considerada apropriação não autorizada do
patrimônio genético de uma região, incluindo espécies da fauna, flora e dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Essa atividade ocorre nos países
biodiversos, incluindo o Brasil, mais especificamente a Amazônia Brasileira, que
possui uma riquíssima biodiversidade, e at-
Abstract: Even so does not have no legal
definition, the biopiracy can be considered
a non authorized appropriation of certain
region genetic patrimony, including fauna,
flora and traditional knowledge associated
to biodiversity. This kind of activity happens in developing countries, including
Brasil, especially in the Brazilian Amazon,
region rich in biodiversity, that attracts the
lust for natural sources, by countries with
* Advogada e Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do AmazonasUEA.
** Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do
Paraná. Professor do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Professor convidado do Programa de Doutorado Direitos
Humanos e Desenvolvimento da Universidad Pablo de Olavide em Sevilha, Espanha.
Professor convidado do Programa de Doutorado em Pensamento Latinoamericano da
Universidade Nacional da Costa Rica. Professor colaborador do Centro de Estudos Sociais CES, da Universidade de Coimbra Portugal. Ex-procurador Geral da Fundação
Nacional do Índio.
*** Doutora e Mestre em Direito Penal pela Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná, Professora Associada da Universidade Federal da Bahia, presidente nacional da Associação Brasileira de Professores
de Ciências Criminais e membro do Conselho de Direitos Humanos da Bahia.
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rai a cobiça dos países ricos em tecnologia
e pobres em biodiversidade, que desejam
fabricar novos produtos, com o objetivo
exclusivo de gerar lucro. Portanto a natureza passa a ser vista como matéria prima,
fonte de capital. É neste contexto que a apropriação dos conhecimentos tradicionais
associados à biodiversidade, pertencentes
aos povos indígenas e populações tradicionais, representam um poderoso atalho para
a criação de novos produtos, pois através
da bioprospecção é possível alcançar os
resultados desejados com racionalidade
econômica. A biopirataria atenta contra
os interesses nacionais e contra os direitos
humanos, por essa razão sugere-se a que
a atividade seja criminalizada pelo Direito
Penal, em virtude da relevância do bem
jurídico a ser tutelado, o meio ambiente.
Além disso, para se coibir a biopirataria
na Amazônia, é necessário o aumento de
fiscalização na região, investimento em
ciência e tecnologia, bem como a aplicação dos princípios da informação, educação e participação ambiental como forma
de aliar os esforços do Poder Público e da
coletividade para que ocorra a prevenção
dessa atividade nociva ao Brasil e aos detentores do conhecimento tradicional.
technology, however poor in biodiversity,
who intends to manufacturate new products, obtaining great financial returns.
Therefore the nature is seen like raw material, source of capital gains. In this context,
the appropriation of the traditional knowledge associated to biodiversity, from the
Indians people and traditional populations,
depicts a powerful short cut to create new
products, because using the bioprospection is possible to reach the good results
with economic rationality. The biopiracy
attempts against the national interest and
human rights, for that reason there is a
suggestion to punish this activity by the
criminal law, considering the relevance of
the object, the environment. Also, to curb
on biopiracy, there is also a necessity to
improve the surveillance in the Brazilian
Amazon, investment in research, and the
application of the information, education
and environmental participation principles, as a way of combining the State and
collectivity, to prevent this harmful activity to Brazil and the traditional knowledge
keepers.
Palavras-chave: Biopirataria; Conheci- Key-words: Biopiracy; Traditional Knowlmento Tradicional Associado; Biodivers- edge; Biodivesirty; Brazilian Amazon; Geidade; Amazônia Brasileira; Patrimônio netic Patrimony
Genético; Tutela Penal.
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INTRODUÇÃO
A presente investigação científica tem por escopo analisar a necessidade
de tutela penal contra a biopirataria na Amazônia. A relevância desta temática
ocorre em razão do reducionismo responsável por considerar a biodiversidade
e os conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético como mercadorias, bem como pela ausência de tipificação legal e penal para a atividade
da biopirataria, a qual traz inúmeros prejuízos para o Brasil, bem como para os
povos indígenas e populações tradicionais.
Vandana Shiva entende que a biopirataria pressupõe uma nova forma de
colonialismo, “é a ‘descoberta’ de Colombo 500 anos depois de Colombo. As
patentes ainda são o meio de proteger essa pirataria da riqueza dos povos não
ocidentais como um direito das potências ocidentais”. Para a autora, “resistir à
biopirataria é resistir à colonização final da própria vida. [...] É a luta pela conservação da diversidade, tanto cultural quanto biológica”.
A biopirataria é um problema que assola os países biodiversos, inclusive
o Brasil, que possui a maior parte do ecossistema da Amazônia em seu território
nacional. A região, segundo Ozório Fonseca, é também denominada Amazônia
Continental, Grande Amazônia ou Panamazônia e contém as seguintes características importantes:
1/5 da água doce do Planeta (sic); 1/3 das florestas latifoliadas; 1/3 das árvores do mundo; 80.000 espécies vegetais;
Mais de 200 espécies de árvores por hectare; 30 milhões
de espécies animais; Aproximadamente 1.500 espécies de
peixes conhecidas; Cerca de 1.300 espécies de pássaros;
Mais de 300 espécies de mamíferos; 10% da biota universal; 1/20 da superfície da Terra; 750 milhões de hectares
(500 milhões no Brasil); 4/10 da América do Sul; Mais de
30% da biodiversidade do Planeta; 350 milhões de hectares
de florestas; 17 milhões de hectares de Reservas e Parques
Nacionais; Maior rio do mundo em extensão (Amazonas,
com 6.577 km); Maior rio do mundo em volume de água
(vazão média de 200.000 m3/s); Aproximadamente 80.000
km de rios; Cerca de 25.000 km de vias navegáveis;. A
maior província mineral do globo; Mais ou menos 30% do
estoque genético da Terra.
O Brasil também é rico em seu contexto humano, assim, estima-se que,
na época da chegada dos europeus, existiam cerca de 1.000 povos indígenas
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no país, somando entre 2 e 4 milhões de pessoas. Atualmente, há no território
brasileiro 227 povos, que falam, aproximadamente, 180 línguas diferentes. A
maior parte dessa população distribui-se por milhares de aldeias, situadas no
interior de 593 terras indígenas, de norte a sul do território nacional.
O território nacional também abarca as populações tradicionais, representadas por sujeitos sociais com existência coletiva, que incorporam pelo critério político-organizativo uma diversidade de situações correspondentes aos
denominados seringueiros, quebradeiras de coco babaçu, quilombolas, ribeirinhos, castanheiros e pescadores, os quais se têm estruturado igualmente em
movimentos sociais.
As populações tradicionais assim como os povos indígenas são detentores dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e representam
os saberes pertencentes a esses povos, que possuem formas diversas de se relacionarem com a natureza.
Os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade atraem o interesse das nações desenvolvidas, principalmente representadas pelos países do
Norte, pobres em biodiversidade, mas ricos em tecnologia e, por essa razão,
buscam apropriar-se desses saberes para fabricar produtos, com o objetivo de
gerar lucro.
Por fim, buscou-se com esse estudo analisar a necessidade de tutela penal
contra a biopirataria na Amazônia, bem como refletir sobre formas de coibir
essa atividade na região, sem pretensões de esgotar tão vasto assunto, mas contribuir de maneira reflexiva com a essa discussão.
1. BIOPIRATARIA NA AMAZÔNIA BRASILEIRA
Embora a apropriação do patrimônio genético e o acesso aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade de forma não autorizada, por
meio da biopirataria ocorra em vários países biodiversos, bem como em diversas
regiões do Brasil, este trabalho analisa a biopirataria na Amazônia Brasileira, a
qual representa uma região emblemática por possuir a maior sociobiodiversidade do Planeta e atrai a atenção financeira dos biopiratas.
Nesse contexto, Bertha Becker enumera algumas características únicas
da Amazônia:
É fácil perceber a importância da riqueza in situ da Amazônia. Correspondendo a 1/20 da superfície da Terra e a 2/5
da América do Sul, a Amazônia Sul-Americana contém 1/5
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da disponibilidade mundial de água doce, 1/3 das reservas
mundiais de florestas latifoliadas e somente 3,5 milésimos
da população mundial. E 63,4% da Amazônia Sul-Americana estão sob a soberania brasileira, correspondendo a mais
da metade do território nacional.
A valorização ecológica da Amazônia, de acordo com Bertha Becker,
apresenta duas faces: “a da sobrevivência humana e a do capital natural, sobretudo, neste caso, a megadiversidade e a água” . A autora considera, ainda, a
existência de três grandes eldorados: os fundos oceânicos, que ainda não estão
regulamentados; a Antártida, que foi partilhada entre as potências; e a Amazônia, a única que pertence a majoritariamente um só Estado Nacional, qual seja
o Brasil.
Ao observar as riquezas existentes na Amazônia, percebe-se o motivo de
a região ser tão atrativa para os países desenvolvidos, os quais almejam se utilizar da biodiversidade para criar ou aprimorar novas tecnologias e depois vendêlas, amparados pelo sistema mundial de patentes, o qual acaba por legitimar a
apropriação privada da biodiversidade.
Danilo Lovisaro do Nascimento possui também o mesmo entendimento,
ao afirmar que a exploração dos conhecimentos tradicionais e da biodiversidade
realizada pelos países desenvolvidos, sem a autorização dos Estados ou dos povos indígenas e populações tradicionais dos países menos desenvolvidos, possui
como maior estimulador o acordo de TRIPs:
O principal mecanismo jurídico para garantir aos países
desenvolvidos a exploração desse patrimônio alheio e
colhido sem autorização tem sido o monopólio decorrente de patentes, que vêm sendo conferidas a esses países
por meio do Acordo Geral sobre Propriedade Intelectual
(TRIPS) no âmbito da Organização Mundial do Comércio.
Por outro lado, em razão das dimensões continentais, bem como das complexidades geopolíticas da Amazônia, especificamente a Brasileira, a biopirataria na região ocorre das mais diversas formas: pesquisadores disfarçados de
turistas ou estudantes, os quais adentram na Amazônia para coletar elementos
da biodiversidade, organizações não governamentais (ONGs) de fachada, falsos
missionários de várias seitas e religiões, contrabandistas, dentre outros, cujo
único propósito é espoliar os recursos naturais, principalmente pela utilização
dos conhecimentos tradicionais.
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Quando esses “pesquisadores” se utilizam dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade para a fabricação de novos produtos, reduzem
consideravelmente o tempo de pesquisa e dinheiro no patamar de até 400% de
economia, motivo pelo qual esse conhecimento representa grande “valor” aos
biopiratas.
Além disso, observa-se que as dimensões continentais da Amazônia
Brasileira representam um fator incentivador para a prática da biopirataria e,
por essa razão, a imensidão da região configura um obstáculo a ser enfrentado
para se evitar a biopirataria, em virtude da necessidade de fiscalização e controle, uma vez que essa atividade ilícita pode ser realizada em qualquer ponto
dos cinco milhões de quilômetros quadrados da região.
Da mesma forma, Ozório José de Menezes Fonseca explica que a espoliação da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais da Amazônia Brasileira,
por meio da biopirataria, é facilitada por inúmeros artifícios utilizados pelos
biopiratas que possuem conhecimento, dentre outras limitações, sobre a precariedade de fiscalização na região:
[...] Na realidade, a experiência mostra que, para retirar
material biológico da Amazônia, não há necessidade de estruturas formais. Na era da biotecnologia e da engenharia
genética, tudo de que se precisa, para reproduzir uma espécie, são algumas células facilmente levadas e dificilmente
detectadas, por mecanismos de vigilância e segurança.
O bolso, a caneta, o frasco de perfume, os estojos de maquiagem, os cigarros, os adornos artesanais, as dobras e
costuras das roupas, enfim, há milhares de maneiras de esconder fragmentos de tecidos, culturas de micro-organismos, minúsculas gêmulas ou diminutas sementes, sem que
seja necessário o uso de muita criatividade .
Sobre a questão em análise, Patrícia Arruda Del Nero menciona alguns
dos elementos presentes na maioria dos casos de biopirataria. 1) A existência de
uma organização não governamental, cuja preocupação normalmente é a suposta
“defesa do meio ambiente”; 2) os passeios “ecológicos” dos turistas ambientais,
os quais, com olhar de rapina e tentáculos vorazes, saqueiam a biodiversidade
nacional para garantir interesses transnacionais; 3) a formalização de “acordos”
com comunidades indígenas, mediante os quais os corsários tentam aproximação com os povos indígenas e ganham sua confiança, com um discurso amigo,
enquanto prestam atenção em seus conhecimentos tradicionais para transformálos em conhecimento científico a serviço do capitalismo transnacional. Por fim,
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trancam a tecnologia obtida nos cofres dos escritórios que concedem patentes.
Embora a discussão acerca da biopirataria tenha tido notoriedade apenas a partir de 1990, o problema configura uma prática antiga, visto que “fatos
históricos revelam a sua ocorrência ao longo dos séculos, desde o descobrimento, como na extração do pau-brasil, no contrabando da semente da seringueira,
do quinina e do curare” , não obstante essa prática não fosse denominada biopirataria, pois o conceito é atual.
Nesse sentido, Clarissa Wandscheer ensina que expressão biopirataria
surgiu em 1993 e foi lançada pela ONG RAFI , com o escopo de alertar sobre o
fato de recursos biológicos e conhecimentos tradicionais indígenas estarem sendo apanhados e patenteados por empresas multinacionais e instituições científicas, sem a autorização do governo brasileiro. Para a autora, pretendia-se ainda
denunciar os abusos sofridos pelas comunidades tradicionais, visto que elas não
estavam recebendo a devida repartição de benefícios, além de isso impedir a
possibilidade do desenvolvimento sustentável das comunidades, impulsionar a
degradação do meio ambiente e vulgarizar o conhecimento tradicional.
Contudo, é necessário esclarecer que um dos casos mais notórios de espoliação da biodiversidade amazônica foi o da Borracha, extraída a partir do látex
da seringueira, Hevea brasiliensis, cujas sementes foram levadas pelo “naturalista” inglês Henry Wickman e plantadas no Kew Botanical Gardens, na Inglaterra, onde se multiplicaram e, posteriormente, foram transplantadas na Malásia.
Apesar de desbancarem a produção brasileira e trazerem inúmeros prejuízos
para o Brasil, não configura um caso de biopirataria, pois, conforme explica
o economista Roberto Araújo de Oliveira Santos , o inglês obteve autorização
legal do governo brasileiro para exportar as sementes. Além disso, as empresas
britânicas e americanas desejavam transferir a produção da borracha para outro
lugar em razão de o sistema brasileiro ser ineficiente e haver provocado a ira de
entidades antiescravagistas.
Embora legalmente não tenha configurado biopirataria, o plantio de
seringueira fora do Brasil trouxe grandes prejuízos e serviu para alertar que não
se pode dispor dos recursos naturais da Amazônia Brasileira, uma vez que, não
tendo mais exclusividade, a região perde poder em detrimento de outras nações.
Em contrapartida, não se pode negar a ocorrência da biopirataria configurada pela apropriação da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais em
diversos casos, apontados pelo Instituto de Tecnologia do Paraná, por meio da
Agência Paranaense de Propriedade Industrial – APPI:
1) a andiroba, usada pelos índios como repelente para insetos, contra febre e como cicatrizante, foi patenteada pela empresa Rocher Yves Vegetable,
que possui direitos sobre a produção de cosméticos ou remédios que possuem
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seu extrato; 2) o cupuaçu, fruto amazônico que foi patenteado pela empresa
Asahi Foods, para a produção do cupulate, uma espécie de chocolate. Essa patente,
contudo, foi revertida por não possuir o requisito de patentiabilidade, novidade;
3) o sapo tricolor, produtor de uma toxina analgésica duzentas vezes mais potente que a morfina, a qual foi patenteada pelo laboratório americano Abbott; 4)
o pau-rosa, utilizado como fixador de aroma em diversos países, atualmente é a
matéria-prima do perfume Chanel 5, dentre muitos outros casos.
Por seu turno, Argemiro Procópio também destaca inúmeros casos de
apropriação dos conhecimentos tradicionais dos povos amazônicos por meio da
biopirataria, a qual denomina “bionegócio” e, segundo ele, representa o novo
campo para exportações bilionárias:
Remédios vendidos nas prateleiras das farmácias do mundo inteiro trazem riquezas para transnacionais, graças ao
conhecimento tradicional e causam impiedosa descrição
em seu processo de cata ou colheita. Vale citar, a título de
exemplo, o jaborandi, Pilocarpus jaborandi,, usado no tratamento de glaucoma; a espinheira santa, Maytenus ilicifol,a
contra distúrbios estomacais; o látex antiviral da corticeira, Erythrina crista-galli; o veneno da Bothops jararaca,
transformado em anti-hipertensivos; poderoso analgésico
presente na pele do sapo Epipadobates tricolor. Esses e
centenas de outros frutos da biopirataria enriquecem mais
ainda multinacionais e grandes laboratórios como o Abbot,
Bristol-Meyers Squibb, Eli Lilly, Nippon Mektron, Shapman Pharmaceuticals, Monsanto, Merco etc .
Juliana Santilli considera que os casos de biopirataria possuem como fator de identificação, a ocorrência das espécies vegetais ou animais serem coletadas com ou sem o uso de conhecimento tradicional associado e sem consentimento prévio e informado do país de origem e levadas ao exterior com o
objetivo de serem identificados os princípios ativos úteis, com base nos quais
os produtos e processos foram patenteados, tanto sem a repartição de benefícios
com o país de origem, quanto sem a população fonte do conhecimento obter
qualquer benefício.
Não obstante, neste estudo, considera-se que a biopirataria não está dissociada da apropriação dos conhecimentos tradicionais pertencentes aos povos
indígenas e populações tradicionais. Nesse sentido, além da não dissociação que
fazem os povos indígenas entre o objeto conhecido e o sujeito do conhecimento,
com a ajuda da bioprospecção, é possível alcançar resultados mais rápidos e
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evitar, assim, o desperdício na racionalidade econômica.
Por outro lado, é importante ressaltar que, para os povos indígenas, a biopirataria só ocorre quando existe a utilização do conhecimento tradicional, haja
vista que esses povos não consideram os elementos da biodiversidade de forma
isolada, conforme foi demonstrado no III Foro Indígena Internacional sobre a
Biodiversidade, realizado na Eslováquia, em maio de 1998, quando esses povos
afirmaram:
Que nossas culturas se fundamentam nos princípios de harmonia, paz, desenvolvimento sustentável e equilíbrio com
a natureza, por esta razão a conservação e utilização dos recursos formam parte da cosmovisão e vida diária dos Povos
Indígenas e comunidades locais .
Nota-se que a biopirataria está diretamente relacionada com a apropriação dos conhecimentos tradicionais, portanto entende-se necessária a tutela do
direito penal para coibir essa atividade nociva, em razão da importância do fato,
o que demanda suporte desse ramo do direito voltado para a proteção de bens
essenciais, com o objetivo de definir essa atividade como crime, a fim de tutelar
a sociobiodiversidade brasileira.
1.1 A NECESSIDADE DE TUTELA DO DIREITO PENAL SOBRE O CRIME DE
BIOPIRATARIA
Em face dos diversos aspectos discutidos neste estudo, entende-se que a
biopirataria configura um crime, embora, no ordenamento jurídico brasileiro,
essa atividade não seja tipificada ou incriminada, haja vista que nem o Código
Penal Brasileiro, nem a legislação penal que trata sobre os crimes contra o meio
ambiente abordam essa questão.
No ordenamento jurídico brasileiro, a legislação responsável pela criminalização das ofensas ambientais é a Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 ,
conhecida por Leis dos Crimes Ambientais, que não tipifica a biopirataria como
um crime. Contudo, é interessante ressaltar que, no projeto inicial dessa lei, devidamente aprovado pelo Congresso Nacional, havia a inclusão da biopirataria
como crime, no artigo 47, que foi vetado pelo então presidente da República
Fernando Henrique Cardoso.
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A título meramente informativo, o vetado art. 47 possuía a seguinte redação:
Art. 47. Exportar espécie vegetal, germoplasma ou qualquer produto ou subproduto de origem vegetal, sem licença
da autoridade competente:
“Pena - detenção, de um a cinco anos, ou multa, ou ambas
as penas cumulativamente”.
As razões explanadas pelo ex- Presidente da República, para justificar o
veto do artigo supracitado, foram:
O artigo, na forma como está redigido, permite a interpretação de que entidades administrativas indeterminadas
terão que fornecer licença para a exportação de quaisquer
produtos ou subprodutos de origem vegetal, mesmo os de
espécies não incluídas dentre aquelas protegidas por leis
ambientais. A biodiversidade e as normas de proteção às espécies vegetais nativas, pela sua amplitude e importância,
devem ser objeto de normas específicas uniformes. Ademais, existem projetos de lei nesse sentido em tramitação
no Congresso Nacional .
Em razão de não existir punição específica para o crime de biopirataria,
alguns casos concretos se tornam difíceis de serem solucionados. Nesse contexto, um dos casos de notoriedade internacional – e que deu causa a uma decisão
considerada a primeira condenação por biopirataria no Brasil –, foi o ocorrido
em junho de 2007, cujo autor foi o holandês naturalizado brasileiro, Marc Van
Roosmalem, renomado e premiado pesquisador internacional.
O pesquisador acima mencionado foi condenado pela Justiça Federal da
Seção Judiciária do Amazonas pelo cometimento de diversas práticas criminosas, como manter animais em cativeiro sem autorização do órgão ambiental
competente, transportar ilegalmente macacos e orquídeas, estas últimas, sob a
acusação de vender pela Internet, por preços que variavam de US$ 500 mil a
US$ 1 milhão, o direito de escolha do nome das espécies de macaco por ele
descobertas, dentre outras imputações penais.
Pelos crimes supracitados, o pesquisador foi condenado a uma pena de
quinze anos e nove meses de prisão, sendo que quatorze anos e três meses são
referentes apenas à acusação de peculato. Não obstante, Van Roosmalem ficou
preso por menos de um mês, em razão de ter sido liberado por ordem de habeas
corpus concedida pelo Tribunal Regional Federal-TRF, da 1.ª Região, para
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responder a seu processo em liberdade.
A condenação do cientista foi amplamente criticada por organismos internacionais, os quais alegaram entraves às pesquisas científicas, no entanto, para
este trabalho, é importante observar a fragilidade das normas incriminadoras
que tutelam a biodiversidade, haja vista que são incapazes de evitar a espoliação
do patrimônio genético dos conhecimentos tradicionais pela biopirataria.
Vislumbra-se a necessidade da tutela penal sobre o crime de biopirataria,
em virtude da existência de uma preocupação legítima com relação à proteção
à biodiversidade brasileira e aos conhecimentos tradicionais associados. Em
razão dessa situação, é necessário saber a real intenção dos pesquisadores que
adentram na região, para constatar se a pesquisa é bem intencionada ou visa apenas à espoliação da biodiversidade. Sobre a questão, Nascimento considera que:
[...] O problema está em saber como reconhecer a ajuda estrangeira bem intencionada, que possa cooperar com o desenvolvimento regional e aquela que busca apenas o lucro
e somente servirá para alimentar o processo de dominação
dos países desenvolvidos sobre os países em desenvolvimento .
Observa-se, portanto, a necessidade de tutela jurídica sobre o crime de
biopirataria, e por essa razão, sugere-se a criação de norma jurídica com esse
objetivo. Nesse panorama, Juan Ramón Capella ensina que, para serem criadas
novas normas jurídicas, não basta haver vontade do poder jurídico político, mas
deve haver uma etapa de negociação da norma futura:
Nas experiências que respondem a este tipo de jogo, as
normas jurídicas não nascem, em nosso tempo, somente da
vontade do poder jurídico-político, ainda que esta vontade
seja uma condição necessária de sua existência. Para formar a vontade normativa do poder jurídico-político, dá-se
previamente uma etapa de negociação da norma futura .
Capella prossegue e afirma que os distintos agentes sociais interessados
em obter uma norma jurídico-política que determine direitos ou legitime interesses
deve negociar com as autoridades para estabelecer o conteúdo das normas em questão. Desse
modo, para, o autor:
Esta negociação tem um caráter essencialmente político.
Sua essência pode ser macroscópica [...] ou microscópica
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[...], esse caráter político não se vê afetado, sem embargo,
pelas dimensões do objeto da negociação. O que se negocia, ao final de contas, é uma decisão que há de tomar um
poder instituído e explícito da sociedade, legitimado para
ditar normas jurídicas .
Em razão de tudo que foi estudado, sugere-se que ocorra a tutela penal
sobre o crime de biopirataria, quando for comprovada a intenção do sujeito ativo
para cometer essa atividade ilícita e, desse modo, será vislumbrada a possibilidade de proteção do direito penal ao crime de biopirataria, bem como será identificado o bem jurídico a ser tutelado por esse ramo do Direito.
1.2 A IMPORTÂNCIA DA IDENTIFICAÇÃO DO BEM JURÍDICO A SER TUTELADO PELO DIREITO PENAL NO CRIME DE BIOPIRATARIA
Para que algo seja tutelado pelo Direito e pelo Direito Penal em especial,
inicialmente é necessária a identificação do bem jurídico a ser protegido, o qual
deve possuir alguma importância ou valor para o direito. Nesse panorama, Alessandra Rapassi Mascarenhas Prado ensina que a importância da identificação
do bem jurídico para o Direito Penal ocorre em razão da obrigatoriedade de o
legislador partir do princípio de que todo crime é uma ofensa a um bem jurídico individual, coletivo ou difuso preexistente à norma, deduzido de uma fonte
metajurídica (segundo teorias sociológicas), ou de uma fonte jurídica superior,
que é a Constituição Federal (consoante concepção dos constitucionalistas).
Segundo a mesma autora , “bem, em sentido amplo, é tudo aquilo que é
valioso, que é necessário para o homem”. Desse modo, apenas alguns bens são
considerados bens jurídicos, haja vista que o Direito determina os que são dotados de valor e, por esse motivo, receberão proteção jurídica.
Por seu turno, Luiz Régis Prado considera que o “pensamento jurídico moderno reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penal
radica na proteção dos bens jurídicos”. Portanto, para o autor, em um Estado
democrático e social de Direito, é imprescindível a noção de bem jurídico para
que ocorra tutela penal:
Em um Estado democrático e social de Direito, a tutela
penal não pode vir dissociada do pressuposto do bem jurídico, sendo considerada legítima, sob a ótica constitucio-
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nal, quando socialmente necessária. Isso vale dizer: quando
imprescindível para assegurar as condições de vida, o desenvolvimento e a paz social [...] A noção de bem jurídico
implica a realização de um juízo positivo de valor acerca de
determinado objeto ou situação social e de sua relevância
para o desenvolvimento do ser humano .
