livro hileia11,12,13.indd 1 12/11/2010 10:33:39 Governador do Amazonas Omar José Abdel Aziz Reitor da Universidade do Estado do Amazonas Profo. Dr. José Aldemir de Oliveira livro hileia11,12,13.indd 2 12/11/2010 10:33:39 ANO-6,Nº 11 MANAUS, JULHO-DEZEMBRO,2008 ANO-7,Nº 12 MANAUS, JANEIRO-JUNHO,2009 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS livro hileia11,12,13.indd 3 Edições 12/11/2010 10:33:39 Copyright © 2007 Governo do Estado do Amazonas Secretaria de Estado da Cultura Universidade do Estado do Amazonas – UEA Universidade do Estado do Amazonas Reitor José Aldemir de Oliveira Pró-reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa Maria das Graças Vale Barbosa Escola Superior de Ciências Sociais Diretor Randolpho de Souza Bittencourt Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental Coordenador Sandro Nahmias Melo (2009); Serguei Aily Franco de Camargo (2009-atual). Solicita-se permuta Solicitase canje Exchange desired On demande l’échange Vogliamo cambio Wir bitten um Austausch Coordenadores(as) Prof. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo Profa. Dra. Cristiane Derani Coordenação Editorial Prof. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo Prof. Dr. Walmir de Albuquerque Barbosa Prof. Dr. Ozório José de Menezes Fonseca Conselho Editorial Profa. Dra. Cristiane Derani Prof. Dr. David Sánchez Rubio Prof. Dr. Fernando Antonio de Carvalho Dantas Prof. Dr. Joaquim Shiraishi Neto Prof. Dr. Luiz Edson Fachin Prof. Dr. Ozorio José de Menezes Fonseca Prof. Dr. Raymundo Juliano Feitosa Prof. Dr. Sandro Nahmias Melo Prof. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo Profa. Dra. Solange Teles da Silva Prof. Dr. Walmir Albuquerque Barbosa Revisão Técnica e Normativa Denison Melo de Aguiar Diagramação e Projeto Gráfico Francisco Ricardo Lopes de Araújo Revisão Ortográfica Profa. Rosa Suzana Batista Farias UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS – UEA Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental Rua Leonardo Malcher, n.º 1728, 5.º andar, Centro, CEP: 69010-170 Manaus – Amazonas – Brasil Tel./Fax. 55 92 3627-2725 Ficha catalográfica Ycaro Verçosa dos Santos– CRB-11 287 Hiléia: Revista de Direito Ambiental da Amazônia. ano 6-7, n.º 11-12. UEA - Edições Governo do Estado do Amazonas / Secretaria de Estado da Cultura / Universidade do Estado do Amazonas, 2008. p. 324 ISSN: 1679-9321 (Semestral) E-mail: [email protected] Site: www.pos.uea.edu.br/direitoambiental/ livro hileia11,12,13.indd 4 1. Direito Ambiental – Amazônia I. Universidade do Estado do Amazonas CDD: 344.046811 CDU 344 (811) 12/11/2010 10:33:39 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO .........................................................................11 PARTE I A LEI DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA E O DEBATE SOBRE JUSTIÇA SOCIAL E PROTEÇÃO AMBIENTAL NA AMAZÔNIA José Heder Benatti ........................................................................15 TUTELA INIBITÓRIA COLETIVA E O MEIO AMBIENTE DO TRABALHO Priscila Campana .........................................................................31 EFETIVAÇÃO DE DIREITOS ÉTNICOS E COLETIVOS: UMA BATALHA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS DA REGIÃO SUL Gladstone Leonel da Silva Júnior Roberto Martins de Souza..............................................................................51 QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU DO ARAGUAIA-TOCANTINS: ESTRATÉGIAS LOCAIS DE REPRODUÇÃO SOCIAL E CULTURAL Nirson Medeiros da Silva Neto.......................................................................75 PARTE II COMPETÊNCIAS MATERIAIS NO CONTROLE E REGULAMENTAÇÃO DA ATIVIDADE PESQUEIRA Thaísa Rodrigues Lustosa de Camargo Serguei Aily Franco de Camargo.................................................................121 TERRAS INDÍGENAS NAS FAIXAS DE FRONTEIRA DA AMAZÔNIA BRASILEIRA: UMA BREVE ANÁLISE DOS DISCURSOS CONTRÁRIOS AO SEU RECONHECIMENTO Alex Justus da Silveira Fernando Antonio de Carvalho Dantas......................................................141 livro hileia11,12,13.indd 5 12/11/2010 10:33:39 A FARRA DO BOI E A QUESTÃO DO BALANCEAMENTO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS Denison Melo de Aguiar Serguei Aily Franco de Camargo..................................................................159 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA VIABILIDADE DA ARBITRAGEM: CONTRATOS DE REPARTIÇÃO EQUITATIVA PELO ACESSO E USO DA BIODIVERSIDADE E JUSTIÇA DEMOCRÁTICA DE PROXIMIDADE Liana Amin Lima da Silva José Augusto Fontoura Costa.......................................................................181 A NECESSIDADE DE TUTELA PENAL CONTRA A BIOPIRATARIA NA AMAZÔNIA Aline Ferreira de Alencar Fernando Antônio de Carvalho Dantas Maria Auxiliadora Minahim........................................................................207 A PESSOA JURÍDICA E O CONCURSO DE AGENTES NO CONTEXTO DA REPONSABILIZAÇÃO PENAL AMBIENTAL Antônio Ferreira do Norte Filho Serguei Aily Franco de Camargo.................................................................235 NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS E PADRÕES JURÍDICOS NO PROCESSO DE REDEFINIÇÃO DA REGIÃO AMAZÔNICA Joaquim Shiraishi Neto................................................................................253 livro hileia11,12,13.indd 6 12/11/2010 10:33:39 PARTE III PLURALISMO JURÍDICO COMO VALOR JURÍDICO FUNDAMENTAL DO ESTADO BRASILEIRO: ESTUDO DE CASO SOBRE A LEI Nº 145/2002 DO MUNICÍPIO DE SÃO GRABRIEL DA CACHOEIRA E A CO-OFICIALIZAÇÃO DAS LÍNGUAS NHEENGATU, TUKANU E BANIWA Moysés Alencar de Carvalho........................................................................271 SUJEITOS INDÍGENAS E ESTADO NO CAMPO DA REGULAÇÃO JURÍDICA DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS À BIODIVERSIDADE Sheilla Borges Dourado................................................................................287 Part IV - RESUMOS....................................................................................311 DISSERTAÇÕES DE MESTRADO (JULHO/2008 – JUNHO/2009) livro hileia11,12,13.indd 7 12/11/2010 10:33:39 CONTENTS PRESENTATION..............................................................................................11 PART I THE LAW OF ADJUSTMENT AND LAND DEBATE ON SOCIAL JUSTICE AND ENVIRONMENTAL PROTECTION IN THE AMAZON José Heder Benatti...........................................................................................15 INHIBITORY COLLECTIVE PROTECTION AND ENVIROMENT OF WORK Priscila Campana............................................................................................31 THE EFFECTUATION OF ETHNIC AND COLLECTIVES LAWS: A BATTLE FOR THE TRADITIONAL COMMUNITIES OF THE SOUTH REGION Gladstone Leonel da Silva Júnior Roberto Martins de Souza..............................................................................51 BREAKING COCONUT BABASSU LADIES FROM ARAGUAIA-TOCANTINS: LOCAL STRATEGIES OF SOCIAL AND CULTURAL REPRODUCTION Nirson Medeiros da Silva Neto.......................................................................75 PART II SKILLS MATERIALS IN CONTROL AND REGULATION OF FISHING ACTIVITY Thaísa Rodrigues Lustosa de Camargo Serguei Aily Franco de Camargo.................................................................121 INDIGENOUS LANDS IN THE BANDS OF THE BORDER OF BRAZILIAN AMAZON: A BRIEF REVIEW OF OPPOSITES DISCOURSE ANALYSIS TO ITS RECOGNITION Alex Justus da Silveira Fernando Antonio de Carvalho Dantas.......................................................141 livro hileia11,12,13.indd 8 12/11/2010 10:33:39 THE “FARRA DO BOI” AND THE QUESTION BALANCING THE CONSTITUTIONAL PRINCIPLES Denison Melo de Aguiar Serguei Aily Franco de Camargo.................................................................159 CONSIDERATIONS ON THE FEASIBILITY OF ARBITRATION: EQUITABLE DISTRIBUTION CONTRACTS FOR ACESS AND USE OF BIODIVERSITY AND JUSTICE DEMOCRATIC NEARBY Liana Amin Lima da Silva José Augusto Fontoura Costa.......................................................................181 THE NEED FOR PENAL PROTECTION AGAINST BIOPIRACY IN THE AMAZON Aline Ferreira de Alencar Fernando Antônio de Carvalho Dantas Maria Auxiliadora Minahim........................................................................207 THE CORPORATION AND THE CO-AUTHORS AGENTS IN THE CONTEXT OF ENVIRONMENTAL CRIMINAL RESPONSABILITY Antônio Ferreira do Norte Filho Serguei Aily Franco de Camargo.................................................................235 NEW SOCIAL MOVEMENTS AND LEGAL STANDARDS IN THE PROCESS OF THE REDEFINING THE AMAZON REGION Joaquim Shiraishi Neto................................................................................253 PART III LEGAL PLURALISM AS FUNDAMENTAL LEGAL VALUE OF BRAZILIAN STATE: A CASE STUDY ABOUT THE LAW Nº 145/2002 THE MUNICIPALITY OF “SÃO GRABRIEL DA CACHOEIRA” AND THE CO-OFFICIALIZATION OF LANGUAGES NHEENGATU, TUKANU E BANIWA Moysés Alencar de Carvalho........................................................................271 INDIGENOUS AND STATE IN SUBJECT FIELD OS LEGAL REGULATION OF TRADITIONAL KNOWLEDGE RELATED TO BIODIVERSITY Sheilla Borges Dourado................................................................................287 PART IV - MASTERS DEGREE DISSERTATIONS (JULY/2008 – JUNE/2009) livro hileia11,12,13.indd 9 12/11/2010 10:33:39 ...................................................................................................................................311 livro hileia11,12,13.indd 10 12/11/2010 10:33:39 APRESENTAÇÃO A Hiléia, Revista de Direito Ambiental da Amazônia, tem como objetivo contribuir para o desenvolvimento de conhecimento científico que corresponda às realidades sociais que são estudadas por pesquisadores no campo do Direito Ambiental e áreas afins. Possuindo, neste sentido, uma variedade de temas relacionados à complexidade das questões Amazônicas. Esta edição é a condensação de dois números: 11 e 12 da Revista. Correspondente ao segundo semestre do ano 6 da revista, ou seja, Julho a Dezembro de 2008, número 11 e ao primeiro semestre do ano 7, isto é, Janeiro a Junho de 2009, número 12, na qual se encontram um conteúdo científico que trata do Direito Ambiental e diversas áreas afins. Os artigos desta edição envolvem questões relativas aos povos e comunidades tradicionais e questões que se entrelaçam com a realidade destas, constituindo-se num exemplo das diversidades étnicas e culturais da Amazônia Brasileira. Importante também, agradecermos aos nossos (as) colaboradores (as): Professor Doutor José Aldemir de Oliveira, Magnífico Reitor da UEA e a Professora Doutora Maria das Graças Vale Barbosa, Pró-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa que garantiram os recursos necessários à atualização da periodização da revista; aos Professores Doutores Ozorio Jose de Menezes Fonseca e Walmir de Albuquerque Barbosa e ao Mestrando Denison Melo de Aguiar (bolsista CAPES), aos quais foram repassados os encargos de organização editorial dos três números da Hiléia, agora entregue aos nossos leitores; aos professores e colaboradores externos; e, finalmente, aos mestrandos e seus orientadores, e demais autores que contribuíram com seus estudos nesta revista. Agradecemos, em especial, a Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Amazonas – FAPEAM, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES e ao Conselho Nacional Científico e Tecnológico - CNPQ pelo apoio financeiro ao Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental. Prof. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo Coordenador do Programa de pós-graduação em Direito Ambiental – Universidade do Estado do Amazonas Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 11 11 12/11/2010 10:33:39 ÍNDICE - PARTE I A LEI DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA E O DEBATE SOBRE JUSTIÇA SOCIAL E PROTEÇÃO AMBIENTAL NA AMAZÔNIA José Heder Benatti..........................................................................................15 Introdução 1. O Debate da grilagem e o desmatamento na Amazônia 2. O que se entende por grilagem de terra pública 3. Critérios para regularizar as ocupações irregulares e destinar as terras públicas 4. Criação de espaços distintos: uma para a propriedade familiar e outra para a grande propriedade 5. A política de regularização fundiário do Estado do Pará 6. A Lei Federal Nº 11.952/2009 e o debate sobre justiça social e proteção ambiental Considerações Finais Referências TUTELA INIBITÓRIA COLETIVA E O MEIO AMBIENTE DO TRABALHO Priscila Campana............................................................................................31 1. Segurança no trabalho e a necessidade de prevenção 2. A incapacidade da técnica ressarcitória na defesa dos direitos coletivos 3.O sentido preventivo da tutela inibitória 4. Fundamento legal da tutela inibitória e a sua antecipação 5. O meio ambiente do trabalho 6. O papel do Ministério Público do Trabalho e sua legitimidade 7. Cabimento da ação civil pública? 8. A utilização da ação inibitória coletiva Considerações Finais Bibliografia EFETIVAÇÃO DE DIREITOS ÉTNICOS E COLETIVOS: UMA BATALHA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS DA REGIÃO SUL Gladstone Leonel da Silva Júnior Roberto Martins de Souza..............................................................................51 Introdução 1. Os reconhecimentos jurídicos históricos, a partir da organização e da luta 2. Aparatos normativos garantidores e a utilização do positivismo de combate 2.1. Normas gerais utilizadas pelas comunidades tradicionais 2.2. Normas específicas livro hileia11,12,13.indd 13 12/11/2010 10:33:40 2.2.1. Quilombolas 2.2.2. Faxinalenses 2.2.3. Indígenas 2.2.4. Pescadores Artesanais 2.2.5. Cipozeiras 2.2.6. Ilhéus 3. O choque entre as concepções liberais do direito e os reconhecimento de direitos étnicos e coletivos; Conclusão Referência Bibliográfica QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU DO ARAGUAIA-TOCANTINS: ESTRATÉGIAS LOCAIS DE REPRODUÇÃO SOCIAL E CULTURAL Nirson Medeiros da Silva Neto.......................................................................75 Introdução 1. Sofrimento e mobilização: a vida e o trabalho das quebradeiras de coco babaçu e sua organização em movimento social 2. Quebradeiras de coco face às “novas estratégias empresariais” Considerações Finais Referências livro hileia11,12,13.indd 14 12/11/2010 10:33:40 A LEI DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA E O DEBATE SOBRE JUSTIÇA SOCIAL E PROTEÇÃO AMBIENTAL NA AMAZÔNIA José Heder Benatti * Sumário: Introdução; 1. O Debate da grilagem e o desmatamento na Amazônia; 2. O que se entende por grilagem de terra pública; 3. Critérios para regularizar as ocupações irregulares e destinar as terras públicas; 4. Criação de espaços distintos: uma para a propriedade familiar e outra para a grande propriedade; 5. A política de regularização fundiário do Estado do Pará; 6. A Lei Federal Nº 11.952/2009 e o debate sobre justiça social e proteção ambiental; Considerações Finais; Referências. Resumo: Um dos temas mais polêmicos atualmente diz respeito à proposta do Governo Federal (hoje transformada na Lei 11.952/2009), que visa a regularização fundiária de propriedades públicas nas regiões da Amazônia Legal. Em relação aos argumentos contrários a esta medida jurídica é a alegação de que a lei favorece a ocupação ilegal de terras públicas e contribui com a aceleração das taxas de desmatamento em curso na região. Considerandose os desacordos este artigo pretende refletir sobre esse processo, levando em consideração as opiniões distintas, à luz da Constituição Federal de 1988, que estabeleceu novas bases para a relação entre sociedade e meio ambiente. Abstract: One of the most polemic themes nowadays regards the proposal of the federal government (now transformed in the law 11.952/2009) that aims the land regularization of public properties in the legal Amazonia regions. In relation to the arguments opposed to this legal measure is the allegation that the law favors the unlawful occupation of public lands and contributes with acceleration rates of deforestation in course in the region. Considering the disagreements this article aims to reflect about this process, taking into consideration the distinct opinions in the light of the Federal constitution of 1988, which established new grounds for the relationship between society and environment. Palavras-chave: Regularização Fundiária, Keywords: Land Regularization, Right Direito de Propriedade, Meio Ambiente e Property, Environment and Amazon. Amazônia. * Advogado, mestre em direito, doutor em ciência e desenvolvimento socioambiental, professor de direito da Universidade Federal do Pará, pesquisador do CNPq e Presidente do Instituto de Terras do Pará. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 15 15 12/11/2010 10:33:40 INTRODUÇÃO Um dos temas mais polêmicos das políticas agrária e ambiental do Governo Federal é o projeto de regularização de terras públicas na Amazônia Legal, convertido na Lei nº 11.952/2009. Dois argumentos contrários à iniciativa se destacam: o primeiro diz que, ao estabelecer a preferência de venda das terras aos seus ocupantes entre 15 módulos fiscais (média propriedade) e 2.500 hectares (grande propriedade), a lei iguala o grileiro, geralmente grande proprietário, ao posseiro, pequeno ocupante de terra pública. Isso representaria, na prática, um empreendimento imobiliário em favor do grileiro. O segundo argumento afirma que a regularização fundiária, tal como foi proposta, aumentará o desmatamento da Amazônia. Do outro lado, os médios e grandes ocupantes das terras públicas rebatem as críticas, dizendo que foram para a Amazônia sob o estímulo de políticas públicas do passado, que lhes prometeram terra para trabalhar. Sob essa ótica, o desmatamento ocorreu porque, para ter assegurado o direito à propriedade, era necessário derrubar 50% da floresta da área ocupada. A questão se torna complexa por um motivo simples: todos os argumentos têm um fundo de verdade e não podem ser descartados a priori. Talvez estejamos diante daquilo que Carlos Drummond de Andrade chamou de “meia verdade”, no poema “A Verdade”. Em meio a tantas opiniões distintas, é necessário buscar um consenso mínimo. O primeiro passo talvez seja o entendimento de que, a partir da Constituição de 1988, a sociedade brasileira estabeleceu um novo contrato, com novas regras para o relacionamento da sociedade com o meio ambiente. Assim, o passado não pode ser desculpa para a continuidade de comportamentos predatórios. O segundo ponto é a necessidade de se pactuar uma transição que assegure a superação desse passado. Dois elementos devem ser trabalhados nessa transição: o resgate do passivo ambiental causado pelo desmatamento da floresta, tendo como premissa a meta de desmatamento ilegal zero; e o preço justo da terra. Harmonizando esses dois pontos, a transição será mais rápida. São esses pontos que pretendemos discutir nesse texto. 16 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 16 12/11/2010 10:33:40 1. O DEBATE DA GRILAGEM E O DESMATAMENTO NA AMAZÔNIA1 A privatização ilegal de terras públicas é uma constante na Amazônia. Contudo, diferentemente de outros períodos históricos, hoje se apresenta com um caráter singular na relação de apropriação individual, no contexto fundiário regional. A propriedade da terra não parece ser aqui um instituto totalmente enquadrada na concepção ocidental de propriedade2. A propriedade advinda da grilagem não possui título fundado em uma base legal: a área do imóvel rural não é demarcada e as atividades desenvolvidas dentro de seus limites são ilegais, pois a exploração da terra para o desenvolvimento das atividades agropastoris ou florestais não tem autorização do Poder Público. Além disso, são constantes as denúncias de violação das normas ambientais e a utilização do trabalho forçado. Logo, encontramos diferentes situações que podem ser inseridas em uma ou mais violações: ambientais, agrárias, civis, criminais e tributárias, numa lógica que leva à apropriação e concentração dos recursos naturais e financeiros de forma ilícita. Neste contexto a Amazônia se torna palco de disputa entre vários atores, com interesses distintos que culminaram nos problemas que, hoje, compõem o cenário amazônico, pela disputa da terra e dos recursos naturais. São violações dos direitos indígenas, das posses das populações tradicionais e posseiros familiares. Diante deste complexo quadro, o combate à grilagem de terras e à violência no campo não pode ser visto como uma política de curto prazo, nem se basear apenas em ações pontuais e desconexas. O primeiro passo a ser dado é superar a limitada capacidade de gestão dos órgãos competentes, para o orde- 1 As idéias apresentadas nesse item foram publicadas no livro “BENATTI, José Heder; SANTOS, Roberto Araújo; GAMA, Antonia Socorro Pena. A grilagem de terras públicas na Amazônia brasileira. Brasília: IPAM:MMA, 2006 (Série Estudos)” e também no trabalho “Ordenamento territorial e regularização fundiária no Pará. Belém: Iterpa, 2008”, sendo que este último pode ser encontrado no site www.iterpa.pa.gov.br . 2 Entenda como propriedade ocidental a propriedade moderna, ou seja, é o imóvel (rural ou urbano) que é demarcada e registrada em cartório, mecanismo utilizado pelo Poder Público para transferir seu patrimônio para o domínio privado. Neste termo, quando referirmos à propriedade está tratando da área que possui título legítimo de propriedade, ou seja, não é um título falso. Já a posse, desde sua origem na história da humanidade, é um estado de fato que antecedeu à propriedade na apreensão e utilização dos bens, para a satisfação das necessidades do homem, sendo também um tipo de relação do homem com a terra. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 17 17 12/11/2010 10:33:40 namento fundiário, seja no seu corpo técnico, seja no material.3 Outro elemento importante é ter a compreensão de que a consolidação da propriedade rural (pequena, média e grande)4, respeitando os pressupostos sociais e ambientais, representa um importante passo para o fortalecimento da cidadania e da proteção ambiental. Nesta linha de atuação, apresentam-se dois aspectos importantes do combate à grilagem de terra na Amazônia: a elaboração de critérios de regularização fundiária da pequena, média e grande ocupação; e critérios para a destinação de terras públicas, privilegiando a pequena propriedade familiar e a criação de assentamentos. Existe um entendimento geral, do Estado e da sociedade brasileira, de que é fundamental acabar com a grilagem e dilapidação do patrimônio público. O receio está em como fazê-lo. Seja qual for o caminho escolhido o importante é partir do pressuposto de que a consolidação da propriedade privada e o estado de direito social – no caso amazônico, a institucionalização da propriedade privada (individual e coletiva) – é uma condição para a consolidação de um modelo democrático e participativo de distribuição e gestão da terra e dos recursos naturais e, consequentemente, de proteção do meio ambiente. 2. O QUE SE ENTENDE POR GRILAGEM DE TERRA PÚBLICA5 A grilagem é entendida como a legalização do domínio da terra através de documento falso. Também é compreendida como a apropriação ilícita de terras por meio da expulsão de pequenos ocupantes de terras públicas e índios. Portanto, trata-se de uma série de mecanismos de falsificação de documentos de propriedade de terras, negociações fraudulentas, chantagens e corrupções que têm envolvido o Poder Público e os entes privados. O Livro Branco da Grilagem de Terras no Brasil (s/d:12) define que “toda ação ilegal que objetiva a transferência de terras públicas para o patrimônio de 3 No âmbito do Estado do Pará e federal os governos têm investidos em pessoal com os concursos públicos, como na compra de equipamentos e estruturação dos órgãos fundiários e treinamento dos técnicos. 4 Definimos como grande posseiro, para fim de regularização fundiária, a faixa de ocupação com base na Lei Agrária e na Constituição Federal, ou seja, acima de 15 módulos fiscais e abaixo de 2.500 ha. Acima de 2.500 ha continua sendo um grande posseiro, mas a competência para deliberar sobre a regularização fundiária é do Congresso Nacional, conforme mandamento constitucional. 18 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 18 12/11/2010 10:33:40 terceiros constitui uma grilagem ou grilo”. Portanto, o termo grilagem denota uma ação ilegal (que pode consistir de atos ilegais ou atos irregulares) praticada por particulares, a fim de se apropriarem das terras públicas. Portanto, podemos fazer a seguinte indagação: a grilagem de terra pública é ilegal ou irregular? Se toda grilagem de terra é ilegal, não há alternativa para o governo a não ser recuperar a terra para o patrimônio público, pois a origem da ocupação está viciada e não há como admitir a confirmação dos atos praticados. No entanto, se a grilagem pode ser classificada como irregular, basta a validação dos atos praticados para que as irregularidades estejam sanadas ou, pelo menos, parte das irregularidades. Em outras palavras, se os atos praticados da grilagem ofenderam as normas jurídicas, devido a alguns elementos intrínsecos a esses atos, há a possibilidade de serem ratificados, a fim de que o ato se valide. Assim, revendo a pergunta anterior, podemos fazer a seguinte indagação: toda grilagem de terra pública é ilegal ou dependendo de certas circunstâncias ou características pode ser enquadrada como irregular? As diferentes formas de ocupação da Amazônia, seja com apoio legal e financeiro do Poder Público ou por iniciativa própria, acabaram criando um cenário complexo que não pode ser enquadrado somente em uma definição um estereótipo de apropriação do patrimônio público. Deve-se considerar a complexidade para buscar as soluções, por isso que ao tratar os casos concretos de grilagem encontra-se situações de ilegalidade, como também de irregularidade. É consenso de que combater a grilagem da terra e dos recursos naturais terá grande repercussão ambiental e na estruturação social, pois acaba com a violência como forma de se ter acesso aos bens públicos, e é também uma indi- 5 Divulga-se que o termo grilo ou grilagem tem sua origem na tentativa de transformar títulos falsificados, dando-lhes aparência de legais, com o emprego do inseto ortóptero – o grilo, tanto que o Dicionário Aurélio define grileiro como sendo “Indivíduo que procura apossar-se de terras alheias mediante falsas escrituras de propriedade”. Logo, a terra grilada é aquela em que o título de propriedade é falso. O mecanismo utilizado, e que acabou denominando o processo de apropriação ilegal de terras públicas, era o de “comprar” dos cartórios ou de terceiro um falso título da terra e, para lhe dar uma certa aparência de autenticidade, o documento era colocado em uma gaveta com alguns grilos. Passado algum tempo, os grilos iriam alimentar-se das bordas da escritura, expelir excrementos no documento e auxiliar na transformação do papel de cor branca para uma cor amarelada, ficando com um aspecto envelhecido. Assim, o título de propriedade da terra com esse novo visual daria maior credibilidade ao seu possuidor, que alegaria já ser proprietário daquela gleba de terra há algum tempo. Atualmente, empregam-se outras tecnologias mais eficazes para conseguir o mesmo objetivo, ou seja, a falsificação de documentos. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 19 19 12/11/2010 10:33:40 cação de que existem mecanismos democráticos de se obter a terra. Neste contexto, discutir o fim da grilagem na Amazônia é discutir a relação entre a consolidação da propriedade privada e o Estado de direito social, ou seja, no caso amazônico, a institucionalização da propriedade privada (individual e coletiva) é uma condição para a consolidação de um modelo democrático e participativo de distribuição e gestão da terra e dos recursos naturais. No processo de regularização fundiária não estamos nos referindo a qualquer tipo de apropriação privada, por isso que afirmamos que a grilagem pode ser classificada em ilegal e irregular. O reconhecimento do direito de propriedade privada em terras públicas está vinculado a uma apropriação individual ou coletiva da terra, compatível com a função sócio-ambiental do imóvel rural. Outro elemento importante neste debate é a capacidade de garantir a distribuição eqüitativa da propriedade privada e, que ao mesmo tempo, reconhecer os diferentes tipos de propriedades. Logo, deve-se garantir o acesso às diferentes formas de apropriação da terra e dos recursos naturais, de tal modo que uma concepção de uso não venha se sobrepor e a concentrar uma grande quantidade de terra. E ao garantir o acesso para o desenvolvimento das diferentes atividades sociais e econômicas, as propriedades ficam comprometidas em cumprir a sua função social e ambiental. Assim, o acesso plural à terra e a função social da propriedade são duas manifestações das cláusulas do Estado democrático. Não se pode implementar uma, sem assegurar a efetividade da outra. A importância da garantia do direito de propriedade, com essas duas dimensões, está no fato de reconhecer o direito à terra às comunidades indígenas, às populações tradicionais, aos camponeses e aos médios e grandes posseiros6. Ao mesmo tempo em que se reconhece um direito, estão-se definindo deveres, pois se possibilita que a propriedade tenha um limite reconhecido, um cadastro confiável, o uso da terra e dos recursos naturais legalizados e monitorados. Reconhece-se o espaço de manifestação de liberdade do indivíduo ou da coletividade e, concomitantemente, assegura-se que o exercício da autonomia privada esteja sujeito à função social e ambiental do imóvel rural. 3. CRITÉRIOS PARA REGULARIZAR AS OCUPAÇÕES IRREGULARES E DESTINAR AS TERRAS PÚBLICAS A oposição à grilagem não será eficaz se limitar as políticas de comando e controle7, será preciso reconhecer que nem toda ocupação da terra pública é ilegal, em muitos casos a situação de irregularidade persiste por falta da atuação do Poder Público. Por isso o combate à grilagem de terra na Amazônia precisa 20 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 20 12/11/2010 10:33:40 focar em duas medidas: a) Apresentação de critérios de regularização fundiária da pequena, média e grande ocupação, privilegiando a pequena propriedade familiar;8 b) Critérios para a destinação de terras públicas, para outros usos ou para fim de proteção ambiental. O fato de conceder algumas prerrogativas à pequena propriedade não exclui a possibilidade de destinar terras para a média e grande propriedade. Pelo contrário, a idéia é ter a pequena ocupação como parâmetro, a fim de ajudar na construção dos critérios para a destinação de terras públicas para a grande propriedade, porque a Constituição Federal faz esse tratamento distintivo. Mesmo quando utilizado o termo ocupação irregular, deve-se ter uma interpretação sistêmica da legislação brasileira, incluindo as normas agrárias e ambientais. Tradicionalmente tem-se interpretado um ato irregular de ocupação da terra somente sob o prisma agrarista. Contudo, quando os princípios e comandos normativos ambientais são incluídos, um ato até então considerado legal pode ser caracterizado como irregular no uso dos recursos naturais. Neste âmbito, quais são os elementos necessários para assinalar uma ato irregular, tanto na concepção agrarista como ambientalista, ou seja, dentro de uma noção agroambiental? Os requisitos necessários para que uma ocupação de terras pública faça jus à legitimação da posse deve ser respeitada a ocupação de terras devolutas, a qual é manifestada em cultura efetiva e moradia habitual. Logo, é condição sine qua non que a área esteja sendo ocupada. Além disso, nesse processo, é vedada a regularização de áreas com dimensão territorial inferior à fração mínima de parcelamento do módulo rural. Outro aspecto a ser levado em consideração são os comandos normativos relativos ao meio ambiente. Assim, as áreas a serem regularizadas devem pas- 6 Lembrando que trabalhamos com a concepção de que a grande ocupação é a faixa de ocupação com base na Lei Agrária e na Constituição Federal, ou seja, compreende as posses acima de 15 módulos fiscais e abaixo de 2.500 hectares. 7 Os instrumentos de comando e controle são mecanismos de regulação direta, objetivando modificações no comportamento dos agentes por meio da imposição da lei, que tem um caráter punitivo para quem contraria o comando normativo. O instrumento fixa parâmetros técnicos para as atividades econômicas, visando garantir o objetivo que se deseja alcançar. Com o instrumento de comando e controle, o Estado faz cumprir a lei através do monitoramento, fiscalização e da responsabilização do agente econômico, o que implica em recursos financeiros suficientes no seu orçamento para garantir o funcionamento destes mecanismos. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 21 21 12/11/2010 10:33:40 sar, antes da titulação, pelo enquadramento ambiental, ou seja, tem que buscar recuperar o passivo ambiental existente no imóvel rural. São exigências constitucionais necessárias para legitimar a ação do Poder Público no reconhecimento do direito à terra. O pressuposto básico é verificar qual é a função dada a terra: a área ocupada está cumprindo a sua função socioambiental? Incorporando o princípio da responsabilidade ambiental, a Constituição de 1988 é categórica ao definir, no art. 186, que a função social é cumprida quando a propriedade rural atender simultaneamente, segundos critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: a) aproveitamento racional e adequado da terra e dos recursos naturais; b) utilização racional dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; c) observância das disposições que regulam as relações de trabalho; d) exploração que favoreça o bem-estar do proprietário e dos trabalhadores. Nesses mandamentos constitucionais estão explicitados os três elementos necessários para a efetivação da função social: o econômico, o social e o ambiental. A conciliação da utilidade privada (atividade agrária ou da função produtiva) e dos interesses públicos ocorre quando a exploração econômica leva em consideração os aspectos social e ambiental. Resumindo, o imóvel rural tem a incumbência constitucional de produzir e proteger os bens ambientais. A função ecológica do imóvel rural é efetivada quando os serviços ambientais do ecossistema9 estão assegurados, ou seja, ao dar uma destinação útil à terra e aos recursos naturais (por meio do seu aproveitamento na agricultura, na pecuária e no manejo), o desenvolvimento da atividade agrária manterá um grau satisfatório dos serviços ecológicos10. Logo, os critérios de regularização das áreas públicas ocupadas devem levar em conta esses princípios constitucionais, e as ocupações que não respeitaram boa parte dos mandamentos constitucionais são ilegais e, portanto, não podem ser regularizadas. 4. CRIAÇÃO DE ESPAÇOS DISTINTOS: UMA PARA A PROPRIEDADE FAMILIAR E OUTRA PARA A GRANDE PROPRIEDADE 8 A Lei federal Nº 11.952/2009 apresenta os critérios para regularizar no âmbito das terras da União na Amazônia, e a Lei Nº 7.289/2009 estabelece os critérios para regularizar as terras do Estado do Pará. 22 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 22 12/11/2010 10:33:40 Atualmente a terra não é somente fonte de alimentos, mas é um recurso natural importante para manutenção da biodiversidade, da produção do biodiesel e outras matérias-primas para a indústria. O Brasil é um dos poucos países do mundo que ainda possui terra para expandir a atividade agrária, pagando um custo alto que é a destruição da floresta. Portanto, a tendência é aumentar a disputa por esse recurso cada vez mais escasso e valorizado. É preciso buscar mecanismo que assegure espaço para o desenvolvimento da atividade agrícola familiar, um deles é o instituto jurídico que regula o acesso a terra, ou seja, o contrato de concessão de direito real de uso, substituindo o título definitivo. Nesse momento de caos fundiário e forte disputa pela terra, é preciso criar dois espaços para que a propriedade familiar e a grande propriedade possam se desenvolver sem que esta abocanhe o espaço daquela. A distinção da titulação entre concessão e título definitivo é apresentada como política pública, porque a atual situação caótica fundiária assim o exige. Se optássemos pela titulação definitiva para todas as propriedades e assentamentos, a médio prazo, teríamos o aumento da concentração da terra e inúmeras famílias sem terra em busca de novas áreas para ocuparem. Isso quer dizer que de nada adiantará o reconhecimento e a distribuição de lotes à pequena propriedade ou a criação de assentamentos. Na política de regularização fundiária, um dos aspectos que estimula a concentração de terra é o título do imóvel alcançar valor superior ao da produção agrária, provocando a venda da terra titulada. Essa tendência é maior em áreas com poucos imóveis rurais regularizados e com o aumento da demanda por terras legalizadas. Esse é o caso atual do Pará com a entrada do agronegócio que tem como meta implantar a soja, a cana-de-açúcar e o biodiesel. O objetivo que se busca alcançar com a concessão consiste em tirar as áreas destinadas para a pequena propriedade da especulação imobiliária e es9 Ecossistema pode ser entendido como a comunidade de plantas, animais ou outros seres vivos, juntamente com o componente inorgânico do ambiente natural, encontrados num determinado habitat e interagindo entre si. 10 Denominamos serviços ecológicos ou ambientais do ecossistema a manutenção da capacidade de retenção de parte do ciclo de carbono, a manutenção do sistema hidrológico e climatológico, a função de barreira natural contra a propagação de incêndios florestais, a reciclagem de nutrientes, o fornecimento de matéria-prima, o controle da erosão e a manutenção da biodiversidade. De modo geral, os serviços ecológicos podem ser definidos como sendo as circunstâncias e os processos, dentro de cada ecossistema, e as espécies que fazem parte desse meio ambiente, que sustentam o ecossistema e possibilitam a realização da vida humana. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 23 23 12/11/2010 10:33:40 timular as ações coletivas – tais como o associativismo – com o intuito de melhorar a produção e o preço da produção familiar. Quanto à grande propriedade, o objetivo é desestimular a procura, pois o estado não pode favorecer a concentração de terra. Assim, somente quando houver um mercado de terra estabilizado, com a regularização fundiária da média e da grande propriedade e com a política agrícola consolidada para a propriedade familiar, é que se poderá pensar em mudar a concessão para a titulação definitiva. Outra política importante para assegurar o espaço para a pequena propriedade é a constitucionalização do limite ao direito de propriedade, que discutiremos logo mais. 5. A POLÍTICA DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIO DO ESTADO DO PARÁ O Estado do Pará já iniciou o processo de ordenamento territorial e regularização fundiária com a Política Estadual de Ordenamento Territorial (PEOT). Essa política leva em conta os comandos normativos previstos na Constituição Federal e na Estadual, na legislação estadual e nos procedimentos administrativos do Instituto de Terras do Pará (ITERPA). Com isso, busca conciliar os princípios da produção agrária e da proteção ambiental. Tendo como finalidade priorizar a propriedade familiar, o ITERPA foi reestruturado para que seja possível a criação de assentamentos. A atual organização do órgão conta com a Coordenadoria de Projetos Especiais composta pela Gerência de Comunidades de Quilombos e pela Gerência de Projetos de Assentamento. Para tanto, o Estado criou três tipos de assentamentos: a) Projeto Estadual de Assentamento Sustentável (PEAS); b) Projeto de Assentamento Estadual Agroextrativista (PEAEX); e c) Território Estadual Quilombola (TEQ). Os assentamentos criados pelo Estado receberão concessão de direito real uso, enquanto que os quilombolas receberão a titulação definitiva e coletiva, conforme estabelecem a Constituição Federal e a Estadual. O objetivo que se busca alcançar com a concessão de direito real de uso nas áreas de assentamento é retirar as áreas destinadas para a pequena propriedade da especulação imobiliária e estimular as ações coletivas – tais como o associativismo – com o intuito de melhorar a produção e o preço da produção familiar. Quanto à grande propriedade, o objetivo é desestimular a procura, pois o Estado não pode favorecer a concentração de terra. Assim, somente quando houver um mercado de terra estabilizado, com a regularização fundiária da média e da grande propriedade e com a política agrícola consolidada para a propriedade familiar, é que se poderá pensar em mudar a concessão para a titulação 24 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 24 12/11/2010 10:33:40 definitiva. Nesse primeiro momento, a criação de assentamento é pensada como uma política de regularização fundiária em áreas de ocupação humana, ou seja, não é política do ITERPA criar assentamentos em áreas sem ocupação humana. O que se busca para as áreas com cobertura vegetal natural é a proteção ambiental, priorizando instrumentos que assegurem a sua conservação. O mesmo tratamento se dará para o processo de regularização fundiária rural, isto é, não haverá alienação de terra pública com floresta para iniciar projetos agropecuários. A inovação do estado do Pará é realizar a regularização com uma nova metodologia, isto é, a Varredura Fundiária priorizando a atuação no âmbito do município com ação governamental conjunta, envolvendo a Secretaria de Projetos Estratégicos, a Secretaria de Meio Ambiente, a Secretaria de Agricultura, o Instituto de Terras do Pará e a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Pará. Com ações conjugadas, espera-se titular, licenciar as atividades agrárias e discutir a produção agrícola do imóvel rural. Busca-se, com essa política, um processo de gestão territorial contínua, transparente e democrática, pactuado com os diferentes atores sociais (federal, estadual, municipal e sociedade civil), além de realizar uma “varredura” fundiária. Sendo assim, os objetivos que tal política pretende alcançar são: diminuir a violência rural e o desrespeito aos direitos humanos, assegurar o direito de propriedade aos diferentes segmentos sociais, diminuir o desmatamento, garantir a sustentabilidade ambiental e priorizando a ocupação familiar. Os processos de regularização de posse deverão ser acompanhados de planta e de memorial descritivo georreferenciado cujos custos financeiros para a sua elaboração deverão ser de responsabilidade da(o) beneficiária(o) da legitimação, com exceção dos processos de da pequena propriedade, quando se tratar de doação, e a criação de assentamento. Os títulos de domínio expedidos pelo órgão fundiário conterão cláusulas que obriguem o beneficiário a manter, a conservar e, se for o caso, a restaurar as áreas de preservação permanente e de reserva legal. Tais títulos também conterão como cláusula obrigatória que diz respeito à averbação à margem do registro do imóvel, junto ao cartório competente, da área de reserva legal. Em decorrência da infra-estrutura tecnológica que está se organizando – a qual contará com cadastro dos imóveis georreferenciado e com técnicos capacitados para a execução do mapeamento através do sistema GPS –, a metodologia a ser utilizada na coleta das informações sobre as características físicas dos imóveis se refere ao georreferenciamento apoiado na Rede Geodésica Federal. Objetivase, com isso, organizar um banco de informação próprio das propriedades rurais e compartilhado tanto por instituições públicas (Federais, Estaduais e MuniciHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 25 25 12/11/2010 10:33:40 pais) quanto por registros imobiliários, servindo para melhor definição de divisas municipais, de perímetros urbanos e de unidades de conservação. Com uma base cadastral estruturada, reunindo elementos necessários ao trabalho de reforma agrária e de ordenamento fundiário, o Estado poderá planejar e executar de forma sistemática as ações de democratização do acesso à terra, de combate à grilagem e de fiscalização do uso da propriedade rural. A Varredura Fundiária irá levantar todos os imóveis rurais na área que está atuando, constituindo uma malha fundiária e de ocupação existente. Busca com isso obter informações sócio-econômicas da realidade da região, possibilitando o ordenamento territorial, a titulação das ocupações legitimáveis, a criação de assentamentos, o reconhecimento à terra aos quilombolas, bem como, destinar às terras públicas para proteção ambiental ou concessão florestal. A ocupação familiar terá prioridade na destinação das terras públicas com o intuito de fortalecer a agricultura familiar, com vistas ao seu desenvolvimento social, econômico e ambiental. Maiores informações podem ser adquiridas no site do instituto (www.iterpa.pa.gov.br). 