Contudo, Álvaro Sanchez Bravo esclarece que o Direito Penal deve ser a
última fronteira a ser recorrida para reparar danos experimentados pelos estados
democráticos:
De todos é conhecido como nos estados democráticos o Direito Penal se considera a última fronteira, la ultima ratio, a
cujo auxílio se recorre ante sucessos (ações e/ou omissões)
de especial gravidade que requerem a máxima censura por
causar dano aos valores e direitos fundamentais, individuais
e coletivos, que nos definem como pessoas e cidadãos .
Ainda em se tratando de bem jurídico, Maria Auxiliadora Minahim considera que, embora exista controvérsia sobre a definição desses bens, eles são
imprescindíveis para a existência comum e devem ser tutelados pelo Direito
Penal:
Considere-se que, apesar de reinar grande controvérsia sobre o conceito de bem jurídico, não se nega que se trata
de bens ou valores considerados imprescindíveis para a
existência comum e, por isso, merecedores da mais intensa
tutela jurídica, ou seja, da proteção penal .
Desse modo, Minahim, ao tratar sobre a aprovação do Direito Penal para
tutelar as questões referentes à biotecnologia, considera que esse ramo do Direito é naturalmente convocado para emprestar sua adesão e coercitividade na
tutela de bens e interesses que se deseja preservar de lesões e ameaças produzidas pela biotecnologia, em razão não somente de sua importância, mas também
pela gravidade dos ataques.
A autora prossegue e afirma que o ineditismo das situações referentes à
biotecnologia, assim como a velocidade em que elas ocorrem têm surpreendido
o Direito Penal e provocado, assim, não só uma desestabilização nesse ramo do
Direito, mas também ocasionado a necessidade de alinhamento daquele com a
realidade. Nesse contexto, segundo Minahim, o Direito Penal não é confrontado
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somente por questões postas pela Bioética, mas também “com o problema relativo ao oferecimento ou não de tutela a outros questionamentos trazidos pela
sociedade pós-moderna”.
Portanto, Minahim considera que os bens jurídicos, para os quais se busca
proteção do Direito Penal, possuem natureza diferenciada daqueles que eram
protegidos desde o Iluminismo, motivo pelo qual existe a polêmica sobre a intervenção desse Direito na denominada sociedade de risco. Nesse sentido, a
autora reputa que a natureza pode ser objeto de tutela pelo Direito Penal:
Pode-se mesmo afirmar que é a própria natureza (bem difuso, supraindividual) e a forma de proporcionar-lhe proteção
eficaz que constituem o cerne de toda a polêmica em torno
do papel da intervenção do direito penal na chamada sociedade de risco .
É importante ressaltar que a sociedade de risco é representada pela comunidade contemporânea, caracterizada pela intensa divisão social do trabalho,
pelo consequente crescimento da complexidade e, ainda, pela adoção de tecnologias, cujas consequências são impossíveis de se medir, os denominados riscos.
Por conseguinte, a sociedade de risco é o local onde ocorrem os riscos e os fenômenos como o da irresponsabilidade organizada ou irresponsabilidade geral,
que segundo Ulrich Beck pressupõe:
[...] À divisão do trabalho muito diferenciada corresponde
a uma cumplicidade geral e, a esta, uma irresponsabilidade
geral. Cada qual é causa e efeito e, portanto, não é causa.
As causas se diluem em uma mutabilidade geral de atores e
condições, reações e contrarreações.
Na sociedade de risco, um dos problemas a serem enfrentados diz respeito
à proteção do meio ambiente e, nesse contexto, em se tratando da discussão acerca
da viabilidade da proteção do Direito Penal ao meio ambiente, Luiz Regis Prado
entende que o meio ambiente é digno e capacitado de receber a tutela penal.
Além disso, considera que a lei penal não deve punir somente as agressões ao
meio ambiente, mas ainda os comportamentos nocivos que impeçam sua utilização de forma livre e solidária. Portanto, o autor observa que:
Em remate, quadra aqui a reafirmação do ambiente, como
bem jurídico de natureza difusa, – digno e capacitado e
merecedor de tutela penal – adequado ao livre desenvolvi-
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mento da pessoa humana, com vistas à proteção e melhora
de sua qualidade de vida (exercício, gozo de todas as suas
potencialidades), de conformidade com a diretriz (formal e
material) perfilhada no texto maior. É de se reter ainda que,
no Estado democrático e social de direito, a lei penal não
deve se contentar em punir as agressões ao meio ambiente,
mas também alcançar comportamentos que dificultem ou
impeçam seu desfrute de forma livre e solidária .
A importância de se punir a biopirataria na esfera penal dá-se em razão
do bem jurídico a ser tutelado, qual seja o meio ambiente. Com efeito, Álvaro
Sanchez Bravo considera que esse ramo do Direito só deve socorrer os atentados mais graves aos bens e interesses individuais e coletivos, suscetíveis de se
submeterem à censura mais contundente à restrição de direitos mais palpáveis
na liberdade e no patrimônio dos cidadãos culpados por determinados atos lesivos . Assim Sanchez Bravo entende que:
A apelação ao Direito Penal para a proteção do meio ambiente
supõe considerá-lo como um desses valores e interesses, como
uma realidade, sem a qual não se entende a sociedade, nem
os Estados, nem o próprio ser humano. Se o Direito Penal deve recorrer em defesa do medo ambiente é porque é
tão importante, tão imprescindível, que um ataque contra
o mesmo rachará os cimentos de nossa própria existência .
Logo, ao se criminalizar a biopirataria, o bem jurídico a ser tutelado pelo
Direito Penal seria a biodiversidade, representada pelos seus elementos naturais
e pelos conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético. Portanto, a conduta que se pretende coibir é a apropriação não autorizada das riquezas
naturais que pertencem ao Brasil e a seus povos, bem como os conhecimentos
tradicionais associados à biodiversidade, os quais pertencem a seus detentores.
Sobre a tutela do Direito Penal à biodiversidade, Nascimento pensa criticamente que, na atualidade, não criminalizar a biopirataria configuraria um erro,
haja vista que os demais mecanismos para coibir essa atividade tão prejudicial
ao País são ineficientes. Assim, nas palavras do autor:
[...] No momento presente, não criminalizar a biopirataria
seria um erro, pois os demais mecanismos estabelecidos
para realizar o referido controle se mostram ineficientes e
pouco importa se a ineficiência é por inoperância do próprio
aparelho estatal. O que é relevante, neste caso, é que o DiHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009
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reito Penal, mais do que os outros meios de controle, exerce
também uma função intimidadora ou de prevenção geral
que necessariamente contribui para a preservação de um
bem juridicamente protegido .
Ainda em se tratando da necessidade de criminalização para essa conduta, Nascimento afirma que “a biopirataria atenta contra os interesses nacionais e
também se constitui em uma prática violadora de direitos humanos, nunca sendo
demais lembrar que tutelar o meio ambiente é proteger a própria vida”.
Nesse contexto, após verificar-se que o bem jurídico a ser tutelado pelo
direito penal seria o meio ambiente, sugere-se que o direito estabeleça uma tipificação penal para enquadrar esse crime em razão dos tipos penais existentes
não serem eficazes para punir essa atividade ilícita. Para tanto, é necessária a
aplicação de alguns princípios desse ramo do direito como o da subsidiariedade,
necessidade e fragmentariedade, os quais são importantes quando se trata da
intervenção do Direito Penal no que concerne aos recursos naturais. Da mesma
forma, entendem Prado e Minahim:
É importante frisar que não se defende, aqui, a expansão
arbitrária da tutela penal, mas apenas aquela que se paute
nos princípios da fragmentariedade, da necessidade e da
subsidiariedade do direito penal. Dessa forma, a intervenção penal no tocante à proteção dos recursos naturais deve
ser parcimoniosa, e deve incidir apenas quando a lesão for
grave a ponto de justificar a privação de outros bens tão
relevantes para o ser humano, como a liberdade .
Para se ter uma breve noção acerca dos princípios supracitados, o princípio
da fragmentariedade dispõe que “nem todo tipo de ofensa deve ser considerado
pelo direito penal, mas aquelas socialmente intoleráveis em relação ao bem jurídico”. Nesse contexto, Gustavo O. Diniz Junqueira explica que:
Nem toda lesão a bem jurídico com dignidade penal carece
de intervenção penal, pois determinadas condutas lesam
de forma tão pequena, tão ínfima, que a intervenção penal,
extremamente grave seria desproporcional, desnecessária.
Apenas a grave lesão a bem jurídico com dignidade penal
merece tutela penal .
Do mesmo modo, Damásio de Jesus entende que o princípio da frag222
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mentariedade é consequência dos princípios da reserva legal e da intervenção
mínima. Para o autor, o Direito Penal não protege todos os bens jurídicos,
somente os mais importantes e, dentre estes últimos, não os tutela de todas as
lesões, mas somente das de maior gravidade. Por esse motivo, é fragmentário.
Gustavo Junqueira entende, ainda, que o princípio da fragmentariedade
decorre do princípio da subsidiariedade , o qual determina que o Direito Penal
é um remédio subsidiário e, desse modo, deve ser reservado apenas para as
situações em que outras medidas estatais ou sociais não foram suficientes para
provocar a diminuição da violência gerada por determinado fato. Segundo o
autor, se for possível evitar a violência da conduta com ações menos gravosas
que a sanção penal, a criminalização da conduta se torna ilegítima ou desproporcional.
Por último, o princípio da necessidade, segundo Alessandra Prado, deve
ser utilizado quando determinados bens jurídicos são expostos à ofensa e não
é suficiente para sua tutela a intervenção civil ou administrativa, de modo que
passa a ser exigida a interferência do Direito Penal para sua proteção.
Entende-se, portanto, que é urgente a necessidade de se criar um tipo
penal novo para enquadrar o crime de biopirataria, não obstante essa questão
deva ser estudada e aprofundada pelos operadores do Direito, alicerçados no
Direito Penal e em outros ramos do Direito e até mesmo em disciplinas de outras
áreas do conhecimento, visto que, por se tratar de uma questão complexa, deve
ser avaliada com cautela, a fim de se evitar prejuízos às pesquisas científicas, à
sociedade, aos detentores do conhecimento tradicional e à soberania do Brasil.
Embora se defenda a criminalização para a conduta da biopirataria, essa
não configura a única sugestão para tratar do problema. Conforme se verificou,
a tutela pelo Direito Penal dá-se em razão da importância do bem jurídico a ser
tutelado, embora seja importante ressaltar que somente a tipificação penal não
será capaz de elucidar o problema, uma vez que ainda há muito a ser feito com
relação a essa questão e, portanto, são necessárias outras reflexões sobre o tema.
1.3 REFLEXÕES SOBRE FORMAS DE EVITAR E COMBATER A BIOPIRATARIA NA AMAZÔNIA BRASILEIRA
Evitar a biopirataria na Amazônia não é uma questão simples, em razão
de muito precisar ser feito para coibir essa atividade nociva para a região. Por
esse motivo, serão analisadas algumas hipóteses possíveis de ajudar no combate
à biopirataria, a fim de buscar formas de proteção à biodiversidade e aos conheHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009
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cimentos tradicionais pertencentes aos povos indígenas e populações tradicionais.
Conforme já demonstrado nesta pesquisa, entende-se necessária a tutela do Direito Penal a fim de criminalizar a conduta da biopirataria e imputar
punição aos agentes que cometerem a espoliação da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais. Essa tutela penal dá-se em razão da importância do bem
jurídico a ser tutelado, o meio ambiente, essencial para a manutenção da vida
no Planeta.
Por outro lado, levando-se em consideração os estudos realizados por Álvaro Sanchez Bravo, somente a aplicação do Direito Penal não é suficiente para
proteger o meio ambiente, uma vez que esse ramo do Direito tem por escopo
reprimir e castigar a conduta ilícita, apesar de ser importante a prevenção do
dano. Assim, Bravo ensina que:
[...] Convêm assinalar que somente a apelação ao Direito
Penal não bastará por si só para erradicar os atentados ao
meio ambiente. Em primeiro lugar, porque o Direito Penal
tenderá fundamentalmente a reprimir, a castigar uma vez o
dano se haja inferido. A margem dos clássicos fins atribuídos ao Direito Penal (prevenção geral e especial), a função
preventiva requer outros mecanismos e outras implicações .
Bravo prossegue e afirma que, além da aplicação do Direito Penal, é imprescindível que haja a educação e o compromisso para prevenir os danos ao
meio ambiente:
É evidente que o Direito Penal pode jogar um papel muito
importante para articular um sistema sancionador frente a
condutas que anteriormente acabavam na impunidade, ou
em uma leve sanção (geralmente econômica). Porém, junto
a ele, para assegurar que se previnam os atentados, devem
aparecer outras variações a considerar: educação e compromisso .
Além disso, Bravo considera que, junto à educação e informação sobre
o meio ambiente, outra variação vem determinada pelo compromisso, apesar
de esse compromisso não ser somente dos cidadãos, mas também dos Estados.
Nesse sentido, os Estados também devem sentir o problema como global, não
circunscrito aos direitos existentes dentro dos limites de suas fronteiras territoriais.
Nessa perspectiva, é importante ressaltar que, no ordenamento jurídico
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brasileiro, o princípio da participação, dentre outras conceituações, diz respeito
à coletividade e ao Estado agirem em conjunto na preservação do meio ambiente. Desse modo, Fiorillo considera que:
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 225, caput,
consagrou na defesa do meio ambiente a atuação presente
do Estado e da sociedade civil na proteção e preservação do
meio ambiente, ao impor à coletividade e ao Poder Público
tais deveres. Disso se retira uma atuação conjunta entre organizações ambientalistas [...] e tantos outros organismos
sociais na defesa e preservação .
Com efeito, Fiorillo considera que, para ocorrer essa atuação em conjunto, é imprescindível a união dos princípios da informação e educação ambiental,
numa relação de complementaridade. Nesse contexto, o princípio da informação
ambiental está disposto no art.225 §1.°, IV, da Constituição Federal:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial
à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e
à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as
presentes e futuras gerações.
§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao
poder público: [...]
VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de
ensino e a conscientização pública para a preservação do
meio ambiente;
Por seu turno, o princípio da educação ambiental, segundo Fiorillo,
decorre do princípio da participação da tutela do meio ambiente e está disposto
na Constituição Federal no art.225 §1.°, VI, acima mencionado. Logo, para o
autor, “buscou-se trazer a consciência ecológica ao povo, titular do meio ambiente, permitindo a efetivação do princípio da participação na salvaguarda desse
direito”.
Logo, além da tutela penal contra a atividade nociva da biopirataria, é
necessário que haja a aplicação dos princípios retromencionados, quais sejam:
educação, informação e participação, para que ocorra a conscientização da coletividade sobre a gravidade da biopirataria e, junto com o Poder Público, buscar
formas de prevenção contra esse crime.
Além do já que foi exposto, para se prevenir a biopirataria, segundo FonHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009
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seca, é necessário que exista uma política de investimentos em ciência e tecnologia na região, uma vez que a Amazônia Brasileira é pouco conhecida e estudada,
em razão da carência de pesquisadores, investimentos políticos, incentivos às
pesquisas, dentre outros, os quais acabam por prejudicar o conhecimento sobre
a região, bem como seu desenvolvimento.
Nesse contexto, ressalta-se a importância de serem firmados convênios
nacionais ou internacionais, alicerçados na transparência, clareza e legalidade
para possibilitar a realização de pesquisas na região, a qual possui pouca base
física e humana para promover estudos, por meio da busca de cooperação com
outros centros de pesquisa.
Sobre a situação, Ozório José de Menezes Fonseca entende que proibir
acordos que viabilizem convênios com outros centros de pesquisa significa perpetuar a miséria na região:
Evitar ou proibir esses acordos significa perpetuar a miséria
nessa região que tem urgência em se desvendar, através da
aquisição de novos conhecimentos que levem à descoberta
de novas tecnologias ou benefícios. É também impedir
avanços científicos importantes, sem conseguir evitar que
outros países recebam e estudem nossa biota, pois os mecanismos para retirada de organismos, extratos químicos ou
substâncias, seja através da exportação ou da denominada
biopirataria, são quase impossíveis de serem combatidos .
Em se tratando do investimento em convênios internacionais, é importante mencionar o exemplo da Costa Rica, que estabelece, por meio do INBio,
diversos contratos que possibilitam desde investigação básica até a busca e identificação de recursos da biodiversidade para aplicação comercial e podem ser
utilizados por indústrias de diversos segmentos: farmacêuticas, biotecnológicas
e agroquímicas, além de instituições de pesquisa e acadêmicas.
Segundo Rodrigo Zeledón, o INBio é uma organização da sociedade civil,
de caráter não governamental sem fins lucrativos, criada em 1989 e trabalha em
regime de colaboração com diversos órgãos do governo, universidades, setor empresarial e outras entidades públicas e privadas, dentro e fora do país. A organização tem personalidade jurídica e trabalha com vistas ao conhecimento da
diversidade biológica do país e promove sua conservação e uso sustentável. A
sua relação com o governo é regulamentada por um contrato denominado “convênio cooperativo”.
Os três objetivos principais do INBio, definidos por Zeledón, são a execução
de um inventário nacional, a consolidação de uma base de dados e a divulgação das
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informações geradas à sociedade. De acordo com essa ordem, somente depois, viria
a bioprospecção, que começou a ser concretizada pelo Instituto em 1991, quando foi
criada uma unidade de prospecção.
Nesse contexto, Muñoz considera as ações realizadas na Costa Rica uma
“boa política de acordos com grandes empresas para identificação e exploração
de recursos biológicos com potencialidade” . Da mesma forma, entendem Dourojeanni e Pádua: “[...] Países como a Costa Rica alcançaram progressos notáveis na maior parte dos aspectos que compõem o complexo tema da pesquisa,
do aproveitamento e da comercialização de recursos da biodiversidade”.
Com efeito, Vandana Shiva é contrária a esse tipo de acordo internacional, uma vez que a autora considera que o acordo realizado entre a Merck Pharmaceuticals e o INBio da Costa Rica não respeita os direitos das comunidades
locais, nem o governo daquele país. Shiva prossegue e critica que:
[...] Os que venderam a bioprospecção nunca tiveram direito à biodiversidade, e aqueles cujos direitos não estão
sendo vendidos ou alienados por meio da transação, nunca
foram consultados nem tiveram a chance de participar.
Além do mais, embora as taxas de bioprospecção pudessem ser usadas para aumentar a capacidade científica no
Terceiro Mundo, o que realmente se cria é uma instalação
para a empresa .
É necessário ainda, o aumento de fiscalização na Amazônia, visto que, em
razão de suas dimensões continentais, os ataques de biopiratas tornam-se muitas vezes
impossíveis de serem percebidos e isso acaba por incentivar o aumento da espoliação da biodiversidade na região. Desse modo, a fiscalização na Floresta Amazônica é
ineficaz, em razão da ausência de policiamento ambiental e organismos que atuem na
proteção à sociobiodiversidade brasileira.
Por outro lado, para proteger a biodiversidade, também se deveria, nos
aeroportos, monitorar a entrada e saída de estrangeiros, como pesquisadores,
missionários, estudantes, dentre outros. Além disso, deve-se fiscalizar a regularização de ONGs que trabalham com populações tradicionais e povos indígenas para verificar sua real intenção nesses trabalhos, bem como alguns missionários que atuam diretamente com esses povos e possuem total acesso a seus
costumes e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.
É importante ressaltar que, quando se sugere maior fiscalização, não se
busca ocasionar entraves às pesquisas científicas, nem desabilitar instituições
sérias que trabalham com povos indígenas e populações tradicionais, no entanto
é necessário que elas estejam em conformidade com a legislação nacional, a
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fim de se evitar prejuízos futuros ao Brasil e aos povos, cujo conhecimento é
utilizado de forma não autorizada.
É essencial, ainda, a preservação dos territórios utilizados pelos povos indígenas e populações tradicionais para a produção de seus saberes, em razão da
relação que esses povos possuem com suas terras não representar uma simples
ocupação, mas, sim, configurar o local onde são desenvolvidas suas experiências com a natureza e que, segundo Fernando Dantas, são indispensáveis à manutenção da própria vida.
Ainda sobre a questão da biopirataria, Eliana Calmon considera que as
instituições internacionais e empresas privadas possuem três visões acerca
dos planos para a utilização do conhecimento tradicional associado à biodiversidade: 1- partilhar os lucros sobre as novas patentes baseadas no conhecimento dos povos indígenas e populações tradicionais; 2- outras instituições não
aceitam a partilha e defendem a cobrança de royalties; 3- algumas instituições e
empresas consideram que o domínio genético está fora do mercado e não pode
ser vendido a qualquer preço.
A mesma autora explica que alguns setores consideram a proteção dos
conhecimentos tradicionais por meio de patentes uma forma de reprimir a livre
troca de informações, fundamental para o aprimoramento da condição humana.
Para Calmon, os países desenvolvidos ainda não chegaram a uma conclusão
definitiva sobre a questão e, assim, critica que “parece até que os países ricos
não têm interesse na solução para o impasse, que seguramente não lhes trará
nenhum benefício”.
Também como sugestão para coibir a biopirataria, alguns autores consideram a necessidade da existência da cooperação internacional para o desenvolvimento. Segundo Bruno Pino, cooperação internacional para o desenvolvimento pressupõe:
Cooperação Internacional para o Desenvolvimento, entendida como o conjunto de ações que realizam os governos
e seus organismos administrativos, assim como entidades
da sociedade civil de um determinado país ou conjunto de
países, orientadas a melhorar as condições de vida e impulsionar o processo de desenvolvimento em países em situação de vulnerabilidade social, econômica ou política e que,
além disso, não tem capacidade suficiente para melhorar
sua situação por si sós .
Logo, a cooperação internacional diz respeito a aspectos de negociações
em que as partes envolvidas buscam o estabelecimento de um acordo benéfico
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para ambas. Um dos fatores mais importantes da cooperação dá-se em razão
de sua utilização como mecanismo alternativo de integração e promoção do
desenvolvimento.
A cooperação internacional foi incluída em 1945 na Carta da ONU, em
seus artigos 1, 55 e 56. Além disso, essa negociação está disposta no preâmbulo
da Convenção sobre a Diversidade Biológica:
Enfatizando a importância e a necessidade de promover a
cooperação internacional, regional e mundial entre os Estados e as organizações intergovernamentais e o setor não
governamental para a conservação da diversidade biológica
e a utilização sustentável de seus componentes .
Desse modo, um dos objetivos da cooperação internacional é a utilização da biodiversidade de forma sustentável, com vistas ao desenvolvimento
econômico da região amazônica. Da mesma forma entende Ozório Fonseca, ao
sugerir a criação de um “Tratado proibindo o patenteamento de qualquer produto de origem biológica que não tenha procedência absolutamente transparente”.
Nesse contexto de cooperação internacional, pode-se citar a possibilidade
de implantar o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), para buscar o desenvolvimento da região, com o objetivo de impedir a espoliação dos conhecimentos tradicionais, no entanto, não será aprofundada essa questão, por não ser
objeto desta pesquisa,
A título informativo, o Tratado de Cooperação Amazônia (TCA) foi celebrado em 3 de julho de 1978 e teve como partes contratantes a Bolívia, o Brasil,
a Colômbia, o Equador, a Guiana, o Peru, o Suriname e a Venezuela. Esse documento foi aprovado pelo Congresso Nacional e ratificado pelo Estado brasileiro,
mediante a promulgação do Decreto n. 85.050, de 18 de agosto de 1980.
Por fim, além da cooperação internacional com vistas a buscar o desenvolvimento da região, e das demais sugestões analisadas neste artigo, é importante ressaltar que evitar a biopirataria envolve não apenas a criação de leis,
como também a proteção pelo Direito Penal, de forma que é imprescindível
maior participação do povo brasileiro com seu sentimento de nacionalidade, fortalecimento dos órgãos públicos na região, incentivo à informação, participação
e educação ambiental da população, como forma de tutelar a sociobiodiversidade brasileira.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após a finalização deste estudo, verificou-se que a biopirataria configura
um grave problema na atualidade e está diretamente relacionada à apropriação
dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Esses conhecimentos pertencentes aos povos indígenas e populações tradicionais são utilizados
para a fabricação ou aperfeiçoamento de produtos, motivo pelo qual, por meio
da bioprospecção, ocorre a racionalidade econômica, aumento da aferição de
lucro.
A natureza passa a ser vista unicamente como fonte de capital e utilizada
com o objetivo de impulsionar grandes retornos financeiros. Por essa razão,
ocasiona a cobiça de países desenvolvidos, ricos em tecnologia e pobres em
biodiversidade, que buscam acessar a biodiversidade por meio da apropriação
dos conhecimentos tradicionais, de forma a trazer prejuízos para o Brasil e para
os povos detentores do conhecimento tradicional, cujos saberes são comparados
a mercadorias.
A mercantilização da natureza subjuga os detentores do conhecimento
tradicional, os quais possuem o entendimento contrário à lógica capitalista.
Nessa ótica, verificou-se que, para os povos indígenas, a biopirataria ocorre
sempre que existe a utilização da natureza, uma vez que esses povos enxergam
a biodiversidade como um todo e não separam o conhecimento tradicional dos
elementos da biodiversidade.
Nesse contexto, as tradições e os costumes dos povos indígenas e populações tradicionais passam a ser considerados inferiores em comparação ao pensamento dominante, razão pela qual se percebe a supremacia do conhecimento
científico em comparação ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade.
Portanto, nota-se que se está diante de um novo processo exploratório
de colonização, exercido pelos países desenvolvidos, que será extremamente
prejudicial ao Brasil e aos detentores dos conhecimentos tradicionais, se não for
repensada toda essa situação e vislumbradas novas formas de proteger a sociobiodiversidade brasileira.
Nessa perspectiva, a Amazônia Brasileira encontra-se no centro dessas
discussões, em razão de possuir uma riquíssima biodiversidade e também abarcar diversos povos indígenas e populações tradicionais, detentores do conhecimento tradicional, cuja utilização é muito importante para a fabricação de novos
produtos e acaba por impulsionar a atividade nociva da biopirataria.
Além disso, em se tratando da biopirataria realizada por meio da apropriação dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade da Amazô230
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nia Brasileira, verifica-se a fragilidade da atuação estatal, incapaz de coibir essa
atividade nociva, em razão da carência de fiscalização na região, da falta de
conhecimento sobre a biodiversidade da região, da pouca quantidade de pesquisadores, da ausência de investimentos em ciência e tecnologia, dentre outros.
Em contrapartida, observa-se que os países desenvolvidos não possuem
interesse em resolver a situação, posto que necessitam da biodiversidade dos
países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento para impulsionar o aumento
de capital, motivo pelo qual a solução do problema não lhes trará nenhum benefício.
Apontou-se, nesta pesquisa, a necessidade de criminalizar a conduta da
biopirataria, a fim de coibir essa atividade atentatória aos interesses nacionais,
sendo relevante a tutela pelo Direito Penal, por força do bem jurídico protegido,
qual seja, o meio ambiente, indispensável à manutenção da própria vida.
Verificou-se que, além da criminalização da conduta, deve haver aplicação dos princípios da educação, participação e informação ambiental, para que
a coletividade, os detentores do conhecimento tradicional, juntamente com o
Poder Público possam buscar a conscientização e a prevenção dessa atividade
no Brasil.