6. A LEI FEDERAL Nº 11.952/2009 E O DEBATE SOBRE JUSTIÇA SOCIAL E PROTEÇÃO AMBIENTAL A Lei nº 11.952, de 25 de junho de 2009, que dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal. A novidade contida na norma foi a dispensa de licitação para áreas rurais até quinze módulos fiscais na Amazônia para quem ocupa desde dezembro de 2004, e por esse e outros comandos normativos recebeu algumas críticas, entre elas as que relacionam a lei a consolidação da grilagem ou como estímulo ao desmatamento. O Greenpeace chegou a afirmar que a lei será o Programa de Aceleração da Grilagem – PAG, pelo fato que as áreas ocupadas até quinze módulos fiscais11 na Amazônia poderão ser compradas sem 11 O módulo fiscal (MF) é fixado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e definido por lei pelo município, sendo regulamentado pelo art. 4º do Decreto Nº 8.485, de 06/05/80. No Pará a maioria dos municípios possui módulo fiscal entre 55 a 75 ha, com exceção de Ananindeua, Benevides, Marituba e Santa Bárbara, onde o módulo fiscal é de 7 ha. O Estado do Amazonas possui MF de 80 e 100 ha; no Acre a maioria é de 100 ha e um terço é de 70 ha; no Amapá, 50 e 70 ha; em Rondônia, 60 ha e, em Roraima, 80 e 100 ha (fonte: INCRA, 2001). 26 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 26 12/11/2010 10:33:40 licitação. O Movimento dos Trabalhados Rurais Sem Terra (MST) fez a mesma crítica, dizendo que a norma jurídica possibilita a legalização da grilagem. O Imazon – Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia ficou no meio termo nas críticas. De um lado declara que o governo acerta ao tentar regularizar as terras ilegalmente ocupadas. De outro lado ressalva que a lei pode reforçar a expectativa entre os candidatos a posseiros e grileiros de que nova “regularização” ocorra no futuro, ampliando a ocupação de terras públicas. Para saber qual será o efeito real da norma de regularização fundiária pelo menos duas perguntas devem ser respondidas: essa norma vai colaborar para aumentar a concentração de terra? Irá facilitar ou estimular o desmatamento na Amazônia? São duas perguntas que possuem abrangências distintas. A primeira está relacionada ao debate do acesso à terra da pequena propriedade e a outra a questão ambiental. Na realidade, a Lei nº 11.952/2009, está inserida em um novo contexto político, onde os órgãos públicos agrários estaduais e federais (ITERPA, MDA e o INCRA), o IBAMA e a Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Pará estão atuando em parceria para combater a grilagem e a violação do meio ambiente. Nesse novo contexto, o desmatamento não será o critério principal de legitimação da ocupação, mas a destinação socioambiental do imóvel rural. O Estado deve ser pró-ativo e coordenar o processo do ordenamento territorial para que suas políticas públicas sejam eficazes, pois a falta de uma política de destinação de bens públicos pode promover – e é o que, na maioria das vezes, ocorre, caso haja a falta dessa política – um ordenamento caótico das áreas territoriais por meio da grilagem. Essa forma espontânea de ordenamento é nociva aos direitos humanos e ao meio ambiente. Para tanto, é necessário estabelecer uma política de ordenamento territorial que inclua: regularização fundiária, licenciamento ambiental das propriedades rurais, cumprimento da função social da propriedade, controle, fiscalização e instrumentos econômicos12 capazes de 12 Um incentivo é um mecanismo de política que visa levar ou estimular os agentes econômicos a desenvolver determinadas ações e comportamentos para alcançar metas e objetivos predeterminados. O incentivo econômico encoraja as pessoas a ter certos comportamentos desejados. O incentivo fiscal é a isenção ou redução de impostos estabelecidos em lei para estimular gastos privados em certas áreas ou programas. O incentivo pode ser criado para beneficiar uma atividade, estimular comportamentos ou desestimulá-los. Dessa forma, os incentivos econômicos (financeiros e fiscais) podem ser uma forte ferramenta para estimular a proteção dos recursos naturais no imóvel rural, pois possibilitam corrigir tendências do mercado que podem estar encorajando ações contrárias à conservação da natureza. Contudo, os incentivos econômicos são instrumento público complementar ao de comando e controle. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 27 27 12/11/2010 10:33:40 estimular a gestão sustentável dos recursos naturais, de maneira especial, a floresta. O que causa insegurança e descontrole é a falta de definição do direito de propriedade como se encontra atualmente a região amazônica. A regularização fundiária que está se propondo busca desestimular o desmatamento e assegurar o controle das áreas públicas e privadas. Atualmente um quinto da Amazônia Legal permanece como “terra devoluta” e parte considerável das terras arrecadadas pelo Poder Público nas décadas de setenta e oitenta não receberam uma destinação efetiva. Este fato leva o mesmo poder público a desconhecer quem e como suas terras estejam sendo ocupadas. O reconhecimento formal das diferentes formas de ocupação existentes permitirá ao Estado e a sociedade controle sobre o uso da terra e demais recursos naturais. Portanto, a regularização fundiária terá impacto positivo e não negativo, desde que priorize a ocupação familiar. CONSIDERAÇÕES FINAIS Resumindo, a regularização fundiária deve trabalhar com critérios de reconhecimento do direito a terra (moradia, prazo mínimo de ocupação e função socioambiental do imóvel rural) como também com critérios de exclusão do direito a terra (área reivindicada que não cumpre a função social, e a utilização de trabalho forçado para realizar qualquer atividade laboral dentro do perímetro da área reivindicada), priorizando as posses familiares. O nó górdio é o atual paradoxo da Constituição Federal, que ao estabelecer critérios para destinação das terras públicas para a propriedade familiar e a proteção ambiental, não criou nenhum obstáculo a concentração da terra.13 O principal comando constitucional que apresenta algum embaraço ao grande latifúndio é a obrigação de cumprir a função social da terra.14 Contudo, isso não é suficiente para impedir a formação da grande propriedade no Brasil, se faz necessário a constitucionalização do limite do direito de propriedade, esta13 O artigo 188 da Constituição Federal determina que “A destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária. O § 5º do artigo 225 preconiza que “São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais.” 14 A função social da propriedade está presente nos artigos 5º, XXIII; 170, III e 186 da Constituição Federal. 28 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 28 12/11/2010 10:33:40 belecendo uma restrição ao tamanho da área e a quantidade de imóveis rurais que uma pessoa pode possuir no Brasil. O debate principal para que se consiga uma verdadeira distribuição de terra no Brasil é limitar o direito de propriedade. Não é a proposta de regularização fundiária que inclua a média e grande ocupação que irá acelerar o processo de concentração de terra. A concentração de terra já existe e somente a política de reforma agrária não será suficiente para combater o grande latifúndio. A reforma agrária está contribuindo para garantir o acesso a terra à propriedade familiar, mas não é suficiente para limitar a concentração de terra, pois no mercado o acesso a terra é livre, desde que haja um proprietário querendo comprar e outro com interesse de vender o negócio pode se consolidar, sem levar em conta nenhum critério social ou ambiental. Enquanto não houver uma restrição ao direito de propriedade, o processo de poucos possuírem muito continuará, com uma forte tendência de aumentar ainda mais a atual concentração de terra. A campanha liderada pelos movimentos sociais que atuam na área agrária objetivando incluir na Constituição Federal uma emenda que estabelece um limite máximo à propriedade da terra no Brasil é um grande passo no combate a concentração da terra e dos recursos naturais. Por outro lado, o mercado nacional e internacional está fechando o cerco às práticas predatórias e a sociedade vem exigindo comportamentos comprometidos com a sustentabilidade ambiental e a responsabilidade social. O que precisamos agora é de uma política socialmente justa, ambientalmente sustentável e economicamente inclusiva. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 29 29 12/11/2010 10:33:40 REFERÊNCIAS BENATTI, J. H.; SANTOS, R. A.; GAMA, A. S. P. A grilagem de terras públicas na Amazônia brasileira. Brasília: IPAM:MMA, 2006 (Série Estudos). BRASIL. Constituição Federal do Brasil, 2008. BRASIL. Lei Federal Nº 11.952/2009, apresenta os critérios para regularizar no âmbito das terras da União na Amazônia. BRASIL. Lei Nº 7.289/2009, estabelece os critérios para regularizar as terras do Estado do Pará. PARÁ. Ordenamento territorial e regularização fundiária no Pará. Belém: Iterpa, 2008. www.iterpa.pa.gov.br Artigo recebido em: 26/04/2010 Artigo aprovado para publicação em junho /2010. 30 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 30 12/11/2010 10:33:41 TUTELA INIBITÓRIA COLETIVA E O MEIO AMBIENTE DO TRABALHO Priscila Campana* Sumário: 1. Segurança no trabalho e a necessidade de prevenção; 2. A incapacidade da técnica ressarcitória na defesa dos direitos coletivos; 3.O sentido preventivo da tutela inibitória; 4. Fundamento legal da tutela inibitória e a sua antecipação; 5. O meio ambiente do trabalho; 6. O papel do Ministério Público do Trabalho e sua legitimidade; 7. Cabimento da ação civil pública?; 8. A utilização da ação inibitória coletiva Considerações finais; Bibliografia Resumo: A pesquisa objetiva analisar o instituto da ação inibitória e sua possível aplicação na tutela coletiva do meio ambiente trabalhista. Entende-se tal instrumento processual como relevante porque sua finalidade não é a de reparar um direito já transgredido, mas sim a de impedir o prolongamento ou a reiteração do ilícito praticado. Assim, sustenta-se a distinção entre dano e ilícito para desmitificar o paradigma processual civil tradicional que se preocupa tão-somente com a lesão e sua conseqüente reparação. A lógica da proteção inibitória é preventiva, onde não se aguarda a ocorrência do dano para que seja providenciada tutela. Desta forma, por meio de inspiração no direito italiano, é possível assentar no direito pátrio a ação inibitória, considerando que a ação civil pública tornou-se insuficiente para garantir integralmente proteção ao meio ambiente laboral, e que o Ministério Público do Trabalho é agente legítimo na sua promoção. Abstract: The research aims to analyze the inhibitory institute and its possible collective protection application of the work environment. It is understood that such procedural tool as relevant because its target is not for repairing the rights already transgressed, but to prevent the prolongation or the illicit reiteration practiced. Thus, it is supported the distinction between damage and illicit for demystifying the traditional civil procedural paradigm that is worried only about the damage and its consequent reparation. The inhibitory protection logic is preventive, where it is not awaited the damage occurrence to prepare the protection. Therefore, through Italian law inspiration is possible to place on the paternal law the inhibitory protection, considering that the public civil action has become insufficient to assure integrally the laboring environment protection; and that the Public State Prosecutor is the legitimated agent in its promotion. Palavras-chave: meio ambiente do trab- Key-words: work environment; inhibitory alho; ação inibitória; direitos transindivid- protection; trans-individual rights. uais * Pós-doutora em Direito (UFSC); Doutora em Direito (UFPR); Professora na Sociesc/ SC e UnC/SC. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 31 31 12/11/2010 10:33:41 1. SEGURANÇA NO TRABALHO E A NECESSIDADE DE PREVENÇÃO Os comportamentos genéricos das empresas faltando às obrigações de cumprir e fazer cumprir normas de segurança dos empregados acaba por ser configurar fraude aos direitos sociais constitucionalmente garantidos. A Carta Magna de 1988 dignifica o trabalho, considerado como fundamento republicano, onde a ordem econômica deve estar insculpida na sua valorização. Dessa forma, sistematizando o princípio de que a saúde é direito de todos e dever do Estado, a Constituição Federal garante no artigo 7º, XXII “a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”. A falta de efetividade das normas protetivas laborais é um dos vários problemas da saúde do trabalhador brasileiro. O elevado número de acidentes trabalhistas, e de mortes, principalmente na área da construção civil, demonstram que o direito à saúde do trabalhador deve sair do plano abstrato normativo e adquirir ressonância prática. E, consequentemente, o melhor caminho não é a reparação da lesão mas sim a prevenção do ilícito, a obliteração da continuidade ou repetição da violação ao direito por parte, no caso, dos empregadores1. De acordo com dados oficiais da Previdência Social, os acidentes do trabalho causam em média cerca de três mil mortes por ano no país. Os indicadores apontam que no setor privado, 653.090 acidentes foram registrados no ano de 2007, número maior que o de 2006, de 512.232 casos, e óbito de 2.804 cidadãos2. A problemática insere-se no campo do menosprezo à saúde e vida do trabalhador quando o empregador, pela corrida ao lucro, não investe em maquinários seguros, em equipamentos modernos de trabalho e muito menos em Programas de Prevenção dentro de sua empresa. Conforme pesquisa a respeito, Sebastião Geraldo Oliveira3 pondera: 1 A prevenção de acidentes significa melhor qualidade, produtividade e competitividade do produto, o que não entenderam ainda os empregadores atrasados, comenta Raimundo Simão de Melo. Ainda pondera que as estatísticas oficiais mostram dados aterrorizantes em relação ao número de acidentes típicos e de doenças profissionais e do trabalho, destacando-se, entre estas, a surdez profissional, a lesão por esforços repetitivos (LER), doenças de coluna, silicose e intoxicação por chumbo. In Segurança e meio ambiente do trabalho: uma questão de ordem pública, p. 48. 2 Dados disponíveis em http://www.previdenciasocial.gov.br, acesso em 25.08.2009. 32 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 32 12/11/2010 10:33:41 O problema do acidente do trabalho e das doenças ocupacionais que lhes são equiparadas continua desafiando as inteligências do mundo inteiro, com estatísticas que abalam consciências. O local de trabalho é para o empregado ganhar a vida, não para encontrar a morte. (…) O combate às agressões à saúde do trabalhador pode ser travado em várias frentes. O êxito, entretanto, está condicionado à implementação de uma nova mentalidade, priorizando a luta pelo ambiente de trabalho saudável, porque até então os esforços estão sendo canalizados com muita ênfase para o socorro das vítimas, e com pouco empenho para a prevenção dos danos. Vê-se, com isto, que não é suficiente o controle judicial posterior às lesões, com cunho individualizado. Imprescindíveis, perante a comprovação da ilicitude dos atos fraudatórios e reiterados do empregador, medidas também genéricas, preventivas, que obliterem tais comportamentos violadores do direito, e que podem ser atingidas através de sua inibição4. Perante tal quadro, a instituição essencial na defesa da ordem jurídica e dos interesses da sociedade, que é o Ministério Público, atua na prevenção e reparação dos danos causados aos trabalhadores vítimas de acidente trabalhista em função da ausência, por parte das empresas negligentes, de regular aplicação das normas de segurança, fundamentais à salubridade do meio ambiente trabalhista e, consequentemente à incolumidade física e mental do trabalhador. O órgão ministerial atua obrigatoriamente nos processos relacionados a acidentes trabalhistas por causa da sua natureza, de ordem pública, e em razão 3 In Proteção jurídica à saúde do trabalhador, p. 290. Decisão da comarca de Cubatão, de 02.07.88, na Ap. cível 99.091-1, no episódio do incêndio da Vila Socó, confirmou a responsabilidade da Petrobrás, nos seguintes termos: “…é aquela estatal a proprietária do oleoduto e a única responsável pela sua conservação e manutenção. E um dos fatores determinantes do evento foi precisamente a corrosão dos tubos, fazendo com que ocorresse o seu rompimento quando aumentada a pressão do combustível em decorrência do fechamento das válvulas. Por outro lado, como bem assinalou a r. sentença, é também a Petrobrás a responsável pela existência de sistemas de segurança capazes de detectar a ocorrência de vazamentos, como aquele que se verificou. Finalmente, também é a estatal responsável pela precariedade dos sistemas de comunicação com a Codesp relativamente à operação de bombeamento e indicação precisa dos dutos utilizados, como anotado pela perícia”. In CAMPOS, José L. Dias. Responsabilidade civil e criminal decorrente de acidente do trabalho na Constituição de 1988, p. 122. 4 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 33 33 12/11/2010 10:33:41 da qualidade da parte, geralmente mais débil na relação jurídica levada a juízo. Deste modo, a tutela ao meio ambiente do trabalho sadio transcendeu o nível individual e tornou-se matéria de cunho público, já não mais somente interesse dos grupos sindicais em defesa de tais direitos, mas especialmente de toda a sociedade. 2. A INCAPACIDADE DA TÉCNICA RESSARCITÓRIA NA DEFESA DOS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS A doutrina tradicional do processo civil, num contexto individualista e patrimonialista, conformou seu sistema à supremacia da técnica ressarcitória como único remédio contra o ato ilícito, o ato violador ao direito. A importância da responsabilidade civil na atualidade é fundada na preocupação de restauração de equilíbrio patrimonial e moral desfeito pelo evento danoso, conforme vasta doutrina pátria explicada em Maria H. Diniz, Caio Mário da Silva Pereira, Sílvio Neves Baptista, entre outros5. Neste sentido o instituto é fonte de uma relação obrigacional que visa a prestação de ressarcimento, tão somente. Contudo, embora esta lógica sirva especialmente aos direitos patrimoniais tradicionais, passíveis de reposição da lesão com a conversão em pecúnia, é, ao mesmo tempo, insatisfatória quando pensada ao nível dos direitos não patrimoniais, pois preocupa-se somente com o ressarcimento dos danos, já ocorridos, e como ocorrerá a indenização. Ocorre que, num enfoque que afasta o sistema da responsabilidade civil, a tutela dos direitos transindividuais, coletivos e difusos, requer não a recomposição do statu quo ante (muitas vezes impossível de concretizar), ou sua in5 De acordo com Maria H. Diniz: “A responsabilidade civil constitui uma sanção civil, por decorrer de infração de norma de direito privado, cujo objetivo é o interesse particular, e, em sua natureza, é compensatória, por abranger indenização ou reparação de dano causado por ato ilícito (...)”. Desse modo, a responsabilidade civil orienta-se à reparação do dano causado a outrem, desfazendo tanto quanto possível seus efeitos, restituindo o prejudicado ao seu estado anterior. In DINIZ, M. H. Curso de direito civil, p. 07. Para Caio Mário da Silva Pereira, “a responsabilidade civil consiste na efetivação da reparabilidade abstrata do dano em relação a um sujeito passivo da relação jurídica a que se forma”. In PEREIRA,C. M. S. Responsabilidade civil, p. 11. No mesmo sentido Sílvio N. Baptista conceitua como “(...) a relação obrigacional decorrente do fato jurídico dano, na qual o sujeito do direito ao ressarcimento é o prejudicado, e o sujeito do dever o agente causador ou o terceiro a quem a norma imputa a obrigação”. BAPTISTA, S. N. Teoria geral do dano, p. 59. 34 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 34 12/11/2010 10:33:41 denização, mas sim, e sobretudo, a sua prevenção. Há casos em que, ocorrendo o dano, há irreversibilidade de recompor o bem lesado. E quando ilícito e dano se afirmam em momentos distintos, nada mais coerente do que evitar o dano atacando desde logo a prática do ilícito. Ou seja, o sistema de responsabilidade civil nas atuais sociedades de massa, que necessitam de tutela de seus bens coletiva e difusamente, é inoperante pois este visa somente restabelecer o equilíbrio violado pelo dano. Por outro lado, para que haja a tentativa de satisfazer a tutela dos novos direitos emergentes, existe a necessidade de repensar a técnica civilista, baseada na resolução de conflito tipo “Caio versus Tício”, e partir para a aceitação de tutelas coletivas. A preocupação passou a ser a ocorrência de eventos lesivos irreparáveis e que não são passíveis de monetarização, como os direitos não patrimoniais transindividuais. Ao invés da clássica sanção ressarcitória, incabível neste caso, recorre-se a outra forma de tutela, a inibitória, que servirá operante antes da violação e com efeitos diretamente reintegratórios dos direitos em hipótese ameaçados. Neste passo, o tema da tutela inibitória vem assumindo papel importante, já tendo despontado no Processo Civil italiano. Cristina Rapisarda6, referindo-se à incapacidade da tradicional tutela ressarcitória em garantir efetivamente a tutela dos novos direitos, pontua que la non patrimonialità pone in luce anche l’esigenza di forme di tutela ripristinatorie o, piú precisamente, reintegratorie, che mirino a garantire l’attuazione ‘dell’interesse specifico per cui si invoca la tutela’, anzichè del diverso interesse alla restaurazione patrimoniale del soggetto leso, secondo il principio dell’equivalente monetario. É preciso, antes de aprofundar a técnica reintegratória, distinguir os conceitos de dano e de ilícito civil. Ocorre unificação do instituto do ilícito civil com a da responsabilidade por dano devido à idéia, originada de um processo histórico, que relacionava automaticamente a tutela privada do bem com a recomposição do valor econômico deste no patrimônio do indivíduo lesado. O ressarcimento do dano era considerado o único modo de tutela contra o ilícito, que era confundido com a 6 RAPISARDA, Cristina. Profili della tutela civile inibitoria, p. 81. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 35 35 12/11/2010 10:33:41 lesão. Não se concebia o fato de que bens de grande importância, e direitos não patrimoniais, vitais para o desenvolvimento das pessoas, não são passíveis de ser valorados monetariamente de forma objetiva7. Entretanto, este princípio de raiz romana deve restar superado com a tutela inibitória, pois na proteção preventiva não é importante a análise da natureza do ilícito, a situação jurídica violada ou o dano ocorrido. Há necessidade, para tanto, de se perceber que os institutos do dano e do ilícito são distintos. A partir do ensaio de Renato Sconamiglio8 a doutrina italiana tem estabelecido a separação entre os conceitos de ilícito e de dano. O ilícito é o compreendido como a conduta, violadora, contrária ao direito, e o dano é o fato histórico e material que pode decorrer, eventualmente, do ilícito. Expõe o autor italiano sobre a diferença entre a lesão do direito e o dano: Qui è sufficiente osservare che nella prima ipotesi ricorre soltanto, ma in ogni caso, la trasgressione ad um comando giuridico: a cui l’ordinameto non può non reagire apprestando adeguati rimedi; e questo a prescindere dalla circostanza che l’interesse privato, dalla norma in astratto tutelato, sia stato in effetti colpito o si sia verificato un vero e proprio danno. Al contrario, nell’altra ipotesi, si verifica essenzialmente la lesione di um bene del soggetto, quale diviene possibile in concreto determinare com riferimento al soggetto medesimo o addirittura al suo patrimonio; e soltanto qualora tale bene sai giuridicamente protetto (danno ingiusto) si pone il problema del risarcimenti, la cui soluzione – da parte dello stesso legislatore – è ovviamente condizionata, peraltro, allésigenza di eliminare, per una via o per l’altra, il danno. Com esta distinção em mente, é possível entender o sistema de tutela inibitória. 7 MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela, p. 61. SCONAMIGLIO, Renato. Il risarcimento del danno in forma specifica. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, 1957, p. 206. 8 36 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 36 12/11/2010 10:33:41 3. O SENTIDO PREVENTIVO DA TUTELA INIBITÓRIA A ação inibitória é instrumento efetivo para o amparo dos direitos não patrimoniais, aí inseridos os denominados “novos direitos”, transindividuais de terceira geração, como o direito ao meio ambiente saudável. Não se pode pensar que tais direitos possam ser satisfeitos com um tipo de tutela, como a ressarcitória, que age somente depois de ocorrida a lesão. Isto significaria não somente a aceitação do “pratico o ilícito, causo dano, mas pago”, como também expropriaria os próprios direitos, transformando-os em direito à pecúnia. Explica Luiz Guilherme Marinoni, em obra orientadora sobre o assunto da técnica inibitória que O direito à saúde, o direito ao meio ambiente saudável, os direitos do consumidor, não podem ser efetivamente tutelados através da tutela ressarcitória. A natureza não patrimonial dos “novos direitos” é incompatível com o simples ressarcimento. A tutela ressarcitória diz respeito ao patrimônio; não ao direito ao bem. Assim, a tutela ressarcitória, mostrase incapaz de assegurar os “novos direitos”(grifo nosso).9 Conforme o mesmo autor10, o comportamento ilícito, referente aos “novos direitos”, se caracteriza geralmente como continuidade da ação ou como repetição. Exemplifica com os casos de poluição ambiental, de venda de produtos danosos à coletividade, e de difusão de notícias lesivas à personalidade, e ressalta que a proteção destes direitos certamente fica na dependência de um tipo de amparo legal que imponha meios coercitivos a fim de convencer o obrigado a não fazer ou a cumprir uma obrigação de fazer. Neste caso, a tutela inibitória garantiria a atuação deste interesse específico em lugar do ressarcimento do dano via indenização. Esta tutela de prevenção é chamada na Itália de tutela inibitória. E a melhor definição de tutela inibitória está na disposição do art. 156 da lei italiana nº 633/1941sobre o direito do autor: Chi ha ragione di temere la violazione di un diritto (…) oppure intende impedire la continuazione o la ripetizione di una violazione già avvenuta, può agire in giudizio per 9 10 MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela. P. 69. Idem, ibidem, p. 70. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 37 37 12/11/2010 10:33:41 ottere che il suo diritto sai accertato e sai interdetta la violazione. Portanto, o sentido preventivo da tutela inibitória serve para impossibilitar que o ilícito, que é ato violador ao direito, se repita, ou mesmo que venha a ser praticado, se ainda não se aconteceu.11 Com efeito, a tutela inibitória surge para amparar a necessidade de prevenção do ilícito enquanto que a tutela ressarcitória se dirige somente contra o dano ressarcível. Esta última é tutela de um direito pecuniário equivalente ao valor do dano sofrido e que, além de pressupor este dano, expressa a responsabilidade fundada na culpa ou no dolo. A inibitória representa tutela que não se associa aos efeitos, sejam ou não danosos, do ilícito. É proposto um conceito de ilícito que seja independente do de fato danoso. Para que o ilícito esteja configurado, não se discute a sua consequência, danosa ou não, pois basta o ato contrário, violador do direito. Há ilícito quando há atividade contrária ao direito. Assim, pode haver ilícito sem que tenha ocorrido dano. O objetivo da tutela inibitória não é o de reparar um direito já transgredido, como é o da tutela ressarcitória. Sua finalidade é a de impedir o prolongamento ou a reiteração do ilícito, supondo um ilícito já praticado, e portanto tendo incontestável caráter preventivo. A tutela inibitória possui natureza preventiva porque é orientada para o futuro, e específica porque destinada à efetividade do exercício integral do direito. Como a ação inibitória destina-se ao perigo da continuação ou repetição de ato contrário ao direito, atacando o ato ilícito, não pode ter o dano entre os seus pressupostos. Para a configuração do ilícito basta a prática de um ato 11 Segundo Cristina Rapisarda, “l’esperibilità della tutela inibitoria dipende, normalmente, dall’esistenza di um comportamento illecito che si concreti in una attività a carattere continuativo, ovvero in una pluralità di atti suscettibili di ripetizione. Il collegamento della tutela inibitori ad un illecito in parte già commesso non influisce in alcun modo sulla natura preventiva del rimedio, dato che la tutela esplica la sua efficacia soltanto nei confronti del possibile illecito futuro. La tutela stessa prescinde, infatti, dagli effetti dell’atto o dell’attività illecita, siano essi dannosi o meno poichè si dirige unicamente contro il pericolo di ripetizione o di continuazione dell’illecito”. Op. cit., p. 90. 38 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 38 12/11/2010 10:33:41 contrário ao direito, mesmo que não seguido de um evento danoso. É suficiente a transgressão a um comando jurídico, pouco importando se tal transgressão levará a um dano ou não. Portanto, o autor, requerendo a inibitória, deve provar o perigo da prática, da continuação ou da repetição do ilícito, e também que o ato será ilícito se praticado, ou que é ilícito, no caso de inibitória da continuação ou de repetição. O juiz, por sua vez, na ação inibitória, não deverá analisar a existência de dano ao bem jurídico protegido, e nem tampouco exigir elementos como culpa ou dolo na prática ilícita. Entretanto, se o ilícito ocorreu e não há mais possibilidade de que venha a ser novamente praticado, a única tutela viável é a reintegratória. Somente quando o ilícito ainda não foi praticado, ou pode prosseguir ou voltar a ocorrer, é que cabe a tutela inibitória Portanto, na tutela ressarcitória visa-se o dano, e na tutela inibitória a prevenção contra a violação do direito. Poderia ocorrer dúvida no caso em que a inibitória servisse para impedir a continuação do ilícito, parecendo ser na verdade tutela reintegratória12, na eliminação de situação ilícita anterior. Entretanto, a tutela inibitória não elimina o ilícito, mas atua sobre a vontade do réu para que o ilícito não continue. Ou seja, “a forma de atuação desta inibitória pressupõe que o ilícito somente será eliminado se ocorrer o adimplemento voluntário, o que significa que a tutela apenas força o réu a eliminar ou cessar o ilícito”.13 Em outras palavras, em princípio, tal tutela teria por objetivo se opor à continuação ou repetição de um ilícito. Mas alguns autores admitem a ação inibitória para prevenir o ilícito de forma pura, sem que tivesse ocorrido antes. A questão de prevenção do ilícito de forma pura é bem mais difícil de ser tratada, em função das provas. O problema está em provar que o ilícito provavelmente será praticado, matéria mais complexa do que nos casos em que o ilícito já foi praticado e se receia somente o seu prosseguimento ou reiteração. Neste estudo dirigido à tutela inibitória coletiva, se dará enfoque ao primeiro caso, em que a ação visa impedir a prática prolongada ou repetida do ilícito. 4. FUNDAMENTO LEGAL DA TUTELA INIBITÓRIA E A SUA ANTECIPAÇÃO A tutela de direitos em comento, não obstante expressa no ordenamento jurídico italiano, encontra respaldo nos diplomas legais brasileiros. Recorre-se ao princípio geral de prevenção, básico em qualquer ordenamento jurídico que Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 39 39 12/11/2010 10:33:41 se empenhe em garantir os direitos fundamentais. Do mesmo modo, esta garantia, contextualizada em um Estado social, onde a Constituição Federal de 1988 é marcada por direitos sociais que devem ser tutelados de modo difuso e coletivo, é possível a realização da tutela inibitória como instituto sócio-jurídico. A Constituição brasileira afirma, em seu art. 5º, XXXV, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. A expressão “ameaça a direito” é claramente preventiva e denota a intenção de se garantir a tutela inibitória. Isto acontece haja vista que o direito de acesso à justiça tem como pressuposto o direito à adequada tutela jurisdicional e este, a seu turno, o direito à proteção preventiva, inserido em um contexto valorativos do Estado social. O Código de Defesa do Consumidor reafirma o princípio constitucional do direito à adequada tutela jurisdicional por meio do artigo 83, que dispõe que para a tutela dos direitos difusos e coletivos são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela e, por meio do artigo 84, que garante o direito à tutela difusa ou coletiva, e dispõe que o juiz poderá impor multa diária, independente do pedido do autor, na sentença ou na tutela antecipatória. Quer dizer, há garantia legal do direito à tutela inibitória difusa ou coletiva e a possibilidade do juiz em impor multa na sentença inibitória ou na tutela inibitória antecipatória. Deste modo, o artigo 461 do Código de Processo Civil14 representa a fonte da tutela inibitória, justamente porque o juiz, de acordo com esta norma, pode, na tutela antecipatória ou na sentença, impor a multa para pressionar o obrigado ao cumprimento do dever e ainda se valer do amplo poder a ele conferido para efetivar a tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente. Este artigo do Código de Processo Civil abarca a prevenção de um ilícito originado da inobservância de um dever. Tal dispositivo constitui uma tutela específica dando ao juiz possibilidade, ao conceder a tutela inibitória (final ou antecipatória) de impor multa diária ao réu, sem que o autor tivesse pedido. Quanto à tutela antecipatória inibitória, o art. 461, em seu parágrafo terceiro, é claro ao permitir a antecipação da tutela das obrigações de fazer e não fazer, ao que, por decorrência, significa a possibilidade da antecipação da tutela inibitória. Quais os pressupostos para a concessão da tutela antecipatória inibitória? 12 13 Visa-se a necessidade de supressão do ilícito. MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória, nota no. 1081 da Tese 40 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 40 12/11/2010 10:33:41 Para a obtenção desta antecipatória, o demandante da inibitória deverá demonstrar, mesmo que de modo sumário, o perigo da prática, do prosseguimento ou da reiteração do ilícito. Deve ser explicitada a probabilidade do perigo do ilícito e que, se a tutela for concedida ao final, provavelmente ele já terá sido praticado. O justificado receio não é de dano, mas de ilícito. Ainda deve o demandante demonstrar, sumariamente, que o ato caso seja executado, ou que já foi executado no caso de prolongamento ou repetição, é dotado de ilicitude. Assim, o art. 461, fundamenta no diploma processual civil a tutela inibitória, porque além de permitir ao juiz dar ordens e conceder tutela antecipatória, autoriza que o juiz, de ofício, estabeleça multa diária objetivando o cumprimento da obrigação. Em uma de suas obras dirigidas à antecipação da tutela, Luiz Guilherme Marinoni15 explica que: Ninguém prefere o ilícito à prevenção; negar o direito à prevenção do ilícito é admitir que o cidadão é obrigado a suportar o ilícito, tendo apenas direito à indenização, ou, ainda, é dizer que todos têm direito a praticar um ilícito desde que se proponham a reparar o dano. Na verdade, não conferir à tutela inibitória expressão atípica é o mesmo que criar um sistema de tutelas em que impera a “monetização” 14 Dispõe o artigo que “Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. § 1º - a obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente. § 2º - a indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa (artigo 287). § 3º - sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada. § 4º - o juiz poder’, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente do pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito. § 5º - para a efetivação da tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial”. 15 MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela, p. 75. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 41 41 12/11/2010 10:33:41 dos direitos, o que é absolutamente incompatível com os direitos com conteúdo não patrimonial” (grifo nosso). Ou seja, negar a tutela inibitória para os direitos que não podem ser adequadamente tutelados através da técnica ressarcitória porque não são direitos patrimoniais, é negar atuação concreta ao contido na norma constitucional. Quanto ao artigo 287 do Código de Processo Civil, mostra-se insuficiente para propiciar efetiva tutela preventiva, pois reserva a incidência da multa “para o caso de descumprimento da sentença”, desconsiderando que o ilícito pode ser praticado antes de findado o processo de conhecimento. Acabaria sendo conferido ao réu lícito exercício do ilícito, nesta situação. Outras vantagens do artigo 461 do Código de Processo Civil sobre o art. 287 do CPC, é que possibilita a efetivação da tutela sem o processo de execução, e dá ao juiz os poderes necessários para que a tutela possa ser realmente prestada (com a obtenção do resultado prático equivalente ao do adimplemento). 5. O MEIO AMBIENTE DO TRABALHO Historicamente, as transformações na sociedade, decorrentes do desenvolvimento do sistema capitalista, significaram industrialização e urbanização, fazendo surgir massas operárias e reivindicações a direitos sociais. Além dos direitos civis e políticos, os indivíduos passaram a demandar outros interesses, como os relativos às condições de trabalho dignas. Na indústria moderna os perigos do trabalhador aumentaram a tal ponto que a tutela aos interesses sociais adquiriu plano de matéria pública. Assim, a Constituição da República, em seu artigo 7º, inciso XXII, já impõe a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”. No inciso XXVII, “proteção em face da automação, na forma da lei”, e no inciso XXVIII “seguro contra acidentes de trabalho, sem excluir a indenização a que está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa”. Ou seja, o trabalhador, ao colocar à disposição sua força de trabalho, tem direito não somente ao pagamento de salários mas também direito a um local salubre de labor, com adequadas condições ambientais, propícias ao desempenho de suas atividades e livre de riscos acidentários. Portanto, a qualidade do ambiente de trabalho fica na dependência da adoção e efetividade de regras garantidoras da segurança e da saúde do trabalhador, preservando sua disposição física e mental e evitando acidentes. 42 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 42 12/11/2010 10:33:41 Entretanto, o conceito de meio ambiente do trabalho não possui literalidade expressa na lei, sendo compreendido somente a partir da definição de “meio ambiente”, em termos gerais16. Assim, foi a lei federal nº 6938, de 31.08.1981, dispondo sobre a Política Nacional do Meio Ambiente e sobre o Sistema Nacional do Meio Ambiente, que definiu “meio ambiente”. Nestes termos, especificando tal conceito para a área ora abordada, a do direito trabalhista, pode-se dizer que é o “local em que se desenrola boa parte da vida do trabalhador, cuja qualidade de vida está, por isso, em íntima dependência da qualidade daquele ambiente”17. Quer dizer, embora seja “artificial”, é digno de tratamento especial, haja vista o artigo 200, VIII da Constituição Federal que estabelece que uma das atribuições do sistema único de saúde consiste em colaborar na proteção do ambiente, nele implícito o do trabalho. Diversas convenções internacionais trataram do tema, sendo destaque a de nº 155 de 1981, que dispõe sobre “o desenvolvimento pelos países de uma política nacional de saúde, segurança e meio ambiente do trabalho, incluindo local de trabalho, ferramentas, máquinas, agentes químicos, biológicos e físicos; operações e processos, as relações entre trabalhador e meio físico; ocupa-se da necessidade de fiscalização através de um sistema apropriado; trata da determinação dos graus de risco existente nas atividades e processos e operações proibidos, limitados ou sujeitos a controle, bem como realização de pesquisas de acidentes de trabalho e publicação de informações; dispõe sobre exigências às empresas voltadas para a adoção de técnicas de garantia de segurança nos locais de trabalho e controle dos agentes químicos”.18 Assim, o meio ambiente do trabalho é um complexo de proteção a direitos invioláveis da saúde e da integridade física dos trabalhadores que o frequentam. O meio ambiente do trabalho seguro representa direito social dos trabalhadores, direito não patrimonial garantido na Constituição Federal de 1988. 6. O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO E SUA LEGITIMIDADE PARA AGIR A Constituição Federal, incentivando a prevenção de acidentes, ampliou as atribuições do Ministério Público do Trabalho e “novas ações” passaram a ser ajuizadas, obrigando o empregador no cumprimento das normas de segurança e medicina do trabalho, assegurando um meio de trabalho sadio. Foi o texto constitucional de 1988 que, ao prever, em seu artigo 114, IX, a competência da Justiça do Trabalho para processamento e julgamento de Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 43 43 12/11/2010 10:33:41 “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei”, que possibilitou ações civis públicas e ações inibitórias trabalhistas. Na própria Constituição, em seu artigo 129, III, foi atribuído ao Ministério Público a legitimidade para o ajuizamento de ações coletivas, civis públicas, ensejando a possibilidade da utilização deste instrumento processual pelo Ministério Público do Trabalho, e, por via de consequência, a competência da Justiça Obreira para o seu julgamento, na medida em que a esfera de atuação do órgão ministerial circunscreve-se à jurisdição trabalhista, por força do disposto no caput do artigo 83 da Lei Complementar nº 75/93. É, aliás, expresso o inciso III do artigo 83 deste mesmo diploma legal quanto à competência da Justiça Laboral para o julgamento de ações coletivas propostas pelo órgão ministerial do trabalho. O artigo supracitado prevê que faz parte do conjunto das atribuições do Ministério Público do Trabalho “promover as ações que lhe sejam atribuídas pela Constituição Federal e pelas leis trabalhistas”. No exame do artigo 6º, XIV da Lei Complementar nº 75/93 chega-se à mesma conclusão, pois esta disciplina os instrumentos de atuação do Ministério Público da União, em todos os seus ramos, e aponta a possibilidade de promoção de outras ações necessárias ao exercício de suas funções institucionais, em defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, especialmente quanto ao meio ambiente (alínea “g”). Ocorrendo portanto, lesões a direitos e interesses coletivos dos empregados de empresa, e de trabalhadores que venham postular um emprego junto a mesma, por meio de ações ou omissões violadoras de normas jurídicas trabalhistas, exsurge, de forma clara, a legitimidade do Ministério Público do Trabalho para a providência de ações coletivas. E isso em função do enfoque de que o direito individual deve ser complementado ao direito social, esse entendido como àquele ligado a grupos e regulando interesses de coletividades. Ou seja, conceitos como “interesses coletivos” vêm à tona, tendo como fundamento a superação da idéia de lides travadas individualmente. 16 Otavio Brito Lopes, seguindo na esteira de Édis Milaré, entende que a disciplina jurídica do meio ambiente comporta aspecto natural, cultural e artificial e que “o meio ambiente do trabalho, que acolhe o indivíduo durante grande parte de sua vida, encontra-se inserido na espécie meio ambiente artificial, e suscita, como salientado, especiais cuidados”. In Segurança e saúde no trabalho: situação atual das negociações entre empregadores e trabalhadores e as perspectivas de mudanças nos sitemas de relações de trabalho, p. 150. 17 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional, p. 04. 44 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 44 12/11/2010 10:33:41 Assim, ao Ministério Público compete, perante à Justiça Laboral, o ajuizamento de ações para defesa de direitos coletivos desrespeitados, eis que condições salubres, seguras e higiênicas são interesses indisponíveis dos trabalhadores, individualmente e coletivamente, conforme artigo 83, III, da Lei Complementar nº 75/93. O fundamento legal também está de acordo com o artigo 1º, IV, da Lei 7347/85, que dispõe que a ação civil pública objetiva resguardar, entre outros, qualquer interesse difuso ou coletivo lesado. 