Finalmente, observou-se a necessidade de maiores investimentos em pesquisa, ciência e tecnologia, aumento de fiscalização na Amazônia Brasileira,
preservação dos territórios indígenas, bem como a verificação da possibilidade
de utilizar a cooperação internacional para o desenvolvimento da região, no
que diz respeito à utilização do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA). No
entanto, essa questão precisa ser aprofundada e repensada para que seja assegurada a soberania do Brasil e a proteção aos detentores do conhecimento tradicional, associado à biodiversidade.
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A PESSOA JURÍDICA E O CONCURSO DE AGENTES NO CONTEXTO DA REPONSABILIZAÇÃO
PENAL AMBIENTAL
Antônio Ferreira do Norte Filho *
Serguei Aily Franco de Camargo **
Sumário: Introdução; 1. Pessoa jurídica: definição e classificação; 2. Previsão legal da
responsabilidade penal da pessoa jurídica por lesão ao meio ambiente; 3. Penas cominadas à pessoa jurídica por lesão ao bem ambiental; 4. Da discussão acerca do cabimento
ou não da responsabilização penal da pessoa jurídica; 5. Concurso de agentes perpetradores do injusto ambiental; Conclusão; Referências.
Resumo: A responsabilidade penal da
pessoa jurídica no contexto dos crimes
ambientais pode ser concebida como significativo instituto na evolução do sistema
jurídico brasileiro, representando importante mecanismo jurídico penal voltado à
proteção do meio ambiente. O objeto do
presente trabalho constitui-se em importante tema social posto pertencer à sociedade o direito constitucional a um meio
ambiente ecologicamente equilibrado,
propiciador de melhoria na qualidade de
vida e, conseqüentemente, condições dignas de sua existência, bem como por
destinar-se ao estudo de um mecanismo
preponderante no campo do Direito Penal Ambiental. Espera-se com a presente
pesquisa a contribuição para o aprofundamento do tema da responsabilidade penal
Abstract: The criminal responsability
of corporation in the context of environmental crimes can be seen as significant
development institute in the Brazilian legal system, representing major criminal
legal mechanism aimed at protecting the
environment. The object of this study represents an important social issue belong
to the company put a constitutional right
to an ecologically balanced environment,
which can provide the better quality of life
and therefore unworthy of its existence, as
well as for the purpose of study of a mechanism leading in the field of environmental
criminal law. It is hoped that this research
contributing to the deepening of criminal
liability of legal entities in environmental crimes, aiming at the improvement of
knowledge about this institute criminal
* Mestrando do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do
Estado do Amazonas – UEA.
** Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da
Universidade do Estado do Amazonas e do Departamento de Direito da Uninilton Lins.
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da pessoa jurídica nos crimes ambientais,
visando-se ao aprimoramento do saber
acerca desse instituto penal, a sua divulgação perante a sociedade, os organismos
públicos e privados, às autoridades governamentais e os operadores do direito. Busca-se, portanto, o estudo da responsabilidade penal da pessoa jurídica pelos danos
cometidos ao meio ambiente, bem como
as conseqüências legais decorrentes de tais
ações, de modo a se garantir a efetividade
dos direitos constitucionais a um meio ambiente equilibrado.
disclosure to society, the public and private, to government authorities and operators of the law. Search, therefore, the study
of criminal responsability of corporations
for the damage committed to the environment and the legal consequences arising
from such actions in order to ensure the
effectiveness of constitutional rights to a
balanced environment.
Palavras-chave: Responsabilidade Penal. Keywords: Criminal Responsability. Corporation. Environmental Crimes.
Pessoa Jurídica. Crimes Ambientais.
INTRODUÇÃO
No âmbito da legislação brasileira, o meio ambiente goza de tutela específica, estando previstos no ordenamento jurídico pátrio, diversos mecanismos
processuais e institutos penais protetivos, preventivos e repressivos, concernentes à defesa dos interesses sociais ambientais.
Nesse sentido, José Afonso da Silva entende:
A qualidade do meio ambiente é um valor fundamental, é
um bem jurídico de alta relevância, na medida mesma em
que a constituição o considera bem de uso comum do povo,
essencial à sadia qualidade de vida, que o Poder Público e a
coletividade devem defender e preservar. A ofensa a um tal
bem, revela-se grave e deve ser definida como crime.
O dano ao meio ambiente, enquanto bem de uso comum, atinge a coletividade, ofendendo os direitos transindividuais, ou seja, aqueles que transcendem
cada indivíduo, nos acordes do artigo 225 da Constituição Federal de 1988,
comprometendo não só as gerações presentes, mas as futuras, fulminando o
princípio do desenvolvimento sustentável.
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A responsabilidade penal da pessoa jurídica por atividade lesiva ao meio
ambiente, objeto desta pesquisa, constitui um desses meios revestidos de relevância no resguardo e na reparação do bem ambiental.
O objetivo do presente trabalho é realizar um estudo acerca da responsabilidade penal da pessoa jurídica por danos ambientais, ressaltando-se a
eficácia desse instituto no que tange à proteção do meio ambiente, visando à
prevenção de riscos e a reparação de danos ambientais.
Inicialmente será explanado acerca da definição e da classificação das
pessoas jurídicas, sendo na seqüência analisada a previsão legal da responsabilidade penal da pessoa jurídica por lesão ao meio ambiente e nessa esteira realizar-se-á a exposição sobre as penas cominadas à pessoa jurídica no contexto da
lei ambiental infraconstitucional. Em seguida, abordar-se-á a discussão acerca
do cabimento ou não da responsabilização da pessoa jurídica, finalizando-se
com as reflexões conclusivas atinentes ao tema em questão.
Tratar-se-á ainda acerca do concurso de agentes na perpetração de ilícitos
penais ofensivos ao meio ambiente, ressaltando-se a atuação do Ministério Público que inaugura, por via da denúncia, a ação penal cabível a cada caso, conforme estejam envolvidas as pessoas jurídica e física, esta última na condição de
deliberante no que concerne aos interesses da primeira.
O trabalho será baseado em pesquisa teórica e ao longo de todo o estudo
serão apresentados os entendimentos de doutrinadores especializados na matéria
e da jurisprudência, seguindo-se a necessária reflexão acerca do tema.
1. PESSOA JURÍDICA: DEFINIÇÃO E CLASSIFICAÇÃO
O conceito de pessoa jurídica se traduz na corporação juridicamente reconhecida, dotada de personalidade legal, com objetivo de cumprimento de determinadas finalidades, capacitada, assim, como elemento de direitos e obrigações.
As pessoas jurídicas, também conhecidas como pessoas coletivas no
Direito português, segundo Washington de Barros Monteiro, podem ser definidas como associações ou instituições formadas para a realização de um fim e
reconhecidas pela ordem jurídica como sujeitos de direitos.
No que tange à classificação quanto à função, o perímetro de atuação das
pessoas jurídicas é determinado a partir de sua natureza, constituição e finalidades, divididas em pessoas jurídicas de Direito Público interno, traduzidas nos
entes públicos federativos, União, Estados, Distrito Federal e Municípios, bem
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como as autarquias, incluídas as associações públicas e as demais entidades de
caráter público. O Código Civil faz previsão de que os Estados estrangeiros e as
pessoas regidas pelo direito internacional público – por exemplo: ONU, OEA,
etc., são pessoas de direito público externo. As pessoas jurídicas de Direito
Privado, por sua vez, são representadas pelas associações, sociedades civis e
comerciais, fundações, organizações religiosas e partidos políticos.
Assim, para a compreensão da pessoa jurídica, torna-se necessário o entendimento do fato de que a sua existência encontra-se baseada na realização de
uma finalidade lícita, não sendo admitido pela ordem jurídica que um ente originado sob sua anuência, atente contra a sua segurança, pois em caso contrário,
estará a pessoa jurídica passível de sofrer as conseqüências legais advindas de
mecanismos cerceadores e até mesmo extintivos de sua personalidade.
2. PREVISÃO LEGAL DA RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA POR LESÃO AO MEIO AMBIENTE
A partir do entendimento acerca do conceito de pessoa jurídica, bem
como sua classificação, é possível, então, se verificar o caráter legal do processo
de previsão de sua responsabilidade penal perante as ações lesivas ao bem ambiental, as quais poderão gerar punição no âmbito penal ao autor, seja pessoa
física ou jurídica, devendo a conduta encontrar-se estabelecida previamente em
lei como delito.
A Constituição Federal de 1998 estabeleceu uma inovação no âmbito do
ordenamento jurídico brasileiro, ao prever a responsabilidade da pessoa jurídica
por danos ao meio ambiente, estando os seus infratores, pessoas físicas ou jurídicas, sujeitos às penas da lei, às normas administrativas e civis.
Nessa concepção, Michel Prieur aduz que o dano ambiental consiste no
prejuízo sofrido pelo meio natural nos seus elementos não apropriados e inapropriáveis e que afeta o equilíbrio ecológico enquanto patrimônio coletivo.
A previsão constitucional de responsabilização penal da pessoa jurídica
por atos lesivos contra o meio ambiente se deu a partir da constatação gradual
de que as graves lesões ao bem ambiental originavam-se não apenas das condutas oriundas das pessoas físicas, mas em grande escala, das atitudes lesivas das
corporações empresariais.
Assim, Fiorillo afirma que:
Na verdade temos que com o art. 225, § 3º, da Constituição, o legislador constituinte abriu a possibilidade dessa
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espécie de sanção à pessoa jurídica. Trata-se de política
criminal, que, atenta aos acontecimentos sociais, ou
melhor, à própria dinâmica que rege atualmente as atividades econômicas, entendeu por bem tornar mais severa a
tutela do meio ambiente.
Logo, com o advento da modernidade e o conseqüente surgimento de
normas reguladoras das atividades econômicas e sociais, Machado verifica:
A responsabilidade penal da pessoa jurídica é introduzida
no Brasil pela Constituição Federal de 1998, que mostra
mais um dos seus traços inovadores. Lançou-se assim, o
alicerce necessário para termos uma dupla responsabilidade no âmbito penal: a responsabilidade da pessoa física
e a responsabilidade da pessoa jurídica. Foi importante que
essa modificação se fizesse por uma Constituição, que foi
amplamente discutida não só pelos próprios Constituintes,
como em todo o país, não só pelos juristas, como por vários
especialistas e associações de outros domínios do saber.
A partir disso, perante o ajuste da norma infraconstitucional no contexto
do Estado moderno é possível a verificação de que a responsabilidade penal da
pessoa jurídica encontrou guarida no âmbito da Lei nº 9.605/98, em virtude da
constatação do fato dos danos ao meio ambiente, na atualidade, terem ultrapassado os limites insignificância, forçando-se, assim, à adequação das atividades
empresárias, visto ser o aspecto corporativo uma das maiores características do
delito perpetrado em face do meio ambiente.
A Lei 9.605/98, apesar de não definir expressamente dano ambiental, em
seu artigo 3º, seguindo os comandos do texto constitucional, consagrou a responsabilidade penal da pessoa coletiva por condutas lesivas ao meio ambiente, conforme se constata no texto legal: “as pessoas jurídicas serão responsabilizadas
administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em
que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual,
ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício de sua entidade”.
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3. PENAS COMINADAS À PESSOA JURÍDICA POR LESÃO AO BEM AMBIENTAL
A pessoa jurídica ou ente coletivo, enquanto agente perpetrador do injusto penal ao bem ambiental, logicamente, estaria inviabilizada de receber a pena
de privação de liberdade, tida como a mais gravosa dentre as sanções penais,
aliás, inerente às pessoas físicas, sendo este fundamento precípuo do Direito
Penal clássico brasileiro.
No entanto, a modernidade, encarregada de efetivar a evolução do Direito
em face das necessidades sociais, acabou por ocasionar o fenômeno da despenalização, proporcionando ao legislador brasileiro a adoção das penas alternativas.
O artigo 21 da Lei nº 9.605/98 estabelece à pessoa jurídica a aplicação das
penas de multa, restritivas de direitos e de prestação de serviços à comunidade.
No que concerne à aplicação da pena de multa, conforme prevê o Art.
6º, inciso III da Lei 9.605/98, o juiz deve atentar para a situação econômica
do infrator. Prescrevendo ainda o Art. 18 do citado diploma legal que a multa
será calculada segundo os critérios do Código Penal. Se ainda assim é ineficaz,
mesmo que aplicada no valor máximo, poderá ser aumentada em até três vezes,
tendo em vista o valor da vantagem econômica auferida.
O referido dispositivo legal, dentre as penas restritivas de direitos, no artigo 23, preconiza que a prestação de serviços à comunidade pela pessoa jurídica
consistirá em: (I) custeio de programas e de projetos ambientais; (II) execução
de obras de recuperação de áreas degradadas; (III) manutenção de espaços públicos e (IV) contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas.
Quanto aos programas e projetos ambientais é possível se verificar que
inexiste no âmbito legal, a indicação explicita de quais os programas e projetos que devem ser custeados pelo infrator condenado, ficando assim a critério
do magistrado, que deverá avaliar de acordo com a casuística, determinando
o cumprimento da prestação mais conveniente à reparação do ilícito penal cometido.
O § 2º do artigo 22 da citada lei prevê que a interdição será aplicada
quando o estabelecimento, obra ou atividade estiver funcionando sem a devida
autorização, ou em desacordo com a concedida, ou com violação de disposição
legal ou regulamentar. Na seqüência, o § 3º do referido artigo, diz que a proibição de contratar com o Poder Público e dele obter subsídios, subvenções ou
doações não poderá exceder o prazo de dez anos.
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A pena de suspensão de atividade, prevista no artigo 22, § 1º, determina
que esta seja aplicada quando a pessoa jurídica não estiver obedecendo às disposições legais ou regulamentares relativas ao meio ambiente.
O artigo 12 que se aplica tanto à pessoa física quanto à jurídica, estabelece que a prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à
vítima ou à entidade pública ou privada com fim social, de importância,
fixada pelo juiz, não inferior a um salário mínimo nem superior a trezentos
e sessenta salários mínimo. Determina ainda que o valor pago será deduzido
do montante de eventual reparação civil a que for condenado o infrator.
O artigo 24 prevê o que pode se considerar a mais gravosa conseqüência
do descumprimento da Lei nº 9.605/98, ou seja, a decretação da liquidação forçada da pessoa jurídica que fora constituída ou utilizada, com o fim, preponderantemente, para permitir, facilitar ou ocultar a prática de crime definido na lei
ambiental. Como conseqüência, seu patrimônio será considerado instrumento
de crime, sendo determinado o perdimento em favor do Fundo Penitenciário
Nacional.
Comparativamente, tal conseqüência equivaleria à pena capital no caso
da pessoa singular – abstraindo-se o fato de que a pena de morte só é cabível em
situações de excepcionalidade constitucional.
O artigo 4º estabelece que a pessoa jurídica poderá ser desconsiderada
sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos
causados à qualidade do meio ambiente.
Assim, explanadas as sanções previstas legalmente à pessoa jurídica por
atividade lesiva ao bem ambiental, verifica-se que apesar de constituir inovação
no aspecto jurídico ambiental brasileiro, tal instituto, acima de qualquer outro
objetivo, visa o resguardo do meio ambiente ecologicamente equilibrado através
do caráter protetivo, preventivo, repressivo e pedagógico ao qual se propõe enquanto norma social.
4. DA DISCUSSÃO ACERCA DO CABIMENTO OU NÃO DA RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA PESSOA JURÍDICA
A responsabilização penal da pessoa jurídica por atividades danosas ao
meio ambiente, apesar de consistir num avanço sob o aspecto legal, enseja controvérsia, sobretudo no âmbito da doutrina clássica, a qual resiste em aceitar a o
caráter delitivo penal sem a presença humana direta.
Em razão desses avanços no campo constitucional ambiental, Fiorillo assinala:
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Muita controvérsia foi trazida também. Ademais deve ser
ressaltado que a responsabilidade penal da pessoa jurídica
não é aceita de forma pacífica. Pondera-se que não há como
conceber o crime sem um substractum humano. Na verdade, o grande inconformismo da doutrina penal clássica
reside na inexistência da conduta humana, porquanto esta
é da essência do crime. Dessa forma, par aqueles que não
admitem crime sem conduta humana, torna-se inconcebível
que a pessoa jurídica possa cometê-lo.
No entendimento de Antunes (2002), a responsabilidade penal das pessoas jurídicas constitui uma questão que não está escapando ao crivo da doutrina
clássica, uma vez que, estabelecida a responsabilidade penal e a cominação das
penas afetas, restou vaga a sua instituição, o que ocasionou a ineficiência de sua
aplicação concreta em virtude da falta de instrumentos hábeis e imprescindíveis
ao referido objetivo a que se propõe.
A corrente teórica que inadmite a existência de previsão da responsabilidade penal da pessoa jurídica no âmbito da Constituição Federal de 1988, afirma
a ausência do sujeito ideal, dotado de capacidade de ação. Logo, inexistindo
os referidos requisitos, bem como sendo a atividade finalista degrau da ação
delitiva, inconcebível estaria o instituto da responsabilidade penal da pessoa jurídica no ordenamento jurídico pátrio. Arrimam o seu argumento na infelicidade
da construção textual legal, entendendo que a Constituição Federal de 1988, n o
seu artigo 225, § 3º, dispõe sobre as pessoas físicas quando se refere à conduta
e sobre as pessoas jurídicas quando se refere a atividades.
A esse respeito, cabe ressaltar a argumentação de René Ariel Dotti:
A dificuldade em investigar e individualizar as condutas
nos crimes de autoria coletiva situa-se na esfera processual, não na material; O princípio da isonomia seria violado
porque a partir da identificação da pessoa jurídica como autora responsável, os partícipes, ou seja, os instigadores ou
cúmplices, poderiam ser beneficiados com o relaxamento
dos trabalhos de investigação; O princípio da humanização
das sanções seria violado, pois a Constituição Federal trata
da aplicação da pena, refere-se sempre às pessoas, e também veda penas cruéis; O princípio da personalização da
pena seria violado porque referir-se-ia à pessoa, à conduta
humana de cada pessoa; Direito de regresso. In verbis: “A
se aceitar a esdrúxula proposta da imputabilidade penal da
pessoa jurídica, não poderia ela promover a ação de res-
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sarcimento contra o preposto causador do dano, posto ser o
co-responsável pelo crime gerador do dever de indenizar”.
(...); O tempo do crime – quando o legislador definiu o momento do crime com base em uma ação humana, ou seja,
uma atividade final peculiar às pessoas naturais; Nas formas concursais, quadrilha, os participantes se reúnem com
este fim ilícito. Questiona se seria diferente na sociedade;
o lugar do crime – não é possível estabelecer o local da
atividade em relação às pessoas jurídicas que tem diretoria
e administração em várias partes do território pátrio. Ainda
que se pretendesse adotar a teoria da ubiqüidade, lugar do
crime é o do dano haverá ainda intransponível dificuldade
em definir onde foram praticados os atos de execução e a
ofensa a princípios relativos à teoria do crime.
A partir disso, é possível se verificar que somente as pessoas físicas podem ser responsabilizadas na seara penal, ficando as pessoas jurídicas sob a
égide das sanções administrativas, somente são aplicados a estas, os efeitos penais da sentença condenatória proferida contra as pessoas físicas.
Ressalte-se que anteriormente ao advento da teoria da realidade o principio societas delinquere non potest, inadmitindo o cometimento de crime
pela pessoa jurídica e a sua conseqüente responsabilização, interpretando ser a
mesmo mero ente abstrato decorrente da disposição legal, que não possui vontade própria, mas depende da vontade do administrador pessoa física, logo, de
acordo com essa corrente, não pode a pessoa jurídica intentar injusto penal.
Tal princípio consolidou a Teoria da Ficção de Friedrich von Savigny, a qual
entende a pessoa jurídica como sujeito fictício, abstrato diante do direito penal,
isto é, um ser irreal impossível de figurar no pólo passivo de uma ação penal
Para os doutrinadores baseados na Teoria da Ficção, as pessoas jurídicas são incapazes de agir em conduta culposa, sendo inimputáveis, o que lhes
impede a consciência do ilícito, não se podendo exigir delas conduta diversa. A
doutrina entende, portanto, que a responsabilidade penal da pessoa jurídica fere
princípios essenciais do Direito Penal.
Conforme Capez:
Para essa corrente, a pessoa jurídica tem existência fictícia,
irreal ou de pura abstração, carecendo de vontade própria.
Falta-lhe consciência, vontade e finalidade, requisitos imprescindíveis para a configuração do fato típico, bem como
imputabilidade e possibilidade de conhecimento do injusto,
necessários para a culpabilidade, de maneira que não há
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como admitir que seja capaz de delinqüir e de responder
por seus atos.
Em defesa da responsabilidade penal da pessoa jurídica, a corrente teórica
penalista ambientalista adotou a Teoria da Realidade ou da Personalidade Real
de Otto Gierke, e em razão disso, entende que a Constituição prevê e admite
a responsabilização da pessoa jurídica. Para esta corrente doutrinária, vige a
máxima – societas delinquere potest – pela qual a pessoa jurídica constitui ente
real com capacidade própria, portanto, diferente da pessoa física que a integra,
podendo praticar ilícitos penais.
Em reforço a essa concepção, prepondera ainda o pensamento de que:
O Art. 225, § 3º, da CF não se choca com o art. 5º, XLV,
que diz: nenhuma pena passará da pessoa do condenado,
podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do
perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendida aos
sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do
patrimônio transferido. A Constituição proíbe que a família
de um condenado – pessoa física – possa ser condenada
somente porque um de seus membros sofreu uma sanção
ou que alguém se apresente para cumprir pena em lugar de
outrem. Contudo, o mandamento constitucional não exclui
da condenação penal uma pessoa que seja arrimo de família. A sanção penal poderá ter reflexos extra-individuais
legítimos, pois não se exige que o condenado seja uma ilha,
isolado de todo relacionamento.
Incorporada a idéia de possibilidade delitiva pela pessoa jurídica e sua
conseqüente responsabilização num contexto de adaptação, é possível se notar
que:
O Direito Criminal em geral e o conceito de ‘vontade criminosa’ em particular foram construídos em função exclusiva
da pessoa física. A própria necessidade de referência a aspectos ‘subjetivos’ (dogma da culpabilidade) traz ínsita uma
implicação antropomórfica. Então, mister se faz ‘adaptar’
essas noções à realidade dos entes coletivos, para se poder
trabalhar a ‘imputabilidade’ da pessoa jurídica com o in-
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strumental teórico sugerido pela Dogmática tradicional.
A partir daí – de reformulações e construções -, pode-se
chegar à sujeição criminal ativa da pessoa jurídica, sem ter
de prescindir da culpa nos moldes de uma responsabilidade
objetiva.
Como se pode verificar, apesar do entendimento pacificado no que tange
a responsabilidade civil e administrativa, muitas são as divergências acerca da
responsabilização da pessoa jurídica na esfera penal.
A responsabilidade penal, por sua vez, ao contrário do que ocorre nos
campos civil e administrativo, não vislumbra presunção de culpa ou inversão
do ônus da prova, vigendo nesse contexto, o princípio da presunção de não
culpabilidade, cabendo o ônus da prova a quem acusa, ou seja, será necessário
provar a ocorrência do evento danoso, sua autoria, bem como o dolo ou a culpa,
conforme previsões estabelecidas excepcionalmente pela lei.
No que diz respeito à abrangência da responsabilidade penal da pessoa
jurídica quanto à sua classificação em pessoa jurídica de Direito Público e de
Direito Privado, inexiste qualquer previsão excludente da pessoa jurídica de
Direito Público – União, Estados, Distrito Federal, Municípios, autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista, agências e fundações. Assim,
doutrinariamente, há divergências acerca do fato da pessoa jurídica de Direito
Público, a exemplo da pessoa jurídica de Direito Privado, ser penalmente responsabilizada.
A partir disso, verifica-se o entendimento de Silva e Figueiredo:
Não é possível responsabilizar penalmente as pessoas jurídicas de Direito Público sem risco de desmoronamento
de todos os princípios basilares do Direito Administrativo
e dos próprios valores do Estado Democrático de Direito,
considerando que o cometimento de um crime jamais
poderia beneficiar as pessoas jurídicas de Direito Público
ou seriam inócuas, ou então, se executadas, prejudicariam
diretamente a própria comunidade beneficiária do serviço
público.
No ensinamento dos referidos autores, entender o Estado, na condição
de pessoa jurídica de direito público, como agente perpetrador de delitos, consistiria na negativa do próprio Estado Democrático de Direito.
Por outro lado, alguns doutrinadores argumentam que se o Estado é uma
pessoa jurídica, concluir ser ele uma ficção, também o seria o direito que dele
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emana. A pessoa jurídica, deve ser compreendida a partir do seu sentido amplo,
ou seja, todas as pessoas jurídicas, de Direito Público ou de Direito Privado, as
quais poderão ser atingidas pela responsabilização imposta legalmente.
Entende-se, portanto, pela existência efetiva das pessoas coletivas visto
que não há como negar sua efetiva atuação na vida jurídica da sociedade, sendo
numerosos negócios jurídicos aperfeiçoados através de sua vontade, tendo, tais
entes, realidade objetiva para o Direito brasileiro.
5. CONCURSO DE AGENTES PERPETRADORES DO INJUSTO AMBIENTAL
Sob uma concepção de ordem prática, no que diz respeito ao concurso de
agentes que praticam crimes contra o meio ambiente, o Ministério Público, por
ocasião do oferecimento da denúncia por delitos praticados pela pessoa jurídica,
tem encontrado o óbice da existência de concurso necessário, no qual a descrição
do tipo contém dentre os seus elementos a pluralidade de agentes, o que leva o
parquet a obrigatoriamente incluir as pessoas físicas co-autoras da pessoa jurídica
no fato delituoso, caso contrário, sendo a denúncia rejeitada.
A Lei 9605/98 descreve tipos penais que são delitos de autoria singular,
sendo admitido o eventual concurso de agentes, a exemplo dos demais crimes,
ou seja, aquele que embora podendo ser executados por uma pessoa, eventualmente, poderão ser realizados por mais de um agente, seja como co-autor ou
partícipe.
O artigo 3º da referida lei, estabelece a responsabilidade concomitante
entre a pessoa jurídica e a pessoa física na condição de autoras, co-autora e
partícipes.
Num contexto prático, como regra, haverá no mínimo uma pessoa natural
à frente da pessoa jurídica, assim, haverá também, entre ambas, o concurso de
agentes em caso de conduta ambiental lesiva.
Assim, restará caracterizado o concurso de agentes, uma vez que a pessoa
natural exerceu deliberação no interesse da pessoa jurídica, Assim, constituindo
requisito para a imputação de responsabilidade penal, a denúncia deverá conter
a narrativa circunstancial do ocorrido.