7. CABIMENTO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA? O texto legal, pioneiro na expressão “ação civil pública”, foi o artigo 3º, III, da Lei Complementar federal 40/81. Contudo o instituto somente veio a ter sua utilização consagrada depois da Lei 7347/85, que tratou da defesa do meio ambiente, do consumidor e de valores culturais, diploma este que passou a ser conhecido como Lei da Ação Civil Pública. A importância de tal lei insere-se no reconhecimento pelo ordenamento jurídico da necessidade de tutelar interesses transindividuais, diante da complexidade social e do aumento das suas demandas no contexto das transformações históricas e políticas. Seria o reconhecimento da proteção aos direitos de terceira geração (BOBBIO, 1992; SARLET, 2003). Entretanto, na tutela dos direitos não patrimoniais, como visto anteriormente, é mais importante a prevenção do ilícito do que o ressarcimento do dano. E questiona-se o cabimento da ação civil pública quando, em situações de prevenção dos atos ilícitos, é mais apropriada a ação inibitória para proteção de tais direitos transindividuais e não passíveis de monetarização. Conforme o artigo 1º, IV da Lei 7347/85, a ação civil pública objetiva resguardar, entre outros, qualquer interesse difuso ou coletivo lesado. Ou seja, em essência, a ação civil pública é instrumento que visa, por meio da apuração de responsabilidade por danos causados a interesses diversos, à reparação dos bens lesados. Em assim sendo, via ação civil pública os interesses difusos ou coletivos são objetos de proteção somente quando houver “lesão” ao direito, confundindo-se o momento em que ocorre com o ilícito da prática. Sobressai-se deste modo, a discussão ocorrida anteriormente a respeito da diferença existente entre dano e ilícito e a importância do estudo da tutela 18 Idem, ibidem, p. 05. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 45 45 12/11/2010 10:33:42 inibitória como sistema preventivo do ilícito e não do dano. Assim, a necessidade de tutela preventiva, manifestada pelos novos direitos, requer, além de adequados instrumentos legais, também a revisão das técnicas de ressarcimento fundadas na confusão que ocorre entre ilícito civil e dano. A ação civil pública mostra-se, deste modo, insuficiente para a tutela integral dos direitos transindividuais, que necessitam de proteção especial, independentemente da ocorrência do dano. 8. A UTILIZAÇÃO DA AÇÃO INIBITÓRIA COLETIVA Já tendo sido criado o instituto do mandado de segurança preventivo contra atos de autoridade, seria necessário ser erigido um instrumento equivalente contra atos ou omissões de particulares.19 Na prática, ocorre a situação exposta a seguir. O Ministério Público do Trabalho, recebendo autos de investigação de acidente fatal de empregado de empresa, ocorrido por negligência na prevenção de risco de choque elétrico, tem como providência a instauração de “procedimento de apuração” a fim de verificar a ocorrência de prática generalizada da empresa no descumprimento da legislação trabalhista. A partir de então, passa a acompanhar a atuação da empresa, realizando audiência em fase de inquérito, e solicitando à Superintendência Regional do Trabalho fiscalizações específicas nos locais de trabalho, para conhecer de irregularidades quanto a este meio ambiente, protegido por normas de segurança próprias. Por meio desta conjuntura de informações, o Ministério Público é capaz de apreender se a empresa é contumaz no descumprimento da legislação sobre segurança e medicina do trabalho, deixando de garantir a seus empregados direitos sociais mínimos constitucionalmente assegurados e, ante a negligência desta, de propor a ação inibitória. Perante a falta de uma disciplina própria da tutela inibitória é que, com o nome de “ação civil pública com pedido de tutela antecipada”, fundada nos artigos 461 do Código de Processo Civil e artigo 83 do Código de Defesa do Consumidor, era intentada ação de, na verdade, inibição do ilícito, já que o dano ocorrera em um caso mas que, poderia vir a ocorrer outras vezes e havia neces- 19 José Carlos Barbosa Moreira, citado por Luiz Guilherme Marinoni, in Tutela inibitória. Tese apresentada ao Concurso de Professor Titular de Direito Processual Civil da Universidade Federal do Paraná, p. 72. 46 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 46 12/11/2010 10:33:42 sidade de refrear a continuação do ilícito praticado. A prova utilizada configura-se na existência de continuidade nas irregularidades, como uso incompleto de equipamentos de proteção individual pelos empregados, a falta de proteção de correiras dos guinchos, falta de cancelas no acesso ao elevador de materiais, etc. Neste caso, cabível é a tutela inibitória positiva, porque o ilícito praticado é a omissão. A obrigação é a da empresa em assegurar aos seus empregados as normas assecuratórias no meio ambiente de trabalho. Com isto, percebe-se que o ilícito e a possibilidade de lesão atingem interesses difusos e coletivos, inclusive de forma cumulativa. Um parâmetro, no âmbito trabalhista, que diferencie esses dois tipos de interesses está no fato dos integrantes do universo atingido pela lesão, ou sua possibilidade, terem, ou não, um vínculo de emprego. Na hipótese positiva, se estará frente a interesses coletivos; caso contrário, de interesses difusos de uma massa formada por pessoas que ligam-se, somente, por uma situação fática. Ou seja, quando a ilicitude atinge não só os atuais empregados da empresa mas também todos os trabalhadores que possam vir a postular um emprego junto a mesma, se estará perante a proteção de interesses difusos e coletivos, cumulados. E se antes a ação civil pública, fruto de novas concepções instrumentais do processo, era o mais eficiente meio na proteção coletiva do direito à saúde do trabalhador, solucionando globalmente o que cada reclamação trabalhista procura reparar individualmente, a ação inibitória coletiva está mais à frente, tutelando não o dano, mas o ilícito, sua repetição ou sua continuidade. Há casos porém, em que o ilícito e o dano ocorrem juntamente, e é mais difícil separar tais conceitos. Prevenir o ilícito significa, ao mesmo tempo, prevenção do dano. É o que ocorre quando, por exemplo, o empregador obriga o empregado 20 As normas jurídicas trabalhistas, protetivas do trabalhador são revestidas do princípio da indisponibilidade, pois pressupõe que o empregado não aceitaria livremente trabalhar em condições menos desfavoráveis do que as que a lei lhe garante. Por isso uma possível disposição de direito significaria a sombra de coação. Desta forma, pondera Ives Gandra M. Filho em seu artigo A defesa dos interesses coletivos pelo Ministério Público doTrabalho, que “a indisponibilidade dos direitos trabalhistas constitui a garantia de que o empregador não forçará o empregado a aceitar condições de trabalho prejudiciais, alegado concordância deste, na medida em que se considerem indisponíveis os direitos trabalhistas mínimos”., p. 1298. No caso, caberia ação inibitória para impedir a continuidade da prática ilícita do empregador em coagir os empregados a renunciarem a seus direitos. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 47 47 12/11/2010 10:33:42 a assinar em branco documentos trabalhistas20, como condição de permanência no emprego. Neste caso, a tutela inibitória agiria contra a prática violadora do direito, contra a sua continuidade e, concomitantemente contra o próprio dano. CONSIDERAÇÕES FINAIS Atualmente, o direito coletivo, transindividual como é considerado, adquiriu nova importância no contexto de tutelas. Para a proteção dos direitos caminha-se para a tendência de deixar para trás a resolução de conflitos tipo “Caio versus Tício”, dotados de individualismo, para se enfrentar questões que atrelam vários indivíduos por meio de elos fáticos, observando uma melhora na prestação jurisdicional e no acesso à justiça. O direito trabalhista, em sua gênese, é coletivista, tendo surgido como direito de segunda dimensão. Entretanto, historicamente, havendo resgate desta origem, hoje é visto num contexto mais amplo, inserido num meio cuja preocupação é com tutelas sob formas transindividuais. Tal disciplina legal adotou, sob certo sentido, cunho de ordem pública em muitas de suas questões. Deste modo, sendo dever do Ministério Público do Trabalho a proteção dos direitos coletivos e difusos no âmbito do ambiente laboral, observa-se que a ação civil pública, principal instrumento para este fim, já não atende a todas as necessidades para tutelar integralmente tais direitos. A tutela inibitória surge, portanto, aqui, como um avanço processual de proteção aos interesses difusos e coletivos que possuem os trabalhadores no meio ambiente laboral, que tem como uma de suas preocupações a questão da segurança e higiene. Neste contexto, a ação inibitória é um efetivo meio para amparar direitos não patrimoniais, como o direito a um ambiente sadio de trabalho, denominado “novo direito”, ou transindividual, porque sua finalidade não é o de reparar um direito já transgredido, mas sim a de impedir o prolongamento ou a reiteração do ilícito praticado. Tal tutela é preventiva porque dirige-se ao futuro e, específica porque destina-se à garantir o exercício integral do direito. Desta maneira, vislumbra-se a não necessidade de aguardar que ocorra dano, lesão ao direito, para que seja providenciada tutela devida de proteção. Não é preciso que se espere a ocorrência, por exemplo, de morte em acidente de trabalho, para que se ataque o ilícito da falta de segurança no trabalho, promovido pela empresa responsável. Por meio do artigo 461 do Código de Processo Civil, tutela-se perfeitamente este tipo de direito material, que é o de coletivamente, promover ao trabalhador um ambiente seguro e salubre de labuta. 48 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 48 12/11/2010 10:33:42 REFERÊNCIAS BAPTISTA, S. N. Teoria geral do dano: De acordo com o novo código civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2003. BENJAMIN, A. H.. A insurreição da aldeia global contra o processo civil clássico. Apontamentos sobre a opressão e a libertação judiciais do meio ambiente e do consumidor. Ação civil Pública. São Paulo: RT, 1995. BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. CAPPELLETTI, M. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. Revista de Processo nº 05, Ano 02, 1977. CAMPANA, P. Os efeitos da coisa julgada nas ações coletivas em defesa dos interesses individuais homogêneos. 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Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 49 49 12/11/2010 10:33:42 _________________________. Tutela inibitória: individual e coletiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. MARTINS Fº, I. G. S. A defesa dos interesses coletivos pelo Ministério Público do Trabalho. Revista LTR, vol. 57, nº 12, Dezembro, 1993. MAZZILLI, H. N.. A ação civil pública. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais. Ano 81, Vol. 682, Agosto, 1992. MELO, R. S. Segurança e meio ambiente do trabalho: uma questão de ordem pública. Revista Genesis, Curitiba, Janeiro, 1996. OLIVEIRA, S. G.. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. São Paulo: LTr, 1992. PEREIRA, C. M. S. Responsabilidade civil: de acordo com a Constituição de 1988.Rio de Janeiro: Forense, 1998. ORO, A. K. T. Tutela inibitória: aplicação do instituto no direito processual do trabalho. Justiça do Trabalho. Porto Alegre, a. 26, n. 305, maio de 2009. 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Os reconhecimentos jurídicos históricos, a partir da organização e da luta; 2. Aparatos normativos garantidores e a utilização do positivismo de combate; 2.1. Normas gerais utilizadas pelas comunidades tradicionais; 2.2. Normas específicas; 2.2.1. Quilombolas; 2.2.2. Faxinalenses; 2.2.3. Indígenas; 2.2.4. Pescadores Artesanais; 2.2.5. Cipozeiras; 2.2.6. Ilhéus; 3. O choque entre as concepções liberais do direito e os reconhecimento de direitos étnicos e coletivos; Conclusão; Referência Bibliográfica Resumo: Na região Sul, especialmente no Paraná e Santa Catarina, a invisibilidade social é algo histórico para os povos e comunidades tradicionais frente à sociedade. O reconhecimento de direitos por estes grupos decorrentes da articulação e organização dos mesmos, além de inédito, mediante realização de diversas ações coletivas, tem gerado novos paradigmas no campo jurídico. Tal “invisibilidade” dos povos e comunidades tradicionais, tem, historicamente, resultado na implementação de políticas públicas nas quais se encontram fundados os processos como o êxodo rural, a favelização nos centros urbanos, o aumento da pobreza e a degradação ambiental dos territórios tradicionais. Existem normas positivadas tanto no ordenamento jurídico nacional, quanto no internacional, as quais são utilizadas para Abstract: In the south region, especially in Paraná and Santa Catarina, the social invisibility is something historical to the people and traditional communities in front the society. The recognition of laws by these groups appear for an articulation and organization of the same, by means of realization of some collective actions, originating new paradigms in the juridical knowledge. This “invisibility” of people and traditional communities have, historically, produced the implementation of public politics like agrarian exodus, the poor neighbourhoods of urban center, the increase of poverty and the nature degradation of traditional territories. There are write laws in the national laws and international, that can be utilized to guarantee fundamental rights of people and traditional communities. One of the way to utilize these laws is called “positiv- * Advogado, Mestrando em Direito Agrário - UNESP. Endereço eletrônico: [email protected] ** Sociólogo, Doutorando em Sociologia UFPR, Asssessor da Rede Puxirão dos Povos e Comunidades Tradicionais. Endereço eletrônico: [email protected] Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 51 51 12/11/2010 10:33:42 garantir direitos fundamentais dos povos e comunidades tradicionais. Uma das formas de utilização destas normas é conhecida como positivismo de combate, sendo travada uma luta para prevalência de direitos dos grupos subalternos. Questiona-se ainda a construção do Direito sob uma ótica individual e formalista, a qual dificulta o reconhecimento de direitos coletivos e plurais. Hoje, apesar do liberalismo ser o paradigma da ciência jurídica, o Direito está se inserido nas práticas sociais, produto proveniente da dialética de uma práxis cotidiana, conforme estimulado pelas comunidades tradicionais. ism of battle”, when is engaged a fight to prevail the rights of subaltern groups. It is wrangled the development of right with an individual and formalist optical, that difficult the recognize of collective and plural rights. Today, in spite of liberalism be the paradigm of juridical science, the right is insert in the social practice, product coming from dialectical of a praxis produced day by day, alike stimulated by the traditional communities. Palavras-chave: comunidades tradiciona- Key words: traditional communities, ethnic is, direitos étnicos, direitos coletivos, posi- laws, collectives laws, positivism of battle, tivismo de combate e pluralismo jurídico. juridical pluralism. INTRODUÇÃO Identidades coletivas diferenciadas emergem no Brasil, revelando nas últimas décadas a existência de diversos grupos étnicos, organizados em movimentos sociais, que buscam garantir e reivindicar direitos, que sempre lhes foram negados pelo Estado. Desta forma, compreendem-se sem exaustão os motivos para o qual um país tão diverso em sua composição étnica, racial e cultural, a persistência de conflitos oriundos de distintas visões de mundo e modos de vida, que desencadeiam desde o período colonial, lutas pela afirmação das identidades coletivas, territorialidades especificas e reconhecimento dos direitos étnicos. O processo de reconhecimento dessa imensa diversidade sociocultural do Brasil é acompanhado de uma extraordinária diversidade fundiária e ambiental ainda que pouco conhecida no país e, mais ainda, pouco reconhecida oficialmente pelo Estado brasileiro. As denominadas comunidades ou povos tradicionais encontram-se ainda, em sua grande maioria, na invisibilidade, silenciadas por pressões econômicas, fundiárias, processos discriminatórios e excluídas da formulação e proposição das políticas públicas. Todavia, buscam compor, cada um deles, com suas formas próprias de inter-relacionamento, grupos e comuni52 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 52 12/11/2010 10:33:42 dades tradicionais autodefinidas coletivamente, juridicamente reconhecidas e auto-reguladas internamente pela gestão tradicional dos recursos naturais. Destarte atualmente serem estimadas em cerca de 4,5 milhões de pessoas pertencentes a distintos povos e comunidades tradicionais no Brasil, ocupando uma área equivalente a 25% do território nacional, tais grupos na condição de estigmatizados socialmente, são sistematicamente vítimas de diversas formas de violência oriundas face conflitos contra seus antagonistas, bem como das ações universalistas inscritas nas políticas de governo que diluem o fator étnico nas diferenças econômicas, tratando tais grupos como segmentos populacionais “carentes”, sujeitos à atenção das políticas assistenciais, desfocando das demandas prementes relacionadas ao reconhecimento jurídico-formal, o acesso ao território e aos recursos naturais essenciais à sua existência. A mobilização social em torno dos direitos coletivos é observada, especialmente a partir de 1988, quando do início do processo de emergência e visibilidade na sociedade brasileira, de grupos até então ocultados social e juridicamente, os quais passam a se organizar mediante realização diversas ações coletivas visando seu reconhecimento. Grupos estes, que se desenvolvem sem a necessidade de reproduzirem a lógica de uma sociedade eminentemente consumista, mas, prezando, de fato, pela sustentabilidade em seus diferentes aspectos atrelada, principalmente ao fator étnico. A visibilidade social e reconhecimento de direitos destes grupos decorrentes da articulação dos mesmos, além de inédito, têm gerado novos paradigmas no campo jurídico. Paradigmas, até então, desconhecidos, normas pouco reconhecidas ou ignoradas por tratarem de “povos originários”. Na região Sul, especialmente no Paraná e Santa Catarina, a invisibilidade social é uma das principais características dos povos e comunidades tradicionais. Até pouco tempo atrás, a inexistência de estatísticas e censos oficiais fez com que estes grupos elaborassem seus levantamentos preliminares numa tentativa de afirmarem sua existência coletiva em meio a tensões, disputas e pressões que ameaçam seus diretos étnicos e coletivos garantidos pela Constituição Federal de 1988 e, diversos outros dispositivos jurídicos infraconstitucionais1. Destas demandas surge, na região Sul, a Rede Puxirão dos Povos e Comunidades Tradicionais, fruto do 1º Encontro Regional dos Povos e Comunidades Tradicionais, ocorrido no final do mês de Maio de 2008, em Guarapuava, interior do Paraná. Neste espaço de articulação, distintos grupos étnicos, a saber: xetá, guaranis, kaingangs, faxinalenses, quilombolas, pescadores artesanais, caiçaras, 1 Trecho do Relatório do 1º Encontro Regional dos Povos e Comunidades Tradicionais realizado em Guarapuava, nos dias 27 e 28 de Maio de 2008. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 53 53 12/11/2010 10:33:42 cipozeiras e ilhéus; tais segmentos se articulam na esfera regional fornecendo condições políticas capazes de mudar as posições socialmente construídas neste campo de poder. Ademais, a conjuntura política nacional corrobora com essas mobilizações étnicas, abrindo possibilidades de vazão para as lutas sociais contingenciadas há pelo menos 3 séculos, somente no Sul do País. 1. OS RECONHECIMENTOS JURÍDICOS HISTÓRICOS, A PARTIR DA ORGANIZAÇÃO E DA LUTA Na análise da formação e da luta destas comunidades tradicionais do Sul do Brasil, cabe compreender exemplos de julgados nacionais que repercutirão em todos estes grupos sociais espalhados pelo país. O julgamento do caso da reserva indígena Raposa Serra do Sol é um dos marcos de efervescência e luta por direitos das diversas comunidades tradicionais espalhadas Brasil a fora. Embora, os índios sejam os povos que possuem o maior amparo jurídico no tocante a diversidade normativa, não tem seus direitos, inúmeras vezes, efetivados. Este julgado, além de chamar a atenção das violações históricas praticadas contra os índios por pessoas que utilizavam daquelas terras como mero instrumento mercadológico, mobilizou a Suprema Corte do país a encontrar respostas jurídicas que tem a possibilidade de garantir a permanência e sobrevivência destes povos de maneira digna nas terras que habitam originalmente. Cabe citar alguns trechos do Voto do Ministro Relator deste caso, Dr. Carlos Ayres Britto, apresentando um posicionamento paradigmático do STF (Supremo Tribunal Federal) quanto à relevância de direito dos índios e consequentemente de comunidades, que lutam pelo reconhecimento de seus espaços tradicionalmente ocupados. Em determinada parte do voto, o eminente Ministro trata do histórico de discriminação sofrida, omissão do Estado Brasileiro e deturpação de visão da sociedade que analisa esta situação, de acordo com o apresentado superficialmente pelo senso comum. Vejamos. Pelo que, entregues a si mesmo, Estados e Municípios, tanto pela sua classe dirigente quanto pelos seus extratos econômicos, tendem a discriminar bem mais do que proteger as populações indígenas. Populações cada vez mais empurradas para zonas ermas ou regiões inóspitas do país, 54 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 54 12/11/2010 10:33:42 num processo de espremedura topográfica somente rediscutido com a devida seriedade jurídica, a partir, justamente da Assembléia Constituinte de 1987/1988.2 Quanto à forma de atuação do Estado, o voto possui algo primoroso na análise e papel devido quanto ao relacionamento com as comunidades tradicionais, expondo o seguinte; Seja como for, é do meu pensar que a vontade objetiva da Constituição obriga a efetiva presença de todas as entidades federadas em terras indígenas desde que em sintonia com o modelo de ocupação por ela concebido3. Aqui, observa-se o lastro de autonomia e respeito garantido as comunidades tradicionais, que historicamente optaram por desenvolverem peculiar meio de vida que deve ser, sobretudo, assegurado pelas entidades que compõe o Estado. Por mais que, ao fim do julgamento, o Estado tenha garantido o acesso a estas áreas. Tanto os indígenas, exemplificadas pelo julgamento do caso Raposa Serra do Sol, quanto às outras comunidades tradicionais existentes em nosso país buscam, cada vez mais, garantirem seus direitos, visto que as ameaças aos seus espaços ocupados estão sendo concretizadas pelo avanço do modelo econômico de concentração fundiária aliado ao desrespeito ambiental em conflito e oposição às modalidades de uso comum dos recursos naturais desenvolvidas secularmente pelas comunidades tradicionais como praticas inerentes à sua cultura. À semelhança dos povos indígenas na Amazônia, os conflitos sociais em voga no Sul do Brasil pouco se diferenciam, a não ser pela sua ocultação das violentas formas de repressão aos movimentos sociais empreendidas por seus antagonistas em regiões de ocupação agrária antiga, como no caso da Guerra do Contestado. De outra maneira, o processo de produção da “invisibilidade social” dos povos e comunidades tradicionais no Sul, não teve um percurso muito distinto do restante do País. 2 Numeração referente às folhas do relatório e do voto do Ministro Carlos Ayres Britto no caso emblemático do julgamento da ação que envolve a demarcação indígena de Raposa Serra do Sol. Relatório publicado em Brasília, dia 27 de Agosto de 2008. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Popular nº 3388, Brasília, DF, 27 de agosto de 2008, p. 32. 3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Popular nº 3388, Brasília, DF, 27 de agosto de 2008, p. 33. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 55 55 12/11/2010 10:33:42 A ocupação territorial ancorada nas atividades econômicas e centradas sequencialmente nos ciclos da mineração, do gado, erva-mate, madeira, iniciadas ainda no século XVII, conduziram ao domínio das terras, quem dispusesse de capital econômico e social, capaz de inclusão no circuito mercadológico vigente. Sistematicamente, os povos e comunidades tradicionais, foram expulsos, eliminados ou imobilizados em sua força de trabalho como componentes fundamentais do processo de expropriação e exploração econômica, sem a qual não haveria extração produtiva e geração de riqueza. Atualmente, o “silenciamento” destes grupos tem sido provocado por empreendimentos econômicos de grande impacto socioambiental gerando a expropriação ou usurpação de seus territórios, como os impactos causados por usinas hidrelétricas e mineradoras; grilagens de terras em áreas de apossamento; aquecimento do mercado de terras motivado pelo agronegócio ou mesmo pela invasão de empreendimentos de lazer (chácaras), assim como pela implantação de Unidades de Conservação de uso integral, provocando gradualmente a dispersão e esvaziamento desses grupos sociais a partir obstrução de suas condições de reprodução física e social. Afinal, um breve cenário possibilita antever que as pressões sobre os povos e comunidades tradicionais ainda são intensas, sobretudo, desde a década de 1960, a partir de 3 origens. A primeira é o avanço da “agricultura moderna”. Notadamente reconhecido como “Celeiro agrícola do País”, o Paraná, desde a década de 1970, sustenta sucessivamente a evolução nos recordes de produção e exportação de commodities agrícolas e florestais, tais como, soja, gado, pinus, eucaliptos e recentemente, cana-de-açúcar. Somente a soja em 15 anos (1990 a 2005) teve ampliada sua área plantada em 70,8%. Já o complexo madeira, perde neste período apenas para o complexo soja. Sendo considerado o maior produtor nacional de papel fibra longa, o Paraná ocupa 2,8% do seu território ou 560 mil hectares, com a meta de ocupar até 5% da área do Estado até 2010. A farta presença de recursos hídricos observadas na geografia do Estado do Paraná, implicaram numa segunda tensão direta contra as comunidades tradicionais, qual seja, a implantação de projetos de usinas geradoras de energia, produzida por meio de hidrelétricas, sobretudo, a partir da construção de Itaipu, na década de 1980. Nos anos seqüentes, o Paraná ampliou sua produção energética, impulsionado pela construção de diversas barragens no Rio Iguaçu e, mais recentemente, com os investimentos da COPEL – Companhia Paranaense de Energia, dirigidos à construção de PCHs nos rios Piquiri e Ivaí, além do já avançado processo de pré-implantação (vencidas as barreiras jurídicas e ambientais) da Usina Hidrelétrica de Jataizinho no baixo rio Tibagi. Soma-se a esses empreendimentos impulsionados pelas políticas publi56 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 56 12/11/2010 10:33:42 cas desenvolvimentistas, as políticas conservacionistas, de cunho ambientalista, referidas a implantação de unidades de conservação de uso integral, a partir de 1980, tal como o Parque Nacional de Superagui, criado em 1989, com 21.000 ha, e o Parque Nacional de Ilha Grande criado em 1997, com 78.875 ha, entre outros. Este período, marcado por grandes investimentos do Estado, associado à capitais privados, produziu mais que o aclamado progresso econômico propalado pelas agências públicas. De um modo violento, gerou um desastre social e ambiental sem precedentes na história da região. Demarcando a instalação de um modelo de desenvolvimento extremamente impactante aos recursos naturais, e violador dos direitos humanos, resultando na expropriação de bens, terras e direitos de grupos sociais culturalmente diferenciados. Tal “invisibilidade” dos povos e comunidades tradicionais, reiteradas pela ideologia dos “vazios demográficos” e associada ao desenvolvimento baseado nas premissas do universalismo, tem, historicamente, resultado na implementação de políticas públicas nas quais encontram-se fundados os processos como o êxodo rural, a favelização nos centros urbanos, o aumento da pobreza e a degradação ambiental dos territórios tradicionais. Isto também se traduz no atual baixo investimento de esforços na promoção do desenvolvimento sustentável dessas comunidades. Tal afirmação faz consonância com a tônica dos relatos e manifestações de mais de 120 representantes desses grupos étnicos participantes no 1º Encontro Regional de Povos e Comunidades Tradicionais. Invariavelmente, as exposições relatam conflitos relativos ao acesso à terra, ou, no caso, ao território. Visto que estas comunidades sabem que assegurar o acesso ao território significa manter vivos na memória e nas práticas sociais os sistemas de classificação e de manejo dos recursos, os sistemas produtivos, os modos tradicionais de distribuição e consumo da produção. Isso além de sua dimensão simbólica: no território estão impressos os acontecimentos ou fatos históricos que mantêm viva a memória do grupo; nele também estão enterrados os ancestrais e encontram-se os sítios sagrados. Em que pese favorável que Xetás, Guaranis, kaingangs, Quilombolas, Faxinalenses, Caiçaras, Pescadores Artesanais, Cipozeiros e Ilhéus, tenham conquistado de forma gradual reconhecimento jurídico-formal, por meio de suas mobilizações, ainda impõe-se na esfera do Estado, limites burocráticos, jurídicos e políticos para sua efetivação, além do que é notório que suas principais demandas – especialmente a territorial – encontra-se “engessada”. Em outros casos, nos deparamos com grupos sociais que ainda nem sequer possuem instrumenHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 57 57 12/11/2010 10:33:43 tos disponíveis para o reconhecimento jurídico-formal pelo Estado, como é o caso dos ilhéus, cipozeiros, caiçaras, pescadores artesanais, portanto não dispõe de programas governamentais específicos dirigidos a garantia de seus direitos diferenciados e fundamentais, registrando-se inúmeros conflitos territoriais com empreendimentos governamentais, sejam parques de conservação ambiental ou obras públicas. O que significa dizer, que no âmbito da região Sul, especialmente no Paraná e Santa Catarina, a Constituição Federal de 1988, marco histórico do processo de redemocratização política do Brasil, sendo entendida como elemento primordial na solidificação dos direitos individuais e coletivos, ainda não opera abertamente com o reconhecimento de formas diferenciadas de organização social e cultural de distintos segmentos da sociedade brasileira. Esse é o caso, por exemplo, dos direitos diferenciados reconhecidos aos povos indígenas e comunidades quilombolas, mas não assimilados pela burocracia do Estado (Governos estaduais e municipais, em especial) ao permanecer operando com adaptações às políticas universalistas, evitando instituir uma “política de identidades”, assentada em novas instituições. No caso de identidades étnicas e coletivas emergentes, como dos caiçaras, pescadores artesanais, cipozeiros e ilheiros, se quer há menção da existência desses grupos, sua localização, situações de conflito e demandas. O que denota desconhecimento público e uso de pré-noções classificatórias que impelem estes grupos a categorias econômicas e situações sociais, tal como “pobres”, “assalariados temporários”, “bóias-frias”, “pequenos agricultores”, “agregados”, “pescadores” ou “agricultores familiares”. Ao estabelecer prerrogativas diferenciadas para esses povos e comunidades, a Carta Magna opera de forma direta nos princípios fundamentais da constituição do próprio Estado Brasileiro, uma vez que se flexibilizam os conceitos vigentes sobre o que é a sociedade brasileira, a forma como ela é composta e como ocorreu a sua formação. Em última instância, a consolidação de tais direitos revela não só o reconhecimento por parte do Estado da diversidade sociocultural existente no Brasil, mas também a necessidade de se repensar conceitos atinentes às noções de desenvolvimento, propriedade e uso dos recursos naturais, de forma que os mesmos passem a incluir princípios mais adequados às realidades diferenciadas desses povos e comunidades. Buscando fomentar a produção da visibilidade social desses grupos, desde 2003, tem sido estimulada no Paraná iniciativas que visam a identificação desses grupos, tal como o Mapa da presença Indígena e o Mapeamento dos Quilombolas no Paraná. Em 2005, inicia-se, em articulação com os movimentos sociais, o Projeto Nova Cartografia Social, vinculado ao PPGSCA da Universidade Federal do Amazonas – UFAM com apoio do Centro Missionário de Apoio 58 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 58 12/11/2010 10:33:43 ao Campesinato - CEMPO e Instituto Equipe de Educadores Populares - IEEP, na produção da Auto cartografia Social desses povos e comunidades tradicionais. Mais do que exercitar uma nova cartografia, tal pesquisa tem estimulado processos organizativos associados ao auto-reconhecimento e reconhecimento publico da existência coletiva desses grupos sociais. Neste percurso de quase 3 anos, contabilizamos a identificação de diversos povos e comunidades tradicionais interessados em constituir formas organizativas capazes de reivindicar seu reconhecimento face ao Estado, bem como encaminhar suas demandas aos órgãos competentes, numa explicita tentativa de que cessem violações e ameaças contra seus direitos. Todavia, ainda são muitos os obstáculos burocráticos, políticos, jurídicos e econômicos para que os mesmos se realizem. A formação da Rede Puxirão dos Povos e Comunidades Tradicionais no Paraná, exemplifica bem toda esta movimentação, possibilitado entre outras ações a identificação de demandas comuns à estes grupos, como as descritas no direito aos territórios tradicionais. A despeito serem constatadas variadas formas de violações de direitos étnicos e coletivos, os referidos grupos apreendem a necessidade de ocuparem seu lugar de direito assegurado pela Constituição Federal, especialmente na percepção de que constituem identidade coletivas motivadas por expressões culturalmente diferenciadas. Visando operacionalizar tais demandas, sobressaem apoiadas por assessorias especificas inúmeros cursos e oficinas intituladas de Formação de Operadores de Direito, organizadas e realizadas nas comunidades e tem a função de promover a apropriação e domínio destes conhecimentos e instrumentos específicos qualificando a ação dos sujeitos. Esta estratégia resulta em pressão perante os poderes públicos por parte destes grupos, além da consolidação de um ordenamento jurídico desconhecido e pouco estimulado pelo Estado. Essa ação fica nítida no estabelecimento de uma nova relação com o Ministério Publico Estadual e Federal, que gradualmente também se apropriam desses conhecimentos normativos posicionando-se na defesa dos grupos citados. Cabe então, apresentar algumas iniciativas e instrumentos normativos utilizados frequentemente pelos povos e comunidades tradicionais no âmbito da Rede Puxirão e, que tem dado um suporte mínimo, tanto de forma genérica, como normas específicas, as quais relacionamos num segundo momento por grupos específicos. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 59 59 12/11/2010 10:33:43 2. APARATOS NORMATIVOS GARANTIDORES E A UTILIZAÇÃO DO POSITIVISMO DE COMBATE Existem normas positivadas tanto no ordenamento jurídico nacional, quanto no internacional, as quais são utilizadas para garantir direitos fundamentais dos povos e comunidades tradicionais. Estas normas, também, são fruto de lutas históricas travadas em vários cenários e épocas, as quais hoje representam um instrumento dentro do campo jurídico para a efetivação destes direitos que chamamos de étnicos e coletivos. Uma das formas de utilização destas normas é conhecida como positivismo de combate. Isto significa que, estas normas postas são utilizadas pelos grupos sociais de uma forma contra-hegemônica, combatendo as injustiças e desigualdades através da própria regra positivada, ou seja, gerando um conflito legal com o propósito de derrubar o status quo. É exatamente a luta, dentro do aparato oficial do Estado (juízos, tribunais, repartições administrativas etc.), pela efetivação das normas que expressam de modo autêntico os interesses populares. Ou seja, por meio do “positivismo de combate” trava-se uma luta pelo cumprimento das leis de interesse das classes subalternizadas, as quais, na maioria das vezes, permanecem apenas no plano retórico do ordenamento jurídico – são as chamadas leis que “não pegam”. Essas leis e normas, em boa medida, integram a estrutura jurídico-positiva do Estado tão somente com o objetivo de atingir um efeito “encantatório”, proporcionando a sensação, desmentida pela realidade, de que os interesses da maioria estão efetivamente assegurados pelo direito4. O professor Antônio Alberto Machado chega a sugerir a troca do termo “positivismo de combate”, para evitar que o termo se confunda com a ideologia positivista, para o de “positividade de combate”. Certo é que, as normas a serem analisadas servem para alimentar esta luta incessante por efetivação de direitos. 4 MACHADO, A. A. O Direito Alternativo. Franca, 1997. Disponível em: <http://neda. ubbihp.com.br/direitoalternativo.pdf.>. Acesso em: 04 de Março de 2006. p.3-4. 60 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 60 12/11/2010 10:33:43 2.1. NORMAS GERAIS UTILIZADAS PELAS COMUNIDADES TRADICIONAIS Começamos com a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Esta estabelece algumas normas internacionais que devem ser obedecidas em todos os países que assinaram a Convenção, inclusive o Brasil. O conteúdo da Convenção trata das comunidades que estão estabelecidas historicamente no território, desenvolvendo suas culturas próprias, costumes e formas de vida. Reconhecendo então, as aspirações desses povos a assumir o controle de suas próprias instituições, formas de existência e seu desenvolvimento econômico, mantendo e fortalecendo suas identidades, culturas e religiões, dentro do âmbito dos Estados onde estão situadas. Esta Convenção por ser reconhecida internacionalmente, através do acordo estabelecido entre os países, possui uma força e importância na defesa dos direitos humanos em todo o planeta. Isto porque, a Organização Internacional do Trabalho é uma agência ligada as Nações Unidas (ONU). Desta forma, podemos afirmar que a luta e o direito das comunidades tradicionais tem reconhecimento internacional. Outro instrumento normativo necessário de explicitar-se é nossa Carta Maior. A Constituição Federal é o conjunto de normas mais importantes de um país. Ali, estão contidos os pontos principais e mais importantes para o desenvolvimento e organização do Brasil. A partir do momento que uma destas normas preveja o direito dos diversos grupos formadores da nossa sociedade, fica demonstrada uma importância maior para este assunto. A partir desta lei maior, outras poderão continuar surgindo, como ocorre nos dias de hoje. Vejamos o que dispõe o artigo 216 da Constituição Federal; Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 61 61 12/11/2010 10:33:43 Este artigo expõe que, os diferentes grupos e comunidades organizadas em nosso país possuem um direito legítimo de terem sua identidade e modo de vida preservado. Está claro, o objetivo de preservar o patrimônio cultural brasileiro, que é formado por diversas comunidades espalhadas pelo país. Além do mais, o artigo 215, § 1º da Constituição Federal dispõe sobre a importância da manifestação cultural e, consequentemente dos hábitos e formas de vida das diversas comunidades formadoras do nosso país. Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. (grifo nosso) Outro instrumento que deve ser levado em consideração na garantia de direitos das comunidades tradicionais de forma geral se trata do Decreto nº 6040/2007 e o Decreto nº 10884/2006. O Decreto nº 6040/2007 reconhece a Comissão Nacional de Comunidades Tradicionais, como entidade representativa dos Povos Tradicionais Brasileiros. Contendo no Decreto, também, a importância dos Territórios Tradicionais e do Desenvolvimento Sustentável das Comunidades como elementos necessários para a ampliação de direitos. Nele está instituído a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Hoje, finalmente existe uma norma que reconhece a organização e os direitos dos diversos povos formadores do nosso país, especificando o direito já concedido no artigo 216 da Constituição Federal. Já o Decreto nº 10884/2006, trata de tema bem parecido com o decreto anterior. Ele altera alguns pontos da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais. Esta Comissão poderá coordenar a elaboração e implementação de Políticas de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais. Este Decreto apresenta ações que esta Comissão Nacional das Comunidades Tradicionais poderá tomar. Assim poderá ser fortalecido e garantido os direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, com respeito e valorização à identidade dos diferentes povos, suas formas de organização e instituições. 62 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 62 12/11/2010 10:33:43 2.2. NORMAS ESPECÍFICAS 2.2.1. QUILOMBOLAS As comunidades quilombolas, sinônimo histórico de resistência, estão reconhecidas, não só pelas legislações já apresentadas, como também em aspectos específicos e normas pontuais que asseguram alguns direitos. Tal caso está exemplificado no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o qual garante as terras tradicionalmente ocupadas por estes povos. Art. 68. Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. Observa-se que a Constituição Federal de 1998 explicitou bem o direito das comunidades às suas terras, cabendo ao governo tomar as medidas necessárias para emitir os títulos de propriedade. Apesar do aparato normativo, pouco foi feito para efetivação do ato. O governo reconhecia a propriedade, mas nada fazia para que a comunidade pudesse permanecer, retomar ou seguir vivendo em suas terras. No início do governo Lula, um grupo de trabalho foi formado com a missão de elaborar um plano para que o governo pudesse titular definitivamente as comunidades quilombolas. Isto resultou na promulgação e entrada em vigor do Decreto 4.887/2003, que passou a valer em setembro de 2005. Este decreto criou um mecanismo para o reconhecimento e titulação das terras e os instrumentos jurídicos para a garantia do direito à terra das comunidades quilombolas. Hoje, quem determina quem é quilombola, é a própria comunidade, através da “auto-atribuição”. Após a auto–atribuição, a Fundação Palmares deverá expedir uma certidão, que é o documento oficial sobre o auto-reconhecimento da comunidade. Atualmente, os direitos territoriais quilombolas vêm sendo questionados e ameaçados com a edição de nova instrução normativa, em substituição a IN 20/2005 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). A mudança afeta os procedimentos de identificação e titulação de tais territórios. A justificativa do governo federal para a alteração é evitar que iniciativas em curso, no Judiciário e no Congresso Nacional, suspendam ou anulem o Decreto Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 63 63 12/11/2010 10:33:43 nº4.887/2003 que regulamentou o processo administrativo de reconhecimento dos direitos territoriais previstos no Art. 68 do ADCT da Constituição Federal5. Apesar dos avanços conquistados, os resultados foram pequenos. Das 2.228 comunidades quilombolas conhecidas no Brasil, apenas em 27 o governo conseguiu finalizar os procedimentos de titulação. Há 278 procedimentos iniciados pelo Incra, em todo o país. 2.2.2. FAXINALENSES Quanto aos Povos Faxinalenses existem algumas normas que abarcam e garantem na integralidade o direito destes povos. A lei 15.673/2007 é o exemplo vigente disto, confirmando num patamar estadual (no Paraná) algo já colocado em normas internacionais, nacionais e também estaduais, reconhecendo plenamente os povos faxinalenses como comunidades tradicionais, inclusive seus acordos comunitários. Este tipo de positivação dialética, decorrente da luta dos Povos Faxinalenses e seu Movimento Social, Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses, dá ensejo a um processo transformativo que pode acontecer mesmo dentro das esferas institucionais. Várias questões devem ser ressaltadas para o entendimento das peculiaridades destes povos e o quão relevante são estes direitos. O primeiro ponto é a descrição dos elementos peculiares das comunidades faxinalenses, salientando a forma de vida e as características próprias deste povo. Importante salientar também, o auto-reconhecimento da identidade faxinalense, onde cabe ao próprio grupo social se reconhecer como tal, desde que seu modo de viver seja o característico desta comunidade tradicional, no caso a faxinalense. Um próximo ponto é a vinculação do poder público, no reconhecimento dos faxinalenses através de certidão de auto-reconhecimento. Algo que deixa mais evidente a necessidade de se assegurar o direito destes povos. Por fim, o caráter de legitimidade existente nos acordos comunitários, feito entre os próprios faxinalenses, sendo reconhecidos pelo poder público esta prática da comunidade. 