A esse respeito, acrescenta Eladio Lecey:
Outros concorrentes, eventualmente, poderão surgir, como
a(s) pessoa(s) física(s) que, não sendo quem deliberou pela
pessoa jurídica, contribuiu de qualquer sorte para o crime
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contra o ambiente, como, exemplificativamente, os empregados que executaram as tarefas degradadoras de poluição em níveis tais a configurar o tipo poluição previsto no
artigo 54 da Lei 9605/98, desde logicamente, que presentes
outros requisitos à sua imputação, dentre eles, a exigibilidade de conduta diversa. Trata-se, aqui, do concurso de
agentes previsto no parágrafo único do mencionado artigo
3°.
Ainda sobre o tema, o TRF da 4ª Região assim se posicionou:
CRIMINAL. AMBIENTAL. CRIME COMISSIVO (ART.
54, LEI 9.605/98). DENÚNCIA. CO-AUTORIA DE PESSOA FÍSICA E JURÍDICA. TIPICIDADE. RELAÇÃO DE
CAUSALIDADE. AMBIGÜIDADE DA IMPUTAÇÃO.
INDIVIDUALIZAÇÃO DAS CONDUTAS NO CRIME
SOCIETÁRIO. INÉPCIA DA DENÚNCIA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. 1. A Lei 9.605/98 estabeleceu no seu art. 2º que o administrador da pessoa jurídica potencialmente poluidora tem "por lei obrigação de cuidado",
proteção e vigilância, de molde que a sua omissão, em casos em que podia ou devia evitar o resultado, é penalmente
relevante, nos termos do art. 13, § 2º, alínea "a" do Código
Penal. 2. O presidente da pessoa jurídica, com atribuições
de fixar sua estratégia, de gerir o desempenho empresarial
e as questões relativas ao meio ambiente, é, em princípio,
responsável por dano ambiental causado pelas atividades de
risco da empresa. 3. Descrevendo a denúncia o fato típico
de "causar poluição" (art. 54 da Lei 9.605/98) e afirmando,
com base no inquérito, que ele decorre de condutas omissivas e comissivas do paciente, não é viável a exclusão da relação de causalidade entre a ação e o resultado (art. 13, Código Penal). 4. Sendo difícil de fixar os limites entre o dolo
eventual e a culpa consciente, não ofende aos princípios
constitucionais do contraditório e da ampla defesa e, pois,
não é de ser acolhida a alegação de prejuízo, em face do
enquadramento da conduta em crime doloso, porque o réu
se defende é dos fatos e a capitulação na denúncia é sempre
provisória, mormente se existe a modalidade culposa para
o delito de causar poluição. 5. Não é inepta a denúncia que
descreve a participação dos agentes no evento delituoso,
principalmente no crime societário, onde é de admitir-se
descrição mais genérica. 6. A inépcia da denúncia, a par de
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não ser motivo de trancamento da ação penal,mas de nulidade da inicial, não deve ser reconhecida se ela descreve fato
criminoso, com minúcias técnicas apuradas no inquérito,
aponta indícios da autoria, classifica a infração e preenche os
requisitos do art. 41 do CPP. Os elementos da subjetividade
dos agentes devem ser analisados na sentença. 7. Há justa
causa para a ação penal se existe prova da materialidade do
fato e indícios da autoria (art. 43, CPP). (TRF 4ª Região Sétima Turma - H200104010710119/PR - Rel. José Luiz
B. Germano da Silva - publicado no DJU de 31.10.2001,
p. 1336).
No entanto, algumas vezes, apesar de evidenciada a concorrência das pessoas físicas, ainda que em deliberação pela pessoa jurídica, não é possível a
identificação daquelas, o que importa no fato de quem nem sempre a denúncia
do Órgão Ministerial deva acusar as pessoas físicas, uma vez que o Ministério
Público não pode quedar-se inerte diante da não identificação das pessoas físicas.
A esse respeito, Tupinambá Pinto de Azevedo descreve:
Dita conclusão tanto se aplica aos concorrentes previstos no
parágrafo único do artigo 3° da Lei 9605/98, como eventuais
empregados que executaram as tarefas que contribuíram ao
crime, quanto aos previstos no “caput” do mesmo dispositivo legal, ou seja, aquele(s) que deliberaram pela pessoa jurídica. Tal poderá ocorrer quando não identificados aqueles
que deliberaram, por exemplo, dentre os sócios membros de
órgão colegiado em reunião com votação secreta em decisão
não unânime.
Desse modo, a denúncia deverá necessariamente comportar a descrição
acerca da identificação da pessoa física que exerceu deliberação pela pessoa jurídica. Não restando a possibilidade de identificação da pessoa natural deliberante,
a peça acusatória denunciar denunciando a pessoa jurídica, descrevendo o fato da
impossibilidade de identificação da pessoa física, satisfazendo assim, os ditames
da lei ambiental criminal.
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CONCLUSÃO
Diante do que foi analisado no presente trabalho, levando-se em consideração os aspectos legais, no que tange à responsabilidade penal da pessoa
jurídica, é de se verificar que se trata de um instituto penal protetivo do meio
ambiente, previsto no artigo 225, § 3º da Constituição de 1988 e artigo 3º da lei
nº 9.605/98, o que proporcionou significativas transformações no ordenamento
jurídico ambiental brasileiro.
A responsabilidade penal da pessoa jurídica, enquanto ente coletivo, no
contexto dos ilícitos ambientais, constitui interesse universal, uma vez que o
bem ambiental não pode ser considerado bem público ou privado, haja vista que
a titularidade do seu direito se destina a todos indistintamente, não podendo ser
concebido individualmente, mas sob o aspecto da coletividade de pessoas indefinidas, indeterminadas no exercício desse direito transindividual. Consistindo assim, no meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendo compreendido
pelo patrimônio, conjunto de objetos materiais e imateriais, indispensáveis à
construção orgânica do ambiente juridicamente protegido.
Assim, a responsabilidade penal da pessoa jurídica deve ser entendida à
luz de uma responsabilidade social, não podendo ser traduzida sob o enfoque da
responsabilidade penal tradicional baseada na culpa, na responsabilidade individual e subjetiva.
As atitudes da pessoa jurídica se verificam através dos seus órgãos cujas ações e omissões se fundem nas atitudes do próprio ente coletivo. Assim,
torna-se desnecessário refutar os argumentos desenvolvidos por aqueles que são
contrários a responsabilização penal da pessoa jurídica, dada a distinção das
abordagens primárias.
Muito embora haja divergência doutrinária quanto à responsabilização
da pessoa jurídica nos delitos ambientais, os tribunais pátrios têm aplicado plenamente o disposto na Lei nº 9.605/98, ressalvando-se que a responsabilização
penal da pessoa jurídica de Direito Público seja situação pontual.
Portanto, no que pese os diversos posicionamentos e entendimentos
doutrinários e jurisprudenciais, como forma de suprimento da ineficácia nas
searas da reparação civil e da apuração administrativa, é possível concluir-se
pela possibilidade da responsabilização penal da pessoa jurídica por condutas
lesivas ao meio ambiente, visto ser este vislumbrado com uma amplitude que
ultrapassa os seus próprios elementos formadores, tais como ar, água e terra,
sendo entendido como o conjunto das condições de existência humana de modo
a integrar e influenciar os homens, sua saúde e seu desenvolvimento. Assim,
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os seres humanos integram o ambiente, bem como o conceito e a proteção do
meio ambiente, somente podendo ser viabilizados a partir do desenvolvimento
da relação ser humano-natureza.
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Artigo recebido em: 05/04/2010
Artigo aprovado para publicação em junho /2010.
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NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS E PADRÕES
JURÍDICOS
NO PROCESSO DE REDEFINIÇÃO DA REGIÃO
AMAZÔNICA
Joaquim Shiraishi Neto *
Sumário:1. Disputa pela redefinição da Região Amazônica; 2. “Novo” Direito e “Novos Movimentos Sociais”; 3. “Práticas Jurídicas” localizadas: “Novos” padrões jurídicos; Considerações Finais; Bibliografia; Documentos e Periódico.
Resumo: Na última década, muito se discutiu sobre a necessidade de adotar medidas
para reduzir o aumento do desmatamento
na chamada região Amazônica brasileira.
Os esforços utilizados para diminuir esse
processo, que continua em ritmo acelerado, tendem a se tornar inócuo, diante de
uma medida em curso no Congresso Nacional, que pretende alterar por meio de
Projeto de Lei a área de abrangência da
Amazônia legal, retirando da região os
Estados do Mato Grosso, Tocantins e Maranhão. A discussão sobre a redefinição da
região Amazônica está inserida no bojo de
um intenso processo de conflito na região,
onde os povos e comunidades tradicionais
se organizam politicamente para enfrentar
os problemas decorrentes da ameaça da
perda dos seus territórios tradicionalmente
ocupados. No interior do processo de mobilização vivenciado por esses grupos sociais, é possível identificar diferentes estratégias e ações, que se colocam em face
Abstract: In the last ten years, a lot has
been discussed about the needs of adopting measures to reduce the deforestation
increase in the region called Brazilian Amazon. The efforts used to reduce this process, which remains accelerated, intent to
become innocuous, due to the measure on
course at the National Congress that intent
to change, through a Project of Law, the
area that holds the Legal Amazon, removing the states of Mato Grosso, Tocantins
and Maranhão. The discussion about the
redefinition of the Amazon Region is due
to the intense conflict in this area, where
the people and the traditional communities
organize themselves politically in order
to face the problems that come with the
threaten of loosing their territories traditionally occupied. Inside this mobilization
process lived by these social groups it is
possible to identify different strategies and
actions, placing the “traditional” against
of the “new” antagonists. A distinctive
* Advogado. Professor do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (PPGDA-UEA). Líder do Grupo de Pesquisa: Direito,
Comunidades Tradicionais e Movimentos Sociais. Pesquisador do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA-UFAm-F.Ford).
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dos “tradicionais” e “novos” antagonistas,
sendo que um traço distintivo, considerado
comum é a “luta jurídica localizada”, que
não se restringe ao âmbito dos espaços
municipais. O reconhecimento jurídico de
que a sociedade brasileira é uma “sociedade plural”, tem servido como argumento, acionado para a garantia e a reivindicação de direitos. As discussões em torno da
noção de “pluralismo jurídico” são retomadas, ganhando novo significado e impondo
“novos” padrões jurídicos. Nesse processo, o direito tem sido um poderoso instrumento, utilizado para nortear o processo de
mobilização política e de construções das
novas identidades.
trace, considered ordinary is the so called
“localized juridical fight”, which is not
restricted to the counties areas. The juridical recognition that the Brazilian Society
is a “plural society”, has served as an argument, within the claim for individual rights
and guarantees. The discussions around
the notion of the “juridical pluralism”
is taken back, getting a new significance
and demanding “ new” juridical pattern.
Within this process, the law has been a
powerful instrument, used to direct the
political mobilization process and the
built of new identities.
Palavras-chave: novos movimentos so- Key–words: new social movements, Amaciais, redefinição da região Amazônica, zon region redefinition, new juridical patnovos padrões jurídicos.
tern.
1. DISPUTA PELA REDEFINIÇÃO DA REGIÃO AMAZÔNICA
Em meio às discussões relacionadas ao aumento do desmatamento na
região e às medidas e estratégias para reduzi-los, a chamada Amazônia legal
poderá ter sua área de abrangência reduzida em função de dois Projetos de Lei
que se encontram em trâmite no Congresso Nacional. Os referidos Projetos de
Lei objetivam dar nova redação ao inciso VI do §2° do art.1° da Lei nº 4.771, de
15 de setembro de 1965, para alterar a definição de Amazônia legal, retirando
dessa região os Estados do Tocantins, Mato Grosso e Maranhão. Os argumentos
apresentados consistem em afirmar que os critérios utilizados para a definição
da região à sua época não levaram em consideração as características dos diferentes “ecossistemas” ou “biomas” existentes em cada um dos Estados . A delimitação levou em consideração critérios eminentemente políticos, sem que
houvesse preocupação com os científicos, notadamente os de base geográfica,
que poderiam contribuir para nortear a sua definição. A necessidade de desenvolver os Estados de acordo com as políticas públicas traçadas em consonância
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com um meticuloso planejamento , orientou os atuais limites da Amazônia legal.
O fato de a Amazônia ser compreendida como “região problema”, fez
com que os esforços governamentais se concentrassem e se dirigissem na
adoção de um conjunto de políticas públicas voltadas à exploração “racional”
dos potenciais da região, sobretudo pelo malogro das atividades até então desenvolvidas de exploração dos recursos de origem florestal e mineral. A exploração
dos recursos naturais, que trouxeram certa “prosperidade” à região, foi objetivo
de análise econômica. Os esquemas interpretativos acionados que procuravam
compreender esse processo o fizeram a partir da noção de “ciclos econômicos”
, segundo um discurso teórico que procura articular os temas referidos aos mitos da região, como: o “nomadismo”, o “extrativismo”, o “contato das raças”
e a “entrada da civilização”, transformando-os em “verdades científicas” , que
foram produzidas e difundidas enquanto tais.
Nesse sentido, o desenvolvimento da região Amazônica implicava na
adoção de políticas que tinham como pressuposto a necessidade de incorporá-la
ao País. O processo de “integração” ocorreu atraindo capital privado por meio
de incentivos fiscais e monetários. O desenvolvimento e a ocupação da região se
tornaram objetivos e em nenhum momento os Estados se opuseram ou mesmo
rivalizaram a esse modelo de desenvolvimento marcadamente de caráter autoritário , na medida em que “desconhece” a existência de diversos grupos sociais
portadores de distintas “temporalidades” e “axiologias” , levando à destruição
das identidades coletivas. O viés autoritário do modelo serviu para atender aos
interesses dos Estados e de determinados grupos locais, que de forma ampla
pôde se beneficiar dessas políticas.
Nas últimas décadas duas tendências entrelaçadas vêm redefinindo a
região Amazônica. A primeira está relacionada ao papel do Estado na região,
que tem se ocupado em promover o desenvolvimento a partir dos interesses
dos interessados em explorar economicamente a região. Observa-se que o discurso ambientalista , que serviu como norte das discussões nas últimas décadas, aos poucos, perde força, diante da intensificação do processo de exploração econômica na região. Em outras palavras, o modelo em expansão retoma e
“atualiza” o pensamento geopolítico brasileiro de vertente militar desenhado em
tempos passados, cujo objetivo era a inserção da região na expansão capitalista
contemporânea. A aquisição e ocupação de terras por grandes proprietários e
empresas para o cultivo das monoculturas (de soja, cana de açúcar, dendê, eucalipto, dentre tantas...), bem como a exploração e intensificação dos recursos
minerais e energéticos evidenciam o caráter predatório desse processo, que se
coloca de forma antagônica ao vivenciado pelos diversos povos e comunidades
tradicionais.
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A segunda tendência refere-se à emergência dos movimentos sociais na
região Amazônica , que se definem e são autodefinidos por critérios de identidade étnica, e reivindicam a manutenção e garantia de direitos, frente às situações que lhes apresentam adversas. O avanço da exploração econômica sobre
as terras e os recursos naturais coloca em risco as formas de reprodução física e
cultural dos mais variados grupos.
Em meio a esse intenso processo de disputas, os povos e as comunidades
tradicionais vão desenhando seus territórios, que segundo Almeida encontramse em “processo de territorialização” . Desta forma, rivalizam com os territórios
pretendidos, sendo que isso implica na redefinição da própria noção de região
a partir dos critérios de mobilização política. Observa-se que é a noção de
região Amazônica se encontra em jogo mais uma vez. No entanto, os critérios
acionados para sua definição se encontram delineados num campo de disputa,
onde distintos interesses entram em conflito, diferentemente da sua primeira
definição, quando os critérios dominantes foram àqueles identificados pela “objetividade científica”.
2. “NOVO” DIREITO E “NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS”
As reflexões em torno do ordenamento ou sistema jurídico tendem a
“apagar” a possibilidade de considerar a existência de direitos, que possam estar
para além ou aquém dos limites de seu tempo e espaço . Os juristas se esforçam
em fazer coincidir o espaço jurídico com a sociedade, modernamente com o Estado . Trata-se do dogma da completude do ordenamento jurídico, que consiste
na propriedade do direito regulamentar toda e qualquer situação que exista de
fato . Esta leitura formal do direito, que privilegia a interpretação das normas
e a coerência do ordenamento tem se constituído em objeto de discussão em
face dos fenômenos sociais e econômicos recentes, que tem se apresentado de
forma múltipla e complexa, obrigando a uma reflexão permanente acerca dos
significados do direito.
Percebe-se que o formalismo excessivo utilizado para compreender os
fenômenos sociais e econômicos tem impedido a interpretação dos processos
de extrema complexidade, que se colocam distantes da forma como o direito se
produz, reproduz e difunde. Os intérpretes do direito têm encontrado enormes
dificuldades em atender de forma satisfatória as demandas, embora tenham se
demonstrado bastante criativos em relação a elas . A recusa em se admitir a insuficiência do ordenamento ou sistema jurídico, enseja a necessidade de revisitar o
próprio direito e, nesse sentido, as reflexões dogmáticas mais procuram se atual256
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izar e o fazem se apropriando da noção de “pluralismo jurídico”, que sempre foi
tomado como algo residual do direito positivado . O “pluralismo jurídico” era
formulado segundo o campo jurídico por historiadores e sociólogos do direito.
Eles se utilizavam dessa noção operacional para demonstrar a insuficiência do
ordenamento jurídico, bem como para descrever as situações da realidade, que
não se encontravam catalogadas no direito. Contudo, as reflexões jurídicas mais
recentes reconhecem o fato de que somos uma “sociedade plural”. Para essa
análise: “o pluralismo é uma realidade, pois a sociedade se compõe de uma pluralidade de categorias sociais, de classes, grupos sociais, econômicos, culturais
e ideológicos” . Optar pelo reconhecimento de que somos uma sociedade plural,
tende a impor uma ruptura com os esquemas de pensamento jurídico tradicionais e a necessidade de repensá-lo à luz das discussões do “pluralismo jurídico”.
A diversidade importa no acatamento de “práticas jurídicas” diferenciadas, nem sempre catalogadas e que necessitam ser incorporadas às reflexões
jurídicas para garantir direitos efetivos à diversidade de sujeitos e grupos sociais, que sempre ficaram distantes dos tratamentos jurídicos . As dificuldades de
interpretar os fenômenos sociais à luz dos padrões jurídicos tradicionais, sempre
ficaram evidenciadas diante dos fatos , embora os intérpretes preferissem ignora-los, já que a todo custo procuravam enquadrar as situações aos dispositivos
legais, apesar de reconhecerem as dificuldades. Para cada situação, um dispositivo, o que implicava numa simplificação das situações, quando reduzidas ao
mundo jurídico.
Nesse sentido, o processo em curso que valida o pluralismo na ordem
jurídica, importa, também, no reconhecimento de que a norma se origina de
uma situação particular e que se universaliza no ambiente jurídico. O discurso
jurídico e o “senso teórico comum dos juristas” têm garantido a produção,
reprodução e difusão da universalidade da norma jurídica, “livre” de qualquer
tipo de interesses que possam maculá-la. Isso se constituiu num dos “obstáculos
epistemológicos” , que tem impedido a compreensão do próprio direito, inclusive a sua possibilidade de atualização.
A necessidade de o direito ser pensado e organizado para atender determinados problemas torna-se “obstáculo” à própria capacidade do direito se modificar diante das situações que se complexificam, na medida em que a sociedade
se globaliza. As situações complexas têm implicado na necessidade de envolver
uma maior participação dos interessados e dos que detém conhecimentos específicos a respeito, na medida em que esses procedimentos permitam contribuir
na tomada das decisões judiciais, que possam ser consideradas mais justas.
Os resultados do reconhecimento de que somos uma “sociedade plural”
implica numa ampliação dos problemas, em decorrência do grau de disputas
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acirradas, que se colocam por vezes de forma contraditória no interior da sociedade . Os esforços teóricos devem se concentrar na possibilidade de intensificar
as reflexões do papel do direito na sociedade contemporânea e de sua aplicação
frente à dinâmica da realidade, que é reconhecidamente plural. Nesse sentido,
as tentativas de simplificação dos procedimentos, a fim de proporcionar maior
celeridade à resolução dos conflitos devem ser vistas com ressalva , sobretudo
pelo fato de existir no momento atual reflexões no âmbito do direito, que procuram encontrar na idéia do “consenso”, senão a única, mas a melhor forma
para a resolução dos conflitos sociais existentes. As reflexões que se encontram
ancoradas nas discussões de Democracia e Estado de Direito vêm sendo objeto
de crítica , já que trazem no seu bojo a idéia de que o direito representa os interesses
da sociedade, diluindo a política sob o conceito de direito.
Observa-se que o critério de identidade vem contribuindo numa maior
capacidade dos grupos sociais exerceram mobilização política para reivindicarem direitos. A organização e mobilização dos povos e comunidades tradicionais
se constituem em um importante instrumento para enfrentar as situações concretas, que se evidenciam nos processos de disputas pelos territórios. Nesse intenso
processo vivenciado pelos grupos sociais, o enfrentamento jurídico tem sido
uma arena de luta privilegiada. As manifestações políticas dos movimentos nas
mais diversas situações revelam diferentes estratégias e ações, que se colocam
em face dos seus antagonistas. Um traço distintivo que pode ser considerado comum a todos esses grupos sociais é o que pode ser denominado de “luta jurídica
localizada” , que não se restringe aos limites do espaço municipal. É localizada
no sentido de que os grupos têm acesso aos meios e ao Poder Público responsável para atender e executar as medidas eventualmente propostas. Os esforços
dos grupos sociais em manter a “luta jurídica localizada” decorre da utilização
de diversas práticas, que não se encontram referidas ao aspecto discursivo, acabando por impor formas próprias: junto às Câmaras Municipais e Assembléias
Legislativas dos Estados, os povos e comunidades tradicionais além de participarem das audiências públicas para discutir projetos que lhes afetam direta ou
indiretamente, apresentam proposições por meio de representantes, as quais têm
se transformado em leis ; em discussões com Poder Executivo vem discutindo e
firmando determinadas medidas , que tem se traduzido em políticas específicas
; e em discussão com o Ministério Público Estadual e Federal apresentam e discutem a particularidade de seus problemas para a defesa de seus direitos.
Percebe-se que há uma apropriação das “práticas” e do discurso jurídico,
na medida em que esse campo tem se demonstrado extremamente favorável às
disputas políticas. O fato do direito representar os interesses de determinados
grupos - “o reino de um direito”, como afirmou Jacques Rancière - não tem se
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apresentado neste momento, pelo menos, como um obstáculo aos movimentos
sociais que, ao se apropriarem das “práticas jurídicas”, procuram propor dispositivos legais que estejam mais alinhados com a sua maneira de viver. Em
determinados momentos, procuram interpretar os dispositivos consoante os seus
interesses e vontades, apesar de que a interpretação nem sempre encontra “eco”
nos esquemas de pensamento jurídicos dominantes, estruturados em consonância com os padrões jurídicos tradicionais. Neste contexto em que os grupos
sociais se organizam e se mobilizam, é importante destacar o papel do Poder
Judiciário, que tem procurado reconhecer a relevância da ampla participação da
sociedade nos julgamentos, diante da complexidade e da pluralidade de situações, que impõem novas formas, onde os pré-intérpretes são determinantes no
processo decisório.
No caso, há uma necessidade de ocupar o campo jurídico, sobretudo em
função do momento vivenciado, em que os próprios intérpretes autorizados reconhecem a necessidade de uma maior participação da sociedade. Os esforços
do Poder Judiciário em ampliar a participação da sociedade nos processos decisórios se encontram coadunados com os interesses dos povos e comunidades
tradicionais. Extensivamente a esse processo, os grupos sociais intensificam sua
luta em explicitar a sua existência social, bem como demonstrar a necessidade
de protegê-la, mesmo que para isso seja necessário repensar os próprios padrões
jurídicos instituídos.
No processo que envolve o reconhecimento da diversidade, a primeira
ação consiste em reafirmar e afirmar a idéia da diferença, que motiva as reivindicações dos diversos povos e comunidades tradicionais. A partir do intenso
processo de organização e mobilização política, os grupos sociais adotam a seguinte estratégia: a elaboração e proposição de dispositivos legais que, inicialmente, permitam reconhecer a sua existência social, bem como seus modos de
“fazer”, “criar” e “viver”. As discussões em torno da elaboração e proposição
dos dispositivos legais tem sido um elo importante no processo de construção
das identidades coletivas , na medida em que as discussões políticas em torno
das proposições permitem ao mesmo tempo, afastar as divergências e aproximar
os grupos, frente os antagonistas. A força e a intensidade dos processos fazem
com que os grupos apaguem as diferenças e reforcem os laços de solidariedade.
As idéias da existência de coesão social - que serviam para distinguir a região
das demais - são recuperadas, mas sem perder a possibilidade de realçar as diferenças existentes entre os diversos grupos sociais que compõem a Amazônia.
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3. “PRÁTICAS JURÍDICAS” LOCALIZADAS: “novos” padrões jurídicos
O deslocamento dos enfrentamentos políticos para a “luta jurídica localizada”, sobretudo a produção de dispositivos legais no âmbito municipal
e, também, estadual revela um dado “novo”, que merece ser incorporado às
análises. Nesse processo, os movimentos sociais passaram a ser os protagonistas e intérpretes de suas próprias ações e estratégias, diferentemente de
outros períodos, onde o discurso era mediado. Até a década de 1980, observa-se
que os conflitos se referiam às disputas pela terra na região Amazônica, envolvendo uma intensa discussão em torno dos direitos de posse e propriedade. Na
maioria das situações, as discussões eram encaminhadas ao Poder Judiciário . O
procedimento de encaminhar prevalentemente os conflitos ao Poder Judiciário
representava uma das estratégias mais utilizadas em face de seus antagonistas.
O seu objetivo consistia em garantir ou mesmo evitar qualquer tipo de medida
que pudesse implicar na ameaça ou perda da terra em disputa, embora não se
esperasse que as ações fossem êxitosas, isto é, julgadas favoravelmente. Os argumentos acionados eram os perfilados pelos advogados, que promoviam a disputa no campo jurídico. As ações eram organizadas com intuito de demonstrar a
existência da posse mansa e pacífica sobre a terra ou mesmo a insuficiência dos
documentos acostados aos processos judiciais. As disputas jurídicas cingiamse aos processos e às medidas administrativas junto aos órgãos fundiários, que
eram acionados para promover o processo de desapropriação ou mesmo regularização fundiária do imóvel, objeto do litígio.
Na década de 1990, a esse discurso do direito agrário, foram incorporadas as discussões de meio ambiente. A força do discurso ambiental, que buscou identificar formas de preservação e conservação da região Amazônica, fez
com que os grupos sociais passassem a ter uma participação mais ativa, aproximando-os das formulações e dos debates jurídicos ambientais, que procuravam
identificar formas para melhor disciplinar as ocupações e usos dos territórios.
A experiência dos seringueiros com os Projetos de Assentamento Extrativistas
(PAEXs), incorporado pela Política Nacional do Meio Ambiente por meio das
Reservas Extrativistas (RESEXs), é um exemplo recorrente. Ele se espraiou por
toda região Amazônica, vindo a se incorporar na Política Nacional de Unidades
de Conservação.
No entanto, somente a partir do aumento do grau de organização e mobilização dos grupos sociais é que as demandas jurídicas passaram a se tornar mais
complexa, impondo questionamentos aos procedimentos comumente utilizados,
que vinham se demonstrando ineficazes diante dos problemas, que se colocavam e que ameaçavam a reprodução física e cultural dos grupos. As discussões
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não mais se referiam ao direito à terra, mas a um conjunto de proposições, que
implicam no reconhecimento da existência social dos povos e comunidades
tradicionais. Os discursos jurídicos, agrário e ambiental, até então hegemônicos foram perdendo gradativamente força junto aos movimentos sociais, que
passaram a articular as lutas a partir de “novas” formas. Tal processo reflete as
“novas” ações e estratégias dos grupos sociais, que procuram como medida na
manutenção de seus direitos, ações mais localizadas em que pudessem deter o
controle político do processo.
A maioria dos projetos de lei apresentados pelos representantes dos movimentos sociais foram e estão sendo aprovados nas diversas Câmaras Municipais
de toda região Amazônica . Os projetos de lei, que implicam numa maior liberdade ou restrição de determinadas “práticas sociais”, apesar de sofrerem forte
resistência, acabam sendo aprovados. Os conteúdos dos projetos representam o
grau de enfrentamento envolvendo interesses diversos, que se realiza no interior
dos espaços políticos. Verifica-se que o maior grau de organização e mobilização dos grupos reflete os ganhos e as perdas dos projetos de lei apresentados .
As estratégias utilizadas para a discussão e apresentação da proposição - que
vai desde a escolha do vereador ou parlamentar - bem como as articulações que
ocorrem no decorrer de toda tramitação do projeto, incluindo o dia da votação,
são dados relevantes que necessitam ser analisados, uma vez que contribuem
com o maior ou menor êxito da maioria das propostas apresentadas. Nessa arena, onde os interesses divergentes se explicitam, a ação política exercida pode
significar um grande passo em direção a aprovação dos projetos.
O conteúdo dos projetos aprovados além de expressarem a correlação de
forças localizadas, evidencia as situações existenciais de fato, vivenciadas diferentemente por cada grupo social, por isso mesmo não há restrições legais em
relação ao que foi aprovado. Uma vez aprovadas, as leis ficam “sacramentadas”
e herméticas aos questionamentos. As leis aprovadas são acatadas, sendo que os
diversos grupos e o Poder Municipal procuram cumprir o que foi previamente
pactuado. O “pacto” envolve uma “consciência geral” do profundo conhecimento da questão e a necessidade de regulamentá-la, sob pena de “novos” conflitos. Observa-se que os envolvidos possuem plena consciência dos direitos em
jogo, bem como da necessidade de protegê-los.
Os deslocamentos das ações e estratégias para o plano jurídico local, especificamente para o da elaboração e proposição de leis vêm servindo para reconhecer a existência social dos grupos sociais e, sobretudo legitimar as suas
ações. Trata-se de promover a passagem de uma situação de “invisibilidade”
para a de “visibilidade” jurídica, pois o direito somente protege os visíveis.
Contudo, esse processo é pouco refletido, em função dos resultados positivos
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até aqui alcançados. Os grupos sociais vêm apostando suas lutas nesse processo
que, sem dúvida, contribui com a construção de suas identidades. A elaboração
e proposição dos dispositivos legais auxiliam no reforço e atualização dos laços
sociais. Os indivíduos passam a se identificar enquanto membro do grupo.
Os novos dispositivos legais criados a partir do controle exercido pelos
movimentos sociais determinaram de certa forma, a ampliação e abertura do ordenamento ou sistema jurídico até então indiferente aos direitos desses grupos.
Os novos dispositivos necessitam ir se acomodando ao universo jurídico, sendo
que esse processo pode implicar em um menor controle dos grupos sociais, em
função da “autonomia” do campo jurídico. A “autonomia” é construída em face
das necessidades de produção, reprodução e difusão de um discurso jurídico,
que sempre se ocupou em negar direitos a esses grupos. Isso deverá implicar
em um novo conjunto de ações e estratégias, sobretudo na capacidade dos grupos explicitarem a legitimidade dos seus direitos que, em muitos momentos, se
encontram em conflito com o próprio direito. Os esforços dos grupos deverão se
dirigir e concentrar no direito em dizer o direito.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No bojo da dinâmica da região Amazônica, os novos movimentos sociais
ganharam força e vitalidade, em face dos projetos de intervenção na região,
que procuram incluí-la na expansão capitalista. Em decorrência, as “práticas
sociais” dos diferentes grupos sociais vêm se impondo na ordem, acarretando
uma intensa disputa sobre os territórios e no processo de redefinição da região.
É por esse motivo que os debates sobre a redefinição da região Amazônica não podem prescindir da participação e do conteúdo desses grupos sociais. A
força e vitalidade dos movimentos sociais residem, em primeiro lugar, no fato
de terem garantido a sua existência enquanto grupo socialmente distinto. A sua
permanência e perenidade rivalizaram com todos os esquemas científicos de
pensamento, que deduziam o seu “fim” ou “assimilação” diante da sociedade
nacional. Segundo essas leituras, esses grupos estariam fadados ao desaparecimento. Em segundo, porque a partir dessa primeira, lograram questionar o
direito na sua concepção universalista, obrigando -o a se debruçar sobre as diversidades e as singularidades. Em outras palavras, a “luta jurídica localizada”,
enquanto instrumento, vem aproximando o direito das situações mais particularizadas, implicando num repensar do próprio conteúdo jurídico.
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Tal processo vem fazendo com que os grupos sociais transitem de uma
situação de invisibilidade para visibilidade; enquanto sujeitos coletivos de direitos têm suas “práticas jurídicas” igualmente reconhecidas dentre tantas. A
região Amazônica expressa e contém essa diversidade sócio-cultural, que deve
ser preservada, sendo que é por esse motivo, tomando emprestado o título do
livro de Ronald Dworkin, “levar a sério” as proposições dos povos e comunidades tradicionais, incorporando-as como legitimas no interior da ordem jurídica, sob pena de negar direitos, comprometendo a reprodução física e cultural
desses grupos sociais.
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SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº 005, de 2005, “Altera o inciso VI do
§2° do art.1° da lei 4.771, de 15 de setembro de 1965, na redação alterada pela
Medida Provisória nº 2.166-67, de 24 de agosto de 2001, que dispõe sobre a
abrangência da Amazônia Legal, e dá outras providências.”
STF amplia participação no debate público. Folha de São Paulo, 10 de agosto
de 2008. A12.
Artigo recebido em: 01/06/2010
Artigo aprovado para publicação em junho /2010.
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ÍNDICE - PARTE III
PLURALISMO JURÍDICO COMO VALOR JURÍDICO FUNDAMENTAL DO ESTADO BRASILEIRO: ESTUDO DE CASO SOBRE A LEI Nº
145/2002 DO MUNICÍPIO DE SÃO GRABRIEL DA CACHOEIRA E A COOFICIALIZAÇÃO DAS LÍNGUAS NHEENGATU, TUKANU E BANIWA
Moysés Alencar de Carvalho........................................................................271
Introdução
1. Pombal ecoando na política indigenista nacional pré- 1988
2. O direito à diferença na Constituição Federal de 1988
3. Pluralismo jurídico: A comunicação entre direito e realidade na Terra das Línguas
4. (In)Constitucionalidade e (in)competência: questões formais sobre a Lei Municipal
nº 145/2002
Considerações Finais
Referências
SUJEITOS INDÍGENAS E ESTADO NO CAMPO DA REGULAÇÃO JURÍDICA DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS À BIODIVERSIDADE
Sheilla Borges Dourado................................................................................287
1. Apresentação do campo
2. Inovação tecnológica e valoração econômica dos conhecimentos tradicionais associados
3. Novos bens, novos sujeitos de direitos
4. Campo científico e “definições legítimas”
Em resumo, para finalizar
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PLURALISMO JURÍDICO COMO VALOR JURÍDICO FUNDAMENTAL DO ESTADO BRASILEIRO:
ESTUDO DE CASO SOBRE A LEI Nº 145/2002 DO
MUNICÍPIO DE SÃO GRABRIEL DA CACHOEIRA
E A CO-OFICIALIZAÇÃO DAS LÍNGUAS NHEENGATU, TUKANU E BANIWA
Moysés Alencar de Carvalho*
Sumário: Introdução, 1. Pombal ecoando na política indigenista nacional pré- 1988;
2. O direito à diferença na Constituição Federal de 1988; 3. Pluralismo jurídico: A comunicação entre direito e realidade na Terra das Línguas; 4. (In)Constitucionalidade e
(in)competência: questões formais sobre a Lei Municipal nº 145/2002; Considerações
finais; Referências.
Resumo: Com o advento da Constituição Federal de 1988, o sistema jurídico
brasileiro abriu seus olhos para a riqueza
da diversidade cultural existente no país,
reconhecendo a pluralidade de modos
diferenciados de criar, fazer e viver e garantindo proteção jurídica às distintas
coletividades formadoras da sociedade
nacional e suas práticas. A partir de tal
inovação no modo de atuação do Estado
foi possível surgir no município de São
Gabriel da Cachoeira uma lei municipal
que co-oficializou três línguas indígenas – Nheengatu, Tukano e Baniwa. Este
trabalho pretende discutir brevemente as
mudanças paradigmáticas do tratamento
jurídico adotado no Brasil ao lidar com a
pluralidade cultural aqui existente, o status
atual do tema e, finalmente, a relevância e
Abstract: With 1988’s Federal Constitution, Brazilian’s legal system has opened
its eyes for the richness of the cultural diversity existing in the country, recognizing
the plurality of differentiated ways of creating, making and living and guaranteeing
juridical protection to the distinct collectives which helped forming national society and their practices. Through this new
way of State action, it was possible to see
the emerging of a local law which made
three indigenous languages – Nheengatu,
Tukano e Baniwa – co-official to Portuguese. This article aims briefly discussing the paradigmatic changes of Brazil’s
juridical treatment towards the existing
cultural plurality, current status of the issues and finally, the relevance and constitutionality the Law 145/2002, of São Ga-
* Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do
Estado do Amazonas (PPGDA-UEA). Bolsista FAPEAM.
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constitucionalidade da Lei n.º 145/2002, briel da Cachoeira, Amazonas, as a space
do município de São Gabriel da Cachoeira, of cultural protection and improvement of
Amazonas, enquanto espaço de proteção indigenous peoples’ dignity.
cultural e ampliação da dignidade indígena.
Key-words: Indigenous languages; juridiPalavras-chave: Línguas indígenas; plu- cal pluralism; Law 145/2002 of São Garalismo jurídico; Lei n.º 145/2002 do mu- briel da Cachoeira, Amazonas.
nicípio de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo proceder a uma breve análise da
questão do pluralismo jurídico no estado contemporâneo brasileiro a partir de
um caso concreto: a promulgação da Lei n.º 145/2002 no município de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, que co-oficializou as línguas indígenas Nheengatu, Tukano e Baniwa.
O trabalho propõe-se a apontar a relevante mudança de paradigma que
esta lei municipal representa em nosso ordenamento jurídico e, com ainda maior
impacto, na realidade social dos grupos indígenas atingidos pelo espectro de sua
regulação, imediatamente, e para as demais comunidades indígenas e grupos
étnicos, por via oblíqua.
Contudo, antes, e parar melhor fazê-lo, mostra-se pertinente traçar uma
breve retrospectiva histórica da atuação estatal para com os indígenas, através
das políticas públicas implementadas e dos instrumentos normativos utilizados
pelo Estado brasileiro ao lidar com estes sujeitos diferenciados até a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Na seqüência, far-se-á uma leitura dos preceitos trazidos pela Constituição Federal de 1988 que apontam os novos rumos da política indigenista
brasileira, sua postura mais sensível à inegável diversidade cultural e pluralidade étnica existentes na realidade social brasileira.
Desta feita, intenta-se demonstrar como esses princípios e preceitos
emancipatórios constitucionais albergam a possibilidade explorada pela lei
objeto deste artigo de reconhecer formalmente as línguas indígenas, utilizadas
como ferramentas essenciais de comunicação e reprodução de modos específicos de criar, fazer, viver, conhecer o mundo e (re)conhecer-se, essenciais à
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sobrevivência de suas culturas.
Uma das questões levantadas com relação à Lei n.º 145/2002 do município de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, diz respeito à competência,
ou a falta desta, do município para legislar sobre o assunto. Afora isso, o art. 13
de nossa Carta Maior relega à língua portuguesa o status de idioma oficial da
República Federativa do Brasil e, neste aspecto, levanta-se, inclusive, a hipótese de inconstitucionalidade da lei, que será também analisada no transcorrer
do texto, sem que se pretenda, contudo, alargar seus objetivos a uma discussão
mais profunda de Direito Constitucional.
1. POMBAL ECOANDO NA POLÍTICA INDIGENISTA NACIONAL PRÉ- 1988
Desde a chegada dos colonizadores europeus ao Brasil, os povos indígenas foram sistematicamente subjugados, utilizados como mão-de-obra escrava, braços, no sistema de produção baseado na monocultura, e aqueles que se
opunham à dominação portuguesa eram programaticamente exterminados.
Muitos dos povos que conseguiram escapar do extermínio físico, não puderam resistir ao perecimento de suas culturas. Uma das formas encontradas
pelo colonizador para facilitar o processo de “domesticação” dos indígenas, e
assim ampliar sua utilização como mão-de-obra e a produtividade de suas plantações monocultoras era restringir suas práticas culturais, dentre elas a utilização de suas línguas (ALMEIDA, 2007, p. 18).
Para facilitar o controle e a comunicação com as populações indígenas,
ao mesmo tempo em que paulatinamente invisibilizavam as línguas e demais
práticas próprias dos nativos, os missionários incumbidos da tarefa de sua catequização e cooptação para a Coroa portuguesa, inseriram entre as diversas populações o uso do Nheegatu, ou língua geral.
Em meados do séc. XVIII, por determinação do diretório pombalino,
mesmo o Nheegatu foi proibido, impondo-se a utilização do Português por todos os indígenas, como tentativa de eliminar definitivamente as demais línguas
faladas no Brasil e aumentar as chances de sucesso do processo civilizatório dos
“gentios” e de sua submissão ao Estado constituído e ao Príncipe.
Tal iniciativa não logrou êxito graças a um detalhe com o qual as autoridades não contaram: em resistência silenciosa “as línguas indígenas outrora
proibidas mantiveram-se resistentes e vívidas, na vida cotidiana das aldeias, nos
afazeres e nos segredos da vida doméstica” (ALMEIDA, 2007, p. 22), sobrevivendo ao tempo e a pressões de toda sorte , alcançando o presente. Não sem
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que muitas delas se perdessem para sempre nos corredores da história nacional.
História recheada de massacres, exclusões e omissões. Omissões como a
perpetrada pelo estado brasileiro, que mesmo após a transição para a forma de
governo republicano, nunca corrigiu essa injusta proibição às línguas indígenas.
Nas palavras de Alfredo Wagner B. de Almeida:
As constituições republicanas jamais desdisseram Pombal.
A noção operacional de ‘povo’, de inspiração positivista,
pressupunha uma unidade geográfica e lingüística, sob uma
administração a mesma, cujo artefato de comunicação era
a língua dominante, a mesma da sociedade colonial. (ALMEIDA, 2007, p. 22)
Essa busca por uma homogeneização ideal, distinta e conformadora da realidade concreta que se apresentava diversificada e plúrima, dirigida à construção de
uma identidade nacional fazia parte do ideário do governo republicano brasileiro,
uma vez que “a identidade nacional tem como objetivo o direito ‘monopolista
de traçar a fronteira entre o nós e o eles’” (SÁ, 2006, p. 15), e já não fazia parte
das políticas do Estado Republicano o extermínio, ao menos explícito, dos indígenas que continuavam a ser “eles”. Dessarte, não podendo mais livrar-se
oficialmente dos índios fisicamente, aniquilando seus corpos, seu novo objetivo seria civilizá-los, integrá-los à sociedade nacional um a um, destruindo
suas culturas e suas almas. Esta fora a estratégia encontrada pelo governo
brasileiro para alcançar a almejada homogeneidade do povo, um dos tripés do
Estado moderno.
O Código Civil de 1916 listava em seu art. 6º, II, o silvícola, termo carregado de carga simbólica ideológica pejorativa, como relativamente incapaz
para realizar atos da vida civil, sendo que no parágrafo único do mesmo artigo
releva-se o propósito do Estado de cooptar os indígenas à sociedade estabelecida
nos moldes do pensamento cartesiano ocidental . No mesmo sentido vem o art.
1º do Estatuto do Índio (Lei n.º 6.001/73), exibindo a meta de progressivamente
integrar os índios à comunhão nacional , ou seja, inseri-los em nosso modelo de
vida, apropriação e conhecimento do mundo.
Este modelo de pensamento e de relação com os grupos diferenciados
que compõem o tecido social de nosso país guiou as práticas estatais até o fim
da década de 1980 quando se registrou formalmente, e justamente no ápice da
pirâmide que ilumina nosso ordenamento jurídico, um novo rumo, acolhedor
das diversidades múltiplas. Sobre o modelo de pensamento adotado pelo Estado
até então, o Prof.º Fernando Dantas assim escreveu:
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Durante muito tempo, ou melhor, durante séculos, a racionalidade cartesiana, norteadora dos ideários político-estatais no Brasil, guiou-se pelo olhar míope da mirada etnocentrista e colonizadora ocidental, não encontrando nas
ações, nas narrativas, nos modos de vida, enfim, no pensar
de indivíduos e povos nativos, algo importante, com qualidades epistêmicas ou humanas para assim desqualificar,
por irracional ou folclórico, a complexidade das formas de
vida e organização social de povos étnica e culturalmente
diferenciados. (DANTAS, 2003, pp. 473-474)
2. O DIREITO À DIFERENÇA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Trataremos de dois momentos da Constituição Federal de 1988 que
representam uma mudança de paradigma no que tange ao pluralismo existente na concretude de nossa sociedade, por muito tempo espoliado do reconhecimento formal do Estado nacional.
Primeiramente, no capítulo dedicado à cultura, reconheceu-se a importância e abrigou-se de garantia protetiva estatal o patrimônio cultural nacional, formado pelos bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória
dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira . Entre estes grupos
encontram-se os indígenas que, por sua vez, e no segundo momento da mudança
paradigmática citada, foram escolhidos como protagonistas de um capítulo especial e exclusivamente dedicado a eles, dentro do qual lhes são reconhecidos
sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, além dos direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União
demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
Os bens culturais peculiares aos grupos identitários litigantes, os “diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”, somente alcançaram o status de
pertencentes ao patrimônio cultural nacional na Constituição Federal de 1988,
assim como passaram também a ser alvo da proteção constitucional que lhes
ficou ausente durante boa parte da história do país, apontando “para um novo
momento da historicidade do direito no que diz respeito ao não ocultamento
das múltiplas e plurais representações culturais dos povos formadores do tecido
social e, conseqüentemente, da memória brasileira.” (DANTAS, 2006, p. 02)
Ainda no art. 216 da CF/88, em seu inciso II, foram incluídos entre os
bens culturais os modos de criar, viver e fazer, que podem ser tomados como
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a base da diferenciação e auto-identificação de um povo. Ademais, garantemlhes a dinâmica dos processos culturais, essenciais à sua sobrevivência fática,
sendo complementarmente responsáveis pela criação, reprodução e renovação
dos demais bens culturais. A proteção constitucional atribuída a esses bens é
salutar quando interpretada como garantia de realização contínua no plano fático, nunca no sentido de engessamento, petrificação, assegurando sua prática e a
continuação do processo dinâmico de criação e recriação da cultura.
A diversidade cultural é uma característica dos agrupamentos humanos,
seja analisando-se as diferenças entre indivíduos de uma mesma sociedade, ou
essa em comparação as que lhe são exteriores. O processo de assimilação do diverso, do diferente, do novo, e sua assimilação, reinterpretação e resignificação
simbólica, mostra-se como um sinal de liberdade na determinação dialética dos
rumos de sua história.
A diversidade e seu reconhecimento configuram-se como concreções
ontológicas de tamanha relevância na atualidade que no dia 20 de outubro de
2005, na Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) Unesco, foi celebrada a Convenção sobre a
Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais que, entre seus
objetivos, destacou a proteção e promoção da diversidade cultural , o incentivo
ao diálogo entre culturas, o reconhecimento da cultura para o desenvolvimento
de todos os países e a reafirmação do direito soberano de os Estados conservarem, adotarem e implementarem as políticas e as medidas que considerem
necessárias para a promoção e proteção da diversidade.
A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, ao dispor
sobre povos indígenas e tribais encarrega os Estados signatários, entre os quais
se encontra o Brasil, de promover, entre outras coisas, a plena efetividade dos
direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando a sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, e as suas instituições.
Reconhece assim a diversidade cultural dos povos indígenas e propugna a efetivação de seus direitos em consonância com suas referências simbólicas.
Pode-se perceber a sinergia entre a Constituição brasileira e o pensamento de organismos internacionais, e seus respectivos países membros, positivado
nas convenções citadas, na busca de uma forma de diálogo entre a cultura ocidental, por muito tempo, e ainda hoje, hegemônica, e os demais grupos étnicos,
no caso os indígenas. Nas palavras de Fernando Dantas:
Neste sentido, o reconhecimento constitucional dos índios, e de suas organizações sociais de modo relacionado,
configura, no âmbito do direito, um novo sujeito indígena,
diferenciado, contextualizado, concreto, coletivo, ou seja,
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sujeito em relação com suas múltiplas realidades socioculturais, o que permite expressar a igualdade a partir da
diferença e concretizá-la a partir do ‘diálogo intercultural.’
(DANTAS, 2003, p. 513)
Este diálogo multi e intercultural incorporado ao sistema jurídico pátrio
permite novos campos de discussão e um novo campo de batalha por direitos,
além de permitir a construção de categorias jurídicas diferenciadas, que fujam à
tríade família, tradição e propriedade conformado ao espírito cartesiano positivista norteador da sociedade ocidental como parâmetro de validade da verdade.
3. PLURALISMO JURÍDICO: A COMUNICAÇÃO ENTRE DIREITO E REALIDADE NA TERRA DAS LÍNGUAS
O reconhecimento e a garantia constitucional reservados aos modos de
criar, fazer e viver dos diversos grupos formadores da sociedade nacional permitem aos indivíduos e grupos diferenciados buscar alcançar a realização efetiva da dignidade e dos direitos humanos por seus próprios meios. Direitos estes
que para Joaquín Herrera Flores, “non son outra cosa que la materialización
concreta de las luchas por ‘el poder hacer’ y el ‘poder crear’” (FLORES, 2005,
p. 12), e diz ainda mais o autor sobre o cultural:
(…) o lo que es lo mismo, lo humano - consiste en un continuo proceso de ‘reacción’ frente a las realidades en que se
vive. Es decir, frente a los conjuntos de relaciones que mantenemos con los otros (…), con nosotros mismos (nuestro
luchador sabe decir a los demás y, sobre todo, a sí mismo,
la verdad, por más dura que sea), y con la naturaleza (…)
(FLORES, 2005, p. 17)
Quando tratamos de grupos étnicos específicos como os indígenas, tratamos de povos que, diferentemente do que fora durante muito tempo propagado,
de fato possuem história e conhecimentos vários sobre o mundo, diferentes
daqueles das sociedades ocidentais, mas, nem por isso, menos ricos e dignos de
reconhecimento. Esses conhecimentos acumulados diferem em vários aspectos,
embora em um deles com maior nitidez: são transmitidos oralmente.
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Por isso mesmo, no art. 216, I, da CF/88, o legislador constituinte incluiu
entre os bens de natureza imaterial formadores do patrimônio cultural brasileiro
as formas de expressão, entre as quais podemos citar a língua, utilizada pelo
homem como ferramenta de expressão, comunicação, (re)conhecimento e (re)
produção dos seus modos de criar, fazer e viver. Ademais, reconheceu expressamente aos índios o direito às suas línguas , como que entendendo a necessidade
de assegurá-las como forma de garantir-lhes a possibilidade de reproduzir sua
existência física e espiritual.
Após séculos de imposição dos modos de vida ocidental aos indígenas,
e de negação de suas características culturais enquanto representações simbólicas de formas diferenciadas de apreensão e relação com o mundo, o reconhecimento estatal do direito de utilizarem suas línguas em todas as instâncias
de suas vidas inclusive nos espaços públicos e institucionalizados , alcançado
pelos indígenas residentes no município de São Gabriel da Cachoeira com a lei
nº. 145/2002 pode ser o marco inicial de uma bem-aventurada guinada fática da
relação destes povos com o Estado e a sociedade brasileira. Como destacou o
Prof. Alfredo Wagner de Almeida, “em suma, pode-se asseverar que os movimentos indígenas começam a desdizer o regimento pombalino, unindo o que ele
procurou separar e levando em conta a diversidade cultural como um elemento
estruturante da sociedade brasileira.” (ALMEIDA, 2007, p. 25)
O direito como espaço onde se diz a verdade tem um papel proeminente
nos padrões comportamentais da sociedade, uma vez que a cultura vive um
processo cíclico, “num vaivém contínuo” de retro-alimentação “ ad infinitum.”
(REISEWITZ, 2004, p. 85), do qual o direito faz parte, recebendo inputs da realidade ontológica e conformando-se a ela, ao mesmo tempo em que influencia
a concretude fática e altera a cultura.
Ao promulgar esta lei, o município de São Gabriel da Cachoeira não apenas garantiu a todos os indígenas da região acesso digno aos serviços públicos
através da comunicação em línguas dominadas por eles, mas também garantiulhes visibilidade e legitimidade perante o restante da comunidade. Essa assertiva
pode ser confirmada no relato de Edílson Martins Baniwa, indígena Baniwa
graduado em Letras pela UFAM. Segundo ele, a Lei nº. 145/2002 trouxe para
os não-indígenas “uma certa contribuição para que os mesmos pudessem compreender, valorizar e respeitar a nossa cultura.” (BANIWA, 2007, p. 52)
Finalmente, podemos dizer que o esforço coordenado dos diversos grupos indígenas em São Gabriel da Cachoeira, objetivado na forma de movimento
social, possibilitou a promulgação de uma lei inédita no ordenamento jurídico pátrio, capaz de reconhecer a pluralidade cultural e lingüística existente na
região, possibilitando assim sua reprodução física e espiritual, enquanto socie278
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dades diferenciadas e dotadas de complexos e valiosos conhecimentos e formas
de vida.
Essa conquista (u)tópica sucedida em um lugar específico da Amazônia, tornada real graças à luta obstinada da população indígena local, reforça
a importância dos espaços compartilhados enquanto instâncias de comunhão,
vivência da socialidade, do ser/estar-junto-com (MAFFESOLI, 2004). Cabe
citar também o pertinente comentário do geógrafo José Aldemir de Oliveira a
respeito do lugar:
O lugar tem um tempo e um espaço que são pouco globais e
estão prenhes de significados. No lugar emerge a diferença
e brota a luta que aparece como possibilidade de produzir
uma nova história, de onde podem brotar reações que nos
levam para outra percepção da história e encorajam a superação da práxis tradicional, abrindo lugar para a utopia e
a esperança. Então a ‘história e os lugares seriam da nossa
humanidade comum e não mais apenas dos dominantes’.