5 Informação encontrada as 17:30, do dia 11 de Setembro de 2008, no site http://www. isa.org.br/inst/esp/consulta_previa/sites/default/files/carta_cp_terras_quilombolas%20. pdf. 64 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 64 12/11/2010 10:33:43 Outra norma que pode ser citada é o Decreto nº 3446/97 – ARESUR (Áreas Especiais de Uso Regulamentado). Este Decreto, por ser estadual, vale para as áreas que se encontram dentro do Estado do Paraná. Ele reconhece e caracteriza claramente, a existência do modo de produção denominado “Sistema Faxinal”, buscando criar condições para a melhoria da qualidade de vida das comunidades residentes, a manutenção do seu patrimônio cultural e preservação dos recursos ambientais. Não cabendo então, nenhum outro modo de produção ou forma de ações que diferenciem do jeito de ser dos faxinalenses dentro das áreas. Alguns faxinais ainda não foram reconhecidos por este Decreto, pois o reconhecimento se dá caso a caso, por faxinal. Nas áreas devem conter sua denominação, superfície, os limites geográficos, diretrizes para conservação ambiental, que deverão ser analisados pelo Secretário de Estado do Meio Ambiente, que definirá a área através de um ato administrativo. Assim, as áreas poderão ser registradas no Cadastro Estadual de Unidades de Conservação – CEUC – desde que caracterizado o uso coletivo da terra para produção animal, a produção agrícola de policultura alimentar e a conservação ambiental, característica dos povos faxinalenses. Além disso, os Municípios em que estão reconhecidas áreas de faxinais através do Decreto ARESUR, podem receber o ICMS (Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços) Ecológico, sendo uma fonte de renda a mais para o Município, que através de leis municipais podem reverter estas verbas para fomento do próprio Faxinal. 2.2.3. INDÍGENAS Em 1750 a Espanha queria trocar com Portugal as terras das missões dos jesuítas, conhecida como os Sete Povos das Missões, pela colônia de Sacramento. O problema é que os Sete Povos das Missões eram habitados por milhares de índios6. Este trecho da lenda de Sepé Tiaraju ilustra bem o tratamento que historicamente é dado aos índios no Brasil, sendo apresentados desrespeitosamente 6 Informação obtida às 16:13 do dia 15 de Setembro de 2008 no endereço eletrônico <http://www.clicklivro.com.br/content/view/8491/72/>. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 65 65 12/11/2010 10:33:43 como uma questão problemática. Contudo, problemática quanto ao interesse de grupos que só viam a terra e os recursos naturais com um olhar exploratório, diferentemente da maneira sustentável e vital desenvolvida pelos índios. Certamente os indígenas representam hoje no Brasil um dos povos organizados, mais ativos e radicalizados em defesa dos seus direitos frente ao Estado. Estão em evidência por ocupações de prédios de órgãos do Estado como Funasa e Funai, e lutando permanentemente pela retomada dos seus territórios invadidos, como no caso já citado de Raposa Serra do Sol. Os indígenas reivindicam direitos ancestrais, de povos literalmente originários, do que hoje constitui o território brasileiro. Segundo a descrição do Ministro Carlos Ayres Britto, “o termo originários a traduzir uma situação jurídico-subjetiva mais antiga do que qualquer outra, de maneira a preponderar sobre eventuais escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não índios.7” Como garantias, estes povos obtiveram o reconhecimento da Constituição Federal brasileira, a qual reserva um capítulo8 específico só para tratar dos indígenas. Vejamos um dos artigos; Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. (...) Aqui estão dispostos elementos importantes, os quais reconhecem e garantem direitos essenciais ao desenvolvimento do modo de vida das diferentes tribos indígenas espalhadas por todo o país. Na Constituição do Estado do Paraná, também podem ser encontradas normas específicas garantidoras dos direitos indígenas. Assim está disposto no 7 Trecho do voto do Ministro Carlos Ayres Brito relator no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, no Supremo Tribunal Federal (STF). 8 Capítulo VII, Título VIII, da Ordem Social, Constituição da República Federativa do Brasil. 66 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 66 12/11/2010 10:33:43 artigo 216 da referida norma. Art. 226. As terras, as tradições, usos e costumes dos grupos indígenas do Estado integram o seu patrimônio cultural e ambiental, e como tais serão protegidos. Parágrafo Único. Esta proteção estende-se ao controle das atividades econômicas que danifiquem o ecossistema ou ameacem a sobrevivência física e cultural dos indígenas. Existem ainda, outras normas que tratam de temas específicos dos direitos indígenas, como Decreto 1.775/1996 sobre demarcação de Terras indígenas; Decreto 1.141/94 dispondo sobre ações de proteção ambiental saúde e apoio “as atividades produtivas para as comunidades indígenas; diversas normas relacionadas à Fundação Nacional do Índio (FUNAI), entre outras. 2.2.4. PESCADORES ARTESANAIS Os pescadores artesanais, ainda possuem um reconhecimento específico, existindo pouca incidência normativa direcionada a este tipo de comunidade tradicional. Áreas marítimas e de águas interiores tem sido, nas últimas décadas objetos de conflitos, muitas vezes violentos entre a pesca industrial, geralmente de fora da região, e a artesanal, feita pelos pescadores das comunidades litorâneas. Recentemente, uma norma específica foi sancionada, a qual dispõe sobre as colônias e federações de pescadores, tratando de características mais organizativas. Observa-se o conteúdo limitado da lei 11.699/2008, embora demonstre um primeiro passo para o reconhecimento concreto e integral de toda e qualquer comunidade de pescadores artesanais, seja qual for suas respectivas formas de se organizarem. Existem ainda, algumas leis municipais específicas espalhadas pelo país, que buscam garantir e reconhecer alguns direitos aos pescadores artesanais, sendo importante fomentar este debate nos municípios em que estas comunidades estão inseridas. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 67 67 12/11/2010 10:33:43 2.2.5. CIPOZEIRAS Os povos caracterizados como “cipozeiras”, por viverem e se identificarem quanto grupo, justamente pelo trabalho tradicionalmente desenvolvido de extração do cipó em Santa Catarina, constituem outro tipo de comunidade que busca sair da invisibilidade jurídica e social fazendo valer seus direitos históricos. Estes grupos, atualmente, se concentram na região de Garuva, município de Santa Catarina. Além da extração do cipó imbé, atuam como pequenos produtores rurais. Assim, os grupos que trabalham com esta matéria-prima e desenvolvem uma forma de vida por conta da cultura desenvolvida no manejo do cipó, estão situados entre as pessoas mais desfavorecidas do município. Hoje, eles são perseguidos e diversas vezes confundidos, equivocadamente com extratores de palmitos. Por isso, apesar de não existirem normas específicas, estão se organizando e lutando pelo reconhecimento da forma de vida desenvolvida por estes grupos. 2.2.6. ILHÉUS Ainda existem os povos ilhéus, comunidades tradicionais que habitam ou habitavam o arquipélago da Ilha Grande, localizadas no alto do Rio Paraná, próximo às divisas do Paraná e Mato Grosso do Sul. Alguns deixaram as terras por conta da construção de Itaipu, depois da Usina da Ilha Grande e finalmente, do Parque Nacional da Ilha Grande na região. As alternativas que se apresentam para aqueles que permanecem nos municípios ribeirinhos são poucas: o trabalho assalariado em propriedades agrícolas; os volantes (bóia-fria); os pequenos comércios (biscateiros) e alguns serviços ligados ao turismo e à pesca9. Atualmente, os ilhéus enfrentam problemas frente a órgãos como IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e IAP (Instituto Ambiental do Paraná). Existe ainda, falta de compreensão frente ao Ministério Público, sendo inclusive, estes povos pressionados a deixarem as ilhas que ocupam. 9 GODOY, A. M. G. Populações Tradicionais no Parque Nacional da Ilha Grande. Informação obtida as 14:50 do dia 16 de Setembro de 2008 no endereço eletrônico http:// www.dge.uem.br/geonotas/vol5-4/amalia.shtml. 68 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 68 12/11/2010 10:33:43 Esta é uma luta, que apesar de antiga, começa a se articular com outras e busca possibilidades de garantir a retomada dos direitos coletivos deste tipo de comunidade. 3. O CHOQUE ENTRE AS CONCEPÇÕES LIBERAIS DO DIREITO E OS RECONHECIMENTO DE DIREITOS ÉTNICOS E COLETIVOS Começar uma movimentação na sociedade civil reivindicando direitos atribuídos a uma coletividade, e não meramente particulares e localizados, apresenta um panorama real de percepção e concretização de garantias constitucionais devidas, e consideração de fato das comunidades tradicionais em nosso país. Muitas destas comunidades brasileiras se formaram à margem do processo socioeconômico hegemônico e sobreviveram pelos tempos mantendo muitas tradições e práticas sociais antigas. Daí, a importância em valorizar a diversidade social, econômica e cultural produzida por eles. Ademais, aliado as próprias necessidades humanas fundamentais, novos tipos de conflitos de massa surgem e o direito deve ter uma resposta adequada e garantidora a estas novas questões. Uma grande dificuldade na efetivação destes direitos passa pela visão jurídica formalista, dogmática e liberal-individualista dentro da história do direito, além da concepção monista que eleva a figura do Estado como a única grande fonte normativa, excetuando em algumas oportunidades em que concedem também aos costumes e outros, certamente em menor relevância, este status de fonte do direito. Como primeiro exemplo, podemos destacar uma categoria operacional do direito, que é o conceito de relação jurídica apreendido em nossas Universidades. Este geralmente ocorre de um sujeito a outro prevendo demandas que vinculam de forma individual, em sua essência, a busca por um bem da vida. O bem é suscetível de apropriação, quase sempre pautada na linguagem possessiva do meu, seu, posso, tenho, entre outras, tipicamente individualista. O sujeito que se reproduz no conceito de relação jurídica tem sido essencialmente privatístico. É lançado o dilema de um conceito de relação jurídica próprio, que preveja e dê respostas adequadas às demandas coletivas. Algo que não ousaremos adentrar neste momento. Logo, observa-se a derrocada de um modelo jurídico estatal, que através de seus Códigos e de seu próprio Poder Judiciário, limita-se a regulamentar conflitos de cunho individualistas e patrimoniais, afastando-se das demandas sociais coletivas. Estes problemas tornam-se visíveis, visto que nos encontramos “formados numa cultura jurídica incapaz de entender a sociedade e seus conflitos e há má vontade Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 69 69 12/11/2010 10:33:43 em discutir a democratização efetiva deste ramo do Estado,10”no caso específico, o Judiciário. Outra questão emergencial que dificulta a efetivação, em muitas oportunidades, destes direitos postos é a visão estreita utilizada para as fontes normativas, enfatizando a figura do Estado, influenciado por entes privados, tendo em vista a própria organização da sociedade dentro da lógica capitalista. O monismo estatal “se explica ideologicamente, eis que o Estado moderno é construção da classe dominante no mundo ocidental, organizado burocraticamente para servir seus próprios interesses de proprietários.11” Dessa forma, os grupos subalternos absorvem aquilo como o único direito, submetendo-se a todo e qualquer tipo legal posto. Por mais, que a luta das comunidades tradicionais consiga avançar pontualmente, com normas garantidoras advindas dentro da lógica formalista do Estado, cabe ainda lutar para que estas normas, além de emanar deste ente, brotem, de fato, destes povos e organizações populares. Tendo presente a perspectiva de um pluralismo comunitário-participativo, há de se chamar a atenção para o fato de que a insuficiência das fontes clássicas do monismo estatal determina o alargamento dos centros geradores de produção jurídica mediante outros meios normativos nãoconvencionais, sendo privilegiadas neste processo, as práticas coletivas engendradas pelos movimentos sociais.12 O que se busca salientar com estas indagações é que, este princípio monista de alcance ontológico, o qual possui sua gênese na figura do Estado, é tão só uma das faces do Direito. A outra face deve ser considerada e “seu projeto político é o da conquista dos espaços normativos pela organização social dos oprimidos, primeiro passo no sentido da libertação.13” O Direito autêntico e global não pode ser isolado em campos de concentração legislativa, pois indica os princípios 10 FARIA, J. E.; LOPES, J. R. L. Pela democratização do Judiciário. In: FARIA, José Eduardo. Direito e Justiça. A função social do Judiciário. São Paulo: Ática, 1989. p.163. 11 COELHO, Luiz Fernando. Teoria Crítica do Direito. 2ªed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 263. 12 WOLKMER, A. C. Pluralismo Jurídico:. Fundamentos de uma nova cultura no Direito. 2ªed. São Paulo: Ed. Alfa Omega, 1997, p.137. 13 COELHO, L. F. Op. cit., p. 291. 70 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 70 12/11/2010 10:33:43 e normas libertadores, considerando a lei um simples acidente no processo jurídico, e que pode, ou não, transportar as melhores conquistas14. O Direito deve estar inserido nas práticas sociais, produto proveniente da dialética de uma práxis do dia-a-dia e não encastelado nos gabinetes institucionalizados de funcionamento do burocratismo do Estado, tão gerador de injustiças. Infelizmente, após tantos anos de estudo os juristas conhecem melhor os corredores dos Fóruns e Tribunais, do que os caminhos e as trilhas das comunidades que contribuem para a construção do meio cultural, há séculos em nosso país. Podemos estar vivendo momentos pré-paradigmáticos. Os paradigmas jurídicos e políticos estão em crise, sem ainda terem nascido novos. O liberalismo é paradigma da ciência jurídica. Os novos direitos exigem nova teoria. CONCLUSÃO Tendo por base o estudo realizado, alguns direcionamentos podem ser visualizados diante da luta das comunidades tradicionais, sobretudo do Sul do Brasil, e os delineamentos jurídicos apresentados. Nota-se uma inquietação e organização crescente entre os povos e comunidades tradicionais, na ânsia de serem reconhecidos, de fato, como sujeitos coletivos de direitos. Contudo, nem sempre o Direito dá as respostas esperadas por estas comunidades, mas tão só, reproduz seus feitos de maneira disforme a uma situação que nada se equipara a uma relação entre indivíduos e lógicoformalista. Sendo assim, além da batalha por reconhecimento de direitos que germinam da própria luta histórica, advinda destas comunidades, desconstruindo a mística da teoria monista estatal, em diversas situações, o entrave ocorrerá entre as normas postas, vigentes no ordenamento. Roberto Lyra Filho oferece o fundamento para resolução desta questão e efetivação destes direitos humanos; o padrão de legitimidade, na concorrência das normas, está no vetor histórico, donde se extrai a resultante mais avançada duma correlação de forças em que se torna reconhecível 14 LYRA FILHO, R. O que é Direito. 12ªed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1991, p.10. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 71 71 12/11/2010 10:33:43 a vanguarda, marca-se o posicionamento progressista e se atua para garantir suas reivindicações, tratando de espremer o sumo e o extrato do processo libertador a que se dá o nome de direitos humanos15. Nessa monta, os direitos humanos são postos, de fato, como garantias decorrentes e possibilitadas diante de uma luta histórica, em que novos sujeitos continuamente são forjados, enquanto perdurar a desigualdade social e de direitos no país. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988), I. Pinto, Antonio Luiz de Toledo. II. Windt, Márcia Cristina Vaz dos Santos. III. Céspedes, Lívia. 29° ed., São Paulo: Ed. Saraiva, 2002; ________. Supremo Tribunal Federal. Ação Popular nº 3388. Brasília, DF, 27 de agosto de 2008; COELHO, L. F. Teoria Crítica do Direito. 2ªed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991; FARIA, J. E.; LOPES, J. R. L. Pela democratização do Judiciário. In: FARIA, J. E. Direito e Justiça. A função social do Judiciário. São Paulo: Ática, 1989; GODOY, A. M. G. Populações Tradicionais no Parque Nacional da Ilha Grande. Informação obtida as 14:50 do dia 16 de Setembro de 2008 no endereço eletrônico http://www.dge.uem.br/geonotas/vol5-4/amalia.shtml; 15 LYRA FILHO, R.. A Nova Filosofia Jurídica. In: MOLINA, Mônica Castagna, SOUSA JÚNIOR, J. G.; TOURINHO NETO, F. C. (org.). Introdução Crítica ao Direito Agrário. Brasília, Universidade de Brasília, Decanato de Extensão, Grupo de Trabalho de Apoio à Reforma Agrária, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 90. 72 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 72 12/11/2010 10:33:44 LYRA FILHO, R.. A Nova Filosofia Jurídica. In: MOLINA, M. C.; SOUSA JÚNIOR, J. G; TOURINHO NETO, F. C. (org.). Introdução Crítica ao Direito Agrário. Brasília, Universidade de Brasília, Decanato de Extensão, Grupo de Trabalho de Apoio à Reforma Agrária, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002; ________O que é Direito?. 12ªed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1991; MACHADO, A. A. O Direito Alternativo. Franca, 1997. Disponível em: <http:// neda.ubbihp.com.br/direitoalternativo.pdf.>. Acesso em: 04 de Março de 2006; Relatório Final do 1º Encontro Regional dos Povos e Comunidades Tradicionais. Elaborado pelo Projeto Nova Cartografia Social, Instituto Equipe de Educadores Populares, Terra de Direitos, Pastoral da Terra Diocese de Guarapuava, AGAECO e CEMPO. Guarapuava-PR, 2008; WOLKMER, A. C. Pluralismo Jurídico. Fundamentos de uma nova cultura no Direito. 2ªed. São Paulo: Ed. Alfa Omega, 1997. Artigo recebido em: 29/05/2010 Artigo aprovado para publicação em junho /2010. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 73 73 12/11/2010 10:33:44 QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU DO ARAGUAIA-TOCANTINS: ESTRATÉGIAS LOCAIS DE REPRODUÇÃO SOCIAL E CULTURAL Nirson Medeiros da Silva Neto* Sumário: Introdução; 1. Sofrimento e mobilização: a vida e o trabalho das quebradeiras de coco babaçu e sua organização em movimento social; 2. Quebradeiras de coco face às “novas estratégias empresariais”; Considerações Finais; Referências. RESUMO: O artigo que segue apresenta os resultados de uma investigação empírica junto às quebradeiras de coco babaçu da região do Araguaia-Tocantins. O texto considera a existência da vida econômica, embora muito peculiar, dos grupos tradicionais, assim como a possibilidade de o contanto com o sistema de mundo capitalista reafirmar os pontos de vistas tradicionais e, por conseguinte, produzir desenvolvimento da cultura local. Veremos que as trabalhadoras pesquisadas, através do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, não somente produzem objetivando a comercialização como inclusive têm buscado intervir no mercado a fim de garantir condições mais competitivas aos produtos manufaturados tradicionalmente por suas famílias de pequenos produtores rurais. Isto, todavia, não elimina a possibilidade de relações simbolicamente violentas das quebradeiras com a economia de mercado, também sobremodo comuns, que, ao invés de reafirmar, descaracterizam o modo de viver e trabalhar tradicional, tal como o fazem as chamadas ABSTRACT: This article presents the results of an empirical inquiry about breaking coconut babassu ladies from Araguaia-Tocantins region, that objectified to understand the strategies, practical and representations of related agricultural workers in regards to the protection of their traditional knowledge. The text consider the existence of the economic life, though so peculiar, of the traditional groups, and the possibility of the contact with the capitalist world system to reaffirm traditional points-of-view and, therefore, to produce the local culture development. The interviewed workers, through the Interstate Movement of the Breaking Coconut Babassu Ladies, do not produce objectifying the commercialization as also they have look to interact in the market in order to guarantee more competitive conditions to the products manufactured traditionally for their families of small agricultural producers. This, however, does not eliminate the possibility of symbolically violent relations of the breaking coconut babassu ladies with the market economy, which is * Doutorando em Antropologia pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará. Bolsista da CAPES. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 75 75 12/11/2010 10:33:44 “novas estratégias empresariais” que hoje realizam uma “modernização conservadora e predatória” da Amazônia. Por estas e outras razões que serão expostas, as quebradeiras buscam a reprodução de seus elementos sociais e culturais por intermédio de uma vasta pauta de reivindicações, gestadas no âmbito de um movimento social, associadas à garantia das condições de produção e reprodução de seu modo de vida e trabalho e de sua cultura, que vão desde uma melhor inserção de seus produtos no mercado até a valorização da mulher no campo e o reconhecimento de uma forma de juridicidade, por elas desenvolvida e praticada, que lhes garante o livre acesso e uso comum dos babaçuais, independentemente se localizados em propriedades privadas ou terras públicas, ou seja, a denominada “lei” do babaçu livre ou do coco liberto. also very common, that, instead of reaffirming, they deprive of characteristics the way of traditional living and working, as the called “new enterprise strategies” do that today carry through a “conservative modernization” of the Amazon. For these and other reasons that will be displayed, the breaking coconut babassu ladies look for the reproduction of their social and cultural elements through a vast guideline of claims associate to the guarantee of the production conditions and reproduction of their products in the market until the woman’s valuation in the field and the acknowledgment of a legality from, for them developed and practiced, which guarantee the free access and use of the babassu palms, independently if they are located in private properties or public lands, that is, the “law” called free babassu or free coconut. PALAVRAS-CHAVE: Quebradeiras de KEYWORDS: Breaking Coconut BaCoco Babaçu; Araguaia-Tocantins; Movi- bassu Ladies; Araguaia-Tocantins; Social mento Social; Populações Tradicionais. Movement; Traditional Populations. INTRODUÇÃO As quebradeiras de coco babaçu encontram-se entre aquelas populações cujas lutas e mobilizações têm contribuído para a construção contemporânea da noção de “tradicional”, ao se definirem enquanto uma “comunidade tradicional”, ajustando-se aos termos da Convenção sobre Diversidade Biológica que obtiveram clara expressão na conceituação do artigo 7°, III, da MP n. 2.186-16/01: “comunidade local: grupo humano, incluindo remanescentes de comunidades de quilombos, distinto por suas condições culturais, que se organiza, tradicionalmente, por gerações sucessivas e costumes próprios, e que conserva suas instituições sociais e econômicas”. O processo de identificação destas mulheres enquanto população tradicional, a um só tempo social e político, é concomitante à construção de uma identidade coletiva a partir do I Encontro Interestadual 76 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 76 12/11/2010 10:33:44 das Quebradeiras de Coco Babaçu, realizado entre os dias 24 e 26 de setembro de 1991, onde reside a gênese do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), reunindo no âmbito desta identidade, objetivada em movimento social, um conjunto de mulheres que realizavam variadas atividades (parteiras, artesãs, professoras, costureiras, doceiras, boleiras, etc.) entre as quais se destacava o trabalho comum a todas de coleta e quebra do coco babaçu (ALMEIDA, 1995). A coleta e quebra do coco babaçu – realizada tradicionalmente mediante o uso de um jacá (cesto produzido com palha de palmeira de babaçu, destinado à cata dos frutos), um machado e um macete (pedaço de madeira especialmente talhado para golpear os cocos sobre a lâmina do machado) – é uma prática extrativista e de beneficiamento destinada tanto ao consumo na esfera familiar como à comercialização, no mais das vezes em pequena escala, e que funciona localmente como uma forma de complementação de outras práticas laborais desenvolvidas preferencialmente por homens, tais como: a agricultura ou roça, segundo a linguagem local; o trabalho com a capina e/ou preparo de pasto, chamada pelas trabalhadoras rurais pesquisadas de trabalhar na juquira; as atividades como vaqueiro nas fazendas próximas aos povoados, eminentemente masculina e por isso destinada geralmente aos maridos e filhos das quebradeiras; e, em alguns casos, a pecuária, seja de gado bovino, seja de caprino ou mesmo suíno, no âmbito doméstico. Além disso, trabalhar no coco, expressão que as mulheres estudadas costumam usar para designar sua forma de trabalho, é uma atividade laboral capaz de gerar alguma renda, ainda que bastante reduzida, que propicia a aquisição de certos bens de consumo não disponibilizados pela produção nativa e que, todavia, são imprescindíveis à economia e subsistência familiares. O processo organizativo das quebradeiras de coco babaçu, conforme veremos abaixo, é orientado não só ao planejamento de sua integração na produção, mas igualmente à demanda por melhores condições de vida, por um mais amplo acesso à terra em áreas onde os grandes latifúndios têm avançado, por melhorias do óleo de babaçu para enfrentar as baixas dos preços nos mercados local, nacional e internacional, pela proteção legal das palmeiras de babaçu e, até mesmo, pelo enfrentamento de alguns tabus quanto a questões de gênero e sexualidade (SIMONIAN, 2001). Alfredo Wagner Berno de Almeida (2006b) explica ainda que o movimento das quebradeiras de coco encontra-se entre aqueles que apresentam uma consciência ambiental aguçada, posicionando-se contra a devastação e o desmatamento e realizando assim um processo de politização da natureza. Além desta sensibilidade especial para as questões ambientais, estes movimentos apresentam por característica o estabelecimento de intensas lutas por processos de territorialização pautados em representações e práticas de Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 77 77 12/11/2010 10:33:44 uso comum da terra que, segundo Almeida (2006c, pp. 23-4): [...] designam situações nas quais o controle dos recursos básicos não é exercido livre e individualmente por um determinado grupo doméstico de pequenos produtores diretos ou por um de seus membros. Tal controle se dá através de normas específicas, combinando uso comum de recursos e apropriação privada de bens, que são acatadas, de maneira consensual, nos meandros das relações sociais estabelecidas entre vários grupos familiares, que compõem uma unidade social. Tanto podem expressar acesso estável à terra, como ocorre em áreas de colonização antiga, quanto evidenciam formas relativamente transitórias características das regiões de ocupação recente. Tanto podem se voltar prioritariamente para a agricultura, quanto para o extrativismo, a pesca ou para o pastoreio realizados de maneira autônoma, sob forma de cooperação simples e com base no trabalho familiar. As práticas de ajuda mútua, incidindo sobre os recursos naturais renováveis, revelam um conhecimento aprofundado e peculiar dos ecossistemas de referência. A atualização destas normas ocorre, assim, em territórios próprios, cujas delimitações são socialmente reconhecidas, inclusive pelos circundantes. A territorialidade funciona como fator de identificação, defesa e força, mesmo em se tratando de apropriações temporárias dos recursos naturais, por grupos sociais classificados muitas vezes como “nômades” e “itinerantes”. As ações políticas destas populações tradicionais, nas palavras de Edna Castro e Rosa Acevedo (1998), centram-se em reivindicações de permanência na terra, visto que o território é-lhes condição de existência, de sobrevivência física, e fator imprescindível, somado a outros (por exemplo, etnicidade e gênero), para a construção de sua identidade: remanescentes de quilombos, quebradeiras de coco babaçu, ribeirinhos, indígenas, etc. A concepção de territorialidade destas populações, porém, “só pode ser percebida no interior das relações que estruturam a organização dessas comunidades” por não estar “subordinada portanto à lógica da propriedade privada que preside o direito brasileiro, por ser de natureza distinta”, mantendo, “na concepção e na prática, terras comuns, pois institucionalizam um sistema de regras que alimentam o seu modo de produção” (CASTRO & ACEVEDO, 1998, p. 158). No âmbito de tais lutas pela afirmação de práticas e representações de uso comum da terra, o movimento das quebradeiras de coco apresenta um elemento 78 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 78 12/11/2010 10:33:44 muito peculiar, que é a estratégia de enfrentamento da noção jurídica de propriedade privada por intermédio da sustentação de uma concepção, inscrita nos usos e representações sociais das quebradeiras e reconhecida pelos habitantes locais da circunvizinhança (inclusive por alguns fazendeiros afetados, que estão entre seus principais adversários políticos, acompanhados pelas empresas de produção de ferro-gusa e de celulose, assim como dos chamados catadores de coco e carvoeiros), de acesso livre às terras privadas – no mais das vezes, fazendas voltadas para a produção de monoculturas agrícolas ou para a pecuária – onde há incidência de babaçuais e utilização comum dos frutos das palmeiras. Este fato também aproxima as quebradeiras de coco babaçu de outros grupos sociais que têm posto em causa as políticas públicas que “continuam sendo pensadas de forma ‘universal’, levando à constituição do ‘reino de um único direito’, o que mais tem servido para ‘apagar’ as diferenças existentes do que para garantir o direito às diferenças” (SHIRAISHI NETO, 2006, p. 13). Em outras palavras, as quebradeiras possuem uma considerável afinidade com aqueles agentes coletivos que, pelo seu próprio modo de viver e processo histórico, têm demonstrado e buscado reconhecimento para o fenômeno do pluralismo jurídico, isto é, a coexistência em um mesmo espaço geopolítico de duas ou mais ordens jurídicas não raramente contraditórias entre si (SANTOS, 2005b). A forma de vida das quebradeiras de coco, seu processo de mobilização e as estratégias que desenvolvem para garantir a reprodução material e simbólica de seus elementos culturais e modo de organização social e trabalho, é verazmente interessante para se refletir quanto à proteção das formas de vida tradicionais, especialmente porque trata-se de uma população que tem contribuído para a ampliação dos cânones do que seja “tradicional” e cuja forma de ser tradicional está intimamente relacionada com a construção social e política de uma identidade coletiva, ou seja, um processo de (re)tradicionalização ou (re)invenção de tradições, nos termos de Eric Hobsbawn (2006), assim como oferece elementos para questionar a fecundidade ou não da relação entre o sistema capitalista e o sistema de mundo das populações tradicionais. A experiência vivenciada pelas quebradeiras é ainda um caso exemplar de estratégias localmente desenvolvidas por grupos sociais nativos, relativamente bem sucedidas, a fim de preservar suas tradições diante dos dilemas locais que enfrentam cotidianamente, questionando cânones do direito, como a idéia de monismo jurídico e a rigidez da noção de propriedade privada. As linhas que seguem resultam de uma incursão empírica junto às quebradeiras de coco babaçu do Araguaia-Tocantins, ou região tocantina, que ocorreu entre os dias 30 de julho e 19 de agosto de 2007. Neste período, foram realizadas observações diretas e entrevistas semi-estruturadas – algumas individuais, Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 79 79 12/11/2010 10:33:44 outras em grupos – com quebradeiras de coco e agricultores nos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais e sedes regionais do MIQCB, localizados nas principais cidades da região tocantina, assim como na Reserva Extrativista do Ciriaco (município de Cidelândia) e nos povoados de Petrolina (Imperatriz) – Estado do Maranhão –, Sete Barracas (São Miguel), Piquizeiro (Axixá), Juverlândia (Sítio Novo) – Estado do Tocantins –, Santa Rita (Brejo Grande), Vila Metade (São Domingos do Araguaia) e outros dois localizados nos municípios de São João do Araguaia e Palestina – Estado do Pará. Todas as entrevistas ocorridas nos povoados deram-se nas casas de lideranças comunitárias locais, a maioria engajada no MIQCB, e foram antecedidas ou sucedidas por observações nas proximidades destas residências que objetivaram visualizar in locus o modo de vida e o ofício das trabalhadoras pesquisadas. Além destas entrevistas, houve colóquios com representantes do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e do CENTRU (Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural), em Imperatriz (MA). 1. SOFRIMENTO E MOBILIZAÇÃO: A VIDA E O TRABALHO DAS QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU E SUA ORGANIZAÇÃO EM MOVIMENTO SOCIAL “O bom das quebradeiras, o lado bom, é a mobilização”. Querubina Neta, do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB)1. Vimos na introdução deste artigo que as quebradeiras de coco babaçu constituem um conjunto de mulheres identificadas por uma forma de trabalho comum (coleta e quebra de coco babaçu e atividades correlatas de beneficiamento do fruto) e cuja identidade é objetivada em movimento social, sendo integrantes de famílias de trabalhadores rurais nativos do Maranhão ou migrantes do Nordeste que vivenciaram um processo histórico de ocupação da zona ecológica do babaçu e que, no dizer de Jair do Amaral Filho (1990), desdobram-se em três categorias de pequenos produtores: 1) pequenos produtores com propriedade de terra, ou pequenos produtores-proprietários; 2) pequenos produtores “autônomos”, ou posseiros, ocupantes de terras devolutas; e 3) pequenos produtores inseridos em grandes propriedades, ou pequenos arrendatários e foreiros. Dentro da terceira categoria deveriam ainda ser incluídos aqueles que têm livre acesso 1 Entrevista realizada no dia 31.07.2007. 80 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 80 12/11/2010 10:33:44 aos babaçuais e, no entanto, não pagam nem renda nem foro, embora Amaral Filho não os mencione. Por este motivo, são as considerações de Almeida (1995, p. 39) mais precisas na classificação das quebradeiras conforme os meios de produção que estas detêm: Há “quebradeiras sem terra”, ou seja, sem acesso direto à terra para moradia, cultivo e extração, residindo nas chamadas pontas de rua e na beira das rodovias com atividades acessórias de assalariamento eventual (empregadas domésticas e de prestação de serviços de lavadeira, doceiras, confeiteiras). Há também trabalhadoras extrativistas com acesso garantido. Localizam-se em terras desapropriadas, adquiridas e decretadas (Reserva extrativista) por órgãos governamentais ou com posses consolidadas. Há ainda quebradeiras em terras de herança tituladas ou não, com ou sem [documentação] formal de partilha; bem como as que se localizam em terras de terceiros, pagando aforamento ou ocupando-as centenariamente com ou sem consentimento de terceiros (Caso “terras dos índios” de Viana). Antes do processo de organização das quebradeiras não era raro ditas trabalhadoras rurais serem representadas através de imagens folclóricas ou pictóricas que as confundiam com a própria natureza, quer dizer, com a paisagem dos cocais, o exotismo da floresta, as matas onde havia incidência de babaçu, afirma Almeida (1995). A estruturação da identidade coletiva foi um fator decisivo para desfazer esta “imobilidade iconográfica”, inserindo as trabalhadoras, de modo organizado, “nas estruturas do campo do poder e nos circuitos do mercado”, desnaturalizando-as e dando-lhes uma nova condição. O universo das quebradeiras passa então a ser política e economicamente (re)construído, não mais se confundindo, “necessariamente, com as áreas de ocorrência de babaçuais”. A elaboração de uma identidade coletiva, destarte, confere “significado político a uma categoria historicamente de uso cotidiano” (ALMEIDA, 1995, p. 19), re-significando, por seguimento, não somente a vida das quebradeiras, mas igualmente suas ações sociais especialmente nos mundos da política e da economia, embora também, e de forma bastante acentuada, no âmbito doméstico e de seus pares, os demais trabalhadores rurais. Concomitantemente, e no sentido diametralmente oposto, a organização das quebradeiras em movimento social autônomo politiza a natureza, elas separando-se dos babaçuais e construindo-se como sujeitos sociais, pois a defesa e conservação dos recursos naturais são, no dizer de Almeida (2006b), atos políticos que estabelecem novas formas de solidariedade. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 81 81 12/11/2010 10:33:44 Esta re-significação da vida das quebradeiras de coco e de suas relações com os demais agentes sociais, sem embargo, não descaracteriza – ao contrário, até mesmo reforça – certos aspectos da condição original do modo de viver de tais mulheres trabalhadoras. Na zona ecológica do babaçu, desde há muito, a ligação do fruto com as práticas agrícolas é sobremaneira notável, estando intimamente relacionada com a divisão do trabalho familiar ao longo do calendário agrícola. Geralmente entre os meses de agosto a novembro, a mão-de-obra masculina está ocupada no preparo da terra, realizando limpeza, queima e capina. E este é exatamente o período em que os cocos de babaçu alcançam o auge de sua maturação, sendo então abundantemente encontrados nos pés das palmeiras – as quebradeiras costumam coletar tão-somente os frutos maduros caídos, ao invés de derrubar os cachos verdes, prática esta (a derrubada dos cachos) que representam como predatória, visto que a única utilidade que o coco imaturo apresenta é a feitura de carvão. O trabalho feminino e infantil na preparação da terra, durante tal período, faz-se prescindível, sendo, no entanto, essencial na coleta e quebra dos cocos, de sorte a extrair as amêndoas oleaginosas e vendê-las in natura ou beneficiá-las, obtendo assim um complemento de renda. As atividades de quebra e principalmente de coleta do coco, em alguns núcleos familiares, apresentam também a participação de homens nesta época do ano, especialmente naqueles casos em que o babaçu é a única fonte de renda em tal período2. A feitura de carvão e a colheita da palha não raro são igualmente práticas partilhadas entre homens e mulheres. Já no período de final de dezembro a fevereiro, quando intensificamse as chuvas, um maior número de membros da família, incluindo mulheres e crianças, é comumente alocada para as atividades de plantio e capina, transfor- 2 De forma um tanto bem-humorada, algumas quebradeiras costumavam dizer que o “bom marido” é justamente aquele que “cata os cocos no mato” e traz para a mulher quebrar em casa. Esta representação do “bom marido”, porém, desvela a dura realidade que é a coleta do coco babaçu, normalmente realizada por mulheres que, com cestos feitos da palha da palmeira, carregam às vezes por longas distâncias os cocos quando os fazendeiros autorizam a coleta mas não a quebra dos frutos em suas propriedades. 3 Um depoimento que corrobora estas informações foi dado por Emília Alves da Silva Rodrigues, em entrevista realizada no dia 02.08.2007: “Sempre a gente trabalhou na área de babaçu e na agricultura, consorciado os dois, porque quando é tempo de entressafra a gente ia trabalhar na roça”. “A entressafra começa em janeiro, fevereiro, março, abril, aí em maio já começa, aí é o tempo em que a gente já tem colhido o arroz, etc. Também quando é época da colhida do feijão, a gente deixa de quebrar o coco para colher o feijão. Então, a gente trabalha as duas coisas, não é só com a quebra do coco, mas também a gente trabalha na roça”. 82 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 82 12/11/2010 10:33:44 mando as atinentes ao babaçu em secundárias. Todavia, no período entre a capina e a colheita, a extração do babaçu volta a se intensificar, só sendo novamente reduzida quando é chegado o tempo de se colher o que foi plantado no início do ciclo agrícola (MAY, 1990)3. O trabalho no coco, entretanto, não é absolutamente cessado em nenhum período do ano, especialmente porque, além de um complemento de renda, certa quantidade de produtos que possuem tanto valor-de-uso doméstico quanto valor-de-troca (e aqui leia-se efetivamente troca e venda) é manufaturada pelas quebradeiras. Entre tais produtos destacam-se: o azeite e o leite de coco, produzidos a partir das amêndoas e que são utilizados no preparo de alimentos, substituindo o óleo de cozinha convencional e funcionando como condimento; o sabão de coco, também produzido do óleo da amêndoa, só que em um estágio mais bruto; a massa ou farinha de babaçu, confeccionada através do uso do mesocarpo do fruto, que, entre outras utilidades, é usada para fazer mingaus e bolos, constituindo uma alternativa ao amido de milho e ao trigo; o carvão, feito, depois de retiradas as amêndoas, das cascas ou dos frutos apodrecidos, sendo a principal fonte de combustível de que as quebradeiras se valem para o cozimento de alimentos, pois apresenta um custo consideravelmente menor em relação ao gás de cozinha; o artesanato, como bolsas, cestos, abanadores, pingentes, etc., produzidos a partir da palha das palmeiras e do endocarpo dos cocos; entre outros produtos menos usuais4. Estes são apenas alguns exemplos de produtos que integram, atualmente, o cotidiano das famílias das quebradeiras e a economia do babaçu. Dentre eles, os produtos oriundos do mesocarpo e o artesanato, hoje amplamente difundidos entre as quebradeiras e que são tomados por estas como tradicionais, já são resultado da ação do MIQCB que, com relativa freqüência, promove cursos a fim de ampliar a capacidade produtiva dos camponeses e diversificar os produtos, gerando assim maior renda para as unidades familiares. Os demais produtos, entretanto, constituem práticas tradicionais transmitidas de geração para geração, e sempre com valor-de-uso e de troca, segundo afirma uma quebradeira do povoado de Petrolina5: [...] os homens trabalhava na roça, as mulheres ia deixar comida e o resto do dia a gente ia quebrar coco, vendia, 4 Como, por exemplo, o sabão-em-pó de babaçu que, durante a incursão empírica, observei ser produzido apenas por uma quebradeira, dona Romana, no município de Palestina (PA), que afirmara ter aprendido a técnica em um curso ministrado no âmbito do MIQCB. 5 Entrevista realizada em 15.08.2007. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 83 83 12/11/2010 10:33:44 para fazer o complemento da renda, aquela rendazinha de vender amêndoa, tinha aquele dinheirinho que já ajudava para comprar alguma coisa para dentro de casa e também tirava o óleo. Ali a gente não comprava o óleo, aquilo já servia para temperar a comida, daquele óleo já fazia o sabão para lavar roupa, já era uma economia que não era preciso a gente comprar; da casca fazia o carvão6, como ainda até hoje a gente faz isso, já faz parte desde que eu me entendo por gente. Eu via a minha mãe praticando e eu aprendi a fazer e até hoje eu faço. Este fragmento de entrevista começa por indicar, também, uma outra face dos dilemas vivenciados pelas quebradeiras de coco. Trata-se de sua condição de mulher trabalhadora em um meio, o rural, de heranças patriarcais e, com efeito, de histórica predominância da dominação masculina. O patriarcalismo, neste caso, relaciona-se de uma maneira muito próxima à dicotomia entre a “casa” e a “rua”, isto é, o espaço doméstico, onde existe maior controle das relações sociais, ambiente de afeto, intimidade, calma, harmonia e descanso, sendo também o local das preocupações com a família, regido e formado pelo parentesco, e de uma normalizada, e por isso muito comum, dominação masculina e dos mais velhos; e o espaço da “rua”, ao contrário, universo do castigo, do perigo, da luta e do trabalho, assim como das coisas públicas, tal qual a atividade política, onde existe alguma incerteza nas relações, hierarquias não pautadas no parentesco ou idade e, por fim, aproximações não “naturais” entre pessoas, mas sim eletivas (DAMATTA, 1997). O dilema das quebradeiras, no relativo a estes espaços, consiste no fato de que, mesmo antes da instituição do Movimento (que potencializou ainda mais tal dilema ao inserir as mulheres no cenário político, como veremos mais adiante), a divisão do trabalho agroextrativista não elimina de todo a separação entre os universos de “casa” e da “rua”, todavia não a realiza igualmente de todo, existindo uma dialética casa/rua na forma de organização social e do trabalho nas áreas onde se observa a presença de babaçuais explorados por camponeses. Esta dialética se, por um lado, minora a hegemonia do masculino nas atividades extra-domésticas, sobrecarrega, por outro, o feminino de funções laborais externas e domésticas, inserindo-o no âmbito da “rua”, mas não o aliviando do da “casa”. As trabalhadoras rurais, ao tempo que dividem com os homens as atividades produtivas características da “rua” – segundo ensina Roberto DaMatta (1997, p. 93), “a rua é equivalente à categoria mato ou floresta do mundo rural” –, não deixam de estar incumbidas das atividades da “casa”, como o preparo e transporte de alimentos para os maridos e filhos que trabalham na roça, quando 84 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 84 12/11/2010 10:33:44 não estamos tratando de quebradeiras com maridos adoentados, separadas ou viúvas, o que, conforme observei na pesquisa de campo, é uma condição corriqueira entre as mulheres entrevistadas, fato que amplia ainda mais seus dilemas ao exigir-lhes a concentração das atividades da roça e da coleta e quebra de coco; oferecimento dos suportes material (alimentação, saúde), simbólico (educação, cultura) e afetivo necessários aos filhos menores, muitos, no caso das quebradeiras mais jovens, em tenra idade; transmissão do oficio de quebrar coco e das tradições correlatas; e, por fim, as dificuldades inerentes à reprodução biológica, como gestação, pós-parto, amamentação, acompanhamento de filhos pequenos, entre outras. Sobre esta questão, é interessante anotar que foi deveras comum as mulheres pesquisadas relatarem que criaram todos os seus filhos, 05 a 08 filhos em média, ou às vezes até mais, trabalhando no coco, e retirando desta atividade a renda mínima necessária ao sustento de sua família. Por reiteradas vezes ouvi palavras como estas, extraídas das entrevistas realizadas nos povoados de Juverlândia e Petrolina e dos depoimentos obtidos no município de Praia Norte: 1) Casadas e dividindo o trabalho no coco com o trabalho doméstico: Eu criei 05 filhos aqui em Praia Norte trabalhando exatamente exercendo a profissão do coco. O meu marido trabalhava de roça e sempre a minha profissão foi essa. [...] eu tive 07 filhos, tive oportunidade de criar 06 [...]