(OLIVEIRA J. A., 2004, pp. 110-111)
A inegável pluralidade cultural existente na realidade cotidiana contamina beneficamente o direito e o sistema jurídico que se abre a formas de práticas
sociais diversas, acolhendo-as e transformando em leis sua práxis. É o caso
de modelos de apropriação comunal de determinado bem natural no caso das
Quebradeiras de Coco Babaçu, do compartilhamento da terra nos faxinais, com
o padrão de vida errante e a relação com a terra dos ciganos, e com as diversas
práticas culturais dos indígenas, entre outros.
O preâmbulo da Constituição Federal define o Brasil como um Estado
Democrático, pluralista e sem preconceitos, e define ainda a dignidade da pessoa humana como um de seus fundamentos, no art. 1º, III. Para se alcançar a
plenitude deste princípio fundante é necessário que seu conteúdo seja compreendido em consonância com as situações vivenciadas, levando em consideração as diferenças sociais, econômicas e culturais de grupos portadores de
identidades que os diferenciem dos demais grupos e indivíduos no interior do
Estado brasileiro. (SHIRAISHI NETO, 2006, pp. 27-28)
O conceito de pluralismo jurídico, outrora relacionado a práticas externas
ao direito positivado estatal atravessa uma reformulação e passa a discutir a assimilação de práticas diferenciadas pelo sistema jurídico nacional. Nas palavras
do Prof. Joaquim Shiraishi Neto:
Acesa a discussão em torno do pluralismo como valor
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fundamental de uma Constituição democrática, tem-se
observado uma preocupação dos intérpretes do direito
acerca da necessidade de se atentar para quem são e como
se constituem os diversos sujeitos e grupos sociais no
País. Os resultados desse procedimento apontam para uma
construção de uma política de reconhecimento dos diversos
grupos existentes, o que implica no reconhecimento formal
de suas ‘práticas sociais’. (SHIRAISHI NETO, 2007, p. 72)
É certo afirmar que a Lei n.º 145/2002 do município de São Gabriel da
Cachoeira, Amazonas, que co-oficializou as línguas indígenas Nheengatu, Tukano e Baniwa, abriu um novo mundo de possibilidades na reivindicação e reconhecimento de direitos diferenciados pelo Estado nacional. Ou, como observou Ivani Ferreira de Faria:
Sem dúvida, esta iniciativa representa uma vitória dos povos indígenas do Rio Negro e de todo o Brasil na reconquista de seus direitos, de suas culturas e sua autonomia de
poder decidir sobre o próprio futuro conforme seus códigos
e linguagens e visão de mundo específicos. (FARIA, 2007,
p. 57)
4. (IN)CONSTITUCIONALIDADE E (IN)COMPETÊNCIA: QUESTÕES FORMAIS
SOBRE A LEI MUNICIPAL Nº 145/2002
Uma das questões levantadas com relação à lei objeto deste estudo diz respeito à competência do município, ou sua falta, para legislar sobre o assunto. A
Constituição Federal relega à língua portuguesa, em seu art. 13, o status de idioma oficial da República Federativa do Brasil, contudo, em nenhum momento
refere-se à língua portuguesa como única língua do país.
A opção lógica pela língua portuguesa como idioma oficial de nosso Estado repousa no fato de que, por motivos históricos e políticos, a maioria da
população nacional tem como primeira língua o idioma herdado de Portugal.
As demais línguas faladas no território nacional, num total de quase 170, estão relacionadas a grupos diferenciados, habitantes de regiões específicas, como
o caso de São Gabriel da Cachoeira, o que demanda uma atuação legislativa
própria dos municípios, pois não parece ser de interesse da União, ou mesmo
dos estados, legislar sobre o reconhecimento e mecanismos de difusão e utilização de línguas utilizadas em espaços tão pontuais, cuja complexidade das
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relações intersubjetivas pode ser melhor captada por normas produzidas a partir
da vivência dos grupos que ali habitam.
É possível visualizarmos uma lacuna quanto à competência constitucional para legislar sobre questões lingüísticas. Não há expressão neste sentido no
Texto Maior, e a partir daí uma interpretação sistemática deve ser feita, utilizando-se de um exercício hermenêutico para preencher esta lacuna e chegar à
competência municipal que permitiu ao legislativo de São Gabriel da Cachoeira
promulgar a Lei nº 145/2002.
Uma grande inovação visualizada no programa normativo constitucional
foi a inclusão de um capítulo dedicado à cultura e, dentro dele, no art. 216, o reconhecimento dos bens imateriais portadores de referência à identidade, à ação
e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira como
constituintes do patrimônio cultural nacional, indo o constituinte originário
ainda além, ao incumbir o Poder Público, com a colaboração da coletividade, do dever de promovê-los e protegê-los.
Sob esse prisma, a língua como ferramenta essencial de comunicação e
reprodução de modos específicos de criar, fazer, viver, conhecer o mundo e (re)
conhecer(se), demanda proteção imediata e de mesma sorte que os próprios povos indígenas que as utilizam recebem, sob pena de, perecendo aquela, estes
venham a perder o ponto básico de (auto) identificação como grupo diferenciado
dos demais, o que tornaria letra morta tudo o quanto lhes fora reconhecido pela
CF/88 em seu art. 231.
Como forma de assegurar a continuidade da existência física e espiritual
dos povos indígenas habitantes do município de São Gabriel, além de permitirlhes buscar a plenitude de suas potencialidades na realização de sua dignidade
humana, o projeto de co-oficializar as línguas indígenas Nheêgatu, Baniwa e
Tukano está de acordo com o art. 30, I, que prevê ser de competência dos Municípios legislar sobre assuntos de interesse local. Esse interesse fica ainda mais
claro quando se toma conhecimento do fato que, de acordo com estimativas,
entre 77% (BRUNO, 2007, p. 33) a 95% (OLIVEIRA G. M., 2007, p. 45) dos
habitantes da “Terra das Línguas”, de um total de 40 mil, é composta por indígenas pertencentes a 23 diferentes etnias, e que grande parte destes indígenas é
multilíngüe, dominando ao menos uma das três línguas co-oficializadas.
Vale ressaltar que a língua portuguesa não sofreu alteração em seu status
de oficialidade no Município. O que se fez, em verdade, foi ampliar o espaço de
atuação política nas diversas instâncias – institucional, oficial e intersubjetiva –
da vida de seus habitantes, ao reconhecer a existência de falantes de outras línguas e assegurar-lhes o direito de compreender e se fazer compreender a partir
de seus modos peculiares de ser, criar, fazer e viver, expressados através de suas
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línguas próprias.
Nas palavras do presidente do STF, Gilmar Mendes, “aos Municípios é
dado legislar para suplementar a legislação estadual e federal, desde que isso
seja necessário ao interesse local” (MENDES, COELHO, & BRANCO, 2008,
p. 824). No caso, a legislação suplementar foi feita em face da Constituição
Federal que somente delimitou uma situação geral, ao especificar a língua portuguesa como o idioma oficial do país, sem descer à regulamentação dos casos
concretos e plurais das diversas realidades locais ao redor do Brasil.
Além disso, o art. 23, III, CF/88 , aponta como competência comum da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios proteger, entre outras
coisas, bens de valor cultural. Ora, como bem cultural de valor inestimável,
diga-se de passagem, a língua de um povo pode e deve ser alvo de proteção municipal, especialmente quando silentes o Estado e a União a respeito do assunto.
Ao reconhecer aos índios suas línguas , e não definir os parâmetros e
limites dentro dos quais esse reconhecimento seria implementado, o legislador
constituinte originário deixou uma permissão tácita para que a resolução fosse
aplicada de acordo com o caso concreto, levando-se em consideração as características próprias da situação, e legislada por quem tivesse o interesse, no caso
em estudo, o município de São Gabriel da Cachoeira.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A promulgação da Lei n.º 145/2002 no município de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, que co-oficializou as línguas indígenas Nheengatu, Tukano
e Baniwa certamente representa uma mudança de paradigma na política estatal
nacional e os precedentes inéditos abertos a partir deste ato registram-se como
um marco na legislação infra-constitucional nacional ao colocar em prática a
valorização da diversidade étnica e pluralística cultural.
A partir de preceitos trazidos pela Constituição Federal de 1988, o reconhecimento estatal das práticas e modos de vida dos grupos diferenciados
arma-os com uma série de ferramentas para a construção efetiva de sua dignidade humana, calcada na liberdade dos indivíduos e das coletividades em ser,
criar, fazer e viver, a partir de suas próprias referências, nas quais se identificam
e se reconhecem.
Como visto ao longo do estudo, somente a partir de 1988, com a promulgação da nova Carta Magna, tornou-se possível pensar num pluralismo jurídico
apto a abraçar as diferenças e, num movimento expansivo, habilitar o sistema
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jurídico pátrio a se abrir a novas formas de regulação do coletivo, tendo como
ponto de referência essencial a realidade social, a partir de e em razão de quê
existe.
Essa transformação declara um fim, ao menos formalmente, a uma invisibilidade de toda a pluralidade cultural que não se alinhava aos padrões ocidentais, e aos povos indígenas em especial, que durante séculos serviu como
moldura à atuação estatal em nosso país, como pudemos perceber através de
uma breve leitura de passagens do Estatuto do Índio e do Código Civil de 1916.
Em consonância com o reconhecimento e as garantias às culturas e modos de viver indígenas inscritos na CF/88, a Lei n.º 145/2002 do município de
São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, não poderia mostrar-se mais oportuna,
demonstrando a preocupação do Município não só em legislar sobre um tema
de extremo interesse e, portanto, competência local, como em fazer da letra de
nossa Carta Maior uma construção viva e efetiva, e não mero grafismo vazio em
um pedaço de papel.
REFERÊNCIAS
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Artigo recebido em: 01/06/2010
Artigo aprovado para publicação em junho /2010.
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SUJEITOS INDÍGENAS E ESTADO NO CAMPO
DA REGULAÇÃO JURÍDICA DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS À BIODIVERSIDADE
Sheilla Borges Dourado *
Sumário: 1. Apresentação do campo. 2. Inovação tecnológica e valoração econômica
dos conhecimentos tradicionais associados. 3. Novos bens, novos sujeitos de direitos. 4.
Campo científico e “definições legítimas”; Em resumo, para finalizar.
Resumo. A Convenção sobre Diversidade
Biológica (CDB), de 1992, inaugurou um
campo de debates acerca da proteção jurídica dos conhecimentos tradicionais
associados à biodiversidade. Os países
signatários assumiram a responsabilidade realizar a a regulação jurídica dos
conhecimentos de comunidades e povos
tradicionais, inclusive os povos indígenas, que passaram a ser sujeitos de direitos econômicos, relativos à propriedade
intelectual de seu patrimônio imaterial.
Aqui, esse campo de debates é analisado a
partir da teoria de Pierre Bourdieu, considerado um lugar de disputas em que agentes
e agências interagem em relações de força
e de dominação. O objetivo desse artigo
é demonstrar a complexidade desse tema
que reúne questões ambientais e econômicas, de direitos humanos e de propriedade
intelectual, em torno dos conhecimentos
tradicionais associados à biodiversidade.
Abstract. The Convention on Biological
Diversity (CBD), in 1992, opened a field of
discussion on legal protection of traditional knowledge associated with biodiversity.
The signatory countries have taken the responsibility to promote in their territories
the legal regulation of knowledge held by
traditional communities and peoples, including indigenous peoples, who became
subjects of economic rights related to intellectual property of their intangible heritage. Here, this field of debates is analyzed
based on the theory of Pierre Bourdieu,
considered a place of disputes in which
agents and agencies interact in relations
of power and domination. The aim of this
paper is to demonstrate the complexity of
this issue that brings together environmental and economic issues, human rights and
intellectual property around the traditional
knowledge associated to biodiversity.
Palavras-chave: conhecimentos tradicio- Key-words: traditional knowledge; indigenais; povos indígenas; propriedade intelec- nous peoples; intellectual property; intangible
heritage.
tual; patrimônio imaterial.
* Advogada. Pesquisadora do Núcleo Sociedades e Culturas Amazônicas (NCSA/CESTU/UEA), do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA) em Manaus, AM.
Mestre em Direito Ambiental (PPGDA/UEA).
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1 APRESENTAÇÃO DO CAMPO
A regulação jurídica do acesso e do uso de patrimônio genético e de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade é terreno de variadas disputas protagonizadas por uma multiplicidade de instituições e indivíduos, entidades governamentais, organizações não-governamentais, movimentos sociais,
setores industriais e pesquisadores. Estar ciente dessa multiplicidade de agentes
sociais, defensores de interesses da mesma forma diversos, consiste num dos
pressupostos para a compreensão do processo de regulação jurídica em curso.
Adoto a “teoria do campo” de Pierre Bourdieu como instrumento de
análise desse processo e através dela pretendo esboçar a constituição desse espaço de lutas travadas no ambiente político em que se dá a discussão em torno
da criação de normas jurídicas reguladoras do acesso e do uso de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Trata-se, portanto, de um campo
político, que não exclui a interferência de outros campos, conforme a teoria de
Bourdieu. A construção do campo se justifica, pois permite enxergar as diferentes posições e os limites de validade das diferentes tomadas de decisão (BOURDIEU, 2004, p. 45).
O campo é um mundo social composto por agentes – indivíduos e instituições – os quais ocupam posições que dependem do seu capital simbólico.
Os agentes desenvolvem estratégias que dependem elas próprias, em grande
parte, dessas posições ocupadas (BOURDIEU, ibid., p. 29). Para o sociólogo, as
relações estabelecidas no campo, caracterizam-se pela força e pela dominação.
Tais relações são objetivas e dinâmicas e encontram-se desequilibradas, detidas
conforme a medida do capital simbólico de que dispõe cada um dos agentes (ou
agências). O campo é o lugar em que os agentes nele envolvidos encontram-se
em posição de concorrência.
A estrutura do campo num dado momento é determinada pela distribuição
de capital simbólico (BOURDIEU, ibid, p. 22-24). Em sendo dinâmicas as relações que se estabelecem entre os agentes, as posições dos mesmos podem
variar constantemente. Tudo é relacional. Aliás, para Bourdieu, no conjunto
que constitui o sistema de desvios e desníveis que caracteriza o campo, as
agências e os agentes nada produzem senão relacionalmente, por meio do jogo
de oposições e distinções (BOURDIEU, 2007, p. 179)
Bourdieu identifica variados tipos de campos, como universos particulares em que os agentes produzem, reproduzem e difundem princípios e regras específicas. Os campos científico, artístico, literário, jurídico, político,
econômico, intelectual, dentre outros, são assim, espaços regidos por regras
próprias. O campo deste modo entendido constitui um microcosmo inserido no
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macrocosmo (o conjunto da sociedade), com o qual mantém relativa autonomia
(BOURDIEU, 2004, p. 20).
No campo político, são gerados produtos políticos, problemas, programas, análises, comentários, conceitos e acontecimentos, cuja compreensão
exige do político uma preparação especial. De acordo com Bourdieu, em primeiro lugar, ele precisa adquirir um corpus de saberes específicos, composto
por teorias, problemáticas, conceitos, tradições históricas e dados econômicos,
que são produzidos e acumulados pelo trabalho político dos profissionais do
presente e do passado. O domínio de certa linguagem e de certa retórica política,
para as ocasiões de tribuna e de debate, também faz parte desse conjunto de
saberes necessários para a atuação no campo. Essas competências técnicas também compõem o capital simbólico do agente (BOURDIEU, 2007, p. 169).
O campo político é o lugar de concorrência pelo poder que se faz por
intermédio de uma concorrência pelo monopólio do direito de falar e de agir em
nome de uma parte ou da totalidade de representados. É o espaço em que aparecem os representantes, os delegados e os mandatários, destinatários de poderes
outorgados pelo grupo representado e que fazem esse grupo existir no campo
político, uma vez que o personifica (BOURDIEU, 2005, p. 77). Para Bourdieu,
nos espaços mediados, os cidadãos comuns (que ele denomina “profanos”) estão reduzidos à condição de “consumidores” dos produtos políticos gerados pelos profissionais, afastados que estão do lugar de produção política. Para ele, o
porta-voz - que também chama de mediador ou delegado -, apropria-se não só
da palavra desse grupo mas, na maioria dos casos, do seu silêncio (BOURDIEU,
2007, p. 185). A questão da mediação e da representação é essencial no estudo
sobre o que se pode entender hoje em dia por participação de povos e comunidades tradicionais nesse campo político.
Assim, na tentativa de esboçar uma descrição do campo em que se discute
a regulação jurídica do conhecimento tradicional associado, destaco primeiramente, as agências do Estado. Inúmeras agências governamentais estão nele
presentes, a exemplo dos órgãos diretamente vinculados ao poder executivo
federal, os ministérios e a Casa Civil da Presidência da República, as entidades
vinculadas ao governo federal com finalidades específicas, como o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA/MCT) e a Fundação Oswaldo Cruz
(FIOCRUZ/MS), dedicados à pesquisa científica. Ainda vinculado à Administração federal, destaca-se o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI),
voltado para a política de propriedade intelectual e a SUFRAMA, superintendência fomentadora da Zona Franca de Manaus que administra o Centro de
Biotecnologia da Amazônia (CBA), em Manaus. Dentre as agências governamentais estaduais no Amazonas, não se pode deixar de destacar a recém-extinta
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Fundação Estadual dos Povos Indígenas do Amazonas (FEPI), voltada para a
elaboração e execução de políticas indigenistas no estado e hoje substituída por
uma secretaria estadual. Tem ainda relevo a atuação da Secretaria Estadual de
Ciência e Tecnologia (SECT) e da Fundação de Amparo à Pesquisa no Amazonas (FAPEAM), no que diz respeito ao fomento à ciência e à tecnologia. Essa
fundação também é responsável pelo programa de bolsas de estudos a alunos indígenas. Juntamente com a Universidade do Estado do Amazonas, a FAPEAM
está envolvida na formação de estudantes indígenas, com o objetivo de proteção
da cultura e dos saberes dos diversos povos que compõem a população do Amazonas.
Todos os órgãos e entidades mencionados têm adotado políticas de valorização da inovação tecnológica, especialmente na área da biotecnologia.
Fora do âmbito governamental, os agentes e agências são ainda mais numerosos e diversos. O setor da indústria biotecnológica dedicada à produção
de alimentos, de cosméticos e de fármacos é controlado por grandes empresas.
Elas dominam os mercados de produtos e processos com destinação específica,
obtidos através de aplicação tecnológica com a utilização de sistemas biológicos, organismos vivos ou derivados (Convenção sobre Diversidade Biológica
- CDB, art. 2). Nesse contexto, as implicações da regulação jurídica sobre o
exercício da propriedade intelectual, especialmente as patentes, despertam
grande interesse do setor industrial.
O setor acadêmico também faz parte desse campo político, composto por
agentes vinculados às instituições de ensino e pesquisa. No Estado do Amazonas, destacam-se as universidades públicas federal e estadual, UFAM e UEA,
respectivamente, sendo que esta possui programa de formação e de educação
indígena, e as faculdades privadas, como a FUCAPI, que oferecem cursos em
biotecnologia. O INPA, já mencionado, tem sede em Manaus e na condição de
instituto nacional de pesquisa, vinculado ao Ministério de Ciência e Tecnologia,
tem sua missão voltada para os interesses do Estado brasileiro na Amazônia.
As organizações da sociedade civil distinguem-se enormemente entre
si. Assumem posição de relevância as grandes ONGs socioambientais, como
a ACT-Brasil, ramificação da Amazon Conservation Team (ACT), dos Estados
Unidos, e o Instituto Socioambiental (ISA), experiente em trabalhos e pesquisas
junto a povos e organizações indígenas . Destaca-se nesse campo uma organização não-governamental indígena especializada em assessoria técnica sobre propriedade intelectual a povos indígenas, qual seja, o Instituto Indígena Brasileiro
para a Propriedade Intelectual (INBRAPI).
As mobilizações e as formas organizativas de que se utilizam os povos indígenas e as comunidades tradicionais para a defesa de seus interesses também
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são diversificadas. Esses agentes sociais têm reafirmado a sua diferença cultural
e étnica perante os outros grupos sociais e lutado em favor da garantia do seu
modo de vida através da mobilização social. Na Amazônia, além dos indígenas,
os piaçabeiros, as quebradeiras de coco babaçu, os pescadores e os quilombolas,
entre tantos outros, constituem grupos humanos diferenciados que se autodenominam tradicionais . O Amazonas possui a maior população indígena do país
e nesse estado estão sediadas importantes organizações de representação política, como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
(COIAB), de âmbito regional e a Federação das Organizações Indígenas do Rio
Negro (FOIRN), de âmbito estadual, com sede em São Gabriel da Cachoeira
(AM).
Todas essas agências brevemente apresentadas estão posicionadas no
campo político em que se discute a regulação jurídica do conhecimento tradicional associado à biodiversidade.
Os povos indígenas brasileiros estão muito longe de constituir uma população homogênea. O direito à diversidade cultural e à pluralidade étnica tem
sido encarado como uma das faces do direito à dignidade humana (SHIRAISHI
NETO, 2008) e vem sendo afirmado reiteradamente no discurso do movimento
indígena, amparado por documentos internacionais de direitos humanos. A despeito da diversidade de agentes sociais indígenas e da diversidade das formas
organizativas que eles adotam para mobilizar-se na luta por direitos, há um consenso aparente no discurso do movimento indígena acerca dos posicionamentos em torno da regulação jurídica dos conhecimentos tradicionais associados à
biodiversidade. Esse discurso é dinâmico e, uma vez caracterizado por relativa
flexibilidade, cria as condições de força para o embate com os outros agentes
que se encontram no campo.
Para Miaille, os discursos são produzidos pelos homens com o fim de
realizar uma comunicação social e compreender os fenômenos que os envolvem
e os assaltam. O autor entende por discurso “um corpo coerente de proposições
abstratas implicando uma lógica, uma ordem e a possibilidade não só de existir
mas, sobretudo, de se reproduzir, de se desenvolver, segundo leis internas à sua
lógica. Este discurso diz-se abstrato no sentido em que é formulado com noções
ou conceitos e graças a métodos de raciocínio, todos eles marcados pela abstração” (MIAILLE, 1994, p. 33).
Segundo o autor, múltiplos são os discursos que coexistem. Sobrepõem-se
e competem entre si no seio da sociedade. Assim, estamos cotidianamente sujeitos à influência de diversos discursos: religioso, filosófico, científico, econômico e ambiental. Esses discursos se articulam uns com os outros, de modo que
não é possível traçar nenhuma fronteira entre eles. A par dessa multiplicidade,
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no entanto, cada discurso teria, para Miaille, uma vocação hegemônica, ou seja,
uma “vocação para falar de tudo, para dar uma interpretação global da vida social” (MIAILLE, ibid. p. 33). É de se observar que os discursos não se separam
rigorosamente entre si. Há sobreposições e interseções entre os mesmos. O que o
autor pretende dizer é que não há discurso exclusivamente político, religioso ou
econômico, mas que os discursos se interpenetram, mantendo, no entanto, uma
certa “vocação hegemônica”, que serve como fator de aglutinação de opiniões
em torno de uma causa. A separação apenas é válida aqui para esclarecer o
que Miaille compreende por discurso: um conjunto de proposições abstratas,
vinculadas por uma determinada coerência e lógica interna. Aqui o discurso é
entendido como uma expressão de um grupo ou setor da sociedade.
No entanto, adoto aqui um conceito mais abrangente, concebido por Michel Foucault, para quem o discurso consiste num jogo estratégico. O discurso
não é apenas aquilo que se traduz nas falas e nas expressões, as lutas ou os
sistemas de dominação, mas confunde-se com o próprio poder. Cada agente ou
agência almeja a hegemonia do seu discurso no campo político (FOUCAULT,
1996, p. 10).
Bourdieu alega que a força de um discurso depende menos das suas propriedades intrínsecas do que da força mobilizadora que ele exerce. Quer dizer
com isso que a força de um discurso depende mais da medida que ele é reconhecido por um grupo numeroso e poderoso do que propriamente de seu conteúdo.
A força do discurso é atribuída conforme o seu poder de mobilização, legitimada
de acordo com o maior número de pessoas que nele se reconhecem (BOURDIEU, 2007, p. 183).
Estamos tratando de um campo político em que se discute a regulação jurídica de uma categoria recente de bens jurídicos, os conhecimentos tradicionais
associados à biodiversidade. Aqui, a CDB é considerada um rito de passagem
dos saberes tradicionais para o mundo jurídico: uma passagem da condição de
folclore , de “patrimônio da humanidade” ou de um conhecimento de domínio
público, para a condição de informação , bem imaterial com potencial econômico. Ocorre que as tentativas de enquadrar esse novo bem ao sistema de propriedade intelectual, como se imaginou em princípio, parece ensejar muito mais
problemas que soluções.
O Estado representado pelas suas agências ocupa lugar privilegiado nesse
campo político. Ele é possuidor de um “metacapital” e assume a posição de
maior concentração e exercício do poder e da violência simbólicos (BOURDIEU, 1997, p. 107). O Estado é o produtor do direito e conta com este instrumento para exercer a dominação. Nas palavras de Bourdieu:
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O Estado é resultado de um processo de concentração
de diferentes tipos de capital, capital de força física ou
de instrumentos de coerção (exército, polícia), capital
econômico, capital cultural, ou melhor, de informação,
capital simbólico, concentração que, enquanto tal, constitui o Estado como detentor de uma espécie de metacapital,
com poder sobre os outros tipos de capital (que vai junto
com a construção dos diversos campos correspondentes)
leva, de fato, à emergência de um capital específico, propriamente estatal, que permite ao Estado exercer um poder
sobre os diversos campos e sobre os diferentes tipos específicos de capital, especialmente sobre as taxas de câmbio entre eles (e, concomitantemente, sobre as relações de
força entre seus detentores). Segue-se que a construção do
Estado está em pé de igualdade com a construção do campo
do poder, entendido como o espaço de jogo no interior do
qual os detentores de capital (de diferentes tipos) lutam particularmente pelo poder sobre o Estado, isto é, sobre o capital estatal que assegura o poder sobre os diferentes tipos de
capital e sobre sua reprodução (notadamente por meio da
instituição escolar) (BOURDIEU, 1997, p. 99).
Esse mesmo Estado, além da função de regulador, de produtor de normas
jurídicas vinculantes, é também interventor na economia, tomando medidas de
estímulo, de correção e de controle da economia de mercado. Aliás, desde o
surgimento da chamada sociedade de mercado no século XVIII, a manutenção
da mesma depende da intervenção estatal (POLANYI, 1980).
A seguir, apresento uma breve descrição do contexto econômico em que
se dá o processo atual de regulação jurídica dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, no qual o Estado aparece como um “acelerador” da
economia.
2 INOVAÇÃO TECNOLÓGICA E VALORAÇÃO ECONÔMICA DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS
Na década de 80, as imagens de desmatamento acelerado da Amazônia
alarmaram o mundo todo . As queimadas representavam a perda da riqueza biológica da floresta tropical antes mesmo que ela fosse estudada e conhecida.
Segundo Laymert Garcia Santos, os especialistas - biólogos, botânicos e zoóloHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009
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gos – passaram então a advertir que, além dos valores científico, estético e ético
da biodiversidade, sua perda afetava imediatamente o bem-estar material das
pessoas em toda parte. Dessa forma, foi construída a idéia da utilidade da biodiversidade. Segundo o autor, uma dessas “utilidades” dizia respeito às possibilidades de tornar a floresta uma fonte de riqueza farmacológica, tendo em
vista que um quarto dos produtos vendidos nas farmácias é fabricado a partir
de materiais extraídos de plantas tropicais. Assim, nas palavras do sociólogo,
“a ênfase no valor medicinal da biodiversidade tornou-se uma constante nas
advertências dos experts” (SANTOS, 2006, p. 18).
A discussão atual sobre conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade no Brasil e no mundo tem priorizado como objeto aqueles conhecimentos que interessam principalmente às indústrias farmacêutica, cosmética e
alimentícia, conhecimentos que são passíveis de geração de patentes para essas
indústrias. Nesse contexto, os saberes dos pajés e dos xamãs sobre plantas de
cura e de efeito terapêutico passam a ser “informações que se tornam mercadorias num circuito de trocas. De fato, o exemplo mais difundido de utilização dos conhecimentos tradicionais associados é o farmacológico, que se tornou
senso comum nos diversos discursos que tratam desse tema.
Um resultado da CDB foi a mudança sensível no tratamento jurídico dos
conhecimentos tradicionais, na medida em que atribui aos “conhecimentos,
inovações e práticas” o status de bem jurídico. A partir da CDB, os conhecimentos tradicionais associados passaram a ser vistos e reconhecidos como parte do
patrimônio cultural imaterial de povos e comunidades tradicionais.
Assim, os conhecimentos tradicionais, de um modo geral, antes encarados
como expressão folclórica e de domínio público, foram transformados em bem
jurídico, com todas as implicações dessa “passagem”, principalmente econômicas. A esse respeito, observa Rezende que, até poucas décadas atrás, a polêmica
sobre os conhecimentos tradicionais eram travadas em entidades como a ONU
e a OMC “sob a eurocentrista denominação de folklore” (REZENDE, 2006, p.
9). Nesse sentido, é de se observar ainda que o Comitê Intergovernamental especializado para tratar de patrimônio genético e conhecimentos tradicionais associados na OMPI é denominado “Comitê Intergovernamental sobre Propriedade
Intelectual e Recursos Genéticos, Conhecimentos Tradicionais e Folclore”.
Com a CDB, tanto o patrimônio genético quantos os saberes a ele relacionado são tratados como recursos, integrados à dinâmica do mercado. A
lógica da repartição de benefícios é a da permuta: se esses grupos tradicionais
contribuem com seus saberes para alcançar os objetivos traçados na Convenção,
quais sejam, a “conservação da biodiversidade” e a “utilização sustentável de
seus componentes”, nestes incluídos os recursos genéticos, são-lhes atribuídos
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direitos de receber benefícios decorrentes dessa contribuição. Um dos pontos
mais polêmicos acerca da repartição de benefícios diz respeito às condições de
sua realização. Como já foi sublinhado, preconiza a CDB que ela deve ser “justa
e equitativa”.
Não se pode perder de vista que tanto a repartição de benefícios quanto
o consentimento prévio fundamentado, elementos condicionantes da legalidade
do acesso e do uso de conhecimentos tradicionais associados, vêm sendo pensados segundo a lógica do contrato no sistema de propriedade intelectual. O contrato está pautado por um conjunto de normas jurídicas criadoras de artificialidades que atende aos anseios das sociedades de mercado do capitalismo global.
Seguindo o pensamento de Polanyi, Sádaba lembra que a terra, o trabalho
e o dinheiro, após serem transformados em mercadorias fictícias, foram coisificados sob relações técnicas e impessoais de forma que todo o seu rastro social
foi ocultado, no fenômeno denominado por Marx de fetichização da mercadoria
(SÁDABA, p. 79, 2008).
Os saberes tradicionais estão sendo enquadrados no sistema jurídico de
propriedade intelectual, implicitamente como resultado do trabalho intelectual
coletivo de povos indígenas e comunidades tradicionais, capazes de traduzir-se
em inovação tecnológica.
O Brasil, assim como outros países capitalistas, seguiu o padrão norteamericano no qual o Estado assume a responsabilidade de fomentar a pesquisa
básica, considerada aquela sem fins econômicos . O constituinte de 1988 dedicou capítulo exclusivo à ciência e tecnologia, destacando o papel prioritário do
Estado na produção de ciência básica (art. 218, caput e parágrafos). Ainda de
acordo com essa divisão do trabalho cientifico, às corporações, ou empresas,
caberia realizar o desenvolvimento tecnológico. No momento atual, o fomento
estatal da inovação tecnológica tem ensejado a formação de inúmeras parcerias
entre agências estatais brasileiras e organizações produtivas para a geração de
inovações tecnológicas.
Inovação é uma categoria definida pela Lei n. 10.973/04, conhecida como
Lei da Inovação. Pela definição legal, consiste na “introdução de novidade ou
aperfeiçoamento no ambiente produtivo ou social que resulte em novos produtos, processos ou serviços” (art. 2º, inc. IV). Essa idéia de inovação, portanto,
corresponde à novidade aplicada ao ambiente produtivo, cujo resultado se apresenta no mercado sob a forma de produtos ou processos.
A Lei de Inovação é uma iniciativa estatal que tem a finalidade de aproximar a academia do setor produtivo. O instrumento legal pretende coordenar
os esforços das Instituições Científicas e Tecnológicas (ICTs) e das empresas, através do estabelecimento de regras para o desenvolvimento tecnológico
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conjunto, o que envolve a disciplina da distribuição de benefícios e das porcentagens relativas ao uso de inovações tecnológicas resultantes dessa parceria.
Segundo o discurso estatal, a lei visa estimular as pesquisas tecnológicas conjuntas, aproveitando a grande quantidade de recursos humanos especializados
encontrados nas universidades brasileiras, que constituem um capital intelectual
não convertido em desenvolvimento tecnológico. Dessa forma, mais do que
nunca, o produto da ciência parece estar cada vez mais inserido no circuito das
trocas de mercado, na forma de tecnologia.
Além das ICTs, são relevantes nesse processo as entidades de fomento
a elas vinculadas, quais sejam, as fundações públicas responsáveis pelo financiamento de projetos e apoio de iniciativas de pesquisa científica e tecnológica,
como FINEP, CAPES e CNPq.
Em todo o Brasil, realizam-se encontros e fóruns de discussão sobre propriedade intelectual e inovação, com o apoio de entidades e órgãos estatais,
federais e estaduais, a exemplo do FORTEC, dos eventos da REPICT e dos
seminários da Rede Norte de Propriedade Intelectual, Biodiversidade e Conhecimento Tradicional (Rede Norte PIBCT) . Tem-se, nesses encontros, a construção do que é designado por “ideologia da inovação” (SÁDABA, ibid., p.
85).
Consciente do potencial econômico das suas reservas biológicas, vistas
como provedoras de matéria-prima da promissora indústria biotecnológica, o
governo federal brasileiro declarou a biotecnologia como área de especial interesse nacional, colocando-a em posição de destaque no Plano de Aceleração
do Crescimento do Brasil (PAC), lançado em janeiro de 2007 . A regulação jurídica do acesso e uso de recursos genéticos e de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade aparece como medida legislativa prioritária no Plano
de Ciência, Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Nacional (PCT&I).
O interesse crescente pelo desenvolvimento da biotecnologia no contexto
do PAC se faz sentir principalmente na Amazônia. O Brasil possui o território
mais extenso coberto pela floresta amazônica, considerada o reservatório natural mais importante do mundo . O Decreto federal n. 6.041/2007 dá suporte
jurídico ao PCT&I instituindo a Política de Desenvolvimento da Biotecnologia
. Essa visão é refletida também na política pública estadual do Amazonas. O
estado tem a peculiaridade de apresentar a maior extensão territorial de floresta
amazônica no país, possuindo mais de 90% de cobertura vegetal. Além da riqueza natural representada pela diversidade biológica, o Amazonas também abriga
enorme diversidade social e, portanto, cultural. Aqui vivem diversos povos indígenas e comunidades tradicionais, com modos de vida próprios, culturalmente
diferenciados. O estado possui a maior população indígena do Brasil: são
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aproximadamente 130.000 indivíduos de 62 povos de etnias distintas, falando
11 línguas nativas.
O Amazonas também foi o primeiro estado brasileiro a editar uma lei
estadual de inovação tecnológica. Os esforços do governo federal e estadual em
parceria para o desenvolvimento da biotecnologia têm se concentrado recentemente na implantação de política industrial voltada à produção de biocosméticos com matéria-prima amazônica no Pólo de Manaus . Essas iniciativas têm
movimentado não apenas as indústrias de cosméticos locais e regionais, inclusive com a realização de feiras de exposições, mas também provocado a criação
de cursos técnicos e universitários em áreas que envolvem biotecnologia, como
a cosmetologia.
Observa-se que os recursos genéticos e os conhecimentos tradicionais
associados estão no centro das discussões sobre o desenvolvimento tecnológico
do país. A Convenção sobre Diversidade Biológica reconhece os “conhecimentos, inovações e práticas” dos povos indígenas e comunidades tradicionais e lhes
atribui direitos coletivos sobre esse patrimônio cultural imaterial. A referência
às inovações realizadas por povos e comunidades tradicionais pode indicar uma
relativização do preconceito histórico contra os povos indígenas e comunidades
tradicionais acerca da sua capacidade inventiva. Além disso, essa classificação
dos saberes tradicionais indica que a “tradicionalidade” de que se fala não é
estática, mas refere-se a uma situação dinâmica que coaduna com a idéia de
inovação.
Porém, considerando o caráter econômico da convenção internacional,
vale lembrar que esse reconhecimento tem o objetivo de aproximar as inovações
dos grupos tradicionais da inovação tecnológica almejada pelo capitalismo, objeto de proteção jurídica através do sistema de propriedade intelectual.
Nesse sentido, novos sujeitos de direitos surgem a partir da CDB como
proprietários em potencial, em decorrência do surgimento de novos bens jurídicos no sistema capitalista global. Com a discussão sobre a regulação jurídica
dos conhecimentos tradicionais associados, esses novos sujeitos coletivos de direitos, como os povos indígenas, passam a lutar por um lugar no campo político
através de suas representações.
3 NOVOS BENS, NOVOS SUJEITOS DE DIREITOS
As imagens dos sujeitos e dos povos indígenas feitas pela sociedade nãoindígena, ainda hoje, são permeadas de diversos preconceitos e ainda remetem
ao “índio” selvagem, primitivo, e além de tudo, genérico . A legislação indigenisHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009
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ta ao longo do século XX contribuiu para a construção dessa imagem, evidenciando
a situação de tutela oficial dos sujeitos indígenas até a Constituição de 1988.
Comunidades e povos tradicionais, nos seus modos particulares de viver,
concebem idéias inovadoras e produzem invenções, resultados do intelecto, frutos da observação e da experimentação, ainda que não voltadas para a aplicação
industrial ou para o mercado. No entanto, a capacidade inventiva dos grupos
tradicionais e dos povos “primitivos” foi reiteradamente negada pela história e
pelo próprio direito. Suas inovações foram, por muito tempo, negligenciadas e
vistas como meras descobertas provocadas pelo acaso.
Para o jurista Tinoco Soares, apenas o homem “civilizado” poderia ser
um gênio. Em seu livro intitulado Tratado de Propriedade Industrial, de 1998, o
autor apresenta sua visão acerca da inventividade humana desde a pré-história:
A princípio, portanto, o homem nada mais fez do que
“descobrir”, ou melhor, apenas e tão-somente encontrar
para consumir, utilizar ou mesmo adaptar. Ao depois, combinando uns e outros elementos foram resultando outros
tantos que nada mais eram do que, ainda, “descobertas”,
posto que concernentes ao simples fruto do acaso, uma vez
que não havia nada em profundidade ou mesmo sob criteriosa investigação (SOARES, 1998, p. 46).
Soares afirma que o século XVII marca o começo da “ciência moderna”,
“que só então entra no caminho verdadeiro, servida por uma série de homens
eminentes, de autênticos gênios” (SOARES, ibid., p. 32). Assim, sob o seu ponto de vista, apenas a “ciência moderna” era capaz de produzir invenções:
Quando, no entanto, a pesquisa, o ensaio, o teste, chegava
a um resultado prático, pela junção de elementos conhecidos ou não, estava realizada a sua “invenção”. Esta, depois de feita em pequenas, médias ou grandes quantidades,
possibilitava a introdução de melhoramentos, inovações ou
aperfeiçoamentos (SOARES, 1998, p. 47).
Lévi-Strauss discorda veementemente da idéia do jurista, para quem “ao
homem moderno estariam reservadas as fadigas do trabalho e as iluminações
do gênio” (SOARES, ibid, p. 47). Para ele, a explicação do nascimento das invenções já feitas pelo acaso é, no mínimo, preguiçosa. Lembra que comumente
é encontrada nos tratados de etnologia a noção de que o homem teria vivido
primeiramente numa espécie de “idade de ouro tecnológica”, em que as inven298
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ções eram colhidas com a mesma facilidade que os frutos e as flores. Segundo
Lévi-Strauss, esses tratados atribuem, por exemplo, o conhecimento do fogo ao
acaso do raio ou ao incêndio na mata; e a origem da cerâmica ao esquecimento
da bola de argila perto do forno (LÉVI-STRAUSS, 1976, p. 352).
Para o antropólogo, tal forma de excluir o ato inventivo desses grupos,
oculta a complexidade dos procedimentos indispensáveis à fabricação de utensílios desde a pré-história, que envolve a necessidade de conhecimento vasto de
um conjunto de noções variadas sobre o ambiente, bem como sobre os materiais
e os processos mais adequados . Lévi-Strauss argumenta que nenhum período
ou cultura é absolutamente estacionário em termos de invenções técnicas. “Todos os povos possuem e transformam, melhoram e esquecem técnicas suficientemente complexas para permitir-lhes dominar seu meio; sem o que já teriam
desaparecido há muito tempo” (LÉVI-STRAUSS, ibid., p. 357).
As “comunidades locais” e as “populações indígenas” com “estilo de vida
tradicional” aparecem como sujeitos de direitos relacionados ao seu patrimônio
imaterial coletivo na Convenção sobre Diversidade Biológica em 1992. No entanto, até então, desde a assinatura da Convenção de Paris para a Proteção da
Propriedade Industrial em 1883, os povos indígenas e as comunidades tradicionais jamais figuraram como sujeitos de direitos de caráter econômico nos tratados, acordos e convenções internacionais sobre propriedade intelectual. Seus
conhecimentos foram sempre considerados de domínio público e por essa razão
não ensejavam direitos de propriedade intelectual sobre produtos ou processos
industriais obtidos a partir deles.
Caldas entende que são esses “novos bens”, ou seja, o patrimônio genético e os conhecimentos tradicionais associados, que condicionam a abertura
do sistema jurídico para “novos sujeitos”. A autora ressalta que o fato de as
comunidades tradicionais passarem à posição de sujeitos de direito implica na
possibilidade de que elas passem a manter relações jurídicas como titulares de
direitos, ou seja, como proprietárias, podendo dispor de bens como lhes aprouver (CALDAS, 2001, p. 5).
Assim, para Caldas, ao contrário do que se poderia supor, a construção de
novos bens jurídicos antecede, lógica e cronologicamente, a constituição de um
novo sujeito de direito (CALDAS, ibid., p. 81). Nas palavras da jurista,
A ‘descoberta’ tardia da contribuição das comunidades
tradicionais na preservação, conservação e utilização sustentável da biodiversidade e, principalmente, a comprovação do potencial do conhecimento tradicional destas comunidades para utilizações terapêuticas e medicinais, vão
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ser olhadas pelo mercado como mais uma possibilidade
de exploração comercial e obtenção de lucros. De um momento para o outro, portanto, os saberes de comunidades e
povos ancestrais tornaram-se mercadoria. Mediante um esforço teórico e legislativo de adaptação, redimensiona-se o
sistema jurídico para que essas mercadorias tornem-se bens
jurídicos passíveis de regulação segundo o sistema proprietário (CALDAS, Ibid., p. 4)
Seguindo esse pensamento, Shiraishi Neto e Dantas asseveram que, para
o direito moderno , o “sujeito de direito” é o centro das relações privadas, vinculado à idéia de contrato e de propriedade privada. Ser sujeito de direito significa
poder adquirir e vender, inclusive a sua força de trabalho a outro sujeito de
direito. Os autores ratificam o pensamento de Edelman, para quem a ideologia
jurídica nasce postulando que o homem é um sujeito de direito, ou seja, um
proprietário em potencial, visto que é de sua essência apropriar-se da natureza
(EDELMAN, 1976, p. 25). Para esses professores, mesmo sendo atribuída às
“populações indígenas” e “comunidades locais” a condição de “novos” sujeitos de direito, isso não implica num novo tratamento jurídico desses grupos
enquanto sujeitos coletivos, em face das suas peculiaridades culturais e sociais
(SHIRAISHI NETO & DANTAS, 2008, p. 63).
Para Edelman, o contrato surge como o instrumento privilegiado da
dominação capitalista, porque designa a mercantilização do homem enquanto
objeto de direito (EDELMAN, 1976, p. 70). Com a transformação da atividade
criadora do artista ou do inventor em trabalho intelectual, submetido à lógica da
propriedade intelectual, a personalidade do homem passaria a sujeitar-se a um
contrato.
É pertinente a afirmação dos professores Shiraishi Neto e Dantas,
referenciando Oliveira, quando lembram que, na atualidade, estamos vivendo uma “nova” forma de conquista do capital, ou melhor, uma “reconquista”,
cuja palavra chave é a biodiversidade e o conhecimento tradicional a ela vinculado. Para eles, é um dado “novo” para o direito que os povos e comunidades
tradicionais apareçam como protagonistas do processo de uso sustentável da
diversidade biológica. As conseqüências desse fato vão sendo percebidas no desenrolar do processo de apropriação dos conhecimentos tradicionais associados
pelo capital (SHIRAISHI NETO & DANTAS, 2008, p. 58-60).
No que diz respeito aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, a Convenção sobre Diversidade Biológica refere-se aos povos e comunidades tradicionais como detentores dos seus saberes. No caput do artigo
9º da Medida Provisória n. 2186-16/2001, os povos e comunidades tradicionais
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também aparecem como detentores do conhecimento tradicional associado. Um
pouco adiante, no inc. III do mesmo artigo da MP, afirma-se que os grupos
tradicionais são titulares do conhecimento tradicional associado. No entanto,
o artigo 8º parágrafo 2º da Medida Provisória estabelece que “o conhecimento
tradicional associado ao patrimônio genético (...) integra o patrimônio cultural
brasileiro e poderá ser objeto de cadastro”.
Para Caldas a postura da Medida Provisória é oscilante e seus dispositivos
contraditórios, já que, de um lado, proclama o direito das comunidades e povos
tradicionais sobre seus saberes e, de outro, estabelece que tais conhecimentos
integram o patrimônio cultural brasileiro, podendo inclusive ser objeto de cadastro. Nesse último dispositivo, a mensagem implícita é a de que o Estado tem
o poder cadastrar os conhecimentos tradicionais associados independentemente
do consentimento dos “detentores” (CALDAS, 2001, p. 164). Posicionando-se
contrariamente a tal entendimento, o Instituto Indígena Brasileiro para a Propriedade Intelectual (INBRAPI) elaborou parecer técnico no sentido de que os
povos indígenas devem ser consultados sobre a conveniência de se criarem e
manterem bancos de dados sobre os seus conhecimentos tradicionais.
De acordo com o Código Civil brasileiro, detentor é “aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome
deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas” (art. 1.198). Esse, porém,
não é o sentido que os indígenas esperam da norma jurídica que disciplina o
acesso e o uso de seus conhecimentos. Os povos indígenas, por meio de seus
representantes, vêm reafirmando-se proprietários de seus saberes e exigindo
que esse reconhecimento seja expresso na legislação que ora se discute. Nesse
sentido manifesta a Declaração do Rio Negro , item 2:
Discordamos da utilização das expressões detentores e possuidores de conhecimentos tradicionais em referência aos
povos indígenas. O projeto de lei deve reconhecer que somos titulares dos conhecimentos tradicionais que integram
nossas culturas. Nesse sentido, queremos a alteração do artigo 5º do projeto para incluir uma disposição reconhecendo
nosso domínio sobre nossos saberes, inovações e práticas,
nos termos do caput do artigo 42, cujo inciso I deverá incluir o direito dos povos indígenas de dispor dos nossos
conhecimentos, inovações e práticas, inerente aos direitos
que um titular pode exercer sobre o bem que lhe pertence
(Declaração do Rio Negro. 03/12/2007).
O pleito do movimento indígena, nesse caso, é pelo reconhecimento de
direitos reais sobre o conhecimento, agora transformado em bem jurídico. Na
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Declaração do Rio Negro, acima citada, os signatários indígenas exigem o reconhecimento da faculdade de usar, gozar e dispor de seus conhecimentos, e
o direito de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua ou
detenha, como preceitua o artigo 1228 do Código Civil Brasileiro.
A propriedade, juntamente com a posse, compõem as titularidades, um
dos institutos fundamentais do Direito Civil. Elas são disciplinadas pelos Direitos das Coisas que, segundo Gomes, “regula o poder dos homens sobre os bens
e os modos de sua utilização econômica (GOMES, 2004, p. 7-8).
O direito de propriedade é o mais amplo dos direitos reais. Ser proprietário, pelo Código Civil, é exercer poderes sobre determinadas coisas, dentro
dos limites legais, dos quais se destacam os relativos à função social da propriedade. Gomes define o direito de propriedade como “um direito complexo,
absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual uma coisa fica submetida à vontade de
uma pessoa, com as limitações da lei” (GOMES, ibid., p. 109).
Ensina o mesmo autor civilista que o objeto do direito de propriedade
deve ser um valor econômico materializado e individualmente determinado
(GOMES, ibid., p. 113). O conhecimento tradicional associado à biodiversidade,
nesse contexto, assume um potencial econômico de acordo com a lógica da
propriedade. A partir da noção de trabalho como mercadoria fictícia, pode ser remunerado na condição de informação resultante de uma atividade intelectual. O
discurso do movimento indígena se apropria dessa noção de propriedade ao reivindicar o cumprimento dos seus direitos e a participação de seus representantes
nas decisões pertinentes à proteção dos conhecimentos tradicionais associados.
4 CAMPO CIENTÍFICO E “DEFINIÇÕES LEGÍTIMAS”
Um campo científico se impõe ao campo político nas discussões em torno
da regulação jurídica dos conhecimentos tradicionais associados. É possível notar a existência de uma divisão do trabalho científico nesse processo, caracterizada por tensões entre formações acadêmicas que disputam as “definições legítimas”, especialmente no âmbito do CGEN . Segundo o pensamento de Bourdieu,
o objeto da ciência é a concorrência pelo monopólio da divisão legítima, e as
relações de concorrência que se estabelecem, no campo intelectual ou científico,
também pertencem ao domínio da ciência (BOURDIEU, 1968, p.111).
Um aspecto dessa complexidade que caracteriza os atos de participar de
uma discussão sobre esse tema, diz respeito às implicações da língua e da lin302
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guagem da norma, especialmente quando os sujeitos de direitos e obrigações
consagrados por essa norma são sujeitos indígenas. Na pesquisa junto ao CGEN,
ficou flagrante a ostensiva preocupação por parte dos conselheiros de deliberar
com o máximo de segurança jurídica (DOURADO, 2009). A segurança jurídica
aparece condicionada à total clareza dos “conceitos” da legislação e, muitas
vezes, enseja a normatização de mais noções operacionais. Esta necessidade
dos conselheiros movimenta diversos pareceres jurídicos, principalmente da
Advocacia Geral da União (AGU) que, provocada pelos órgãos do poder executivo, “dá a última palavra” sobre as dúvidas e dissensos em torno da legislação
vigente relativa ao acesso e ao uso de patrimônio genético e de conhecimentos
tradicionais associados à biodiversidade, constituída atualmente de atos normativos do Poder Executivo.
As definições de termos inscritas na legislação são, supostamente, baseadas em estudos científicos disponíveis à época da elaboração da norma. Diferentes textos legais definem termos com base nos princípios da antropologia, da
biologia, da geografia e de outras áreas do conhecimento. Essas definições têm
o objetivo de operacionalizar a norma, além de definirem seu escopo. Em sua
dissertação de mestrado, Andressa Caldas observa que os conceitos e as classificações jurídicas são instrumentos construídos - portanto artificiais, arbitrários,
particulares e historicamente determinados (CALDAS, 2001, p. 70)
Definições de expressões como “comunidade tradicional”, “patrimônio
genético” e “conhecimento tradicional associado à biodiversidade” estabelecem
o que está dentro e o que está fora da abrangência da norma. Daí a relevância do
papel das “noções operacionais” consagradas pela legislação. Estas, no entanto,
não se confundem com os conceitos. As noções operacionais são delineadas
para se atingir a um fim prático, qual seja, viabilizar o cumprimento da norma.
Já os conceitos problematizam relações e se detêm no tratamento rigoroso das
especificidades. Segundo Almeida, a noção operacional serve basicamente para
fins operacionais imediatos ou de aplicação genérica e direta, sob uma lógica do
ponto de vista prático. Já o conceito tem significado, é dinâmico e por isso implica numa relação e na possibilidade de mudança de significado (ALMEIDA,
2008, p. 18).
Vale lembrar que a maior parte das legislações ambientais recentes, inclusive as que regulam o acesso à biodiversidade e ao conhecimento tradicional
associado inicia seus textos com definições terminológicas (CALDAS, 2001, p.
11) . Caldas ressalta que os conceitos jurídicos têm uma racionalidade interna
e que postulam a neutralidade científica. A fim de que se estabeleça e se faça
funcionar perfeitamente o sistema jurídico formal, pressupõe-se que tais conceitos jurídicos são intemporais, universais, neutros, gerais e abstratos (CALDAS,
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ibid, p. 12).
No lugar do que Caldas chama de “conceitos jurídicos”, prefiro utilizar
a expressão “definições jurídicas”, por entender que se tratam de noções operacionais e não propriamente de conceitos, seguindo o pensamento de Almeida
(2008). As definições jurídicas nada mais são do que noções operacionais inseridas – e congeladas - no texto normativo. Elas são consideradas indispensáveis à
delimitação da abrangência da norma e, em sendo supostamente científicas, oferecem um certo grau de segurança aos seus operadores. Não é por acaso que um
“grupo técnico de peritos”, especializado em “conceitos, termos e definições”,
foi formado na última Conferência das Partes em Bonn, na Alemanha para contribuir para a elaboração de um regime internacional de acesso e uso de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Nesse aspecto, vale notar que
se observa uma tendência à “homogeneização jurídica” (BOURDIEU, 2001, p.