. Então, toda vida foi na luta do coco, quebrando coco para sobreviver com minha família. Eu era pobre e eu não renego mesmo, o marido na roça e eu no coco, então viemos de lá para cá. Quando chegamos aqui a mesma luta, no coco, então para mim o coco é tudo, tudo mesmo, para mim o coco é tudo, porque do coco foi que eu quebrei e criei meus filhos, 06 filhos, e a luta de casa. 2) Marido adoentado: [...] criei 10 filhos quebrando babaçu, quebrando babaçu eu comprava roupa, calçado, carne no fim da semana, material de escola, porque os filhos de 06 anos para frente já iam me ajudar a juntar e quebrar para nós sobreviver, porque nós só tinha o babaçu e o marido muito doente trabalhava na roça e não tinha como dar de comer, aí nós tinha que trabalhar porque era só no babaçu [...]. 3) Separada do marido: [...] eu criei a minha família separada do meu marido, criei 05 filhos aqui no Praia Norte, e esse tempo todo da minha vida trabalhando de roça e de coco. Agora, já estou assim cansada da idade, não estou mais agüentando ir para a roça, Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 85 85 12/11/2010 10:33:45 mas vou para o coco, né? 4) Viúva: [...] eu era casada, nós trabalha muito de roça e eu quebrando o coco, deixava filho em casa, deixava a bóia já feita para os meninos que não eram grandes, eram pequenos, e não sabiam ainda fazer, aí a gente comia e ia para a roça. Quando nós chegava lá eu deixava a comida para eles e ia quebrar coco, ia fazer o carvão para fazer o almoço do outro dia, chegava com o coco, a gente botava a água na panela para tirar o azeite. Aí o meu marido adoeceu, morreu, aí fiquei só, adoeci, até hoje vivo doente, mas vou levando a vida, e não quebro coco mais. A condição de mulher trabalhadora, ainda que partilhe as atividades laborais e a geração de renda com os trabalhadores homens, dispõe as quebradeiras em estruturas ainda mais complexas de desapreço à e exclusão da posição feminina dentro de uma sociedade herdeira de habitus do patriarcado rural de séculos anteriores. A divisão do trabalho da “rua” não é suficiente para retirar do estado oculto a violência simbólica, que às vezes se converte em física, que coloca o gênero feminino e seus respectivos interesses em degraus inferiores na hierarquia social. A dominação masculina aparece então naturalizada, como se fizesse parte da “ordem das coisas”, ensina Bourdieu (1999, p. 18): “a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la”. Isto explica porque, a despeito de sua importância econômica, muitas quebradeiras afirmaram que, antes da organização em movimento social, a atividade de coleta e quebra de coco babaçu era percebida como depreciativa, e, na realidade, ainda é assim vista por muitas pessoas da região tocantina, incluindo algumas quebradeiras e seus maridos, mas principalmente as jovens filhas de quebradeiras que não desejam seguir a profissão de suas mães por entender que se trata de uma atividade indigna. Esta visão androcêntrica da atividade de coleta e quebra do babaçu, em uma outra dimensão, a dos fazendeiros e seus empregados, toma ainda proporções sobremaneira mais violentas e perversas, certamente em razão dos antagonismos de classe – que funcionam, no caso, como fatores de maximização da discriminação de gênero –, havendo sido registradas na pesquisa relatos sobre violências sexuais por parte de jagunços e atrocidades como a seguinte: Uma mulher estava quebrando coco lá na área de um fazendeiro e ele mandou o capataz dele ver quem é que estava lá dentro, e encontrou a mulher. Ele chegou, começou a tirar uma prosa com ela e tudo, ele se levantou para dizer que 86 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 86 12/11/2010 10:33:45 ia embora, jogou um laço nela, laçou no pescoço, amarrou no cavalo e saiu arrastando ela; ela se segurou com as duas mãos, mas ele arrastou muito, ela ficou toda estraçalhada, toda rasgada, toda...7 Além destes estruturais reforçadores negativos da prática extrativa por mulheres, o medo das cobras (muito freqüentes no mato onde se coleta o babaçu), o baixo preço dos produtos, a necessidade de entrar em terras alheias (prática que, quando não autorizada pelo fazendeiro, mesmo existindo uma lei municipal que a legaliza, chegou a ser depreciativamente chamada de “roubo” por uma quebradeira8, o que explicita como a atividade é vista por muitas pessoas da região tocantina) – passando por debaixo dos arames farpados, enfrentando o gado e às vezes cachorros ou mesmo empregados da fazenda –, o duro trabalho de carregar cestos de cocos ou de amêndoas, a baixa escolaridade da maioria das quebradeiras e a vida eminentemente rural – apesar de, não raro, desenvolvida em locais próximos de centros urbanos como as cidades de Imperatriz (MA), Marabá (PA) e Araguatins (TO) –, todos estes fatores parecem contribuir ainda mais para a desvalorização do trabalho das camponesas estudadas, embora tais fatores, que também são comuns aos homens, não costumem ser chamados para avaliar de forma degradante o trabalho masculino. O excerto de entrevista9 que segue é exemplificativo do modo como era ou é percebida a atividade de coleta e quebra do babaçu: [...] minha mãe não queria não que a gente fosse quebradeira, porque ela queria que a gente deixasse de viver aqui, ela achava que ia acontecer a questão da reprodução sempre: a 7 Palavras de Emília Alves da Silva Rodrigues, em entrevista realizada no dia 02.08.2007. “Cata o coco nas terras dos outros. Esse daqui deixa, nós apanha; esse daqui não deixa, nós vamos bem escondidinha, nós rouba, nós rouba o coco. É! Minha irmã, trabalho, né? Porque o dono não deixa, mas nós tem que apanhar, meu amigo, nós tem que apanhar daqui. Minha amiga, nós vamos bem devagarzinho, para o dono não perceber. Nós sai, com um saco aqui no ombro, reparando se vem ou se não vem; quando não vem, nós enche o saco e bota aqui e faz de conta que nós estamos quebrando, se fazendo de besta, né? Nós rouba coco porque nós não temos terra. É o jeito de nós trabalhar para nós dar de comer à nossa família. Quando não tem mais nas terras que dê para nós quebrar, nós vamos quebrar na terra dos outros” (entrevista realizada em 14.08.2007, no município de Praia Norte – TO). 9 Realizada em 31.07.2007 com Vanusa da Silva Lima, filha e irmã de quebradeira de coco. 8 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 87 87 12/11/2010 10:33:45 filha já era quebradeira, casou, mas aí casou com uma pessoa que as possibilidades financeiras não eram tão grandes, então ela tinha que continuar quebrando. [...] a minha mãe deixou de quebrar coco definitivamente porque ela tinha pavor. Ela acha que não tinha vantagem, que também era denegrir a imagem. [...] Tinha uma imagem que não era boa e economicamente não era viável. Minha mãe quebrava coco, quebrava coco, quebrava coco, e quando era no final do ano ela dizia que não tinha um vestido novo para ir para a reunião da escola da minha irmã. Ela ia com havaiana com um pé de uma e um pé de outra, aproveitando as havaianas, e o vestido remendado. Ela dizia isso. [...] E aí ela teve foi muita dificuldade, sempre teve muita dificuldade. Então quando ela conseguiu sair da roça, do coco, ela definitivamente não quis mais voltar, ela não tinha vontade. [...] Ela via isso de forma muito negativa, porque realmente era muito desvalorizado. Diante destas dificuldades e dilemas enfrentados pelas quebradeiras de coco, acrescidos da ampliação quase desgovernada de diversas atividades econômicas de alto impacto ambiental, especialmente a pecuária extensiva, gerando um processo de devastação dos babaçuais, e do cerceamento das práticas tradicionais de acesso livre às palmeiras de babaçu e uso comum da terra, algumas lideranças locais – que já integravam os movimentos sociais de trabalhadores rurais do Araguaia-Tocantins – começaram a promover a organização da categoria em movimento social autônomo, afirmando a identidade das quebradeiras e suas reivindicações de classe e gênero. O primeiro grande evento que marca esta história foi o I Encontro Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, ocorrido em 1991, a partir do qual emergiu o MIQCB. Entretanto, desde a década de 1980 já havia se iniciado um processo de fundação de cooperativas e associações representativas das mulheres trabalhadoras rurais, bem como a busca por avanços tecnológicos no beneficiamento do babaçu, montando-se prensas (denominadas de forrageiras pelos camponeses) e adotando-se técnicas mais aprimoradas de processamento (ALMEIDA, 1995). Um caso exemplar disso foi a ASMUBIP (Associação Regional das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Bico do Papagaio), fundada em 1992. Segundo Raimunda Nonata Nunes Rogrigues10, atual presidente da associação, esta teve sua origem dentro do próprio Sindicato 10 Entrevista realizada em 14.08.2007, na sede da ASMUBIP, em São Miguel (TO). 88 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 88 12/11/2010 10:33:45 dos Trabalhadores Rurais do município de São Miguel (TO), a partir de discussões sobre “coisa de mulher, da saúde da mulher, da reprodução, como ela poderia estar fazendo um exame, porque na época morria muita gente de doenças que poderiam ser curadas, como um câncer do colo do útero”, as mulheres sendo “muito massacradas pela sociedade em geral, não só pelos maridos, também pela questão da perda da propriedade”. Acontece que dentro do próprio sindicato, um universo até então dominado pela masculinidade, o espaço das mulheres era bastante reduzido, e na divisão interna do trabalho só restava ao feminino uma função muito aproximada às do domínio da “casa”, embora se estivesse no da “rua”, no espaço público e de atividade política: o serviço de secretária “que ficava lá o tempo todinho servindo, o trabalho lá dentro do escritório”, diz Raimunda Nonata. E nas pautas de discussão política quase não havia momento para debater coisas de mulher. Então as trabalhadoras rurais começaram a estruturar uma associação que cuidasse mais detidamente de seus interesses e peculiaridades. De conformidade com Raimunda Gomes da Silva11, uma das fundadoras da ASMUBIP e do MIQCB, as discussões em torno do babaçu foram antes de tudo estratégias para debater a questão da mulher trabalhadora rural: “Não era também só a questão do babaçu, era também a questão da mulher ter discernimento da vida dela, na questão da saúde, da vivência da família que estava muito difícil”, posto que “era difícil os maridos deixar as suas mulher estar discutindo suas vidas, e a gente começou pelo babaçu”. A ASMUBIP, no entanto, não foi criada como uma associação de quebradeiras de coco, o que justifica-se, segundo a entrevistada, por suas fundadoras entenderem que o trabalho extrativista do babaçu, realizado quase totalmente por mulheres, não pode ser compreendido de forma desarticulada da agricultura, parcialmente também praticada por pessoas do gênero feminino: A gente não quis fazer uma associação só de quebradeiras; fazer uma associação só de quebradeiras é difícil porque não existe ninguém que viva só de extrativismo, não existe, mesmo a pessoa tendo terra, ela pode até viver quebrando coco para comprar o que comer, mas na época assim pega um pedaço de roça, um pedaço de terra, ela faz assim uma divisão, ela colhe arroz, feijão, de qualquer maneira para botar para dentro de casa para ajudar na manutenção da família; nem o cara que tira a seringa, nem a quebradeira de coco, nem ninguém, quem vive da natureza, não vive só das coisas que natureza produz, vive também daquilo [que] 11 Entrevista realizada em 14.08.2007, na casa da entrevistada, em São Miguel (TO). Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 89 89 12/11/2010 10:33:45 produz na terra, que brota debaixo da terra, que se planta debaixo da terra e que se colhe. Porém, além das questões inerentes à condição feminina no meio rural, havia indiscutivelmente a necessidade de oferecer-se respostas a outros problemas estruturais correlacionados com os da mulher no campo, como a desvalorização social do babaçu e, por conseguinte, do trabalho das quebradeiras, a baixa nos preços dos produtos, a proibição de acesso aos babaçuais e a destruição ostensiva destes, que apresentavam efeitos diretos na vida de tais mulheres, problemas estruturais estes que estavam muito proximamente associados à expansão da pecuária e de monoculturas como a soja e o eucalipto na pré-Amazônia, acrescidos do acirramento dos conflitos sociais entre fazendeiros e grileiros e os trabalhadores rurais na segunda metade da década de 1980. Conforme ressalta Raimunda Nonata: [...] quando a gente criou a associação essa questão da valorização do produto, das atividades da quebradeira, ela era uma coisa que já estava acabando aqui na região, nós estava assim desde 1987. Parou a atividade, nós estava largando de quebrar coco. Logo, a região estava tomada de fazendeiro, tinha poucos assentamentos, o povo estava na luta pela terra nos anos 80 e a região estava no auge do conflito. Então, nesse tempo o conflito vinha de todo lado, e aí o pessoal que se dizia dono das terras estava degradando tudo, né? Não deixava as companheiras pegar coco para quebrar, então o valor do coco foi lá para baixo, não tinha ninguém mais comprando coco na região, elas não tinha o que quebrar, as companheiras não podia entrar para pegar, aí o conflito estava muito grande, as pessoas tinham medo de... né? Foi até arrastado mulher de dentro de quinta, amarrada no cavalo, para não pegar o coco [...]. A fim de reverter este quadro de parca valorização do trabalho extrativista de babaçu, a ASMUBIP desenvolveu, segundo Miguel Henrique P. Silva (2000), três estratégias principais: 1) a instalação de núcleos que, aliás, foram implantados antes mesmo da formalização da associação, objetivando discutir os problemas associados às mulheres, entre eles a violência, o preço das amêndoas e a preservação do meio ambiente, obtendo-se através destas discussões uma ligação mais intensa das lutas de gênero com as ações de conscientização ambiental e política; 2) a implantação de cantinas nos povoados mais afastados das sedes localizadas na área urbana dos municípios, visando suprir as necessidades básicas das sócias da associação, sendo então vendidas ou trocadas por amêndoas de 90 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 90 12/11/2010 10:33:45 babaçu mercadorias como café, açúcar, querosene, esponja de aço, lápis, creme dental, etc., incluindo o próprio babaçu; e 3) após o surgimento de mercadinhos nos referidos povoados, as cantinas foram gradativamente substituídas por postos de compra, onde a associação compra as amêndoas sem, no entanto, oferecer a alternativa de troca por mercadorias. Atualmente, apenas as estratégias 1 e 3 continuam sendo utilizadas. Estas estratégias estimularam as quebradeiras, que estavam abandonando o trabalho no coco enquanto uma forma de geração de renda (o babaçu enquanto valor-de-troca, pois jamais deixou de ter valor-deuso), a retomar e expandir a atividade extrativista, contribuindo, além disso, para a elevação no preço dos produtos derivados do babaçu e até mesmo para uma mudança no modo como o extrativismo do coco era socialmente percebido, conferindo maior visibilidade à, por assim dizer, causa das quebradeiras, consoante afirmação de Raimunda Nonata: [...] com a vinda da associação começou a comprar o coco também delas, aí elas voltaram a quebrar coco porque a associação não ia incentivar elas a quebrar porque é uma coisa que elas sabiam quebrar, não é uma coisa que você vai aprender hoje aqui, começar a aprender, né? Mas é uma coisa que você já sabia, parou de fazer e aquela renda que tu tinha acabou, não tinha mais. Aí, com a vinda da associação, elas começaram a quebrar e até hoje a associação precisa de comprar, comprar babaçu, mas se ela não tem dinheiro, eles estão comprando por aí o babaçu, né? Tem alguém comprando, então a associação é um concorrente deles, então nós temos dinheiro nas contas, mas se não tem, eles compram o babaçu por pouquinho dinheiro, assim por 60, 70 [centavos de real por quilo], mas quando a associação chega para comprar aí eles aumentam o preço, então, quer dizer, a associação é uma coisa que está obrigando eles a colocar um valor no babaçu, né? Porque se nós compra, eles também compram, e se nós compra de um preço eles aumentam mais o preço, então eu acho que é uma coisa positiva isso aí. E depois da associação o preço também... a divulgação também do babaçu, da atividade aumentou muito nesses últimos anos. Eu estou sentindo assim que a sociedade mesmo está falando muito do babaçu, né? O MIQCB surgiu, temporalmente, em paralelo à ASMUBIP, embora espacialmente abrangendo quatro Estados: Maranhão, Piauí, Tocantins e Pará. Apesar disso, as relações entre ambas as instituições são deveras muito próximas, algumas quebradeiras de coco entrevistadas chegando a considerar que ambas Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 91 91 12/11/2010 10:33:45 constituem um único movimento social: “as pessoas que criaram o Movimento Interestadual eram as mesmas pessoas que estavam no movimento aqui”12, “as quebradeiras de coco, onde tem o núcleo da ASMUBIP, são as mesmas pessoas que estão sendo trabalhadas no Movimento Interestadual, então é uma coisa só, né? É só o nome que muda”. A institucionalização do Movimento conferiu maior força material e simbólica às iniciativas das associações de trabalhadoras rurais que lhe antecederam, reforçando não somente as reivindicações comuns aos demais trabalhadores rurais – como as lutas por acesso e uso da terra –, mas principalmente algumas particularidades do modo de vida das quebradeiras de coco que lhes faziam defrontar com questões próprias, isto é, peculiaridades que diferenciavam as quebradeiras dos outros trabalhadores rurais e geravam uma identificação (identidade coletiva) entre aquelas, como as questões da preservação dos babaçuais, do livre acesso às palmeiras de babaçu e do uso comum dos frutos. Na pauta das lutas e reivindicações do MIQCB, segundo consta em um abaixo-assinado constituído no II Encontro Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, estavam e ainda estão, por exemplo: 1. Desapropriação de todas as áreas de conflito na região dos babaçuais. 2. O coco liberto: acesso às palmeiras de babaçu para as mulheres e crianças extrativistas, mesmo nas propriedades privadas que não cumpram sua função social. 3. Fim da derrubada das palmeiras de babaçu. 4. Fim da violência contra trabalhadores rurais nas áreas dos babaçuais. 5. Recursos para o desenvolvimento de cooperativas. [...]. 6. Imediata implementação das ações de assentamento nas áreas já desapropriadas e das reservas extrativistas. 7. Cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente na zona rural. 8. Medidas que assegurem o cumprimento do Decreto de Reservas Extrativistas (ALMEIDA, 1995, p. 40). O Movimento Interestadual, do mesmo modo que a ASMUBIP, tem adotado um conjunto de estratégias a fim melhorar as condições de vida e trabalho das quebradeiras, retirando-as da invisibilidade que só tende a reproduzir 12 Evidentemente que a entrevistada se referia às pessoas da região do Araguaia-Tocantins que contribuíram para a institucionalização do MIQCB, sendo ela sabedora de que este Movimento para ser criado contou com a participação de quebradeiras dos quatro Estados onde atua. 92 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 92 12/11/2010 10:33:45 as violências físicas e simbólicas que historicamente vêm sofrendo e conferindo uma nova dignidade às suas atividades agroextrativistas: “essas mulheres tinham até vergonha de dizer que eram quebradeiras, tinham vergonha de estar colocando sua identidade como quebradeira, mas depois desse trabalho que a gente vem fazendo melhorou muito, desde a apresentação da mulher, a auto-estima e também a questão da renda familiar”13. Uma das principais estratégias é a implantação de prensas, denominadas localmente de forrageiras, nos povoados que, apesar de poderem apresentar – se não utilizados equipamentos de proteção (que, de fato, conforme as observações de campo, não costumam ser usados) – prejuízos à saúde das quebradeiras em razão do volume de barulho e poeira produzido pela máquina14, contribuem sobremaneira para o melhoramento das condições de trabalho, agilização do beneficiamento do babaçu (manufatura de produtos como o azeite, o sabão e a massa ou farinha de babaçu) e, conseqüentemente, inserção dos produtos no mercado e aumento dos preços, não deixando o controle destes somente a cargo de comerciantes-atravessadores, o que têm inclusive estimulado que um número maior de trabalhadoras rurais da região dedique-se à atividade extrativista, tudo isto ocorrendo pelo fato de que o uso da forrageira substitui o trabalho artesanal de moer as amêndoas, após torradas, estritamente com o uso de pilão, uma atividade demorada e extremamente desgastante, segundo afirmam as quebradeiras: Antes da forrageira era dificuldade demais, a gente quebrava 10 quilos de coco, torrava no pilão e era muito difícil dar 05 litros de azeite. Quando a gente estava com muita coragem de pilar até ele ficar fininho, dava mais, mas só quando a gente estava com coragem, mas cansada de fazer esse serviço não dava para tirar muitos litros. Hoje é uma facilidade. Antes uma dona de casa que tirava azeite de 10 quilos de coco ela passava um tempão, porque só para torrar e passar um pilão era custoso demais. Agora não, a pessoa faz 10 quilos de coco e volta para casa, rapidinho eu môo ele volta aí. [...] 40 quilos que já moí hoje15. Tinha delas que nem tiravam azeite e depois da forrageira hoje já tira o coco e traz, gente mesmo que nunca quebrou assim, apesar de eu nunca ver ela quebrar coco para tirar 13 Palavras de Emília Alves da Silva Rodrigues, em entrevista realizada no dia 02.08.2007. De acordo com Denise, do Centro de Educação do Trabalhador Rural (CENTRU), em entrevista realizada no dia 01.08.2007. 15 Depoimento de uma quebradeira do povoado de Juverlândia, em 11.08.2007. 14 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 93 93 12/11/2010 10:33:45 azeite, até mesmo eu estava admirando essa companheira com o coco dela. Ela disse assim: “Ah! Hoje eu fiz 20!”. Eu disse: “Ah! Então está bom.” Porque ela não moia coco, nunca tinha moído o coco dela, nunca tinha nem visto ela quebrando; agora ela mói coco, então é uma oportunidade muito grande para gente16. Nossa, Denise, eu estou tão feliz porque chegou essa forrageira aqui, porque agora eu pego o meu coco, boto aqui, passo o óleo, pronto! Acabou num minuto. A gente vai fazer o azeite, rapidinho, rapidinho. Isso diminui muito o nosso trabalho17. Outra das principais estratégias utilizadas pelo MIQCB é a diversificação dos produtos e o estudo da cadeia produtiva do babaçu. Tal estratégia vem sendo desenvolvida mediante o oferecimento de cursos, oficinas e debates públicos cuja finalidade é empreender um levantamento dos diversos usos domésticos e comerciais possíveis tendo o babaçu como matéria-prima, assim como através de estudos técnicos acerca da economia do babaçu e seus entraves sócioeconômicos, como os trabalhos “Economia do babaçu: levantamento preliminar de dados”, de Almeida, Shiraishi Neto e Mesquita (2000), e “Guerra ecológica nos babaçuais: o processo de devastação dos palmeirais, a elevação do preço de commodities e o aquecimento do mercado de terras na Amazônia”, de Almeida, Shiraishi Neto e Martins (2005). A diversificação dos produtos é um efeito mais imediato e visível desta estratégia sobre a vida das quebradeiras, passando-se a desenvolver derivações do babaçu como a farinha ou massa do mesocarpo, uma das mais bem sucedidas e promissoras iniciativas, que vem sendo produzida, embalada e vendida pelas quebradeiras, tendo uma boa aceitação no mercado local – por exemplo, as trabalhadoras do povoado de Petrolina estão vendendo sua produção para escolas da rede municipal localizadas na zona rural do município de Imperatriz (MA), para ser usada como merenda escolar de alunos do ensino fundamental, o produto também sendo encontrado nas prateleiras de farmácias de manipulação da região; a abertura de mercados como estes incentivou tais camponesas a buscar financiamento junto ao Banco do Brasil para a construção 16 Dizeres de outra quebradeira do povoado de Juverlândia, em entrevista realizada na mesma data. 17 Palavras de Denise, relatando uma conversa pregressa que tivera com uma quebradeira do povoado de Petrolina. É importante anotar que, no caso de Petrolina, a prensa não foi obtida por intermédio do MIQCB, mas sim através do CNS (Conselho Nacional dos Seringueiros) e da comunidade católica dos Irmãos do Campo. 94 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 94 12/11/2010 10:33:45 da Casa e da Fábrica do Mesocarpo, a fim de empreender um armazenamento e produção da massa ou farinha em maior escala18. O artesanato, embora em estágio bem mais incipiente que os produtos do mesocarpo – fato que se dá ao menos entre as quebradeiras entrevistadas –, é uma outra alternativa promissora à geração de renda para as famílias agroextrativistas da região pesquisada, mas que carece ainda de um desenvolvimento maior para apresentar efeitos mais significativos na vida e na renda das quebradeiras de coco babaçu. Uma terceira entre as estratégias primaciais do MIQCB é a tentativa de afirmação reiterada do direito de acesso livre das quebradeiras aos babaçuais, flexibilizando o direito de propriedade privada e ainda, o que é uma conseqüência direta da realização plena do direito de acesso, exigindo dos proprietários a conservação de uma certa quantidade de palmeiras por hectare de terra. Esta estratégia recorre inicialmente à formação histórica de um direito tradicional, não-oficial e, portanto, não-escrito, de usufruto comum das palmeiras e de acesso livre aos babaçuais preexistente ao processo de apropriação privada das terras da zona ecológica do babaçu e, com efeito, paralelo em relação à ordem jurídica estatal. Não se trata, pois, de um recurso tão-somente a costumes, isto é, a comportamentos regulares e irrefletidos, repetidos apenas por serem habituais. Trata-se, mais do que isto, de uma juridicidade informal, de uma “lei” do coco livre praticada há várias gerações pelos trabalhadores agroextrativista da zona do babaçu e que é representada por estes como constituindo uma “legalidade” que então deve ser respeitada pelos proprietários de terra e garantida pelo Estado, até mesmo porque, antes da intensificação dos conflitos sociais na região nos anos 1980, os fazendeiros locais não costumavam se opor à referida prática, fazendo ela parte da cultura nativa. Dita estratégia desdobra-se na reivindicação, perante o Poder Legislativo dos municípios onde há incidência de babaçuais e atuação do MIQCB, da aprovação de leis municipais do babaçu livre, garantindo o acesso aos palmeirais pelas famílias das quebradeiras e proibindo a derrubada não racionalizada das palmeiras, sendo autorizado somente o desbaste ou raleamento, mantendose no mínimo 40 a 80 (o que varia de conformidade com cada lei municipal) palmeiras adultas e novas (chamadas de pindovas ou pindobas) por hectare. Diante das pressões sociais e políticas, diversos municípios dos Estados do Maranhão, Piauí, Tocantins e Pará aprovaram as chamadas “Leis do Babaçu Livre”, legalizando e, assim, formalizando o direito que as quebradeiras repetidamente alegam como tradicional. Sobre esta estratégia, porém, tratarei mais detidamente no Capítulo III. Mas por agora importa mencionar que ela funcionou, 18 Informações obtidas em entrevista coletiva realizada no dia 15.08.2007. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 95 95 12/11/2010 10:33:45 e funciona até hoje – apesar das dificuldades, observadas durante a incursão empírica em todos os povoados pesquisados, de efetividade principalmente no tocante à preservação das palmeiras –, como um instrumento de valorização das práticas de usufruto comum dos babaçuais ao retirá-las do estado de ilegalidade perante a ordem jurídica oficial, servindo como um mecanismo de defesa, e mesmo de prevenção, diante das arbitrariedades de alguns proprietários. Nas palavras de duas quebradeiras do município de Praia Norte (TO): 1) O que eu acho assim da “Lei do Babaçu Livre” é que ela melhorou um pouco para nós... De primeiro, para a gente pegar um coco era a maior dificuldade, era os donos das terras correrem atrás da gente, às vezes dizia nome para a gente. Hoje, não, está mais melhor, hoje a gente entra, a gente pega os cocos. 2) Bastante, mudou, porque antigamente nós não tinha esse direito de nós chegar, entrar. Era os donos bem na foto, né? Hoje, nós tem, para dizer para os donos que nós não vamos [caçar] vaca e sim catar coco. Por que eles podem caçar uma vaca e nós não pode catar o coco? Nós cata por eles... eles não dizem nada, então mudou, né? A luta pela implementação de Reservas Extrativistas (RESEXs) de babaçu é também uma forma estratégica que, localmente, as quebradeiras e suas famílias, respaldadas pelo Movimento Interestadual, têm utilizado para reproduzir suas práticas e representações tradicionais. Conforme um diagnóstico sócio-econômico realizado pelo MIQCB (SHIRAISHI NETO et al., 2003), a criação das RESEXs de babaçu, quais sejam, a do Ciriaco, a da Mata Grande e a do Extremo Norte, todas localizadas na região do Araguaia-Tocantins, não foi resultante de um processo de reivindicação das trabalhadoras rurais, as quais, à época, concentravam suas disputas no sentido da garantia do acesso e uso da terra. Por esta razão, o critério utilizado para a seleção de que áreas seriam convertidas em Reserva foi o de maior densidade de babaçu em terrenos contínuos. Tais áreas, de consonância com Shiraishi Neto et al. (2003), porém, não possuíam vasta presença de camponeses que trabalhavam com o agroextrativismo, visto que estes trabalhadores costumam exercer a atividade em terrenos que não lhes pertencem, estando sujeitos ou não a contratos de arrendamento ou aforamento. Este fato, somado à inação do Estado no tocante à desapropriação das fazendas afetadas e às demais providências legais necessárias à implementação efetiva das RESEXs, ocasionou que, até os dias de hoje, as Reservas de babaçu ainda não fossem totalmente implementadas. Atualmente, no entanto, 96 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 96 12/11/2010 10:33:45 as quebradeiras entendem que ditas Reservas constituem uma forma alternativa de reforma agrária, algo assemelhado aos PAs mas com peculiaridades, como expressa bem Euvaldo19, funcionário do IBAMA que há mais de dez anos acompanha as lutas das quebradeiras: “eu aprendi desde cedo que a Reserva Extrativista é uma forma também de reforma agrária, porém mais voltada para a preservação ambiental”. Por força disso, as trabalhadoras agorextrativistas vêm lutando para garantir a efetividade das RESEXs, que desde 1992 estão por ser plenamente viabilizadas. Não obstante, uma quebradeira da Reserva do Ciriaco – cuja implementação é a mais adiantada, em comparação com a da Mata Grande e a do Extremo Norte, tendo sido desapropriadas cerca de 70 a 75% das fazendas situadas em sua área de abrangência, segundo Euvaldo e o diagnóstico do MIQCB (SHIRAISHI NETO et al., 2003) – insiste em quanto a RESEXs onde reside foi importante para a reafirmação das tradições de coleta e quebra de coco babaçu e para a geração de renda familiar: Eu percebo que mudou muito, é porque os companheiros que não tinham hoje têm, hoje ele tem como alimentar a família dele. Muitas coisas que aconteciam aqui dentro hoje não acontecem. Os fazendeiros que tinham aqui dentro hoje não estão mais, só está os trabalhadores rurais. Hoje se eles vão plantar uma banana eles já dizem: “Aqui eu vou plantar banana, ali eu vou plantar mandioca, ali o feijão”. E naquele tempo não podia fazer isso até porque o fazendeiro já estava com o material na mão dizendo assim: “Essa daqui é para tu trabalhar!” E aí foi uma das coisas que mudou muito, porque no tempo dos fazendeiros não podia fazer isso, plantar feijão aqui e mandioca para acolá, tinha que encher de arroz. Mas como hoje nós estamos com o pedacinho de trabalho na mão, agora pode fazer isso. Hoje nós temos a cantina aí para comprar babaçu, hoje vêm pessoas de fora que já diz: “Hoje nós vamos passear, mas já vamos prevenidos para comprar um azeite, uma amêndoa do coco para nós trazer, vamos comprar o mesocarpo”. Para além do Movimento Interestadual, as quebradeiras de coco babaçu desenvolvem histórica e localmente outras ações com o intuito de garantir a reprodução material e simbólica de suas práticas e representações tradicionais. Uma destas ações é a cooperação para a coleta e quebra do babaçu, ainda que 19 Em entrevista realizada no dia 16.08.2007, no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Imperatriz (MA). Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 97 97 12/11/2010 10:33:46 tenha sido bastante comum, nas observações de campo, perceber quebradeiras realizando suas atividades isoladamente, no mato ou nos quintais de suas casas. Conforme relata Almeida (1995, p. 38), principalmente quando existe a probabilidade de confrontos direitos com fazendeiros e seus empregados, as “mulheres dirigem-se em grupo para os babaçuais e, não obstante ser individual o ato da quebra, elas o fazem próximas umas das outras, conversando” e, comumente, cantando, suas “posições, entremeadas com os montes de coco respectivos”, descrevendo “a figura aproximada de um círculo”. Em alguns povoados, como o de Juverlândia, no município de Sítio Novo (TO), é possível se observar a prática de uma outra forma de cooperação que não se dá no interior das fazendas, mas sim no âmbito doméstico ou na pequena propriedade de uma quebradeira. Trata-se do que as mulheres pesquisadas chamam de quebra de meia, prática que consiste na coleta individual dos cocos e na quebra destes em cooperação com outras quebradeiras, sendo que parte da produção é então compartilhada com a camponesa que coletou os cocos. Habitualmente a quebra de meia é realizada na residência ou na propriedade da quebradeira coletora do babaçu. Em alguns casos, as trabalhadoras rurais realizam uma espécie de revezamento entre casas ou terrenos e, naturalmente, pessoas coletoras. Entretanto, foi percebido na pesquisa de campo que a concentração da atividade de coleta na pessoa de uma única quebradeira também ocorre em alguns povoados, tal fato não raro suscitando entre as camponesas um certo desconforto dada a proximidade desta relação com a de sujeição – o pagamento ao fazendeiro de parte do babaçu extraído em suas terras é também chamado pelas quebradeiras de quebra de meia –, embora ela poupe as trabalhadoras que quebram de meia do duro trabalho de catar e transportar os cocos para suas casas. A quebra de meia é ainda uma alternativa estratégica à escassez de babaçu causada pela devastação e pelo cerceamento do acesso aos palmeirais – não raramente violento, física e simbolicamente – por parte dos proprietários de terras, de consonância com o que depõe a quebradeira Silene20: A dona B. junta coco, a dona L. junta coco no terreno delas ou então em casa; a gente vem, tem direito a 05 quilos. Se esse coco tivesse aí, se não tivesse a derrubação das palmeiras, se a gente tivesse livre acesso aos babaçuais a gente não tinha essa necessidade de quebrar coco de meia para elas. Não que elas faça uma má coisa, eu até elogio o ato delas, porque é muito difícil juntar coco, é um trabalho enorme. Sem falar no esforço físico, elas dão almoço para a gente, 20 Entrevista realizada em 11.08.2007, no povoado de Juverlândia, em Sítio Novo (TO). 98 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 98 12/11/2010 10:33:46 a gente pode trazer a família toda, até o marido em casa se não for para a roça vem almoçar junto; aqui é uma grande facilidade que elas fazem para a gente, mas se esse babaçual fosse livre, com livre acesso para nós quebradeira, nós não tinha necessidade de quebrar coco de meia para os outros porque a gente tinha esse babaçual, mas os fazendeiros não deixam que a gente quebre coco, tem fazendeiro aí derrubando palmeira, jogando veneno na pindoba, e disse se achar uma quebradeira dentro do terreno dele, se tiver com os cachorros, põe os cachorros, se não tiver cachorro vai amarrar a quebradeira, vai buscar os cachorros e pegar a quebradeira e jogar os cachorros nela. [...] Ela cata, traz junto na carga e dá. Junto, em casa, a gente quebra, só depois de quebrado é que divide com ela, aí leva o da gente para casa. Aí dá de ajudar na luta de casa porque coco é fundamental na vida aqui das quebradeiras [...]. Outra estratégia controvertida – porque estabelece uma forma de sujeição das trabalhadoras rurais a um conglomerado empresarial –, embora bastante eficaz para a reafirmação material e simbólica das tradições associadas à coleta e quebra de coco babaçu, é a adotada pelas quebradeiras de coco do povoado de Petrolina, em Imperatriz (MA). Referido povoado está localizado em uma área circundada de plantações de eucalipto destinadas à produção de papel e celulose pertencente a um megaconsórcio formado, segundo Helciane de Fátima Abreu Araújo (2000), pela associação das empresas Votorantim e Ripasa (com 55% do capital), Companhia Vale do Rio Doce (30%) e Nissho Iwai Corporation (15%). Este projeto, no entanto, pertencia originalmente a CELMAR (Papéis e Celulose do Maranhão S/A)21. À época que o projeto era conduzido pela empresa maranhense, e isto foi transmitido para o consórcio de empresas que hoje o conduz, as quebradeiras de Petrolina – todas camponesas sem terra, residentes em um pequeno vilarejo –, pressionadas pela expansão de carvoarias e pela queima do coco inteiro que ameaçavam sua subsistência (ARAÚJO, 2000), assim como pela devastação ambiental e pelo cerceamento do acesso aos babaçuais por parte 21 Os dados obtidos durante a pesquisa apresentaram contradições no referente a que consórcio de empresas dá hoje prosseguimento ao projeto da CELMAR. Segundo Almeida, Shiraishi Neto e Martins (2005, p. 60), a “CELMAR passou a ser denominada legalmente como Ferro Gusa Carajás, que é um projeto siderúrgico apoiado numa associação entre a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) e a empresa norte-americana Nucor”. Já conforme Almeida (2000), trata-se de um consórcio entre a CVRD, a Nissho Iwai e a Suzano/Feffer. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 99 99 12/11/2010 10:33:46 de fazendeiros, firmaram, em 1998, um contrato de comodato com a CELMAR a fim de garantir o acesso aos palmeirais existentes na Reserva Legal do projeto, local, portanto, de preservação ambiental obrigatória, a quatro quilômetros do povoado. É importante anotar que este contrato foi acordado muito antes da promulgação da “Lei do Babaçu Livre” do município (que se dera em 2003), consistindo, portanto, em um caminho alternativo inédito e controvertido, mas sobremaneira eficiente do ponto de vista nativo, de garantir o “livre” acesso aos babaçuais, sob, evidentemente, condições impostas pela empresa e atendendo também a interesses desta, como o de demonstrar, a partir disso, sua “responsabilidade” sócio-ambiental (ainda que esteja desenvolvendo um projeto de alto impacto social e ao meio ambiente e a relação com as quebradeiras tenha iniciado, segundo informações obtidas nas entrevistas, por iniciativa destas, que procuraram a empresa por sentirem-se ameaçadas). A partir da garantia de matéria-prima que o contrato proporcionou, as quebradeiras puderam desenvolver projetos como a construção da Casa e Fábrica do Mesocarpo, que já têm, incipientemente, colaborado para o aumento da renda familiar, o que funciona como um estímulo à atividade extrativista no povoado. Nas palavras de Teresinha22, presidente da Associação das Quebradeiras de Coco Babaçu de Petrolina (fundada três meses antes da celebração do contrato objetivando, justamente, consolidá-lo formalmente): A empresa... quando a gente chegou até eles para falar que estava queimando o carvão, como nenhuma de nós (nós somos 44) tinha terra, nós ficamos preocupadas onde que nós ia coletar o coco, se os fazendeiros não estavam deixando a gente entrar mais, a gente viu que era uma empresa muito grande e que a gente tinha que se apegar a eles, que eles não tem precisão, eu acho, não sei, né? Não tem muita precisão desse coco. Na verdade eles disseram, quando a gente chegou até eles, disseram que nem conhecia o que era isso, a gente foi e explicou para eles o que é que nós estava precisando, o que é que a gente queria, que era entrar e coletar o coco igual como a gente já vinha fazendo; eles disseram que sem problema, que a gente podia entrar, mas depois trouxeram o contrato para nós assinar. Esse contrato, como eu já falei, a gente não paga nada, é só zelar a área. [...] Na verdade a área em que a gente trabalha, com o contrato de comodato com a empresa, ela é uma área de reserva da 22 Entrevista realizada em 15.08.2007, no povoado de Petrolina, em Imperatriz (MA). 100 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 100 12/11/2010 10:33:46 empresa, nela tem uma área de eucalipto muito pequena, aqui próximo, toda é uma área de reserva da empresa que ele tem obrigação de botar, e nessa área, como ela já falou, a gente tem o direito de extrair só o coco de babaçu, a gente não tem direito a tocar em outras [árvores]. Até porque a nossa vontade é preservar mesmo, preservar a árvore, nós somos contra a derrubada das palmeiras, nós se organizamos foi justamente por isso, para evitar, para denunciar a derrubada. [...] Eu não sei as companheiras, eu ainda dou graças a Deus deles ter cedido essa área para nós porque os fazendeiros não iam fazer isso, arrendar essas terras para nós, porque eles não querem aproveitar que nem nós aproveita, eles querem o mais fácil porque eles queimam hoje e amanhã eles têm dinheiro, e assim... Já a empresa, ela deixou nós montarmos essa estrutura aí que nós já falamos com eles que eles não vão deixar de ceder essa área aí para nós porque a gente está trabalhando esse tempo todo, de 98 para cá, e nunca tivemos problema com a empresa, nunca teve problema, a família da gente nunca teve problema, e eles disseram que é para nós não se preocupar não que não vai faltar coco. Aí eu digo assim: eu agradeço porque mesmo tendo muito coco nessa área e eles não precisam, mas se não fosse a firma nós não tinha mais onde entrar não, os fazendeiros não deixam não, mas não deixam mesmo, e a firma apesar de ter o contrato nós pode entrar, nós tem barraco dentro da área, nós vamos para lá, passa o dia lá na beira do brejo, aquela paz e, ave Maria, nem se compara, muito bom, pedindo a Deus que eles continuem cedendo essa área para nós. As estratégias descritas apenas exemplificativamente acima, e os casos das mulheres de Juverlândia e Petrolina são dos mais exemplares justamente por não serem “bem vistos” por parcela das camponesas integrantes do MIQCB, demonstram que as quebradeiras de coco babaçu constituem uma população que, como as estudadas por Marshall Sahlins (1988), é produtora de sua própria história, ainda que estabeleça relações muito próximas com o colonizador sistema capitalista – o movimento social das quebradeiras, conforme percebido, sempre buscou relacionar-se com a economia de mercado, o babaçu jamais deixando de possuir para as trabalhadoras pesquisadas valor-de-uso e valor-de-troca, ainda que esta interação nem sempre lhes favoreça –, visando, no entanto, através destas relações de interculturalidade, garantir uma forma de desenvolvimento Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 101 101 12/11/2010 10:33:46 do ponto de vista local, isto é, das quebradeiras, o que Sahlins chamara de “develop-man” (no presente caso, um verdadeiro “develop-woman”), reafirmando assim os projetos nativos de garantir a reprodução material e simbólica das práticas e representações das quebradeiras por intermédio de uma melhor inserção no mercado, ou seja, em condições competitivas mais favoráveis ou menos desfavoráveis, dos produtos oriundos do babaçu manufaturados localmente. Sem embargo, a institucionalização do movimento das quebradeiras de coco babaçu, principalmente a partir do MIQCB, foi um evento de sobeja importância para estabelecer rupturas significativas com uma história reificada de sujeição das trabalhadoras rurais aos pecuaristas herdeiros do antigo sistema do patriarcado rural e suas respectivas relações de patronagem. Trata-se de um evento importante também para transformar as relações entre as quebradeiras e os interesses masculinos predominantes nas lides dos trabalhadores rurais do Araguaia-Tocantins, re-significando o papel, outrora passivo e agora pró-ativo, da mulher no meio rural e nas disputas de natureza político-econômica, além de re-significar igualmente as relações domésticas de dominação, conferindo uma relevância cada vez maior ao trabalho feminino tanto dentro quanto fora, mas principalmente fora, do âmbito da “casa”. Isto, porém, não elimina outros problemas estruturais que as quebradeiras de coco babaçu têm enfrentado atualmente, com o surgimento de novos agentes econômicos na pré-Amazônia e, por conseguinte, novos conflitos sociais, que vêm transformando a paisagem e as formas de trabalho na região do Araguaia-Tocantins e afetando sensivelmente a vida das quebradeiras. 