107), no plano global, na regulação de variados temas através de convenções e
tratados internacionais (DOURADO, 2009).
EM RESUMO, PARA FINALIZAR
Proponho neste artigo apresentar o campo político em que se debate a
criação de normas jurídicas reguladoras do acesso e do uso de conhecimentos
tradicionais associados à biodiversidade. O intuito declarado da norma jurídica,
seja ela internacional ou nacional, é proteger os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade de povos e comunidades tradicionais.
O tema “conhecimentos tradicionais”, no entanto, não é um tema estritamente ambiental. Ele enfeixa questões relacionadas à conservação ambiental
e ao “uso sustentável” da biodiversidade, ao exercício de direitos humanos
culturais, sociais e econômicos de povos e comunidades tradicionais e aquelas
concernentes à propriedade intelectual e ao fomento da inovação tecnológica.
Nesse sentido, a multiplicidade de agentes e agências, com interesses e discursos próprios e em situações de disputa no campo político, tornam a questão
dos conhecimentos tradicionais, um emaranhado de posições de difícil discernimento.
Aqui destacam-se as posições dos povos indígenas e do Estado brasileiro
nesse processo regulatório. Ao mesmo tempo em que a biotecnologia se apresenta como uma área promissora para o desenvolvimento econômico do país
e, portanto, tem sido fomentada pelas agências governamentais e produtivas,
os povos indígenas reivindicam não apenas seus direitos econômicos relativos
aos conhecimentos tradicionais potencialmente geradores de tecnologias, mas
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também os direitos culturais e étnicos relativos aos conhecimentos tradicionais
associados, considerados elementos de sua identidade e de seu patrimônio cultural.
Através da teoria do campo, de Bourdieu, é possível visualizar os agentes
e agências que participam da regulação jurídica dos conhecimentos tradicionais
associados, bem como seus respectivos discursos e estratégias políticas. Eles interagem em relações de força e de dominação, variando o seu capital simbólico.
Vale notar que até mesmo os diversos significados dos conhecimentos tradicionais também são objetos de disputa nesse campo, o que demonstra o dinamismo
e a complexidade do processo atual de regulação jurídica.
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1o, 8o, alínea "j", 10, alínea "c", 15 e 16, alíneas 3 e 4 da Convenção sobre Diversidade Biológica, dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético,
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ÍNDICE - PARTE IV
ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA NO MUNICÍPIO DE MANAUS:
análise sobre direito à saúde e ao meio ambiente
Arlete Batista de Lima..................................................................................313
O DIREITO À SAÚDE PSÍQUICA DO TRABALHADOR NO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO
Kely Silva de Araújo.....................................................................................315
O TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA: ÁREAS PROTEGIDAS E
REGIMES AMBIENTAIS
Carla Cristina Alves Torquato.....................................................................316
POLÍTICAS PÚBLICAS, QUALIDADE DE VIDA E PARTICIPAÇÃO
DEMOCRÁTICA: O DIREITO À SAÚDE DOS POVOS INDÍGENAS EM
RORAIMA
Teresa Cristina Evangelista dos Anjos........................................................317
O REGIME DA RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL NA LEGISLAÇÃO DOS PAÍSES AMAZÔNICOS LATINO-AMERICANOS
Cristiniana Cavalcanti Freire......................................................................318
ÉTICA, DIREITOS HUMANOS E PESQUISA BIOTECNOLÓGICA: Uma
abordagem complexa nos espaços amazônicos
Lincoln Alencar de Queiroz..........................................................................320
A CIDADE REAL NA CIDADE FORMAL: UM ESTUDO SOBRE A CONSTRUÇÃO DA TERRITORIALIDADE DO QUILOMBO DO MAICÁ EM
SANTARÉM-PARÁ.
Judith Costa Vieira........................................................................................321
A BIOPIRATARIA E A APROPRIAÇÃO DOS CONHECIMENTOS
TRADICIONAIS ASSOCIADOS À BIODIVERSIDADE DA AMAZÔNIA
BRASILEIRA
Aline Ferreira de Alencar.............................................................................322
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E ST RAT É GI A SAÚDE DA FAMÍ L IA NO
MU NI CÍP IO DE MA NAUS:
análise sobre direito à saúde e ao meio ambiente
Mestranda:
Arlete Batista de Lima
Banca Examinadora:
Prof. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo (Orientador-UEA)
Prof. Dr. Sandro Nahmias de Melo (UEA)
Profa. Dra. Rosirene Martins Lima (Universidade
Estadual do Maranhão)
Resumo: O estudo faz uma análise do direito à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrando no município de Manaus tendo como referencial a
política pública de saúde denominada Estratégia Saúde da Família (ESF). Essa
política tem como principal desafio reorganizar o modelo de atenção básica para
garantir o acesso da população aos serviços públicos de saúde na perspectiva da
promoção da saúde, deslocando a questão saúde centrada na doença e no hospital para privilegiar aspectos preventivos e curativos. Desse modo, são identificados os fundamentos jurídicos que corroboram para a proteção do direito
à saúde e a defesa do meio ambiente, assinalando a história da saúde pública
brasileira consolidada como direito na década de 80 com a institucionalização
do Sistema Único de Saúde (SUS). O direito à saúde na vigente Constituição
assume a posição de direito fundamental recebendo especial atenção pelo legislador brasileiro no que se refere à garantia do seu conteúdo essencial, devendo o
Estado assegurar um mínimo existencial por meio de políticas sociais. A Constituição brasileira de 1988 preconiza que saúde é direito de todos e dever do Estado, e que todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado.
A sadia qualidade de vida depende fundamentalmente de condições ambientais
adequadas. Portanto, saúde e meio ambiente estão intrinsecamente relacionados,
devendo o Estado garantir mecanismos de articulação desses direitos de forma a
construir uma sociedade sustentável. Foi realizada pesquisa no Distrito de Saúde
Sul de Manaus, pelo expressivo número de Unidades de Saúde da Família, que
utilizou como método de investigação a observação direta, com participação
no cotidiano dos profissionais envolvidos no nível da atenção básica à saúde,
questionando suas práticas, repensando as ações de saúde de modo coletivo.
A ESF tem, entre outros objetivos, aproximar a equipe de saúde da população
assistida, fomentando um espaço de construção de cidadania. Por essa razão, a
sociedade deve participar desse processo de mudança das condições de saúde,
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sendo o controle social um mecanismo importante na efetivação de políticas
sociais que atendam às suas reivindicações. No entanto, como política pública
de saúde a ESF apresenta os seus próprios desafios como a limitação de recursos financeiros e a inadequada capacitação profissional. Do ponto de vista do
desenvolvimento, essa política ainda não conseguiu responder satisfatoriamente
às demandas da população assistida cuja participação no processo de construção
da saúde é quase nula por relegarem esse papel aos gestores públicos. É possível mudar esse cenário a partir de um controle social efetivo que se aproprie
de espaços coletivos, como os conselhos e conferências de saúde, e de instrumentos como a política nacional de promoção da saúde, a política de atenção
básica e da atenção primária ambiental que representam diretrizes na garantia do
direito à saúde. Essas diretrizes têm em comum a participação da comunidade
ao estimular práticas democráticas voltadas para soluções às suas necessidades
básicas. A atenção primária ambiental (APA) é uma estratégia que valoriza os
esforços de cidadania e os orienta para o desenvolvimento de uma nova cultura
que reconhece os direitos ambientais e as reivindicações sociais como necessários
para a sadia qualidade de vida da coletividade.
Palavras-chave: Direito à saúde; Direito ao meio ambiente; Políticas Públicas;
Estratégia; Saúde da Família; Sadia Qualidade de Vida.
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O DIREITO À SAÚDE PSÍQUICA DO TRABALHADOR NO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO
Mestranda:
Kely Silva de Araújo
Banca Examinadora: Prof. Dr. Sandro Nahmias Melo (UEA– ORIENTADOR)
Prof. Dr. Edson Ricardo Saleme (UEA)
Prof. Dr. Aldemiro Rezende Dantas Júnior (CIESA)
Resumo: Há muito se discute sobre a influência do trabalho na qualidade de
vida do trabalhador. Contudo, somente a partir da Revolução Industrial é que a
saúde mental vem sendo considerada importante para que se possa alcançar um
meio ambiente de trabalho hígido. A preocupação maior sempre foi com a saúde
física, ou seja, o acidente do trabalho típico e as doenças ocupacionais. Pouco se
falava em agressões psíquicas como o assédio moral, o estresse e a depressão,
contudo elas sempre existiram. O estudo do tema se mostra de grande valia uma
vez que o meio ambiente do trabalho saudável é um direito fundamental, pois,
ligado, por seu conteúdo, ao direito à vida. E, como direito fundamental que
é, deve ser assegurado por meio das garantias constitucionais dentre as quais
se destaca a ação civil pública. O assédio moral no meio ambiente do trabalho
configura-se como sendo toda e qualquer conduta abusiva que atente contra a
dignidade ou a integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu
emprego ou degradando o clima de trabalho. O assédio pode ser de forma vertical (chefe-empregado) ou de forma horizontal (entre trabalhadores). O assédio
moral no trabalho é uma das causas do estresse, e o estresse crônico gera a depressão. Com objetivo geral de analisar os meios de proteção jurídica à saúde
psíquica do trabalhador, realizou-se uma pesquisa exploratória, descritiva e explicativa. Quanto aos meios a pesquisa foi bibliográfica e documental. A ação
civil pública, como garantia fundamental que é, configura-se como o meio capaz
de garantir o equilíbrio no meio ambiente do trabalho. Ou seja, tal ação é o meio
adequado para assegurar condições mínimas de trabalho de forma que ele seja
realizado sem gerar danos à saúde física e psíquica do trabalhador.
Palavras-chave: Meio ambiente; Meio ambiente do trabalho; Saúde psíquica do
trabalhador; Assédio moral; Estresse; Depressão; Ação civil pública.
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O TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA:
ÁREAS PROTEGIDAS E REGIMES AMBIENTAIS
Mestranda:
Carla Cristina Alves Torquato
Banca Examinadora:
Prof. Dr. José Augusto Fontoura Costa (Orientador- UEA)
Prof. Dr. Fernando Fernandes da Silva (UniSantos/SP)
Ozorio Jose de Menezes Fonseca (UEA)
Resumo: Este trabalho trata da análise das áreas protegidas Amazônicas, isto é,
as áreas territorialmente protegidas dos países pertencentes à Bacia Amazônica,
Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela, que através do Tratado
de Cooperação Amazônica firmaram o compromisso de promover o desenvolvimento harmônico da região por meio da cooperação e reciprocidade de
esforços em prol do crescimento econômico da região atrelado a proteção do
meio ambiente. A partir desta premissa as partes contratantes do Tratado procuram realizar esforços e ações conjuntas e uma destas ações são os sistemas
de áreas territorialmente protegidas existentes nestes países, que tiveram como
base de construção a Convenção de Diversidade Biológica – CDB e o Sistema
de diretrizes de áreas protegidas da União internacional de conservação da
natureza – UICN e na construção das mesmas e qual o papel destes dois instrumentos dentro do Direito Internacional. Com isso são analisadas semelhanças,
possibilidades de harmonização ou unificação entre os sistemas, o fenômeno da
Juridificação, a função da CDB e do Sistema de diretrizes de áreas protegidas
da UICN enquanto instrumentos da soft law, a formação e a mudança de um
regime ambiental e a tentativa do Estado constitucional cooperativo como gérmen do uma cooperação mais ampla
Palavras-Chave: áreas protegidas; Direito Internacional; Tratado de Cooperação
Amazônica; juridificação; soft law; Regimes Internacionais.
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POLÍTICAS PÚBLICAS, QUALIDADE DE VIDA E
PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA: O DIREITO À
SAÚDE DOS POVOS INDÍGENAS EM RORAIMA
Mestranda:
Teresa Cristina Evangelista dos Anjos
Banca Examinadora:
Profa. Dra. Clarice Seixas Duarte (Orientadora – UEA)
Prof. Dr. Fernando Mussa Abujamra (FGV – SP)
Profa.dra. Deise lucy Oliveira Montardo (UFAM)
Resumo: A presente dissertação trata da regulação jurídica estatal instituída no
Brasil com a finalidade de proteger, promover e recuperar a saúde dos povos
indígenas por meio de políticas públicas. Objetiva-se analisar se a atual regulamentação jurídica de proteção, promoção e recuperação da saúde indígena é
compatível com as peculiaridades pertinentes a esses povos. O reconhecimento
de seus modos de ser, fazer e viver lhes foi garantindo constitucionalmente, pela
primeira vez em nossa história, através da Constituição Federal de 1988, em
seu art. 231. Verificamos que a participação desses povos, sozinhos ou de forma
coletiva, através de suas comunidades, como novos atores nos movimentos sociais, tem gerado novas e peculiares formas de elaboração de políticas públicas.
Especialmente no que diz respeito à proteção, promoção e recuperação da saúde
específica e diferenciada desses povos e suas comunidades, merece destaque
a organização de Distritos Sanitários Especiais Indígenas – DSEI’s, espaços
de concretização e democratização do direito à saúde desses grupos. Ao final
do trabalho, procedeu-se a uma análise do Distrito Sanitário Especial Indígena
Leste de Roraima-RR, a fim de se verificar o seu potencial como instrumento
de participação popular na elaboração e no controle social de políticas públicas, levando-se em conta o modelo teórico de conceituação jurídica de políticas
públicas utilizado na presente dissertação.
Palavras-Chave: Povos indígenas; políticas públicas; saúde; Distritos Sanitários
Especiais Indígenas; Constituição Federal de 1988.
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O REGIME DA RESPONSABILIDADE CIVIL
AMBIENTAL NA LEGISLAÇÃO DOS PAÍSES
AMAZÔNICOS LATINO-AMERICANOS
Mestranda:
Cristiniana Cavalcanti Freire
Banca examinadora:
Prof. Dr.José Augusto Fontoura Costa (Orientador – UEA)
Prof. Dr. Fernando Fernandes da Silva (Universidade
Católica de Santos)
Prof. Dr. Ozorio Jose Menezes Fonseca (UEA)
Resumo: Esta pesquisa trata da análise do regime da responsabilidade civil
ambiental na legislação dos países amazônicos latino-americanos, membros do
Tratado de Cooperação Amazônica. A responsabilidade civil por dano ambiental
constitui um importante instrumento de proteção ambiental e de implementação
dos princípios ambientais fundamentais. A região amazônica, ao congregar em
sua dimensão territorial diferentes países, com características sociais, econômicas e políticas diferenciadas, e de grande biodiversidade, imprescinde de mecanismos de proteção ao seu acervo ambiental em sua integralidade, sendo importante o desenvolvimento de instrumento que possibilite a proteção do bioma
amazônico como um todo, em face da sinergia e ausência de fronteira dos danos
ambientais, de forma a garantir-se, para a região, o adequado acesso aos recursos naturais, a responsabilidade intergeracional e o desenvolvimento em bases
sustentáveis. O presente trabalho tem como objetivo analisar as normativas
ambientais a respeito da responsabilidade civil por dano ambiental nos países
latino-amazônicos, Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela, com
fins a perspectivar uma harmonização normativa sobre a matéria, visando uma
proteção efetiva e duradoura do ecossistema amazônico em sua integralidade.
A pesquisa parte da análise das legislações dos respectivos países e da doutrina
disponível sobre a matéria, além da verificação de possibilidade de harmonização de seus regimes, a partir da disposição dessa intenção em suas normativas.A
harmonização dos regimes de responsabilidade civil por dano ambiental pode
contribuir para efetivar e implementar a proteção integral do bioma amazônico
e, além dos benefícios ecológicos, poderia garantir o equilíbrio na balança comercial desses países, na medida em que a harmonização impediria a evasão de
empreendimentos poluidores para países onde a normativa ambiental se apresente mais frágil ou menos eficaz, além da incorporação dos custos com medi318
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das de prevenção e precaução, de forma a erradicar a privatização dos lucros e
socialização dos prejuízos, garantindo os estudos para o desenvolvimento de
tecnologias mais limpas. A análise da normativa ambiental dos países latinoamazônicos permite observar que os princípios ambientais foram incorporados,
desde os textos constitucionais respectivos, até as legislações infraconstitucionais. Porém, divergências normativas podem impedir uma proteção integral do
meio ambiente amazônico, além de outras relativas à ordem política, econômica
e cultural, que acabam por interferir na aplicação dos princípios ambientais.
A possibilidade de harmonização normativa quanto à responsabilidade civil
pelo dano ambiental pode ter como ponto de partida o Tratado de Cooperação
Amazônica, através da Organização respectiva, apta a articular e orientar os
esforços para uma atuação com enfoque regional convergente na matéria, como
já vem ocorrendo com a proteção da propriedade intelectual entre os países da
bacia amazônica.
Palavras-chave: Amazônia; Direito ambiental; Responsabilidade civil.
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ÉTICA, DIREITOS HUMANOS E PESQUISA
BIOTECNOLÓGICA:
UMA ABORDAGEM COMPLEXA NOS ESPAÇOS
AMAZÔNICOS
Mestrando:
Lincoln Alencar de Queiroz
Banca Examinadora:
Prof.Dr. FernandoAntônio de Carvalho Dantas (Orientador – UEA)
Profa. Dra. Assunción Cambrón Infante
(Co-Orientadora – Universidade de La Coruña – Espanha)
Profa. Dra. Sandra Patrícia Zanotto (UEA)
Resumo: A genética se inicia no jardim de Mendel, mas esse conhecimento
sofre modificação, é apropriado pelo biopoder e, hoje, está plantado no jardim
do consumo. A ciência não é axiologicamente neutra e, atualmente, é incorporada aos processos produtivos. Apropriada pelo mercado, a ciência segue suas
leis que, em todo lugar, são as mesmas. Aplicada aos seres humanos, a ciência
se apropria de seu objeto de pesquisa, através das patentes, visando assegurar
lucros e o retorno dos investimentos. No direito, vê-se o paradoxo entre a indisponibilidade do corpo e o patenteamento da vida. Os novos conhecimentos
afetam a todos, por isso, a defesa da dignidade se inicia pelo resguardo do espaço democrático. O uso da genética humana visando o lucro é incompatível
com a dignidade da pessoa e, por essa razão, é indigno porque se apropria da
pessoa despindo-a de sua história e de sua cultura. Dessa indignidade, foram
vítimas índios da região amazônica ao serem forçados a participar de experiências científicas que beneficiaram apenas ao poder e ao prestígio dos próprios
pesquisadores. A ciência tem poder e influi na vida de todos, por isso, tem a
responsabilidade de proceder segundo o que é bom para o ser humano. O que é
bom para o homem é decidido no âmbito de sua cultura e da sua comunidade.
Os direitos humanos são fundamentos ético-jurídicos para formular o conceito
da dignidade humana e, também, base para a crítica ao direito tradicional que
enxerga a pessoa sob a ótica da propriedade e, por isso, não a protege contra o
risco da sua mercantilização.
Palavras-chave: Ciência; Genética; Mercado; Patentes; Dignidade humana; Direitos humanos; Mercantilização.
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A CIDADE REAL NA CIDADE FORMAL: UM
ESTUDO SOBRE A CONSTRUÇÃO DA TERRITORIALIDADE DO QUILOMBO DO MAICÁ EM
SANTARÉM-PARÁ.
Mestranda:
Judith Costa Vieira
Banca Examinadora:
José Joaquim Shiraishi Neto (Orientador – UEA)
Heloísa Helena Corrêa da Silva (UFAM)
Prof. Dr. Fernando Antônio da Carvalho (UEA)
Resumo: Desde a promulgação da Constituição Federal Brasileira de 1988 vem
se dando muita ênfase na problemática urbana a qual passou a ser abordada
sob a perspectiva da necessidade da realizado de uma reforma urbana por meio
de um processo de participação democrática. Porém, esse novo projeto de cidade idealizado pelo Direito, escamoteia as disputas políticas engendradas no
espaço das cidades, as quais têm ganhado cada vez notoriedade frente ao surgimento dos grupos éticos como categorias urbanas que demandam perante o
Estado o reconhecimento de suas formas particulares de ocupação do espaço
urbano. Diante disso, o objetivo do presente estudo consiste em entender a relação estabelecida entre duas formas distintas de ordenar o uso do território. Uma
desencadeada pelo Estado mediante seus instrumentos de Planejamento Urbano e
outra vivida pelos grupos éticos a qual, por vez, entra em confronto com um
projeto único de cidade. Visando pensar as questões aqui levantadas diante de
uma realidade concreta parte-se da tentativa de compreensão do surgimento do
Quilombola Urbano de Maicá, na Cidade de Santarém, Estado do Pará, que
se organizaram pela Associação de Remanescentes de Quilombos do Arapemã,
residentes no Maicá. A constituição desse grupo social na cidade permite repensar a construção do espaço a partir da constituição peculiar do seu território. A
maneira com o grupo se expressa ultrapassa as classificações arbitrárias de fracionamento do espaço realizadas pelo Direito, como a dicotomia rural e urbana,
posto que suas relações e atividades se encontram esparramadas por vários contextos espaciais do município. Portanto, a defesa de um modo de vida peculiar
perpassa pela compreensão dos aspectos essenciais a sua manutenção entre elas
a formação e a constituição dos territórios etnicamente configurados como é o
caso deste que está sendo tratado no presente estudo.
Palavras- Chave: Direito; Cidade; Planejamento Urbano; quilombolas; Maicá.
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A BIOPIRATARIA E A APROPRIAÇÃO DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS À BIODIVERSIDADE DA AMAZÔNIA BRASILEIRA
Mestranda:
Aline Ferreira de Alencar
Banca Examinadora:
Prof.Dr.FernandoAntôniodeCarvalho Dantas(Orientador –UEA)
Prof.ª Dr.ª Maria Auxiliadora Minahim (UFBa)
Prof. Dr. Ozorio Jose de Menezes Fonseca (UEA)
Resumo: A biopirataria é apropriação não autorizada do patrimônio genético
de uma região, incluindo espécies da fauna, flora, micro-organismos e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Essa atividade ocorre
nos países biodiversos, inclusive o Brasil, mais especificamente a Amazônia
Brasileira, cuja riquíssima biodiversidade atrai a cobiça dos países ricos em tecnologia e pobres em biodiversidade, que desejam fabricar novos produtos, com
o objetivo exclusivo de gerar lucro. Portanto, a natureza passa a ser vista como
matéria-prima, fonte de capital. Nesse contexto, a apropriação dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, pertencentes aos povos indígenas e
populações tradicionais, representa um poderoso atalho para a criação de novos
produtos, visto que, por meio da bioprospecção, é possível alcançar os resultados desejados com racionalidade econômica. A biopirataria atenta contra os
interesses nacionais e contra os direitos humanos, por essa razão sugere-se a que
a atividade seja criminalizada pelo Direito Penal, em virtude da relevância do
bem jurídico a ser tutelado, o meio ambiente. Além disso, para coibir a biopirataria na Amazônia, é necessário aumento de fiscalização na região, investimento
em ciência e tecnologia, bem como aplicação dos princípios da informação,
educação e participação ambiental como forma de aliar os esforços do Poder
Público e da coletividade para que ocorra a prevenção dessa atividade nociva ao
Brasil e aos detentores do conhecimento tradicional.
Palavras-chave: Biopirataria; Conhecimento tradicional associado; Biodiversidade; Amazônia Brasileira; Patrimônio genético.
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NORMAS EDITORIAIS
As normas editoriais da Hiléia - Revista de Direito Ambiental da Amazônia são as seguintes:
1) A revista é de periodicidade semestral, observando-se o caráter de interdisciplinaridade no que tange ao papel crítico do periódico e constitui-se em
um veículo para publicação de artigos, ensaios e resenhas críticas, bem como
à livre circulação de idéias e opiniões sobre temas relacionados ao Direito e,
especialmente, ao Direito Ambiental, sendo de inteira responsabilidade de seus
autores as opiniões expressas nos artigos publicados.
2) Os artigos serão submetidos à aprovação do Conselho Editorial.
3) O recebimento do artigo, ensaio ou resenha não implica a obrigatoriedade de sua publicação.
4) Não será efetuado qualquer pagamento ou contraprestação pela publicação dos artigos selecionados. Serão enviados 5 (cinco) exemplares do número
correspondente para cada autor de artigo, ensaio ou resenha publicado.
5) Os trabalhos deverão ser inéditos e conter os dados de identificação
(título, nome do autor, vinculação institucional) e, obrigatoriamente conter
sumário, resumo em português e em inglês, devendo ser acompanhados de currículo resumido do autor.
6) Além dos trabalhos que integrarão as sessões, a revista terá um espaço
reservado para publicação das atividades desenvolvidas pelos Núcleos e Projetos de Pesquisa e pelo Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental.
7) A formatação, citações e referências deverão obedecer às normas da
ABNT e, no que couber, as Normas Técnicas internas do Programa.
8) Os trabalhos deverão ser entregues em disquete ou como anexo de email, digitados com fonte Times New Roman, tamanho 12, com espaçamento
entre linhas de 1,5, margens superior e esquerda de 3 cm e margens inferior e
direita de 2 cm, em editor compatível com o Word, comportando entre 15 a 20
laudas para artigos e ensaios e entre 5 a 10 laudas para resenha, incluídas as
referências.
9) Para deliberação quanto à aprovação dos artigos com indicação para
publicação, o Conselho Editorial adotará os seguintes critérios:
• Interesse acadêmico – serão priorizados os trabalhos cuja reflexão mantenham pertinência com as linhas de pesquisa do Programa, quais sejam:
Conservação dos recursos naturais e desenvolvimento sustentável, que
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engloba: tutela jurídica do meio ambiente; unidades de Conservação;
Ecoturismo; educação ambiental; espaço urbano; recursos naturais; mecanismos de resolução de conflitos; desenvolvimento sustentável; direito
ao desenvolvimento; políticas públicas e Direitos da sócio e biodiversidade, que engloba: biodiversidade; biossegurança; bioética; direito
dos povos, povos indígenas e populações tradicionais; agricultura sustentável; direito ambiental econômico e empresarial; meio ambiente do
trabalho.
• Relevância e atualidade jurídica – os textos deverão trazer para o debate
questões cuja abordagem jurídica ensejem o diálogo interdisciplinar entre
o direito, o direito ambiental e as demais áreas do conhecimento.
• Rigor acadêmico – os textos deverão seguir, rigorosamente, a metodologia científica, oportunizando o debate acerca do conhecimento jurídico.
10) Artigos, ensaios ou resenhas recebidos e não publicados no número
correspondente à chamada editalícia do envio, integrarão banco de trabalhos e
poderão ser publicados posteriormente, em número subseqüente, mediante comunicação e consentimento prévio do autor.
Esta obra foi composta em Manaus Pela
UEA Edições.
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