2. QUEBRADEIRAS DE COCO FACE ÀS “NOVAS ESTRATÉGIAS EMPRESARIAIS” Na zona ecológica do babaçu, hodiernamente, é perceptível uma ofensiva sobre os modos de produção tradicionais denominada pelos documentos do MIQCB de “novas estratégias empresariais”, as quais apóiam-se precipuamente na elevação do preço de commodities como carne in natura, soja, papel e celulose, ferro-gusa, biodiesel e madeira. A elevação no preço destas commodities conduz a uma concomitante expansão de atividades como a pecuária, a sojicultura, o plantio de eucalipto e mamona, a exploração madeireira, entre outras, na região tocantina. Tais estratégias empresariais demandam vastas extensões de terra, o que acentua as já intensas pressões sobre os recursos naturais e o mercado de terras na pré-Amazônia, pondo assim em situação de risco as terras tradicionalmente ocupadas pelas quebradeiras de coco babaçu e, consequentemente, a forma 102 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 102 12/11/2010 10:33:46 de vida e trabalho destas mulheres. As “novas estratégias empresariais” realizam um processo predatório bastante singular, pois não se trata da subida de preço de uma commodity em particular, como outrora já ocorrera na história da região – por exemplo, quando do despertar de interesse empresarial pela pecuária extensiva e pelo plantio de soja –, mas sim de diversas commodities paralelamente (ALMEIDA, SHIRAISHI NETO & MARTINS, 2005). A devastação dos palmeirais e sua consecutiva substituição por pastagens e monoculturas agrícolas, conforme Almeida, Shiraishi Neto e Martins (2005, p. 34), aparece agora “combinada com a intensificação da extração ilegal de madeiras, com a disseminação de plantações de eucalipto e a produção ilegal de carvão vegetal”, principalmente do carvão produzido a partir do coco de babaçu inteiro, isto é, não-beneficiado. Estas estratégias, dadas as suas características, acabam por contribuir para um aumento vertiginoso no preço das terras, visto que “os preços mais elevados das commodities estimulam as transações de compra e venda de terras, os atos de arrendamento de imóveis rurais, bem como estimulam as ações de apossamento ilegítimo por grupos empresariais interessados em extensas áreas” (ALMEIDA, SHIRAISHI NETO & MARTINS, 2005, p. 34). Além de novas motivações para o cerceamento do acesso livre aos babaçuais, as “novas estratégias empresariais” ocasionam alguns outros efeitos predatórios, como a devastação dos palmeirais para a plantação de capim, destinado à pecuária, ou de monoculturas agrícolas e como a coleta e queima indiscriminada do coco inteiro que, juntamente com o advento de novas categorias de trabalhadores rurais com um grau bastante elevado de imobilização e sujeição a setores dominantes do sistema capitalista (grandes empresas e latifundiários, por exemplo), ou seja, os catadores e carvoeiros, afetam a sustentabilidade dos cocais e desestruturam o modo de vida e trabalho das quebradeiras, que se recusam, principalmente as mais organizadas, a serem convertidas – tal como o empresariado planeja e gostaria – em meras catadeiras e/ou carvoeiras, abrindo mão assim das atividades tradicionais de beneficiamento do babaçu. As quebradeiras enfrentam na atualidade, portanto, problemas como a intensificação da derrubada das matas onde exercem seu ofício e as iniciativas que pretendem reduzir as atividades das famílias extrativistas à simples coleta do coco babaçu que, além de afetar o modo de produção tradicional, ameaça a própria identidade das quebradeiras, segundo atentamente observa Almeida, Shiraishi Neto e Martins (2005). Os mesmos autores lembram ainda que estas iniciativas empresariais fomentam a comercialização do coco inteiro, utilizado como matéria-prima por empresas que beneficiam mecanicamente e em larga escala o babaçu, e sua transformação em carvão, que é usado seja como insumo nas Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 103 103 12/11/2010 10:33:46 usinas que produzem ferro-gusa, seja como combustível de uso doméstico para famílias de baixa renda sitas em núcleos urbanos próximos às áreas de coleta. Os catadores de coco e carvoeiros diferenciam-se das quebradeiras e dos demais trabalhadores rurais organizados em movimentos sociais principalmente por sua condição de imobilização e dependência estrutural dos proprietários de terra e empresas, estabelecendo com estes contratos, no mais das vezes informais, de trabalho, arrendamento ou fornecimento dos cocos de babaçu transformados em carvão ou in natura. Os carvoeiros são nada mais do que uma modalidade de catadores que, além da coleta, incumbem-se de produzir o carvão a partir da matéria-prima catada nos babaçuais de sua propriedade ou de terceiros, arrendados ou não, mediante contrato de trabalho ou não. Conforme uma das obras elaboradas no âmbito do MIQCB, os catadores de coco, geralmente do gênero masculino (embora se encontre entre eles também quebradeiras, a maioria desarticulada do Movimento): Consistem em trabalhadores aliciados por interesses das carvoarias e indústrias guseiras e de óleos vegetais para o desempenho de tarefas remuneradas por produção. Trata-se de atividades eventuais de coletar o coco inteiro e transportá-lo para os fornos. Tais tarefas são executadas em condições análogas ao trabalho escravo. Os trabalhadores passam dias arranchados nos cocais, sobrevivendo em condições subumanas e sem nenhum direito trabalhista assegurado. Imobilizados por dívidas e adiantamentos não têm como resistir a seus contratantes e acabam aceitando toda sorte de imposições (ALMEIDA, SHIRAISHI NETO & MARTINS, 2005, pp. 24-25). O trabalho dos catadores, de acordo com Almeida, Shiraishi Neto e Martins (2005), dá-se mediante o uso de um saco ou cesto, o chamado jacá, carregado às costas e no qual o trabalhador vai colocando os cocos coletados, que podem ser verdes ou maduros, velhos ou ainda umedecidos, estando nos cachos ou no chão. Os catadores amontoam os cocos catados para, em seguida, serem recolhidos por veículos transportadores de propriedade de atravessadores, denominados de gaiolões ou caçambas, que fazem a intermediação informal entre os catadores e as empresas de ferro-gusa e de óleos vegetais ou prestam serviços contratados por estas. Referida forma de trabalho, de conformidade com os autores acima mencionados, opõe-se diametralmente ao trabalho realizado pelas quebradeiras, caracterizado por uma relativa autonomia em relação aos setores empresariais e pela condição eminentemente feminina das extrativistas, além do 104 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 104 12/11/2010 10:33:46 trabalho de cata dos cocos não requerer maiores qualificações, enquanto que o das quebradeiras exige saberes práticos acerca do ecossistema e de como proceder na coleta e quebra do babaçu, o conjunto destes saberes, acrescidos de regras relativas ao saber-fazer produtos derivados do babaçu e à arte de elaboração de objetos artesanais a partir das folhas, fibras e palhas, constituindo um conhecimento tradicional. Por estes motivos, a atividade das quebradeiras apresenta, diferentemente do que ocorre no caso dos catadores, uma consciência ambiental aguçada e uma sabedoria transmitida de geração para geração quanto ao manejo dos palmeirais, muito nítidas no cuidado que estas trabalhadoras têm com os olhos d’água, no desbaste que realizam a fim de “evitar uma densidade de palmeiras que coloque em risco a quantidade produzida”, na seleção de árvores com melhores frutos, no respeito às regras de não cortar os cachos, no modo de beneficiar o fruto, “rompendo compassada e manualmente a casca e separando o núcleo para extrair a amêndoa, intacta e sem danos”23 (ALMEIDA, SHIRAISHI NETO & MARTINS, 2005, p. 44). Segundo Querubina Neta24, coordenadora da Regional Imperatriz do MIQCB, a tendência de cata do coco inteiro confere maiores justificativas para 23 Ainda sobre este conhecimento tradicional, dissera Querubina Neta, em entrevista realizada no dia 31.07.2007: “A palmeira... é muito interessante o seu processo. Você planta ela, com 09 meses começa a sair o olhinho, racha o coco, planta ele na terra fértil. Com 09 meses brota a primeira palhinha. Com 15/16 anos ela brota o primeiro cacho, brotando aquele cacho, quando ela está abrindo o pendão, ela geme igualzinho a mulher parindo, do mesmo jeito [...]. Quando se escutar aquele gemido, pode procurar que tem uma palhinha soltando o pendão. E com 09 meses aquele coco começa a cair, é igualzinho a uma mulher, não tem o que tirar.Tem que ter a lua para você utilizar a palha do coco, tanto para cobrir casa para ela durar mais, quanto para fazer esses artesanatos. Tem que ter o período da lua para se retirar a palha. Se tu tirares na lua nova, ele rende muito pouco, quebra demais, seca mais rápido, dá um trabalho desgramado. Tu tens que aproveitar a crescente da lua, chegamos à conclusão de o porquê que o trabalho é exclusivo para mulher. É uma ciência. Para tirar o óleo, tem que ter horário para isso: tem que cerrar o coco à noite, moer cedo para aproveitar o crescer do sol, o nascer do sol, porque o óleo é limpo e rende mais. Então, é uma ciência muito grande, e uma ciência de mulher. Para fazer sabão do óleo do coco ou sabonete, desses que eu sei fazer, tu não podes fazer com muita gente, o máximo que tu podes trabalhar são 04 pessoas. Na hora de processar sabão ou sabonete, ou o que for que esteja fazendo, de 04 pessoas para frente é uma ciência que eu não sei, porque se mistura um momento com o outro, um aumenta, outro diminui, não dá certo. É uma ciência”. 24 Entrevista realizada no dia 31.07.2007, no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Imperatriz (MA). Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 105 105 12/11/2010 10:33:46 o cerceamento do acesso aos babaçuais “porque ele [o proprietário] agora está arrendando o coco, está vendendo. Antes ele impedia só para não entrar, hoje ele está impedindo para não entrar porque ele já ganha uma porcentagem nesse aluguel desse babaçu que está vendendo para a Ferro Gusa”. A estrita coleta do coco babaçu e a feitura do carvão a partir dele vêm tornando-se uma alternativa de geração imediata e relativamente constante de renda não somente para os trabalhadores rurais, mas igualmente para fazendeiros e arrendatários. Isto oferece mais uma motivação para impedir que as quebradeiras acessem os palmeirais, justamente porque se estabelece uma relação de concorrência não apenas entre estas e os catadores, mas também entre quebradeiras e fazendeiros e arrendatários, e sem dúvida as indústrias de ferro-gusa contribuem sobejamente para o acirramento destes conflitos ao disseminarem baterias de fornos para a produção de carvão, estimulando assim o cerceamento e o arrendamento das terras tradicionalmente ocupadas pelas quebradeiras. Estes são conflitos, porém, que nem sempre se dão dentro dos babaçuais e diariamente. No interior dos palmeirais, no entanto, há o embate mais cotidiano entre quebradeiras e catadores, antagonismo que tem requerido das primeiras novos cuidados no trabalho de coleta, tais como a prática de esconder os cocos, a fim de que não sejam roubados por outra mulher (dada a “escassez” de matéria-prima que a atividade dos catadores ocasiona) ou pelos próprios catadores, e o transporte dos cocos para locais mais remotos e de difícil acesso (ALMEIDA, SHIRAISHI NETO & MARTINS, 2005). Sobre os impactos que as “novas estratégias empresariais” têm produzido na vida das quebradeiras do Estado do Pará, Shiraishi Neto (2000, pp. 165-6) afirma, referindo-se à situação da Vila São José, no município de São Domingos do Araguaia: A derrubada das palmeiras tem reduzido as áreas de coleta e diminuído os recursos disponíveis, provocando situações não vivenciadas pelas quebradeiras em outras regiões, como a própria disputa pelo coco ou uma pegar o coco juntado pela outra quebradeira. Ou seja, o recurso que era comum, acessível a todas as mulheres e famílias, após ser privatizado, passa a ser destruído. [...] Outra situação que decorre é que as áreas de coleta de babaçu e as próprias palmeiras entre si acabam ficando cada vez mais distantes de suas residências, acabando por aumentar o trabalho das mulheres de juntar e trazer os cocos, tornando mais penosa a atividade. Para as mulheres está cada vez mais difícil a atividade do babaçu. Elas têm de coletar o coco em lugares cada vez mais distantes. 106 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 106 12/11/2010 10:33:46 As quebradeiras desenvolvem estratégias próprias para enfrentar estes problemas estruturais nos quais estão inseridas. Uma destas estratégias – aliás, mais uma tática emergencial de sobrevivência – é mencionada por Shiraishi Neto (2000) e consiste na burla à vigilância dos fazendeiros e arrendatários, entrando nos cocais escondidas, sorrateiramente. Segundo uma quebradeira do povoado do Piquizeiro25, quando os fazendeiros proibiam a entrada nos cocais, “a gente ficava na pesquisa, entrando escondidinho porque era obrigado, porque você sabe que aqui as pessoas são fraca de condição”, tendo, portanto, precisão (expressão nativa que indica estado de necessidade) de acessar aos babaçuais. Maria Batista26, de um povoado do município de Praia Norte (TO), descreve com mais detalhes esta prática, representando-a, no entanto, como roubo ainda que legítimo: “nós vamos bem escondidinha, nós rouba, nós rouba o coco”, “nós vamos bem devagarzinho, para o dono não perceber”, “nós sai, com um saco aqui no ombro, reparando se vem ou se não vem”, “quando não vem, nós enche o saco e bota aqui e faz de conta que nós estamos quebrando, se fazendo de besta”. Esta é uma estratégia que, entretanto, possui limitações por criar um clima de desconfiança entre quebradeiras e fazendeiros e arrendatários, intensificando os conflitos. Durante a pesquisa de campo, em um rumo diverso, foi possível observar iniciativas tendentes a estabelecer parcerias entre adversários estruturais. Uma delas foi a discussão das quebradeiras do Pará e do Tocantins, por intermédio do MIQCB, quanto à possibilidade de estabelecer um contrato de fornecimento de cerca de mil litros/mês de óleo de babaçu à uma indústria de sabão localizada no município de Redenção (PA). Além desta iniciativa, observou-se uma reunião de planejamento com representantes do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e do SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) que objetivou, entre outras coisas, reconstruir a cadeia produtiva do babaçu na mesorregião do Bico do Papagaio, com a participação das quebradeiras, e sensibilizar o empresariado para sua efetiva realização (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 2007). Estes dois exemplos consistem em partes de uma estratégia menos conflitante, mas ainda bastante incerta quanto aos benefícios que trará a médio e longo prazos às trabalhadoras extrativistas, com os interesses empresariais dominantes: a de estabelecer parcerias diretas – sem intermediários (comerciantes-atravessadores) – com empresas que sob outras condições apresentar-se-iam como antagonistas. As incertezas patentes destas relações e a possibilidade de elas imiscuírem-se 25 26 Entrevista realizada no dia 11.08.2007, no povoado do Piquizeiro, em Axixá do Tocantins. Entrevista realizada em 14.08.2007, no município de Praia Norte (TO). Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 107 107 12/11/2010 10:33:46 tão-somente nos interesses capitalistas em detrimento dos interesses das quebradeiras, são assemelhadas às que exigem de Almeida (2000, pp. 33-4) algumas ponderações, quando afirma que as “novas estratégias empresariais”: [...] querem discutir a economia do babaçu através das possibilidades de seu uso como carvão nas usinas de ferro-gusa da região de Carajás ou através de ações associativas propostas por indústrias de papel e celulose. Percebe-se que tais estratégias empresariais estão se confundindo com políticas governamentais [...]. Ambas falam de “parceria” com as trabalhadoras agroextrativistas e apontam para o reconhecimento de um novo capítulo do extrativismo na Amazônia, porém essa interlocução parece eivada de confusões que, inclusive, podem resultar em medidas desorganizadoras da economia do babaçu27. Ditas incertezas apresentam-se justamente porque, além de nem sempre corresponderem às expectativas e necessidades das quebradeiras, as “novas estratégias empresariais” realizam o que os documentos do MIQCB chamam de “modernização predatória”, pois tendem a devastar rápida e quase inteiramente os recursos naturais, menosprezando a fragilidade dos ecossistemas. Por enfatizarem o mercado de commodities, empreendem uma exploração desregulada, despreocupada com a preservação sócio-ambiental, depreciando celeremente o meio ambiente e os modos de organização social e trabalho nativos, a intensidade da exploração flutuando de conformidade com as variação dos preços naquele mercado. Esta “modernização predatória” é também “modernização conservadora”, favorecendo os projetos de dominação tradicional (no sentido weberiano, descrito alhures) ao restringir o acesso livre aos palmeirais e confrontar as famílias de quebradeiras e catadores, produzindo formas de imobilização social e 27 Um indicativo desta possibilidade de desorganização da economia tradicional foi observado exatamente em uma reunião de planejamento promovida pelo MMA, onde um representante do SENAI insistia reiteradamente na necessidade de utilização de máquinas para o beneficiamento do babaçu, especialmente para a retirada das amêndoas, por ser este um trabalho penoso e demorado, em face das resistências e contra-argumentos também reiterados das quebradeiras participantes da reunião, que então buscavam demonstrar que se a prática de quebra fosse substituída por maquinários o trabalho das quebradeiras se reduziria à coleta e queima do babaçu, transformando-as em catadeiras e carvoeiras, descaracterizando sua própria identidade. 108 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 108 12/11/2010 10:33:46 dependência estrutural (ALMEIDA, SHIRAISHI NETO & MARTINS, 2005). Além do caso dos catadores e, por seguimento, dos carvoeiros, o caso do advento da CELMAR em Imperatriz é um outro exemplo da “modernização predatória e conservadora” de que estou falando, pois converteu trabalhadores agroextrativistas relativamente autônomos em empregados temporários incumbidos da devastação dos babaçuais (outrora sua única fonte de renda e subsistência, acompanhada apenas da roça), que então foram gradativamente substituídos por vastas plantações de eucalipto, também realizadas pelos camponeses locais por ordem da empresa contratante, que exploraria tal matéria-prima para a produção de papel e celulose, a médio e longo prazos prejudicando a forma de sobrevivência dos moradores locais, conforme relata uma quebradeira do povoado de Petrolina: Quando foi um dia, que eu não estou lembrada o dia da semana, os homem da firma chegaram, já chegaram com a roupa e os calçado e tudo, meu marido nessa época passou 09 meses trabalhando e o meu cunhado passou 01 ano, aí entraram nessa mata, nesses mato para estar sendo as veredas. [Pesquisador pergunta: “Trabalhando para a firma?”] É! Trabalhando para a firma. [...] Era fazenda picada, como a gente chama vereda, sabe? No mato faz aquelas divisas, coloca aqueles cantos, não sei quantos metros. E aí chegou o tempo de plantar o eucalipto, o eucalipto já estava desse tamanho. [Pesquisador pergunta: “O pessoal aqui também trabalhava no plantio do eucalipto?”] Sim, do eucalipto... Chegou nessa época, antes do eucalipto chegou a desmatação, derrubava a palmeira... É! Derrubava para separar a área que eles iam plantar o eucalipto. Antes do eucalipto era tudo palmeiral, e foi derrubando a palmeira e acabando e hoje nós estamos assim... Está fraco de roça. Além do projeto da antiga CELMAR, hoje Ferro Gusa Carajás, as siderúrgicas do município de Açailândia (MA), a TOBASA Bioindustrial, sita no município de Tocantinópolis (TO), e as indústrias de ferro-gusa localizadas em Marabá (PA), como a COSIPAR, tornam-se as grandes antagonistas das quebradeiras de coco babaçu do Araguaia-Tocantins, exatamente porque contribuem para a mudança na paisagem rural e nas formas de viver e trabalhar tradicionais que têm, há várias gerações, garantido a subsistência dos camponeses nativos e migrantes do leste maranhense e do semi-árido nordestino. Trata-se agora de uma colisão de interesses que se adere aos confrontos habituais entre quebradeiras e proprietários de terra; no entanto, difere destes confrontos especialmente por enHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 109 109 12/11/2010 10:33:47 volver projetos de interesse econômico ainda mais poderosos do que a pecuária expansiva e não menos predatórios que esta. Exemplo de tais projetos é a ainda incipiente, mas iminente, discussão quanto à produção de biodiesel na pré-Amazônia. Os debates consistem, segundo informações tomadas em entrevistas com Denise Leal e Emília Rodrigues28, também em uma colisão de interesses: por um lado, as estratégias empresariais que defendem que o biodiesel deve ser produzido tomando por insumo a mamona, o que exigiria vastas plantações (monocultura agrícola) obedecendo um modelo assemelhado ao das antigas plantations, requerendo naturalmente a devastação dos babaçuais e a conversão do trabalho agroextrativista em trabalho assalariado destinado ao plantio e colheita da mamona; e, por outro lado, as quebradeiras defendendo a produção do biodiesel a partir do babaçu, cuja coleta e beneficiamento inicial então seria realizado pelos trabalhadores locais, o que, porém, requereria uma verdadeiramente improvável agilização do processo de reforma agrária (por intermédio de PAs ou de RESEXs) na região tocantina a fim de que os camponeses pudessem ocupar legítima e legalmente as terras onde há incidência de babaçuais, não estando condicionados aos interesses dos grandes proprietários que, em havendo a valorização do babaçu, certamente tenderiam a pretender explorar os recursos dos palmeirais localizados no interior de suas propriedades, convertendo – mais uma vez, embora por outra via – os trabalhadores agroextrativistas em assalariados e dependentes economicamente do setor empresarial. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto, esboço algumas conclusões: 1. Em função do movimento social das quebradeiras reafirmar, desde sua formação, e de modo reiterado, a cultura associada ao trabalho no coco, reinventando-a cotidianamente, pode-se inferir que suas ações promovem um processo de (re)tradicionalização ou (re)invenção de tradições. Este processo é sinônimo de “reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória”, forçando assim a visualização de “contrastes entre as constantes mudanças e inovações do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira 28 Entrevistas realizadas nos dias 01 e 02.08.2007, respectivamente. 110 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 110 12/11/2010 10:33:47 imutável e invariável ao menos alguns aspectos da vida social” (HOBSBAWN, 2006, p. 10). A tradicionalidade, no caso das quebradeiras, refere-se então a reivindicações contemporâneas de um grupo social que vem participando do processo de construção da própria definição do que seja tradicional, através de mobilizações e da elaboração de uma identidade coletiva objetivada em movimento social (ALMEIDA, 2006a). Desta forma, o tradicional é social e politicamente construído, lembra Alfredo Wagner Berno de Almeida (2006a). Tradição, nestes termos, não deve ser confundida necessariamente com regularidade e repetição não-consciente e/ou irrefletida, noções que mais bem se ajustam ao conceito weberiano de costume (WEBER, 1999). Ao contrário, como explica Almeida (2006a, p. 11), tradicionalidade, aqui, diz melhor respeito a processos reais de uma população que transforma “dialeticamente suas práticas, mesmo quando” as converte “em normas para fins de interlocução, redefinindo suas relações sociais e com a natureza, tais processos nos levando a pensar em” uma comunidade dinâmica, “cujos princípios encontram-se em transformação”. 2. Em razão deste processo de (re)tradicionalização, as quebradeiras de coco babaçu constituem uma população que, como as estudadas por Marshall Sahlins (1988), é produtora de sua própria história, ainda que estabeleça relações muito próximas com o colonizador sistema capitalista – pois o movimento social das quebradeiras tem buscado relacionar-se com a economia de mercado, o babaçu possuindo para as trabalhadoras pesquisadas valor-de-uso e valor-de-troca –, visando, no entanto, através destas relações, garantir uma forma de desenvolvimento do ponto de vista local, isto é, das quebradeiras, o que Sahlins chamara de “develop-man” (no presente caso, um verdadeiro “developwoman”), reafirmando assim os projetos nativos de garantir a reprodução material e simbólica das práticas e representações das quebradeiras por intermédio de uma melhor inserção no mercado, ou seja, em condições competitivas mais favoráveis ou menos desfavoráveis, dos produtos oriundos do babaçu manufaturados localmente. A institucionalização do movimento das quebradeiras de coco babaçu foi um evento de sobeja importância para estabelecer rupturas significativas com uma história reificada de sujeição das trabalhadoras rurais aos pecuaristas herdeiros do antigo sistema do patriarcado rural e suas respectivas relações de patronagem. Trata-se de um evento importante também para transformar as relações entre as quebradeiras e os interesses masculinos predominantes nas lides dos trabalhadores rurais do Araguaia-Tocantins, re-significando o papel, outrora passivo e agora pró-ativo, da mulher no meio rural e nas disputas de natureza político-econômica, além de re-significar igualmente as relações domésticas de dominação, conferindo uma relevância cada vez maior ao trabalho feminino tanto dentro quanto fora do âmbito da “casa”. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 111 111 12/11/2010 10:33:47 3. Todavia, nem todas as relações estabelecidas entre quebradeiras de coco e setores dominantes do capitalismo são promissoras para o grupo de mulheres trabalhadoras rurais. O caso das chamadas “novas estratégias empresariais” é exemplar disto. Trata-se de uma forma de contato de dada população tradicional, a das quebradeiras e seus familiares, com esferas do capitalismo direcionadas eminentemente para uma exploração ostensiva, expansiva e desregulada dos recursos naturais, tendente ainda a uma crescente intervenção no e descaracterização do sistema cultural, sócio-organizativo e laboral dos trabalhadores agroextrativistas da região do Araguaia-Tocantins. Um dos efeitos destrutivos destas estratégias é a conversão de quebradeiras e agricultores em catadores e carvoeiros, quer dizer, em formas mais imobilizadas de trabalho no campo, dependentes dos proprietários ou arrendatários e que não raramente chegam a assemelhar-se ao trabalho escravo, o que é uma forma de violência simbólica (BOURDIEU, 2005; 2008), que às vezes transmuta-se em física, ocultando o arbitrário de uma cultura e um determinado modo de produção cuja afirmação e reprodução, em longo prazo, interessa mormente ou tão-somente a setores hegemônicos do capitalismo, como os médios e grandes latifundiários e as indústrias de óleos vegetais e ferro-gusa. Estas estratégias do empresariado que exerce suas atividades na região tocantina têm produzido impactos sociais e ambientais notadamente agressivos, em especial porque inculcam habitus laborais diametralmente opostos à forma de trabalho e aos esquemas de ação, pensamento, apreciação e percepção que caracterizam o modo de vida e a cultura das quebradeiras e suas famílias de pequenos produtores rurais. REFERÊNCIAS ALMEIDA, A. W. B. Arqueologia da tradição: uma apresentação da coleção “Tradição e ordenamento jurídico”. In: SHIRAISHI NETO, J. Leis do babaçu livre: práticas jurídicas das quebradeiras de coco babaçu e normas correlatas. Manaus: PPGSCA-UFMA; Fundação Ford, 2006a. _________. Identidades, territórios e movimentos sociais na Pan-Amazônia. In: ACEVEDO MARIN, R. E. e ALMEIDA, A. W. B. (orgs.). Questões de terra na Pan-Amazônia. 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Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 115 115 12/11/2010 10:33:47 ÍNDICE - PARTE II COMPETÊNCIAS MATERIAIS NO CONTROLE E REGULAMENTAÇÃO DA ATIVIDADE PESQUEIRA Thaísa Rodrigues Lustosa de Camargo Serguei Aily Franco de Camargo.................................................................121 Introdução 1. Desenvolvimento da Atividade Pesqueira 2. Histórico das Políticas Setoriais da Pesca 3. Competências Materiais: O Ministério da Pesca e suas atribuições 4. Competências 4.1. Política Nacional 4.2. Normatização 4.3. Fiscalização 4.4. Educação e pesquisa 4.5. Ações conjuntas Conclusões Referências TERRAS INDÍGENAS NAS FAIXAS DE FRONTEIRA DA AMAZÔNIA BRASILEIRA: UMA BREVE ANÁLISE DOS DISCURSOS CONTRÁRIOS AO SEU RECONHECIMENTO Alex Justus da Silveira Fernando Antonio de Carvalho Dantas.......................................................141 Introdução 1.A proposital indiferença em relação aos povos indígenas no Brasil 2. Um breve panorama dos discursos contrários à demarcação de Terras Indígenas 3. A ausência de compreensão das diferentes territorialidades indígenas Conclusão Referências A FARRA DO BOI E A QUESTÃO DO BALANCEAMENTO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS Denison Melo de Aguiar Serguei Aily Franco de Camargo.................................................................159 Introdução 1. A farra do Boi 2. Da decisão do Supremo Tribunal Federal livro hileia11,12,13.indd 117 12/11/2010 10:33:47 3. Do Balanceamento ou ponderação entre o Direito à proteção da fauna e flora à extinção ou crueldade (art. 225, parágrafo primeiro, inciso VII, CF/88) e o Direito à tutela de manifestação e expressão de cultura (art. 215, parágrafo primeiro e 216, CF/88) Considerações Finais Referências CONSIDERAÇÕES ACERCA DA VIABILIDADE DA ARBITRAGEM: CONTRATOS DE REPARTIÇÃO EQUITATIVA PELO ACESSO E USO DA BIODIVERSIDADE E JUSTIÇA DEMOCRÁTICA DE PROXIMIDADE Liana Amin Lima da Silva José Augusto Fontoura Costa.......................................................................181 Introdução 1. Admissibilidade da Arbitragem 2. Antinomia Jurídica 3. Diálogo entre a Lei da Arbitragem e o Código de Defesa do Consumidor 4. Viabilidade da Arbitragem Ambiental 5. (In) Disponibilidade dos Direitos Difusos 6. Cláusula arbitral nos contratos de utilização do patrimônio genético e de repartição de benefícios Conclusão Referências Bibliográficas. A NECESSIDADE DE TUTELA PENAL CONTRA A BIOPIRATARIA NA AMAZÔNIA Aline Ferreira de Alencar Fernando Antônio de Carvalho Dantas Maria Auxiliadora Minahim........................................................................207 Introdução 1. Biopirataria na Amazônia Brasileira 1.1 A necessidade de Tutela do Direito Penal sobre o Crime de Biopirataria 1.2 A importância da identificação do bem jurídico a ser tutelado pelo direito penal no crime de Biopirataria 1.3 Reflexões sobre formas de evitar e combater a biopirataria na Amazônia Brasileira Considerações Finais Referências A PESSOA JURÍDICA E O CONCURSO DE AGENTES NO CONTEXTO DA REPONSABILIZAÇÃO PENAL AMBIENTAL Antônio Ferreira do Norte Filho Serguei Aily Franco de Camargo.................................................................235 livro hileia11,12,13.indd 118 12/11/2010 10:33:47 Introdução 1. Pessoa jurídica: definição e classificação 2. Previsão legal da responsabilidade penal da pessoa jurídica por lesão ao meio ambiente 3.Penas cominadas à pessoa jurídica por lesão ao bem ambiental 4. Da discussão acerca do cabimento ou não da responsabilização penal da pessoa jurídica 5. Concurso de agentes perpetradores do injusto ambiental Conclusão Referências NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS E PADRÕES JURÍDICOS NO PROCESSO DE REDEFINIÇÃO DA REGIÃO AMAZÔNICA Joaquim Shiraishi Neto................................................................................253 1. Disputa pela redefinição da Região Amazônica 2. “Novo” Direito e “Novos Movimentos Sociais” 3. “Práticas Jurídicas” localizadas: “Novos” padrões jurídicos Considerações Finais Bibliografia Documentos e Periódico livro hileia11,12,13.indd 119 12/11/2010 10:33:47 COMPETÊNCIAS MATERIAIS NO CONTROLE E REGULAMENTAÇÃO DA ATIVIDADE PESQUEIRA Thaísa Rodrigues Lustosa de Camargo Serguei Aily Franco de Camargo ** Sumário: Introdução; 1. Desenvolvimento da Atividade Pesqueira; 2. Histórico das Políticas Setoriais da Pesca; 3. Competências Materiais: O Ministério da Pesca e suas atribuições; 4. Competências; 4.1. Política Nacional; 4.2. Normatização; 4.3. Fiscalização; 4.4. Educação e pesquisa; 4.5. Ações conjuntas; Conclusões; Referências. Resumo: Com a criação do o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) em 1989, centralizou-se o controle e a regulamentação da atividade pesqueira, mas não houve a unificação da competência material no que se refere à pesca, havendo, simultaneamente, conflitos e lacunas. A recente criação do Ministério da Pesca e Aqüicultura (MPA) dá nova importância à temática, levantando a questão das competências. Atualmente, o MPA encontra-se em fase de estruturação. Com isso, esperase que questões relativas à distribuição de atribuições entre os órgãos do sistema do MMA e o novo Ministério sejam sanadas, evitando maiores entraves ao desenvolvimento do setor. Abstract: Through the creation of Brazilian Institute of Environment and Renewable Natural Resources (IBAMA) in 1989, fisheries control and ruling were centralized in this bureau, but it was not material competences unification concerned to fisheries, remaining conflicts and gaps. The nearly creation of Fishery and Aquaculture Ministry (FAM) highlighted this subject, demonstrating the importance of the discussion about material competences. Nowadays, FAM is beginning the institutional building process. In this case it is expected that questions about administrative attributions distribution among environmental bureaus and the new Ministry be solved, avoiding obstacles to the development of fishery sector. Palavras-chave: Atividade pesqueira; Keywords: Fishery activity; Material comCompetência material; Ministério da Pes- petence; Fishery and Aquaculture Minisca e Aqüicultura. try. * Advogada, pesquisadora e mestranda em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas. Bolsista do CNPq. ** Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas e do Departamento de Direito da Uninilton Lins. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 121 121 12/11/2010 10:33:47 INTRODUÇÃO Criado através da Lei nº 7.735/89, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) foi um marco na história brasileira, pois, pela primeira vez, a gestão ambiental passou a ser integrada. Antes, a temática era tratada por diferentes Ministérios. O Ministério do Interior, através da Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA), desde 1973 cuidava do trabalho político e de gestão de responsabilidade. Vinculados ao Ministério da Agricultura havia o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), responsável pela gestão das florestas; e a Superintendência de Pesca (SUDEPE), gestão do ordenamento pesqueiro. Por fim, atrelado ao Ministério da Indústria e Comércio, a Superintendência da Borracha (SUDHEVEA) tinha o objetivo era viabilizar a produção da borracha. A união destes quatro órgãos deu origem ao IBAMA. Neste período de descentralização, deram-se importantes passos em matéria ambiental como a elaboração da Política Nacional do Meio Ambiente Lei nº 6.938/81, em que se estabeleceu o Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA) e o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), único conselho com poder de legislar. Recepcionada pela Constituição Republica de 1988, a Lei ainda está em vigor. Na década de 90, a questão ambiental cresceu em importância. Foi criado o Ministério do Meio Ambiente (1992); o Conselho Nacional de Recursos Hídricos (1997); a Agência Nacional das Águas (2000); o Conselho Nacional de Recursos Genéticos (2001); o Serviço Florestal Brasileiro (2006) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (2007). Também houve o surgimento de novas legislações: Lei das Águas (1997); Lei dos Crimes Ambientais (1998); a lei que estabelece a Política Nacional de Educação Ambiental (1999); a que estabelece o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (1999) e a Lei de Gestão de Florestas Públicas (2006). Atualmente, têm-se, em nível federal, os Ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; do Meio Ambiente; da Pesca e Aqüicultura (recémcriado), além das autarquias - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - Instituto Chico Mendes. Nesse sentido, busca-se, através deste trabalho, identificar as competências materiais no que se refere à atividade pesqueira, principalmente, as competências do recém-criado Ministério da Pesca e Aqüicultura. 122 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 122 12/11/2010 10:33:48 1. DESENVOLVIMENTO DA ATIVIDADE PESQUEIRA Nos termos do art. 7° da Lei n° 11.959/09, o desenvolvimento da atividade pesqueira deve se dar de forma sustentável, através da gestão do acesso e uso dos recursos pesqueiros (I); da determinação de áreas especialmente protegidas (II); do controle e a fiscalização da atividade pesqueira (IX), entre outros. Ao poder público compete a regulamentação da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Atividade Pesqueira, devendo estabelecer, no que concerne aos recursos pesqueiros (art. 3°): os regimes de acesso (I); a captura total permissível (II); o esforço de pesca sustentável (III); os períodos de defeso (IV); as temporadas de pesca (V); os tamanhos de captura (VI); as áreas interditadas ou de reservas (VII); as artes, os aparelhos, os métodos e os sistemas de pesca e cultivo (VIII); a capacidade de suporte dos ambientes (IX); as necessárias ações de monitoramento, controle e fiscalização da atividade (X); a proteção de indivíduos em processo de reprodução ou recomposição de estoques (XI). Para o exercício da atividade (art. 24), toda pessoa (física ou jurídica, além da embarcação) deve estar previamente inscrita no Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP) e no Cadastro Técnico Federal (CTF). Segundo a Instrução Normativa nº 03/04 da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca, que dispõe sobre operacionalização do Registro Geral da Pesca, o RGP contemplará as seguintes categorias de registro (art. 3º): I - Pescador Profissional, devendo ser classificado como: a) Pescador Profissional na Pesca Artesanal; e b) Pescador Profissional na Pesca Industrial. II - Aprendiz de Pesca; III - Armador de Pesca; IV - Embarcação Pesqueira; V - Indústria Pesqueira; VI - Aqüicultor; e VII - Empresa que Comercia Organismos Aquáticos Vivos. Parágrafo único. O registro de que trata o caput poderá ser precedido de permissões de pesca e autorizações, conforme disposto na presente Instrução Normativa ou previsto em legislação. A documentação necessária varia de acordo com a categoria de registro. Contudo, de modo geral, não se constitui num entrave burocrático, uma vez Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 123 123 12/11/2010 10:33:48 que são exigidos documentos simples, como: identidade, CPF, comprovante de residência, documento de inscrição no PIS/PASEP, duas fotos 3x4, além do pagamento de taxa Além do RGP, também se faz necessário ato prévio autorizativo da autoridade competente, que podem ser (art. 25 da Lei n° 11.959/09): I – concessão: para exploração por particular de infra-estrutura e de terrenos públicos destinados à exploração de recursos pesqueiros; II – permissão: para transferência de permissão; para importação de espécies aquáticas para fins ornamentais e de aqüicultura, em qualquer fase do ciclo vital; para construção, transformação e importação de embarcações de pesca; para arrendamento de embarcação estrangeira de pesca; para pesquisa; para o exercício de aqüicultura em águas públicas; para instalação de armadilhas fixas em águas de domínio da União; III – autorização: para operação de embarcação de pesca e para operação de embarcação de esporte e recreio, quando utilizada na pesca esportiva; e para a realização de torneios ou gincanas de pesca amadora; IV – licença: para o pescador profissional e amador ou esportivo; para o aqüicultor; para o armador de pesca; para a instalação e operação de empresa pesqueira; V – cessão: para uso de espaços físicos em corpos d’água sob jurisdição da União, dos Estados e do Distrito Federal, para fins de aqüicultura. (grifo nosso) O ato autorizarivo deve assegurar (art. 5°): a proteção dos ecossistemas e a manutenção do equilíbrio ecológico, observados os princípios de preservação da biodiversidade e o uso sustentável dos recursos naturais (I); a busca de mecanismos para a garantia da proteção e da seguridade do trabalhador e das populações com saberes tradicionais (II); e, por fim a busca da segurança alimentar e a sanidade dos alimentos produzidos (III). 2. HISTÓRICO DAS POLÍTICAS SETORIAIS DA PESCA A questão ambiental de modo geral, e a pesca mais especificamente, é assunto de competência de diversos órgãos executivos, cujas atribuições apresentam-se conflitantes em algumas oportunidades, e vagas em outras. Ao longo 124 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 124 12/11/2010 10:33:48 da construção da estrutura organizacional da República, houve a criação e a extinção de órgãos voltados à temática ambiental, bem como a modificação de suas competências. Inicialmente, o Decreto nº 73.030/73 cria a Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA), subordinada ao Ministério do Interior, com a orientação voltada à conservação do meio ambiente, e o uso racional dos recursos naturais, destacando-se que a mesma atuava em articulação com o Ministério do Planejamento e Coordenação Geral. Entre suas atribuições, tinham-se (art. 4°): a) acompanhar as transformações do ambiente através de técnicas de aferição direta e sensoreamento remoto, identificando as ocorrências adversas, e atuando no sentido de sua correção; b) assessorar órgão e entidades incumbidas da conservação do meio ambiente, tendo em vista o uso racional dos recursos naturais; c) promover a elaboração e o estabelecimento de normas e padrões relativos à preservação do meio-ambiente, em especial dos recursos hídricos, que assegurem o bem-estar das populações e o seu desenvolvimento econômico e social; d) realizar diretamente ou colaborar com os órgãos especializados no controle e fiscalização das normas e padrões estabelecidos; e) promover, em todos os níveis, a formação e treinamento de técnicos e especialistas em assuntos relativos à preservação do meio ambiente; f) atuar junto aos agentes financeiros para a concessão de financiamentos a entidades públicas e privadas com vista à recuperação de recursos naturais afetados por processos predatórios ou poluidores; g) cooperar com os órgãos especializados na preservação de espécies animais e vegetais ameaçadas de extinção, e na manutenção de estoques de material genético; h) manter atualizada a Relação de Agentes Poluidores e Substâncias Nocivas, no que se refere aos interesses do País; i) promover, intensamente, através de programas em escala nacional, o esclarecimento e a educação do povo brasileiro para o uso adequado dos recursos naturais, tendo em vista a conservação do meio ambiente. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 125 125 12/11/2010 10:33:48 Em 1989, tal Secretaria é extinta com a criação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), através da Lei n°7.735/89 (conversão da MP n° 34/89), como se verá mais a frente. O Art. 4º da referida Lei estabelece a transferência de toda estrutura e competência da SEMA ao IBAMA: O patrimônio, os recursos orçamentários, extra-orçamentários e financeiros, a competência, as atribuições, o pessoal, inclusive inativos e pensionistas, os cargos, funções e empregos da Superintendência da Borracha - SUDHEVEA e do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal IBDF, extintos pela Lei nº 7.732, de 14 de fevereiro de 1989, bem assim os da Superintendência do Desenvolvimento da Pesca - SUDEPE e da Secretaria Especial do Meio Ambiente - SEMA são transferidos para o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, que os sucederá, ainda, nos direitos, créditos e obrigações, decorrentes de lei, ato administrativo ou contrato, inclusive nas respectivas receitas. (grifo nosso) Outro órgão de destaque é o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. O Ministério é originário da Secretaria de Estado de Negócio da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, criada pelo Decreto Imperial n° 1067 de 1860. Em 1892, a Secretaria foi transformada no Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas, que, após 17 anos, reincorporou a pasta da agricultura, com a nova denominação de Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Na década de 30, passou a fazer parte da estrutura governamental da República e nos anos 80 perdeu a competência sobre assuntos relativos à reforma agrária e recursos florestais e pesqueiros. Como autarquia federal subordinada ao Ministério da Agricultura, a Lei Delegada n° 10/62 criou a Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE), com as seguintes atribuições (art. 2°): I - elaborar o Plano Nacional de Desenvolvimento da Pesca (PNDP) e promover a sua execução; II - prestar assistência técnica e financeira aos empreendimentos de pesca; III - realizar estudos, em caráter, permanente, que visem à atualização das leis aplicáveis à pesca ou aos recursos pesqueiros [fauna e flora de origem aquática], propondo as providências convenientes; 126 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 126 12/11/2010 10:33:48 IV - aplicar no que couber, o Código de Pesca e a legislação das atividades ligadas à pesca ou aos recursos pesqueiros; V - pronunciar-se sobre pedidos de financiamentos destinados à pesca formulados a entidades oficiais de crédito; VI - coordenar programas de assistência técnica nacional ou estrangeira; VII - assistir aos pescadores na solução de seus problemas econômico-sociais. Referida Lei dispõe ainda que a antiga SUDEPE podia (art. 3°): I - executar, diretamente, ou mediante convênio, acordo ou contrato, projetos relativos ao desenvolvimento da pesca; II - complementar, quando conveniente a ação dos órgãos estaduais e exercer, supletivamente, a fiscalização do cumprimento das normas federais no âmbito de suas atribuições; III - propor a fixação de preços de produtos pesqueiros para efeito do redesconto de títulos negociáveis representativos de mercadorias depositadas; IV - propor a fixação de preços do gelo e outros produtos essenciais à pesca e ao beneficiamento e distribuição do pescado; V - avaliar a necessidade de importações em função do PNDP fixando quantitativos e recursos para satisfazê-la, em cooperação com os órgãos de controle do comércio exterior; VI - formar e aperfeiçoar pessoal especializado; VII - efetuar operações de revenda e financiamento de embarcações, equipamentos e outros artigos essenciais às atividades pesqueiras; VIII - efetuar quaisquer operações financeiras com as entidades oficiais de crédito, inclusive sob garantia do Tesouro Nacional; IX - propor a concessão de licenças especiais visando à boa execução do PNDP; X - subscrever capital de empresas que executem projetos industriais essenciais no âmbito do PNDP; XI - assumir, através de convênio, a administração de setores federais e estaduais ligados às atividades pesqueiras; XII - pronunciar-se sobre iniciativas de órgãos públicos, que afetem a pesca; Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 127 127 12/11/2010 10:33:48 XIII - praticar quaisquer outros atos necessários ao desempenho de suas atribuições. Na década de 90, a competência do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento sofreu diversas adequações através de novas legislações. Com a Medida Provisória n° 150, convertida na Lei nº 8.028/90, recuperou-se tradicionais atribuições, com exceção do abastecimento, além das ações de coordenação política e da execução da reforma agrária e dos assuntos de irrigação. Posteriormente, incorporou os assuntos de abastecimento, de política agrícola e de desenvolvimento rural (Lei nº 8.344/91). Assim como sua competência, sua denominação também sofreu alterações. Em 1992, passou a ser designado de Ministério da Agricultura, Abastecimento e Reforma Agrária (Lei nº 8.490/92), contudo, manteve suas atribuições. Em 1996, a Medida Provisória n° 1450/96, convertida na Lei nº 9.649/98, trouxe novamente a temática dos recursos pesqueiros e redistribuiu a competência referente à condução e execução da política de reforma agrária. Na oportunidade, o Ministério, que passou a se chamar Ministério da Agricultura e do Abastecimento, recebeu a competência relacionada ao apoio da produção e ao fomento da atividade pesqueira, a ser exercida através do Departamento de Pesca e Aqüicultura (DPA). Dessa forma, o MMA e o IBAMA permaneceram com as atribuições da política de preservação, conservação e do uso sustentável dos recursos naturais. Com a Medida Provisória n° 1911-8/99, são incorporadas competências do Ministério da Indústria e Comércio, como os assuntos relativos à política do café, açúcar e álcool e ao planejamento e exercício da ação governamental nas atividades do setor agro-industrial canavieiro. O termo “pecuária” é agregado à denominação ministerial através da MP n° 2.216-37/01, tornando-se, assim, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Com a edição da MP n° 103/03, convertida na Lei n° 10.683/03, novamente, os assuntos pesqueiros são retirados da competência ministerial, passando à responsabilidade da criada Secretaria Especial da Aqüicultura e Pesca (SEAP), ligada diretamente à Presidência da República. Possuindo status de Ministério, a SEAP surge com o intuito de fomentar e desenvolver o setor pesqueiro, permanecendo a gestão compartilhada do uso dos recursos pesqueiros com o Ministério do Meio Ambiente (MMA). Criado em 1992, o MMA possui o intuito de [...] promover a adoção de princípios e estratégias para o conhecimento, a proteção e a recuperação do meio ambiente, o uso sustentável dos recursos naturais, a valorização 128 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 128 12/11/2010 10:33:48 dos serviços ambientais e a inserção do desenvolvimento sustentável na formulação e na implementação de políticas públicas, de forma transversal e compartilhada, participativa e democrática, em todos os níveis e instâncias de governo e sociedade.1 A Lei nº 10.683/03 (art. 27, XV) estabeleceu sua competência sobre: a) política nacional do meio ambiente e dos recursos hídricos; b) política de preservação, conservação e utilização sustentável de ecossistemas, e biodiversidade e florestas; c) proposição de estratégias, mecanismos e instrumentos econômicos e sociais para a melhoria da qualidade ambiental e o uso sustentável dos recursos naturais; d) políticas para a integração do meio ambiente e produção; e) políticas e programas ambientais para a Amazônia Legal; e f) zoneamento ecológico-econômico. Seus órgãos colegiados são os Conselhos Nacional do Meio Ambiente (CONAMA); Nacional da Amazônia Legal (CONAMAZ); Nacional de Recursos Hídricos; Deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente; de Gestão do Patrimônio Genético; e as Comissões de Gestão de Florestas Públicas; e Nacional de Florestas (CONAFLOR). Como entidades vinculadas, o MMA possui quatro autarquias: a Agência Nacional de Águas (ANA); o Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ); o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA); e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), estes dois últimos de interesse do presente plano de atividades. A Medida Provisória n° 34/89, posteriormente convertida na Lei n° 7.735/89, extinguiu a Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA) do Ministério do Interior e a Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE), autarquia vinculada ao Ministério da Agricultura (art. 1°), e criou o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), como autarquia vinculada ao Ministério de Meio Ambiente (art. 2°). 1 MMA, 2009. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 129 129 12/11/2010 10:33:48 Com a Lei nº 11.516/07, é criado o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - Instituto Chico Mendes, como autarquia federal vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, com a finalidade de (art. 1°): I - executar ações da política nacional de unidades de conservação da natureza, referentes às atribuições federais relativas à proposição, implantação, gestão, proteção, fiscalização e monitoramento das unidades de conservação instituídas pela União; II - executar as políticas relativas ao uso sustentável dos recursos naturais renováveis e ao apoio ao extrativismo e às populações tradicionais nas unidades de conservação de uso sustentável instituídas pela União; III - fomentar e executar programas de pesquisa, proteção, preservação e conservação da biodiversidade e de educação ambiental; IV - exercer o poder de polícia ambiental para a proteção das unidades de conservação instituídas pela União; e V - promover e executar, em articulação com os demais órgãos e entidades envolvidos, programas recreacionais, de uso público e de ecoturismo nas unidades de conservação, onde estas atividades sejam permitidas. Frente à criação do Instituto, as finalidades do IBAMA são re-estabelecidas pela referida Lei (art. 5°), que altera o art. 2° da Lei n° 7.735/89, quais sejam: I - exercer o poder de polícia ambiental; II - executar ações das políticas nacionais de meio ambiente, referentes às atribuições federais, relativas ao licenciamento ambiental, ao controle da qualidade ambiental, à autorização de uso dos recursos naturais e à fiscalização, monitoramento e controle ambiental, observadas as diretrizes emanadas do Ministério do Meio Ambiente; e III - executar as ações supletivas de competência da União, de conformidade com a legislação ambiental vigente. O parágrafo único do art. 1° Lei nº 11.516/07 destaca ainda que o IBAMA passa a exercer o poder de polícia de forma suplementar ao Instituto. Em 1998, com a criação do Departamento de Pesca e Aqüicultura (DPA), o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento fica com algumas atri130 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 130 12/11/2010 10:33:48 buições do IBAMA. No entanto, como demonstra Surgik2, na prática, houve uma sobreposição de competências entre o DPA e o citado órgão fiscalizador. Recentemente, a Lei n° 11.958, de 26 de junho de 2009 dispõe, em seu art. 2°, sobre a transformação da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República em Ministério da Pesca e Aqüicultura. A criação e as competências desse novo Ministério serão objeto de análise no próximo tópico. A Lei nº 11.959/09, que dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aqüicultura e da Pesca, regula as atividades pesqueiras, revoga a Lei nº 7.679/88, e dispositivos do Decreto-Lei nº 221/67. Entre os tópicos mantidos do Decreto-Lei, tem-se: a exigência de inscrição das embarcações na Superintendência do Desenvolvimento da Pesca – SUDEPE; a exigência de inscrição das indústrias pesqueiras no Registro Geral da Pesca, sob responsabilidade de SUDEPE; a concessão de licença anual para o exercício da pesca a amadores, nacionais ou estrangeiros; a exigência do registro de aquicultores amadores ou profissionais; o estabelecimento do pagamento de taxas às empresas que comercializam animais aquáticos; e a instituição do Registro Geral de Pesca. Apesar de mantidos, referidos artigos referem-se, na atualidade, ao Ministério da Pesca, uma vez que a SUPEDE é um órgão extinto. A nova lei modificou o conceito de pesca, que era compreendida pelo Decreto-Lei 221/67, como “[...] todo ato tendente a capturar ou extrair elementos animais ou vegetais que tenham na água seu normal ou mais freqüente meio de vida” (art. 1°). Com a Lei n° 11.959/09, tem-se a pesca como “toda operação, ação ou ato tendente a extrair, colher, apanhar, apreender ou capturar recursos pesqueiros” (art. 2°, III). Dessa forma, verifica-se a mudança da nomenclatura de “elementos animais ou vegetais” para “recursos pesqueiros”, tornando, assim, a legislação mais técnica e com conceitos específicos. Nos termos do inciso I do art. 2° da citada Lei, recursos pesqueiros são “os animais e os vegetais hidróbios passíveis de exploração, estudo ou pesquisa pela pesca amadora, de subsistência, científica, comercial e pela aqüicultura”. Referida Lei também trouxe a definição de atividade pesqueira, como “[...] todos os processos de pesca, explotação e exploração, cultivo, conservação, processamento, transporte, comercialização e pesquisa dos recursos pesqueiros”. (art. 4° da Lei n° 11.959/09). Dessa forma, toda a cadeia de pesca é englobada – captura, transporte, beneficiamento, estocagem e comercialização. A Lei 11.959/09 estabeleceu ainda no art. 33 que a punição das condutas 2 Avaliação Crítica da aplicabilidade da Legislação do Setor Pesqueiro. In: O setor pesqueiro na Amazônia, 2007, p.101. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 131 131 12/11/2010 10:33:48 e atividades lesivas aos recursos pesqueiros e ao meio ambiente será feita nos termos da Lei n° 9.605/98, e de seu regulamento; além de prever que o estímulo às pessoas físicas ou jurídicas que desenvolvem a atividade pesqueira será feito através dos benefícios da política agrícola, como o crédito rural, da capacitação da mão-de-obra, voltada ao desenvolvimento sustentável, e do estímulo à pesquisa. O art. 2° do Decreto-Lei n° 221/67 estabelecia que a pesca poderia se efetuar com fins comerciais, desportivos (amadores) ou científicos. Referido artigo foi expressamente revogado pela Lei n° 11.959/09 que, por sua vez, classifica a pesca (art. 8°) em comercial (artesanal ou industrial) ou não comercial (científica, amadora e de subsistência); e a aqüicultura (art. 19) em: comercial; científica ou demonstrativa; de recomposição ambiental; familiar ou ornamental. O art. 27, XXIV, h da Lei n° 10.683/03 (alterado pela Lei n° 11.958/09) apresenta como modalidades de pesca: comercial, compreendendo as categorias industrial e artesanal; de espécimes ornamentais; de subsistência e; amadora ou desportiva. Desta forma, verifica-se a existência de diversos órgãos competentes, assim como a evolução legislativa e normativa sobre o tema que, ao longo dos anos, vem modificando conceitos referentes à pesca e às atribuições dos atores envolvidos. Razão pela qual, faz-se necessário verificar claramente as competências de cada entidade, os gargalos e as lacunas normativos existentes. 3. COMPETÊNCIAS MATERIAIS: O MINISTÉRIO DA PESCA E SUAS ATRIBUIÇÕES Conforme já disposto, o Ministério da Pesca foi criado pela Lei n° 11.958, de 26 de junho de 2009, que altera a Lei n° 10.683/03, a partir da transformação da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República em Ministério da Pesca e Aqüicultura. Entre suas competências, têm-se (art. 27, XXIV da Lei n° 10.683/03): a) política nacional pesqueira e aquícola, abrangendo produção, transporte, beneficiamento, transformação, comercialização, abastecimento e armazenagem; b) fomento da produção pesqueira e aquícola; c) implantação de infra-estrutura de apoio à produção, ao 132 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 132 12/11/2010 10:33:48 beneficiamento e à comercialização do pescado e de fomento à pesca e aqüicultura; d) organização e manutenção do Registro Geral da Pesca; e) sanidade pesqueira e aquícola; f) normatização das atividades de aqüicultura e pesca; g) fiscalização das atividades de aqüicultura e pesca no âmbito de suas atribuições e competências; h) concessão de licenças, permissões e autorizações para o exercício da aqüicultura e das seguintes modalidades de pesca no território nacional, compreendendo as águas continentais e interiores e o mar territorial da Plataforma Continental, da Zona Econômica Exclusiva, áreas adjacentes e águas internacionais, excluídas as Unidades de Conservação federais e sem prejuízo das licenças ambientais previstas na legislação vigente [...]; i) autorização do arrendamento de embarcações estrangeiras de pesca e de sua operação, observados os limites de sustentabilidade estabelecidos em conjunto com o Ministério do Meio Ambiente; j) operacionalização da concessão da subvenção econômica ao preço do óleo diesel instituída pela Lei n° 9.445, de 14 de março de 1997; l) pesquisa pesqueira e aquícola; e m) fornecimento ao Ministério do Meio Ambiente dos dados do Registro Geral da Pesca relativos às licenças, permissões e autorizações concedidas para pesca e aqüicultura, para fins de registro automático dos beneficiários no Cadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente Poluidoras e Utilizadoras de Recursos Ambientais. Apesar da transformação da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca em Ministério, os dispositivos da Lei n° 10.683/03 que tratavam sobre a transferência de competências do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento para referida Secretaria foram mantidos: Art. 32. São transferidas as competências: [...] VI - do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, relativas à aqüicultura e pesca, para a Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca; Art. 33. São transferidos: [...] Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 133 133 12/11/2010 10:33:48 III - o Departamento de Pesca e Aqüicultura, da Secretaria de Apoio Rural e Cooperativismo do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento para a Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República O Ministério compreenderá, em sua estrutura organizacional, as Superintendências Federais de Pesca e Aqüicultura, unidades descentralizadas cuja jurisdição limita-se a cada Estado da Federação e ao Distrito Federal, que possuem a competência de (art. 9° da Lei n° 11.958/09): fomento e desenvolvimento da pesca e da aqüicultura (I); apoio à produção, ao beneficiamento e à comercialização do pescado (II); sanidade pesqueira e aquícola (III); pesquisa e difusão de informações científicas e tecnológicas relativas à pesca e à aqüicultura (IV); assuntos relacionados à infra-estrutura pesqueira e aquícola, ao cooperativismo e associativismo de pescadores e aqüiculturas e às Colônias e Federações Estaduais de Pescadores (V); administração de recursos humanos e de serviços gerais (VI); programação, acompanhamento e execução orçamentária e financeira dos recursos alocados (VII); qualidade e produtividade dos serviços prestados aos usuários e aperfeiçoamento da gestão da Superintendência (VIII). O Conselho Nacional de Aquicultura e Pesca, por seu turno, possui a competência de formular a política nacional de sua área, propondo diretrizes para o desenvolvimento e fomento da produção; apreciar as diretrizes para o desenvolvimento do plano de ação da pesca e aquicultura e propor medidas destinadas a garantir a sustentabilidade da atividade, nos termos do art. 29, §7° da Lei n° 10.683/03. O § 4o do art. 27 da supracitada Lei dispõe ainda que a competência do Ministério do Meio Ambiente para o zoneamento ecológico-econômico “[...] será exercida em conjunto com os Ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; da Integração Nacional; e da Pesca e Aquicultura”. O MMA também deverá atuar em conjunto e sob a coordenação do MPA nas temáticas relacionadas ao uso sustentável dos recursos pesqueiros (art. 27, § 6o da Lei n° 10.683/03), quais sejam: “fixar as normas, critérios, padrões e medidas de ordenamento do uso sustentável dos recursos pesqueiros, com base nos melhores dados científicos e existentes, na forma de regulamento” (I); e “subsidiar, assessorar e participar, em interação com o Ministério das Relações Exteriores, de negociações e eventos que envolvam o comprometimento de direitos e a interferência em interesses nacionais sobre a pesca e aqüicultura” (II). 134 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 134 12/11/2010 10:33:48 4. COMPETÊNCIAS 4.1. POLÍTICA NACIONAL O MMA possui competência sobre a política nacional do meio ambiente e dos recursos hídricos e a política de preservação, conservação e utilização sustentável de ecossistemas, e biodiversidade e florestas, nos termos do art. 27, XV, a e b da Lei nº 10.683/03. O Conselho Nacional de Pesca, do MPA, por seu turno, tem competência sobre a política nacional pesqueira e aquícola, abrangendo produção, transporte, beneficiamento, transformação, comercialização, abastecimento e armazenagem (Lei n° 11.958/09, art. 27, XXIV). O primeiro conflito encontra-se na própria política, uma vez que os recursos pesqueiros integram diversos ecossistemas, possuindo diversidade específica e, em grande parte desconhecida (v.g. na bacia Amazônica, onde estimativas mais conservadoras indicam cerca de 2000 espécies de peixes, enquanto outras chegam a indicar até 5.000, para um universo descrito de algumas poucas centenas). Cabendo, dessa forma, aos dois Ministérios versarem sobre o assunto. A duplicidade de regulamentação sobre um mesmo recurso natural, proveniente de ministérios com orientações distintas pode ensejar problemas práticos, interferindo na distribuição das competências materiais. As ações de execução das políticas fazem parte da esfera das autarquias do MMA: IBAMA e Chico Mendes. No primeiro caso, as ações referem-se “[...] às atribuições federais, relativas ao licenciamento ambiental, ao controle da qualidade ambiental, à autorização de uso dos recursos naturais e à fiscalização, monitoramento e controle ambiental [...]” (Lei nº 7.735/89, art. 2°, II). O Instituto Chico Mendes possui uma atribuição mais restrita, sendo competente especificamente para executar ações em unidades de conservação instituídas pela União (Lei nº 11.516/07, art. 1°, I), o que também está incluído nas atribuições genéricas do IBAMA. 4.2. NORMATIZAÇÃO O Ministério da Pesca e Aqüicultura incorporou a competência da extinta SUDEPE de normatizar as atividades de aqüicultura e pesca (Lei n° 10.683/03, art. 27, XXIV, f – alterado pela Lei n° 11.958/09). No entanto, o Conselho Nacional do MMA é o único com poder verdadeiramente normativo. A legislação também prevê que o MMA deverá atuar em conjunto e sob a coordenação do MPA nas temáticas relacionadas ao uso sustentável dos recursos pesqueiros (art. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 135 135 12/11/2010 10:33:49 27, § 6°, I), quais sejam: “fixar as normas, critérios, padrões e medidas de ordenamento do uso sustentável dos recursos pesqueiros, com base nos melhores dados científicos e existentes, na forma de regulamento”. Esta “parceria” forçada tende a entravar a normatização em função das diferenças de orientação dos dois ministérios: enquanto o MMA possui visão tradicionalmente conservacionista, o MPA parece ter sido criado com uma orientação mais produtivista. 4.3. FISCALIZAÇÃO A fiscalização das atividades de aqüicultura e pesca é competência do MPA no âmbito de suas atribuições e competências (Lei n° 10.683/03, art. 27, XXIV, g). Contudo o poder de polícia ambiental pertence ao IBAMA (Lei n° 7.735/89, art. 2°, I), excetuando a fiscalização nas unidades de conservação instituídas pela União, onde passa ter um poder de polícia suplementar ao do Instituto Chico Mendes (Lei nº 11.516/07, art. 1°, IV). Na prática, este tipo de distribuição de atribuições provoca problemas operacionais. Na região do Pantanal do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, quem fiscaliza a atividade de pesca esportiva são órgãos estaduais, que ignoram se os pescadores portam licenças federais (expedidas até então pelo IBAMA), exigindo apenas o porte das estaduais. Esta prática provoca evasão de divisas da esfera federal para as estaduais.3 4.4. EDUCAÇÃO E PESQUISA Cabe às Superintendências Federais de Pesca e Aqüicultura do MPA a competência pela pesquisa pesqueira e aquícola (Lei n° 10.683/03, art. 27, XXIV, l). Ao Instituto Chico Mendes, fomentar e executar programas de pesquisa, proteção, preservação e conservação da biodiversidade e de educação ambiental (Lei nº 11.516/07, art. 1º, III). A questão da promoção da educação ambiental era melhor explicitada na legislação da extinta Secretaria Especial do Meio Ambiente (Dec. nº 73.030/73, art. 4), cujas competências incluíam: promover, em todos os níveis, a formação e treinamento de técnicos e especialistas em assuntos relativos à preservação do meio ambiente; promover, intensamente, através de programas em escala nacio3 BERNADINO, Geraldo. Gestão de recursos pesqueiros. Manaus, Universidade do Estado do Amazonas, 17 de abril de 2009. 136 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 136 12/11/2010 10:33:49 nal, o esclarecimento e a educação do povo brasileiro para o uso adequado dos recursos naturais, tendo em vista a conservação do meio ambiente. 4.5. AÇÕES CONJUNTAS Há ainda as previsões de parcerias entre o MMA e o MPA. O MMA também deverá atuar em conjunto e sob a coordenação do MPA nas temáticas relacionadas ao uso sustentável dos recursos pesqueiros (Lei n° 10.683/03, art. 27, §6o, I), como, por exemplo, o estabelecimento de limites de sustentabilidade para autorização de embarcações estrangeiras (art. 27, XXIV, i), conforme já citado. O MPA deve fornecer ao Ministério do Meio Ambiente os dados do Registro Geral da Pesca relativos às licenças, permissões e autorizações concedidas para pesca e aqüicultura, para fins de registro automático dos beneficiários no Cadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente Poluidoras e Utilizadoras de Recursos Ambientais (Lei n° 10.683/03, art. 27, XXIV, m). O MMA também deve atuar em parceria com o Ministério das Relações Exteriores para “subsidiar, assessorar e participar de negociações [...] e eventos que envolvam o comprometimento de direitos e a interferência em interesses nacionais sobre a pesca e aqüicultura” (Lei n° 10.683/03, art. 27, XXIV, §6°, II). IBAMA deve executar as ações supletivas de competência da União, de conformidade com a legislação ambiental vigente. CONCLUSÕES Antes da criação da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca e, posteriormente, do Ministério da Pesca e Aqüicultura, a atividade pesqueira estava ligada ao Ministério do Meio Ambiente, que possui visão mais conservacionista (incentivando o manejo adequado e a utilização racional desses recursos). Após o lançamento do Programa Fome Zero e o início das atividades da SEAP, a visão passa a ser produtivista, com enfoque maior sobre a aqüicultura e insumos de produção pesqueiros, principalmente sobre o fomento ao setor. Com o Ministério da Pesca e Aqüicultura, a discussão em torno das competências toma maior relevância e especificidade, apesar da falta de clareza e incertezas futuras, posto que o MPA encontra-se em fase de estruturação. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 137 137 12/11/2010 10:33:49 Mesmo sabendo-se que a temática ambiental é única e que os recursos pesqueiros não podem ser observados e compreendidos separadamente do meio ambiente como um todo, as diversas previsões de ações conjuntas entre o MMA e o MPA ou das previsões de competências ministeriais simultâneas geram problemas práticos, como sobreposição de regras e/ou lacunas. No momento, com o final recente do período de vacatio legis da norma que criou o MPA, e início do seu processo de estruturação, resta aguardar pelas articulações interministeriais, minimizando eventuais conflitos de competência e atuação prática dos órgãos da administração pública. REFERÊNCIAS BERNADINO, G. Gestão de recursos pesqueiros. Manaus, Universidade do Estado do Amazonas, 17 de abril de 2009. Entrevista concedida a Serguei Aily Franco de Camargo. BRASIL. Decreto nº 73.030, de 30 de outubro de 1973. Cria, no âmbito do Ministério do Interior, a Secretaria Especial do Meio Ambiente - SEMA, e da outras providências. Disponível em: http://www6.senado.gov.br/legislacao/ ListaPublicacoes.action?id=2025 56. Acessado em 20 de julho de 2009. _____. Decreto-Lei n° 221, de 28 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre a proteção e estímulos à pesca e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Decreto-Lei/Del0221.htm. Acessado em: 21 de julho de 2009. _____. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/ L6938.htm. Acessado em: 21 de julho de 2009. _____. Lei nº 7.735, 22 de fevereiro de 1989. Dispõe sobre a extinção de órgão e de entidade autárquica, cria o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis e dá outras providências. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/ L7735.htm. Acessado em: 21 de julho de 2009. 138 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 138 12/11/2010 10:33:49 _____. Lei nº 8.344, de 27 de dezembro de 1991. Dá nova redação aos arts. 19, inciso VI e 23, inciso V, da Lei nº 8.028, de 12 de abril de 1990, e 19, inciso II, da Lei nº 8.029, de 12 de abril de 1990, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8344.htm. Acessado em: 21 de julho de 2009. _____. Lei nº 8.490, de 19 de novembro de 1992. Dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8490.htm. Acessado em: 21 de julho de 2009. _____. Lei n° 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Leis/L9605.htm. Acessado em: 21 de julho de 2009. _____. Lei nº 9.649, de 27 de maio de 1998. Dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/Leis/L9649.htm. Acessado em: 21 de julho de 2009. _____. Lei n° 10.683, de 28 de maio de 2003. Dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L10683.htm. Acessado em: 21 de julho de 2009. _____. Lei n° 11.958, de 26 de junho de 2009. Altera as Leis nos 7.853, de 24 de outubro de 1989, e 10.683, de 28 de maio de 2003; dispõe sobre a transformação da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República em Ministério da Pesca e Aqüicultura; cria cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores – DAS e Gratificações de Representação da Presidência da República; e dá outras providências. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L11958. htm. Acessado em: 21 de julho de 2009. _____. Lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009. Dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aqüicultura e da Pesca, regula as atividades pesqueiras, revoga a Lei no 7.679, de 23 de novembro de 1988, e dispositivos do Decreto-Lei no 221, de 28 de fevereiro de 1967, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L11959.htm. Acessado Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 139 139 12/11/2010 10:33:49 em: 21 de julho de 2009. _____. Lei Delegada n° 10, de 11 de outubro de 1962. Cria a Superintendência do Desenvolvimento da Pesca e dá outras providências. Disponível em: http:// www.planalto. gov.br/ccivil_03/Leis/Ldl/Ldl10.htm. Acessado em: 21 de julho de 2009. _____. Medida Provisória n° 2.216-37, de 31 de agosto de 2001. Altera dispositivos da Lei no 9.649, de 27 de maio de 1998, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/2216-37.htm. Acessado em: 21 de julho de 2009. INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS - IBAMA. História do IBAMA. Disponível em: http://www.ibama.gov.br/ institucional/historico. Acessado em 20 de julho de 2009. MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E DESENVOLVIMENTO. Histórico do MAPA. Disponível em: http://www.agricultura.gov.br. Acessado em 20 de julho de 2009. MINISTÉRIO DA PESCA E DA AQÜICULTURA – MPA. Histórico da SEAP. Disponível em: http://tuna.seap.gov.br/seap/html/sobre_secretaria/historico_ main.html. Acessado em 21 de julho de 2009. MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. O Ministério. Disponível em: http:// www. mma.gov.br/sitio/index.php?ido=conteudo.monta&idEstrutura=88. Acessado em 20 de julho de 2009. SURGIK, A. C. S. Avaliação Crítica da aplicabilidade da Legislação do Setor Pesqueiro. In: O setor pesqueiro na Amazônia: análise da situação atual e tendências do desenvolvimento a indústria pesqueira / Projeto Manejo de Recursos Naturais da Várzea. Manaus: IBAMA/ProVárzea, 2007. Artigo recebido em: 30/05/2010 Artigo aprovado para publicação em junho /2010. 140 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 140 12/11/2010 10:33:49 TERRAS INDÍGENAS NAS FAIXAS DE FRONTEIRA DA AMAZÔNIA BRASILEIRA: UMA BREVE ANÁLISE DOS DISCURSOS CONTRÁRIOS AO SEU RECONHECIMENTO Alex Justus da Silveira * Fernando Antonio de Carvalho Dantas ** Sumário: Introdução; 1.A proposital indiferença em relação aos povos indígenas no Brasil; 2. Um breve panorama dos discursos contrários à demarcação de Terras Indígenas; 3. A ausência de compreensão das diferentes territorialidades indígenas; Conclusão; Referências. Resumo: O presente artigo tem como objeto de análise alguns dos discursos que tem sido difundidos no sentido de questionar o reconhecimento das terras indígenas na faixa de fronteira da Amazônia brasileira, sob o argumento de que essas representam vazios demográficos e que, por isso, implicam num risco à segurança e à soberania nacional. Este trabalho também trata, ainda que de forma sucinta, sobre o histórico de esquecimento e negligência em relação aos povos indígenas brasileiros, que refletiu diretamente na formação de um inconsciente coletivo fortemente marcado pela marginalização do índio na sociedade nacional, de forma a velar a importância deste povo à memória da sociedade Brasileira. Abstract: The current article aims to analyse the speeches that has been spread with the objective to question the recognition of indigenous territories in the borderline zone in Brazilian Amazon, under the argument that this territories has very reduced demographic density, which represents a risk to sovereignty and national safety. Moreover, the article still propose to point out the historic of forgetness and negligence about the indigenous people in Brazil, wich reflected directly to create an inconscient collective at the national society in sense of hide the importance of indigenous people in the Brasilian memory. Palavras-chave: direito indigenista, di- Key-words: indigenous law, indigenous reito territorial indígena, Estado Nacional, territory, National State, border zone. fronteiras nacionais, * Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. **Doutor em Direito e Professor do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas-UEA. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 141 141 12/11/2010 10:33:49 INTRODUÇÃO Os processos de reconhecimento de terras indígenas nas faixas de fronteira do território brasileiro vêm suscitando inúmeros debates nos ambientes político, social, econômico, ambiental e jurídico. Discursos alarmistas, como os que propagam a idéia de que as terras indígenas constituem vazios demográficos, ou então, que as extensões territoriais indígenas são muito vastas proporcionalmente ao número de indígenas, tratam o reconhecimento das terras indígenas em faixas de fronteira como ameaça à segurança e à soberania nacional. A grande questão é que tais fundamentos vêm sendo incorporado por vários segmentos da sociedade brasileira, e o mais importante, estão sendo tratados como verdades absolutas, de maneira a desconsiderar qualquer versão contrária e de forma a incitar demais atores sociais a se posicionarem como antagonistas aos interesses e direitos indígenas. A difusão de discursos que questionam a necessidade de grandes extensões de terras aos indígenas, ou então, o argumento de que a demarcação de Terras Indígenas significa a ausência do Estado brasileiro e a possibilidade de atuação estrangeira nessas regiões, é constituído por argumentos preconceituosos, desconhecedores da legislação em vigor e repleto de interesses obscuros com objetivos bem definidos. A idéia que a sociedade tem sobre os povos indígenas é de que o índio já deixou de existir, e o que resta são meros descendentes ou remanescentes de índios que um dia habitaram idilicamente as terras que hoje compõem o Brasil. A própria educação que o Estado e as instituições de ensino particular oferecem reforça a imagem dos índios apenas como personagem coadjuvante da história do Brasil. O que se pretende com este artigo é demonstrar que alguns discursos que tem se difundido no cenário nacional omitem o verdadeiro sentido de sua existência. Alguns segmentos sociais tem se apropriado de discursos diversos a fim de legitimar interesses obscuros que muitas vezes passam despercebidos aos olhos dos menos atentos. 142 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 142 12/11/2010 10:33:49 1. A PROPOSITAL INDIFERENÇA EM RELAÇÃO AOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL Na história econômica brasileira, João Pacheco de Oliveira Filho lembra que o índio é constantemente apontado como um óbice ao desenvolvimento da colônia, depois do Império, e por fim, um obstáculo à evolução econômica do Estado brasileiro. O índio só é retratado na historiografia econômica do Brasil no período das drogas do sertão, “certamente pelas suas características de nomadismo e rusticidade de que estava investida tal atividade.” (OLIVEIRA FILHO, 1999, 197) Outro exemplo do descaso em relação à figura do índio se deu no ciclo da borracha, período no qual o índio é mencionado apenas por sua ferocidade e agressividade; esquece-se, entretanto, de sua importância no trato com a seringa, no conhecimento da floresta, na arte da caça e da pesca, e ignoram-se os milhares de indígenas que trabalhavam sob um cruel e indigno trabalho escravo regido pelo sistema de aviamento característico dos seringais da Amazônia. Esta idéia preconceituosa e simplista sobre os povos indígenas brasileiros, na visão de Benedito do Espírito Santo Pena Maciel, ainda persiste no imaginário de grande parte da sociedade brasileira. A memória escrita pelos “vencedores” e difundidas por meio dos livros de ensino primário e secundário “se transforma em ideologia e mostra seu poder de dominação e destruição da memória indígena”. (MACIEL, 2006, 195) É neste contexto de destruição e menosprezo da memória indígena na historiografia de construção do Brasil, que se esquece da importância que os grupos indígenas tiveram na consolidação das fronteiras brasileiras atuais. A expansão das fronteiras da colônia portuguesa contou com a contribuição dos bandeirantes paulistas e dos sertanistas da Amazônia, no sentido de garantir um espaço à Coroa portuguesa que não era previsto no Tratado de Tordesilhas anteriormente firmado, na medida em que essas áreas que vinham sendo ocupadas pelos portugueses estavam fora das linhas traçadas pelo pacto tordesilhano. A fronteira fora empurrada sem cessar e sem quase incidente, em direção oeste, sobre as posições espanholas. Aplaudindo a marcha serena e segura, o governo de Lisboa estabeleceu novas entidades administrativas nesses sertões, desbravados pela energia e pelo espírito aventureiro de seus homens da América. Vilas, cidades, comarcas, paróquias, bispados tinham sido criados. O povoamento e a exploraHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 143 143 12/11/2010 10:33:49 ção da terra pelo trabalho agrário, pela criação de gado, pela exploração do subsolo, pela coleta da matéria prima ativa eram uma realidade incontestável. (REIS, 1947, 47) Como o Tratado de Tordesilhas não teve eficácia no seu cumprimento, iniciou-se a partir de 1730 novas negociações, que culminou com a assinatura do Tratado de Madri, em 1750. O Tratado de Madri também não surtiu o efeito esperado, no entanto, sua importância para a consolidação das fronteiras lusitana é de grande relevância, na medida que inseriu nos cenários de discussão sobre fronteiras, o princípio do uti possidetis, que em linhas gerais, garantia o direito de propriedade àquele que estivesse ocupando efetivamente o território. (GOES FILHO, 1999) A partir deste momento, Portugal se dá conta da importância e das vantagens que teria no caso de sustentar o conceito de fronteira que tivesse como característica fundamental a presença antrópica de seus “aliados” e passa a sustentar esta definição. O Império lusitano, neste momento, tomou “consciência da importância dos índios amazônicos como seus partidários e também como mão-de-obra indispensável, principalmente nos serviços de coleta de drogas do sertão, na caça e na pesca.” (TORRES, 2006, 129) Neste período, a Metrópole passa a dar uma importância enorme aos indígenas, sobretudo na região amazônica, incentivando a ocupação de pontos estratégicos, a organização de núcleos de povoamento com a própria gentilidade, o estabelecimento da ordem política, com equipamento administrativo representado pelas autoridades civis e militares, o amansamento e incorporação, à cristandade e à soberania lusa, das multidões gentias, pela ação direta e oficial dos missionários a serviço do Estado, a experiência agrária, a distribuição das sesmarias aos colonos que foram chegando, a miscigenação intensiva que aos poucos criou novos tipos sociais suficientemente integrados na região, os muitos outros aspectos de atividade que dão fundamento às empresas coloniais e ao estabelecimento dos domínios e constituíram elementos impressivos no empreendimento lusitano no vale. (REIS, 1947, 48-49) 144 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 144 12/11/2010 10:33:50 Apreende-se que uma das estratégias de ocupação da Amazônia sempre levou em consideração a presença indígena no sentido de fortalecer os núcleos de povoamento português na região. O índio, portanto, era considerado elemento essencial para a consolidação da hegemonia portuguesa na região Amazônica. Anos mais tarde, verificar-se-á que a definição das fronteiras levou em consideração a posse dos seus colonos numa dada região, fato este que não se concretizaria sem a presença do índio para fortalecer os núcleos de povoamento na Amazônia. Mesmo diante de fatos historicamente comprovados, na memória coletiva do povo brasileiro não indígena, pouco se sabe da importância destes povos para a constituição do território brasileiro atual. Verifica-se por meio de estudos historiográficos, que as autoridades portuguesas dos séculos XVIII, XIX, e XX se legitimaram do discurso de ocupação portuguesa na região a fim de obter as vantagens que posteriormente foram consagradas nos Tratados de Madri e de Utrecht. Não se pode esquecer que essa ocupação se deu na forma de núcleos de povoamento que Portugal afirmava ter consolidado, legitimando-se, portanto, do uti possidetis para garantir seu direito de domínio de vastas regiões. O que se esquece de trazer à tona é o fato de que o povoamento destes núcleos “portugueses” era constituído predominantemente por indígenas. Sobre essa memória coletiva, é de suma importância apreendermos que ela “pode ser manipulada e dominada pelo estado e pela sociedade majoritária, que através de vários mecanismos (religião, escola, imprensa, arte etc) pode decidir o que é importante lembrar e o que deve ser esquecido ou silenciado”. (MACIEL, 2006, 213) Pode-se dizer que esta estratégia de invizibilização dos povos indígenas brasileiros e de negligência da sua importância histórica se deu em razão da pretensa formação de uma unidade étnica idealizada primeiramente pela Metrópole e posteriormente pelo Estado Moderno. Esta imagem que pretendia ser mostrada aos demais Estados impunha o ideal imaginário de um único povo, cuja coesão fortaleceria e consolidaria a nação brasileira, na qual os povos indígenas deveriam estar inseridos. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 145 145 12/11/2010 10:33:50 2. UM BREVE PANORAMA DOS DISCURSOS CONTRÁRIOS À DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS Na atualidade, grande parte dos argumentos que têm sido utilizados contra os interesses e direitos indígenas e que tem se difundido nos mais variados meios de comunicação, constituem-se em discursos falaciosos e tendenciosos, que negam a existência de práticas sociais constitutivas de formas diferenciadas de organização social, de usos e costumes diferentes dos da sociedade majoritária brasileira, e que escondem a obscura relação de poder cujo objetivo é velado. Difunde-se a idéia de que nas terras indígenas situadas na faixa de fronteira brasileira existe uma maior atuação de organizações internacionais do que da própria máquina do Estado. Alega-se, também, que os índios terão autonomia plena nas terras indígenas, o que pode torná-las em Estados Indígenas autônomos e independentes. Esses discursos vêm sendo usados no sentido de rever, flexibilizar e até mesmo limitar alguns dos direitos territoriais indígenas; e isso está refletido na própria decisão da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cujo acórdão impôs uma série de limitações aos direitos constitucionais indígenas. As terras indígenas situadas nas faixas de fronteira brasileira são um exemplo nítido das forças exercidas por alguns segmentos da sociedade brasileira que objetivam uma revisão ou até mesmo, uma reelaboração dos direitos territoriais indígenas. Propaga-se a idéia de que as Terras Indígenas constituem uma grave ameaça à soberania e à segurança nacional, e alega-se, neste contexto, que o reconhecimento de direitos territoriais indígenas é somente um subterfúgio das grandes potências para promover a internacionalização da Amazônia. João Pacheco de Oliveira Filho ainda lembra que neste momento delicado de fortalecimento de argumentos, resgatam-se antigas teorias que conjuram a possibilidade da existência de “enclaves étnicos” e “quistos culturais” para a promoção da tão almejada unidade nacional. (OLIVEIRA FILHO, 1999) Francisco de Oliveira nos lembra que o receio ante a cobiça internacional sobre a Amazônia data de meados do século XIX, quando em 1853 propôsse a abertura do Amazonas à navegação internacional. Essa proposição estaria baseada no pouco aproveitamento produtivo da região, e com isso, havia a necessidade de “tornar a fronteira amazônica uma fronteira viva, isto é, dinâmica, produtiva. (OLIVEIRA, 1994, 04) Tendo como base antigas teses que defendiam a relativização da soberania na Amazônia, como a mencionada por Francisco de Oliveira, foi no período militar que o Estado brasileiro implementou uma urgente política de desenvolvi146 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 146 12/11/2010 10:33:50 mento e de integração da região Amazônica, a fim de evitar possíveis intervenções internacionais numa região onde o Estado não estivera presente. A política de abertura de estradas e de incentivo à ocupação da região foi muito constante neste período, cuja concepção sobre a região estava pautada na política do “integrar para não entregar"1. A síntese da “intervenção” pode ser resumida em tamponar fronteiras, vulneráveis tanto pela sua rarefação demográfica quanto por estarem habitadas por indígenas, menores de idade, definidos assim pela própria Constituição e pela longa prática da relação entre “civilizados” e as nações indígenas, prática e teoria às quais não faltava a legitimidade “científica” de uma antropologia tradicional que considerava os índios como faltos de história, portanto sem passado, sem presente e sem futuro. (OLIVEIRA,1994, 05) Foi neste contexto que o Estado brasileiro iniciou ações combinadas de diplomacia e militarização no sentido de “tamponar as fronteiras” da região amazônica. O Pacto Amazônico2, do qual o Projeto Calha Norte3 é um desdo1 O lema ‘integrar para não entregar’ apareceu primeiro no Projeto Rondon. Que tratava de substituir o trabalho dos ‘missionários’ pelo trabalho dos técnicos: ofereceu-se a milhares de universitários a oportunidade de prestar diversos serviços nas comunidades pobres do interior do Brasil. (OLIVEIRA; 1994: 06) 2 O Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) foi celebrado em Brasília, no dia 3 de julho de 1978, pelos oito países amazônicos (Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela). Trata-se de um instrumento jurídico de natureza técnica que tem por objetivo promover o desenvolvimento harmonioso e integrado da bacia amazônica, de maneira a permitir a elevação do nível de vida dos povos daqueles países, a plena integração da região amazônica às suas respectivas economias nacionais, a troca de experiências quanto ao desenvolvimento regional e o crescimento econômico com preservação do meio-ambiente. 3 O Programa Calha Norte (PCN) tem como objetivo principal contribuir com a manutenção da soberania na Amazônia e contribuir com a promoção do seu desenvolvimento ordenado. Foi criado em 1985 pelo Governo Federal e atualmente é subordinado ao Ministério da Defesa. Visa aumentar a presença do poder público na sua área de atuação e contribuir para a Defesa Nacional. Na sua etapa de implementação, o Projeto tinha sua atuação limitada, prioritariamente na área de fronteira; hoje o programa foi expandido e, visando proporcionar a vigilância da fronteira, proteção e assistências às populações, as ações do Programa pretendem fixar o homem na região amazônica. Extraído da página eletrônica: https://www.defesa.gov.br/programa_calha_norte/index. php Acesso em 21/06/09, às 15h33min. . Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 147 147 12/11/2010 10:33:50 bramento, foi uma das estratégias utilizadas no sentido de mitigar o receio ante a cobiça internacional. A abertura de estradas também foi uma política estratégica adotada pelo Governo brasileiro porque julgava condição indispensável para o controle das fronteiras nacionais. Nesta época, a recusa na demarcação de terras indígenas se constituiu na política de fronteiras adotada pelo Governo Militar, que já enfrentava combativamente a idéia de haver uma supranacionalidade dos povos indígenas nas suas respectivas terras. Francisco de Oliveira, em análise sobre este momento vivido no período militar e na região amazônica, assinala que a “síndrome ianomâmi” denuncia precisamente o medo à supranacionalidade desta e de outras nações indígenas. O reconhecimento da supranacionalidade indígena teria como conseqüência pôr em xeque o Estado-Nação brasileiro e os mais da Grande Amazônia. (OLIVEIRA, 1994, 05) Apreende-se que no regime militar houve uma preocupação intensa com uma definição geopolítica que convergisse com a segurança nacional, razão pela qual tanto se priorizou a construção de infra-estrutura que interagisse as fronteiras nacionais com as demais regiões do país. Segundo Francisco de Oliveira, quando a idéia do governo militar incentivou as frentes de expansão para a região amazônica, oferecendo infra-estrutura, incentivos fiscais e apoio aos Grandes Projetos para a fixação do homem nessa região, olvidava-se que a Amazônia não era uma “terra sem homens para homens sem terra”, mas sim uma região habitada por índios, posseiros e seringueiros, atravessada por conflitos fundiários que se agravaram depois da construção das estradas, dos Grandes Projetos e dos incentivos fiscais. (OLIVEIRA, 1994, 08) Com isso, os problemas fundiários na Amazônia pioraram ainda mais, pois as terras que julgavam inabitadas eram ocupadas por povos indígenas e outros povos tradicionais. De acordo com Francisco de Oliveira, isso gerou grandes conflitos na região, pois essas terras que acreditavam estar vazias eram ocupadas por não-gente, e que segundo os critérios do branco, não tinham capacidade cultural para cuidar das vastas riquezas da região. (OLIVEIRA, 1994) Este controle estratégico-político exercido pelo Estado ainda hoje tem dificuldade, ou até mesmo, não tem interesse no reconhecimento de territórios 148 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 148 12/11/2010 10:33:50 sociais dos povos tradicionais como parte da problemática fundiária brasileira. Com isso, muitas das terras indígenas têm seu reconhecimento sido questionado em face de interesses antagonistas que representam os mais variados interesses, dentre esses, o interesse econômico. Os interesses sobre as terras indígenas são tão escusos e os mais variados possíveis que se chega a construir discursos que afirmam que os índios constituem parcela privilegiada da população rural brasileira, e que esse privilégio se dá em função dos povos indígenas deterem grandes extensões territoriais, as quais tem sido exploradas de forma predatória e de onde obtém grandes lucros “(seriam então ‘índios ricos’ e também virtualmente ‘antiecológicos’, pois seriam predadores do meio ambiente’)”. (OLIVEIRA FILHO, 1999, 206) Observa-se, desse modo, que a busca por discursos com conteúdo de abrangência diversificado tem sido apropriado por atores sociais que almejam legitimar interesses setoriais. Faz- se um apelo à exploração predatória das terras indígenas por ter consciência que o campo dos conflitos ambientais - intrínseco à problemática de escassez de recursos - pode ser utilizado para persuadir grande parcela da sociedade brasileira a se voltar contra os interesses e direitos indígenas. E isso como forma de legitimar o acesso às terras indígenas e, portanto, ao acesso de recursos do meio material, utilizando-se de argumentos que simbolizem o equilíbrio ambiental, a qualidade de vida, o bem comum e a resolução do problema da fome no mundo. Isso dá uma idéia do quanto tais discursos são ameaçadores aos direitos territoriais indígenas, pois as estratégias veladas de sua real intenção podem trazer à discussão propostas que venham a comprometer e a relativizar os direitos dos povos indígenas. Discursos como este, no entanto, não são difíceis de serem desconstruídos, na medida em que as terras indígenas são as maiores áreas de preservação e conservação da natureza, superando até mesmo as Unidades de Conservação de Proteção Integral no que concerne o grau de eficácia na preservação e conservação dos recursos naturais. Na Cartilha denominada ‘Povos e Terras Indígenas e seu papel na conservação da Floresta Amazônica’, elaborada em conjunto pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB -, Fundação Vitória Amazônica – FVA -, e pelo Instituto de Conservação Ambiental The Nature Conservancy do Brasil, constatou por meio da análise de imagens de satélite que: O desmatamento no entorno das Terras Indígenas é muito maior do que dentro delas. O estudo constatou que em uma faixa de 10 quilômetros ao redor destas Terras, o nível de desmatamento é quase 10 vezes maior que no seu interior. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 149 149 12/11/2010 10:33:50 Em Rondônia, como já foi falado, as áreas desmatadas dentro das Terras Indígenas são um pouco maiores que 3%. No entorno destas mesmas Terras, os índices aumentam quase dez vezes! No Maranhão, enquanto o desmatamento dentro das Terras Indígenas atinge cerca de 25%, no entorno essa porcentagem chega 60% de desmatamento. No Pará, o desmatamento no entorno chega a quase 25% e as taxas de desmatamento para o interior das áreas analisadas são de 11%. No Mato Grosso estes índices são bem parecidos com os encontrados no Pará. Esses dados mostram que, mesmo nos Estados com maiores índices de desmatamento dentro das Terras Indígenas, os valores verificados ainda são muito menores do que os encontrados no entorno das Terras Indígenas. (POHL; POHL; BORGES; VENTICINQUE; DURIGAN; BATISTA; SZTUTMAN & FLORES, 2009, 07) Apoiando-se num forte controle da mídia, os antagonistas dos interesses indígenas apresentam esta parcela da população brasileira como um obstáculo à consolidação da soberania nacional e até mesmo à proteção ambiental, como já analisado. Tratam-se de justificativas caluniosas que incitam cada vez mais a sociedade brasileira contra os povos indígenas. Essas afirmações consistem e refletem uma relação de poder que está em jogo, em interesses cujos meios obscuros para atingir os fins idealizados não se preocupam em reiterar um discurso antigo e preconceituoso sobre os povos indígenas. João Pacheco de Oliveira Filho afirma que os argumentos contrários aos interesses indígenas simbolizam a “tentativa de construção de um ‘bode expiatório’ para o distorcido panorama agrário obrigatório”. (OLIVEIRA FILHO, 1999, 206) O presente artigo tem como objetivo trazer à reflexão do leitor a problemática do discurso que difunde as terras indígenas em faixas de fronteira como fator de insegurança e de risco à soberania nacional. Será que realmente as Terras Indígenas constituem um risco à soberania nacional ou os discursos que tem sido proferido neste sentido ocultam interesses escusos de alguns segmentos sociais? Esse questionamento vem se refletindo nas atuais discussões sobre terras indígenas em faixas de fronteira, o que demonstra uma forte tensão relativa ao reconhecimento jurídico da categoria jurídica “terra indígena”. O argumento utilizado para contestar o dispositivo constitucional que atesta o reconhecimento das terras tradicionalmente ocupadas através da territorialidade específica de cada grupo indígena, é que as terras indígenas em faixas de fronteira represen150 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 150 12/11/2010 10:33:50 tam um risco à soberania nacional. Esse risco se daria em função da livre atuação de Organizações Internacionais Não-Governamentais, o perigo de extensões tão grandes de terra possuir tão baixa ocupação, o receio de que os povos que habitam estas terras sejam influenciados internacionalmente a buscar autonomia e independência organizacional, e o fato de se tratar de áreas estratégicas para conter a ação “inimiga”.4 Ora, caso o discurso contrário à demarcação de terras indígenas em faixas de fronteira seja realmente a atuação estrangeira nessas áreas sem a devida autorização do Poder Público, deve-se ter em mente que o problema não são os índios e tampouco suas terras, e sim, a omissão do Estado no que se refere às políticas de segurança nacional. Muitos comentários sobre a impossibilidade das Forças Armadas e Polícia Federal ingressarem nas terras indígenas para poder realizar o trabalho de fiscalização das fronteiras nacionais, ou então, dos indígenas não permitirem a entrada de brasileiros em suas terras, admitindo, porém, a presença estrangeira - que lhes pagam bons frutos -, tem-se difundido nos mais variados meios de comunicação. Trata-se de um discurso equivocado, na medida existir um Decreto datado de 07 de outubro de 2002, que trata especificamente sobre a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal nas terras indígenas e, sobretudo, nas terras indígenas situadas nas faixas de fronteira nacional. Esse Decreto, de número 4412/02, estabelece que no exercício das atribuições constitucionais e legais das Forças Armadas e da Polícia Federal nas terras indígenas, estão compreendidas as seguintes atividades: 4 Em matéria publicada no jornal “Estadão”, veiculado em sua maior parte no Estado de São Paulo, o jornalista José Maria Tomazela escreveu sobre a defesa nacional por meio de suas fronteiras: “Dos 25 mil homens de que o Exército dispõe para defender a Amazônia de ameaças que vão do tráfico de drogas à cobiça internacional pelas nossas riquezas naturais, apenas 240 vigiam mais de 2 mil quilômetros de fronteira com as Guianas e o Suriname, na chamada Amazônia oriental. Destes, um contingente de 17 soldados tem a missão de proteger uma faixa de 1.385 quilômetros de fronteira seca no extremo norte do Pará. Se fossem distribuídos nesse território, caberia a cada homem a vigilância sobre 12.150 quilômetros quadrados, dez vezes a área da cidade do Rio de Janeiro. Informação obtida através do site http://www.estadao.com.br/nacional/not_ nac159692,0.htm em 21/05/2008. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 151 151 12/11/2010 10:33:50 Art. 1° [...] I) A liberdade de trânsito e acesso, por via aquática, aérea ou terrestres, de militares e policiais para a realização de deslocamentos, estacionamentos, patrulhamento, policiamento e demais operações ou atividades relacionadas à segurança e integridade do território nacional, à garantia da lei e da ordem e à segurança pública; II) A instalação e manutenção de unidades militares e policiais, de equipamentos para fiscalização e apoio à navegação aérea e marítima, bem como das vias de acesso e demais medidas de infra-estrutura e logística necessárias; III) A implantação de programas e projetos de controle e proteção da fronteira. Apreende-se que a legislação infra-constitucional, prevê expressamente a liberdade de trânsito, patrulhamento, policiamento, instalação e manutenção de unidades militares e policiais. Prevê, também, a construção de vias de acesso e demais medidas de infra-estrutura e logística necessária às Forças Armadas e à Polícia Federal nessas terras, além de possibilitar implantação de programas e projetos de controle e proteção da fronteira. O Decreto retrata a falácia do discurso que se difunde no sentido de orientar a sociedade brasileira a acreditar que as terras indígenas constituem fator impeditivo do Estado brasileiro ingressar nessas áreas e exercer a fiscalização que julgar conveniente, o que representaria um risco à segurança e à soberania nacional. Esses discursos omitem o fato de que cabe ao Poder Público assegurar a defesa nacional, e o reconhecimento de terras indígenas em faixas de fronteira não impedem o pleno exercício do dever constitucional das Forças Armadas de manter a integridade e a soberania nacional, sobretudo nessas regiões. As estratégias discursivas e persuasivas demonstram o quanto a situação é conflituosa. Os interesses dos mais diversos segmentos sociais estão em jogo, e as terras indígenas, pode-se afirmar, estão no epicentro deste terremoto, onde a justificativa para deslegitimar terras indígenas tem sido constantemente reforçadas por atores sociais que são porta-voz de “discursos competentes” capazes de influenciar e mobilizar a sociedade de forma contrária aos interesses e aos direitos indígenas. Por discurso competente, Marilena Chauí entende tratar-se de um instrumento de dominação no mundo contemporâneo, por meio do qual 152 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 152 12/11/2010 10:33:51 a linguagem sofre uma restrição que poderia ser assim resumida: não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância. O discurso competente confunde-se, pois, com a linguagem institucionalmente permitida ou autorizada, isto é, com um discurso no qual os interlocutores já foram previamente reconhecidos como tendo o direito de falar e ouvir, no qual os lugares e as circunstâncias já foram predeterminados para que seja permitido falar e ouvir e, enfim, no qual o conteúdo e a forma já foram autorizados segundo os cânones da esfera de sua própria competência. (CHAUÍ, 2000, 07) Pode-se afirmar que muitos desses discursos estão institucionalmente autorizados e munidos de um conteúdo nacionalista, na medida em que vários são os meios de comunicação que anunciam essas falas no intuito de re-legitimar a teoria integracionista sobre os povos indígenas. Trata-se de um discurso que historicamente proclamou e ainda persiste em aclamar a idéia da integração/assimilação dos índios na sociedade nacional. Esta é apenas uma das formas pela qual os discursos são acionados no sentido de justificar os objetivos desejados. Neste contexto, “não são decisivas nestes embates a ‘veracidade’ ou a capacidade de ‘atestação’ científica dos argumentos, mas as estratégias discursivas de persuasão enquanto a tornar gerais objetivos determinados.” (ACSELRAD, 2004, 20) Percebe-se que em algumas problemáticas indígenas, sobretudo nas questões fundiárias, o discurso nacionalista e discriminatório é bastante invocado, fazendo referência ao índio como um ser aculturado, que não comunga a cultura do não índio e que ao mesmo tempo não manteve ou mantém seus antigos usos, costumes e tradições, isto é, sua “antiga” cultura - como se essa fosse algo estático no tempo e no espaço. 3. A AUSÊNCIA DE COMPREENSÃO DAS DIFERENTES TERRITORIALIDADES INDÍGENAS A política integracionista que vigorou no Brasil até o advento da Constituição Federal de 1988, não logrou êxito completo nos cinco séculos de contato com esses povos, esbulho de suas terras e escravidão. Esta mesma política gerou um estigma de inferioridade aos índios, que não eram considerados integrados/ Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 153 153 12/11/2010 10:33:51 assimilados, e tampouco considerados índios, uma vez que o sincretismo cultural – como ocorre em toda e qualquer sociedade - foi intenso devido a proximidade e influência com o não indígena. Nesse contexto, Carlos Frederico Marés de Souza Filho afirma que até o presente momento a diversidade cultural dos povos indígenas brasileiros ainda não foi compreendida. “O próprio termo índio, genérico, insinua que todos estes povos são iguais. O senso comum acha que todos têm uma mesma cultura, língua, religião, hábitos e relações jurídicas civis e de família.” (SOUZA FILHO, 2006, 38) A falta de compreensão dos modos de criar, fazer e viver dos grupos indígenas brasileiros acaba por resultar na incompreensão da sociedade nacional no que se refere à demarcação das terras indígenas. Cada grupo possui sua territorialidade específica, na medida em que a apropriação cultural do mundo material é única de grupo para grupo. A própria demarcação das terras indígenas é interpretada por muitos grupos indígenas como um fator de limitação de sua liberdade, já que muitos povos indígenas tem como característica o nomadismo. A idéia de negação ao direito territorial indígena, representada por meio de “discursos competentes” contrários a demarcação de terras indígenas nas faixas de fronteira, de maneira contínua e em grandes parcelas territoriais, induz a sociedade a questionar o por que certas terras indígenas são tão grandes comparadas com outras que são tão pequenas. Por que essa discrepância? Existem algumas comparações que são veiculadas nos meios de comunicação que são dignas de menção, como por exemplo: a Terra Indígena Yanomâmi equivale a um país europeu, ou então, mais de 40% do Estado de Roraima é terra indígena. Essas informações induzem a população a se questionar realmente da necessidade de demarcações tão grande de terras, uma vez que o senso comum de grande parte da população brasileira desconhece as peculiaridades dos diversos grupos indígenas brasileiros. A ilusão de que as terras indígenas são muito vastas e que seriam muito maiores do que o necessário para a reprodução física, social e cultural dos povos indígenas, não procede, ao passo que a forma de ocupação e o nível tecnológico utilizado nessas terras não são os mesmos empregados nas áreas ocupadas por não indígenas, portanto, jamais se poderá ter como padrão comparativo os paradigmas etnocêntricos da sociedade urbano-industrial ou até mesmo do campesinato brasileiro. Essas afirmações, que em geral são proferidas por autoridades governamentais e atores sociais que detêm grande poder econômico ou prestígio político, conferem uma parcela de “legitimidade” a um discurso que para prevalecer depende da aceitação dos sujeitos sociais e políticos. Esses sujeitos, por sua 154 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 154 12/11/2010 10:33:51 vez, muitas vezes acabam por apreender esses discursos como imparciais e neutros, razão pela qual “não é paradoxal nem contraditório em um mundo como o nosso, que cultua patologicamente a cientificidade, surgirem interdições ao discurso científico”. (CHAUÍ, 1997, 07) Apreende-se, com isso, que a difusão de discursos preconceituosos, alarmistas e eivado de interesses obscuros de relação de poder sobre as questões territoriais indígenas, tem sido analisado sem o devido estudo científico, omitindo, dessa forma, o alcance objetivo destes discursos. CONCLUSÃO Discursos preconceituosos e alarmistas tem se fortalecido num cenário de especulação econômica onde as terras indígenas são tidas como óbices ao desenvolvimento do Estado e fatores impeditivos para o progresso da nação, cuja característica precípua é a homogeneidade. Aqui reside o perigo de um discurso que se utiliza de uma unidade inexistente, que é a nação brasileira, para contrapor e fortalecer argumentos que são contrários aos direitos territoriais indígenas arduamente reconhecidos. Verifica-se que alguns atores sociais tem procurado se apropriar de discursos que tem uma conotação nacionalista - como é o argumento de risco à soberania nacional - para que a sociedade nacional se mobilize em prol do interesse desses atores, a fim de que unidos e mobilizados socialmente, passem a idealizar a relativização dos direitos territoriais indígenas estabelecidos pela Constituição Federal de 1988. As terras indígenas situadas nas faixas de fronteira são as que tem sido mais frequentemente questionadas, sob o argumento de que vastas extensões territoriais nessas áreas colocam em risco à segurança e à soberania nacional. Nesta mesma perspectiva, afirma-se que essas áreas em faixas de fronteira estão suscetíveis à intervenção estrangeira. Esquece-se, entretanto, que nos casos de interferência estrangeira nesses locais, pressupõe-se a ausência, a omissão do Estado, e não a culpa dos povos indígenas, cujo conceito de território é distinto da lógica instituída pelo Estado Moderno. O inconsciente coletivo de grande parte do povo brasileiro carrega uma herança negativa acerca dos povos indígenas. Desconhece-se o fato de que as territorialidades indígenas transcendem as fronteiras políticas instituídas pelos Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 155 155 12/11/2010 10:33:51 Estados modernos, da mesma forma que se negligencia a importância desses povos na consolidação das atuais fronteiras do Estado brasileiro. O fato é que muitos discursos tem se difundido no sentido de relativizar os direitos originários dos índios sobre suas terras tradicionalmente ocupadas, e isso em detrimento de interesses bastante variados, dentre eles e o mais importante: o interesse econômico. Com isso, verifica-se a necessidade de mais estudos a respeito do tema, na medida em que ainda são muito incipientes os debates e as reflexões críticas a respeito do assunto. REFERÊNCIAS ACSELRAD, H. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: Conflitos ambientais no Brasil. Org.: Henri Acselrad. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 2004. CHAUÍ, M. S. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 7° Ed. . São Paulo: Cortez, 1997. GOES FILHO, S. S. Navegantes, bandeirantes, diplomatas: um ensaio sobre a formação das fronteiras do Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1999. MACIEL, B. E. S. P. Entre os rios da memória: história e resistência dos Cambeba na Amazônia brasileira. In: Rastros da Memória: histórias e trajetórias das populações indígenas na Amazônia. Orgs.: Patrícia Sampaio e Regina de Carvalho Erthal. Manaus: EDUA, 2006. OLIVEIRA, F. A reconquista da Amazônia. Novos Estudos. N° 38. São Paulo: CEBRAP, 1994. OLIVEIRA FILHO, J. P. Ensaios de Antropologia histórica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999. POHL, L.; POHL, L.; BORGES, S. H.; VENTICINQUE, E.; DURIGAN, C. C.; BATISTA, F. A.; SZTUTMAN, M. & FLORES, L. Povos e terras indígenas e seu papel na conservação da floresta amazônica. Cartilha; Manaus: COIAB, 2009. 156 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 156 12/11/2010 10:33:51 REIS, A. C. F. Limites e Demarcações na Amazônia brasileira. 1° Tomo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947. TORRES, S. M. S. Definindo fronteiras lusas na Amazônia colonial: O Tratado de Santo Ildefondo (1777-1790). In: Rastros da memória: histórias e trajetórias das populações indígenas na Amazônia. Org.: Patrícia Sampaio Melo; Regina de Carvalho Erthal. Manaus: EDUA, 2006. Artigo recebido em: 01/06/2010 Artigo aprovado para publicação em junho /2010. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 157 157 12/11/2010 10:33:51 158 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 158 12/11/2010 10:33:51 A FARRA DO BOI E A QUESTÃO DO BALANCEAMENTO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS Denison Melo de Aguiar* Serguei Aily Franco de Camargo ** Sumário: Introdução; 1. A farra do Boi 2. Da decisão do Supremo Tribunal Federal; 3. Do Balanceamento ou ponderação entre o Direito à proteção da fauna e flora à extinção ou crueldade (art. 225, parágrafo primeiro, inciso VII, CF/88) e o Direito à tutela de manifestação e expressão de cultura (art. 215, parágrafo primeiro e 216, CF/88); Considerações Finais; Referências. Resumo: Este artigo trata da relação da farra do boi, com a análise e aplicação jurídica do princípio da ponderação na colisão de dois direitos fundamentais. Procura-se mostrar como a relação e a interferência desses institutos podem acontecer no contexto da ponderação, sem que haja a anulação de um princípio. Inicialmente, procura-se compreender antropologicamente a farra do boi e suas peculiaridades; depois, a descrição do julgado do Supremo Tribunal Federal – STF e por fim, a relação entre a farra do boi e a ponderação de direitos. Abstract: This article deals with the relationship of a particular case, the farra do boi, with the legal analysis and application of the principle of balance in the collision of two fundamental rights. It aims to show how the relationship and the interference of these institutes can happen in the context of weight, without the cancellation of a principle. Initially, we seek to understand the anthropological the farra do boi and its peculiarities, then the description of the trial of the Supremo Tribunal Federal - STF, and finally, the relationship between farra do boi and the balance of rights. Palavras chaves: farra do boi, princípio da proporcionalidade; colisão de direitos Fundamentais. Key words: farra do boi, the principle of proportionality; collision of fundamental rights. * Mestrando em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas; Advogado; Bolsista da CAPES. Contato: [email protected]. ** Professor, Pesquisador e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direto Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas - UEA e Professor Adjunto I junto ao Departamento de Direito da Uninilton Lins. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 159 159 12/11/2010 10:33:51 INTRODUÇÃO A farra do boi é uma manifestação cultural bastante atacada pela mídia. A partir do momento em que a farra do boi ganhou notoriedade, o evento foi traduzido em sinônimo de tortura e crueldade animal. Dentro deste contexto, houve a judicialização do caso, e como resposta o Supremo Tribunal Federal - STF decidiu, por maioria proibir a prática da farra do boi no litoral catarinense. O princípio do balanceamento ou proporcionalidade, conforme Silva (2002) possui “uma estrutura racionalmente definida, que se traduz na análise de suas três sub-regras (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) e tem como finalidade harmonizar dois princípios, neste caso concreto, em colisão, assim sendo, é uma maneira jurídica de compatibilizar a farra do boi com os preceitos legais contra a crueldade animal. Ressalte-se que independente da decisão do STF, a prática continua. Assim sendo, a farra do boi, é um exemplo da necessidade da ponderação entre o direito ao bem estar animal e a crueldade contra os mesmos (art. 225, par. 1o., inc. VII, CF/88) como forma de expressão cultural (art. 215, par. 1o. e 216 caput, CF/88), no que tange ao balanceamento a ser feito através do conteúdo essencial dos direitos fundamentais. 1. A FARRA DO BOI A farra do boi1 é uma manifestação cultural praticada na região de Florianópolis. conforme Conceição (2003), possui origem açoriana e no Brasil ganhou outras conotações De acordo com Conceição2, a Ilha de Florianópolis foi colonizada por açorianos, levados pelos portugueses em 1747. Com aqueles imigrantes vieram as “Brincadeiras de Boi”, tendo como principais: Dança do Boi Mamão; Boi de Campo; Boi de Vara e Farra do Boi. De acordo com o mesmo 1 A farra do boi é uma manifestação cultural considerada como saudável, e a violência consentida e empregada nos bois desta brincadeira, faz parte da ritualística desta, conforme a cultura, já a “farra do boi” (com aspas), é a brincadeira feita sem ponderações, que nos termos de Lacerda, seria o “judiar” o boi, ou seja, empregar violência sem ponderações e sem a ritualística da festa, desvirtuando a brincadeira e sendo altamente criticada internamente pelos farristas. 2 CONCEIÇÃO, José Antonio da. A polêmica Farra do boi. 2003. Disponível em: http:// schollar.com.br . Acesso em: 23 de janeiro de 2010. 160 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 160 12/11/2010 10:33:51 Autor, a origem dessas brincadeiras remonta ao final do século XII e início do século XIII, onde os bois eram sacrificados na semana santa em substituição ao bode, como representação de Judas. Neste sentido, Conceição (2003) afirma que esta tradição, também denominada “brincadeira do boi”, “boi do campo”, “boi na vara”, consiste em se comprar um boi arisco, bravo e corredor, que antes de ser abatido é solto nos pastos e ruas, provocando correrias generalizadas. Ressalte-se que atualmente a “farra” também precede aniversários, casamentos, jogos de futebol e outras ocasiões. Segundo Dias3, a farra do boi antes ocorria nos pastos e a construção e ruas e loteamentos não impossibilitaram tal prática, envolvida em cada vez mais distúrbios e confusões. Para Lacerda4 a farra do boi “[...] se trata de uma manifestação folclórica dentre outras no contexto das festas populares brasileiras que envolvem este animal, a exemplo das vaquejadas nordestinas e dos rodeios gaúchos”, com a finalidade de fustigar o animal, e depois matá-lo e por fim repartir a carne entre os participantes. Ainda de acordo com Lacerda (2003), a problematização relacionada com a farra do boi, só começa na década de 1980, quando ficou classificado pelos folcloristas, como um folguedo popular, enquanto a mídia, entre 1987 e 1994, falava em selvageria, crueldade e tortura. Estes fatos ocasionaram protestos e campanhas internacionais e nacionais, questionando se a farra do boi é uma manifestação cultural ou simplesmente uma forma de crueldade contra os animais. Seria folclore ou violência; tradição popular ou degeneração cultural, poderia ser folclore uma tradição popular baseada na violência? Neste sentido, Lacerda (2003) relaciona a farra do boi, como manifestação cultural, e a segurança pública. As mediações ético-populares acabam por legitimar ou não as tradições populares. Entretanto, não é da mesma maneira que uma tradição folclórica passa a ser um caso de justiça. Para Lacerda (2003), a farra do boi remete aos atos praticados quando algum boi se apartava do grupo e os vaqueiros respondiam com violência às essas tentativas. Esses atos possuem relação com o modo de domesticação de animais 3 DIAS, Rafael Damasceno. Lembrança e nostalgia nos desacordos da memória: a cidade de Florianópolis nas últimas décadas do século XX. Disponível em: http://schollar. com.br. Acesso em: 23 de janeiro de 2010. 4 LACERDA, Eugênio Pascele. Os Usos do Folclore: A propósito da polemica sobre a Farra do Boi. Disponível em: http://www.nea.ufsc.br/artigo_engenio.php . Acesso em: 23 de janeiro de 2010. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 161 161 12/11/2010 10:33:52 bravios no meio rural. Para tal brincadeira o boi tinha que ser do campo. Note-se que já no século passado os arquivos da polícia municipal e de posturas municipais de Florianópolis, a existência de tais brincadeiras já eram preocupações das autoridades públicas. Conforme Lacerda (2003) o “boi-no-campo” é uma dança dramática, que mostra o combate com o boi, sendo uma taurimaquia, em dois tempos. O primeiro é a negociação da compra e venda do animal e a segunda a própria brincadeira da farra do boi, sendo que esta é motivo de grande euforia. Centenas de pessoas aguardam a chegada do animal que é motivo de festa e paralisação de cidades e vilarejos, sendo que o centro desta brincadeira é desafiar a fúria do boi. Na semana santa, o boi fica solto até o sábado de aleluia e no domingo de Páscoa, o boi é sacrificado. A “matança” ou “carneação” do boi é o sinal do final da festa. Lacerda menciona que: Durante todo o tempo de festa não se notam regras de exclusão baseadas em sexo, idade, ou autoridade. O que se nota é uma contínua valorização da decisão individual em querer participar o que significa adequar-se aos parâmetros tidos como legítimos da brincadeira. A farra do boi é certamente uma brincadeira perigosa, ligada ao mundo do excesso. De fato não estamos lidando com um acontecimento da norma, mas da suspensão dela. Quando é tempo da farra do boi a rotina normal do trabalho e da família é posta em parâmetros. Tradicionalmente, na festa só se pode brincar com o boi. Neste contexto, atos de crueldade são punidos com uma “rixa na cabeça”, ou até mesmo uma “surra”. Quem brinca com o boi recebe o carinho dos camaradas e a chancela das mulheres. O farrista, geralmente é o pescador do litoral, pois são eles que recolhem os barcos, durante a semana santa, e nesse período improdutivo as brincadeiras da farra do boi são mais freqüentes. Lacerda menciona que a urbanização e alterações sazonais na pesca parecem estar modificando a regularidade da festa. Afirma Lacerda (2003) que até meados de 1970, a farra do boi não tinha uma interpretação de crueldade animal, mas sim, de manifestação cultural, no entanto, com o aumento do turismo no litoral catarinense, este conceito foi sendo paulatinamente modificado. A brincadeira acontecia era própria das populações nativas, mas com a intensificação do turismo nos balneários, as brincadeiras começam a depender da tolerância dos novos moradores. 162 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 162 12/11/2010 10:33:52 As farras nativas, visibilizadas, fogem desse padrão de consumo. Torna-se objeto de tribunização pelo cosmopolitismo ecológico em voga, por meio de censura cultural e de repressão oficial. Penso que todo esse processo se vincula a uma das peculiaridades da dinâmica cultural brasileira que consiste na apropriação de manifestações através de mecanismos manipuladores de seus significados e, muitas das vezes, transformados em símbolos de identidade nacional. [...] Muitas vezes, estas formas de apropriação implicam numa assepsia generalizada daqueles aspectos que possam conferir perigo ou ameaça à cultura dominante e ao estado.. Quando não ocorre via repressão pura e simplesmente, adotam-se outros mecanismos mais sutis de domesticação que consistem em recuperar as práticas populares como ‘exótica lembrança de um mundo extinto, que pode ser exposta ao turista e ser exibida como relíquia nos teatros’(Chauí, 1982:132). (Lacerda, 2010) Neste sentido, portanto, ao se analisar a farra do boi, no contexto conjuntural e polemico desta e na perspectiva dos protestos dos jornais, Lacerda (2003) verifica que houve uma desqualificação da farra do boi, como folclore, devido a tribunização a que foi submetido. [...] não encontrando mais o reconhecimento e a tipicidade comuns dada ao termo, como um costume exótico e ao mesmo tempo palatável da cultura popular. Interessante é que este reconhecimento é dado a outras manifestações locais como o Pau-de-fita, o Boi-mamão,o terno-de-Reis e as folias do Divino. Ocorre que o cantador do Terno, o dançador do auto e o folião do Divino, em muitas comunidades é o “farrista” do boi. Sem dúvida podemos incorporar o caso da farra do boi neste processo mais amplo de domesticação cultural. Mas, no seu caso, o processo ainda é o de tribunização, estando a festa proibida em todo território nacional., fruto de um recente Acórdão (1997) do Supremo Tribunal Federal, sem que isso, no entanto, tenha impedido a sua ocorrência a cada ano.(Lacerda). Lacerda (2003) questiona quais seriam os ingredientes que colocariam a cultura dominante em perigo e tira três conclusões. Em primeiro lugar, a farra é um rito de inversão, ou seja, é um “tempo louco”, que se suspende a rotina e seus consensos normais. É um tempo em que o individuo começa a brincar com Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 163 163 12/11/2010 10:33:52 outros sentidos e ter uma convivência muito similar a do carnaval, reinventando-se a festa a cada momento. Em segundo lugar, o fator violência. Para os “farristas” o fator é o boi e na festa o fator é o rito, qual seja, a morte ritual do animal e a sua transformação em comida extraordinária. Nesse sentido, a violência é tratada como valor envolvente na polêmica da farra do boi. Em terceiro lugar, a farra do boi é uma festa de orgia, tratada como transgressões noturnas, sexualidade ou jogos de prazer. Sussekind5 descreve que a polêmica da farra do boi está relaciona-se às formas de legitimação e restrição de violência. Especialmente em torno dos códigos de ética da festividade popular, que é herdeira das touradas e o ideal de proteção dos animais numa sociedade brasileira dita “civilizada”. Dentro de um contexto socioeconômico do litoral de Santa Catarina, qual seja, transformação histórica das comunidades tradicionais de pescadores do litoral, em balneário turístico, da qual se insurgiu protesto das sociedades protetoras dos animais, sobre a crueldade contra os mesmos. Tendo como conseqüência a repressão policial, que revela diferentes esferas de violência: uma relacionada aos animais e outra relacionada aos moradores locais e o poder público, especialmente em reportagens de jornais, que as consideram como “sadismo” e “tortura”. O “judiar”, na descrição de Sussekind (2003), é uma categoria anômala, uma forma que violência ilegítima, que por isso, desvirtua a ética ritual da brincadeira, considerando que são duas visões diferentes, com o mesmo fundamento ético. Seja de um lado, seja de outro, a violência contra os animais são toleráveis, no plano político religioso, não se condena o sacrifício animal em si, mas a forma como é praticado; no plano das sociedades protetoras de animais, o ato de comer a carne é um problema de legitimação da violência, incentivando a prática da alimentação vegetariana, daí se questionar o modo de produção de carne na sociedade urbana moderna, isto é, enquanto algumas espécies são tratadas brutalmente e transformadas em carne, como produção de alimentos, como os bovinos, outras são tratadas como filhos, por exemplo, os animais de estimação como os cães. Neste sentido, Sussekind descreve que “O ato do sacrifício animal dos hábitos alimentares e do modo de vida urbana, mas a violência nele contida é desvinculada simbolicamente do alimento consumido.” Portanto, o sacrifício do animal para o consumo é mantido distante do consumidor, enquanto, no ritual da farra do boi, a violência consentida é parte legítima do momento da “matança” e divisão de carne. Relevante é saber que o 5 SUSSEKIND, Felipe. Resenha de: Lacerda, Eugênio Pascele. Bom para brincar, bom para comer: a polêmica da farra do boi no Brasil. Florianópolis: UFSC. 127p. 2003. Disponível em: http://schollar.com.br. Acesso em: 23 de janeiro de 2010. 164 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 164 12/11/2010 10:33:52 animal, opera diferentes símbolos na sociedade e estas relações ora são mantidas ocultas, ora são mostradas, bem como, a representação do boi no meio urbano (relação de consumo) é diferente do meio rural (relação subjetiva), no que tange às comunidades litorâneas catarinenses, o boi é um alimento extraordinário, que não faz parte do cotidiano. Assim, a farra do boi é conectada a um universo mágico-religioso, o animal é sacralizado, e neste sentido, não banalizado como alimento para consumo somente, quando a relação é de comer e brincar e “O par brincar/judiar aponta uma forma de violência considerada legítima e outra ilegítima”. (Sussekind, 2003) Ao se elencar o modo de sacrifício dos animais em abatedouros, “a polêmica não é tanto a condenação estrutural da violência, mas o rompimento com o código social estabelecido em que a violência pode se dar”. Os movimentos ecológicos buscam quebrar os preceitos, mecanização e impessoalidade; condenando a crueldade, no entanto, o tratamento nas formulações de restrições e métodos humanitários caracterizados no dispositivo de regulação da violência que depende da dominação humana e do controle do sacrifício dos animais ser consentida, o que se parece assim ambíguo e contraditório. Dentro desse contexto, a farra do boi é uma uma dramatização que faz parte da cultura catarinense. A farra do boi é um jogo de vida e de morte, que não deve ser analisado do referencial distante das comunidades tradicionais litorâneas, mas compartilhado com elas, já que a experiência da farra do boi é uma experiência de risco vivida socialmente, num contexto de brincar e comer. (Sussekind, 2003) Laraia (2009), descreve que a cultura tem uma lógica própria descrevendo: Que todas as sociedades humanas dispõem de um sistema de classificação para o mundo natural parece não haver mais dúvida, mas é importante reafirmar que esses sistemas divergem entre si porque a natureza não tem meios de determinar ao homem um só tipo de taxonômico. Por isso o morcego é muitas das vezes colocado numa mesma categoria com as aves, da mesma forma que a baleia é vulgarmente considerada um peixe. No norte de Goiás, uma dona de pensão afirmou que “o rato era um inseto impertinente”. Constatamos, então, que como inseto eram classificados todos os seres vivos que perturbem o mundo doméstico. Finalmente, entender a lógica de um sistema cultural depende da compreensão das categorias constituídas pelo mesmo. (p. 93) [...], cada sistema cultural está sempre em mudança. Entender essa dinâmica é importante para atenuar o choque Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 165 165 12/11/2010 10:33:52 entre as gerações e evitar comportamentos preconceituosos. Da mesma forma que é fundamental para a humanidade a compreensão das diferenças entre povos de culturas diferentes, é necessário saber entender as diferenças dentro do mesmo sistema. Este é o único procedimento que prepara o homem para enfrentar serenamente este constante e admirável mundo novo do porvir. (p.101) Neste sentido, apreender cultura é um processo que o ponto de referência é o das comunidades litorâneas. Se estas assim entendem e continuam a praticar, mesmo depois da decisão judicial, é porque faz parte de sua própria identidade e não iram se desfazer do que lhes caracterizam. Isto ocorre pelo fato de terem a liberdade de se autodeterminarem como culturalmente autônomas. 2. DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Em 1997, foi julgado um Recurso Extraordinário (RE 153531/SC – Santa Catarina)6 contra o Estado de Santa Catarina pela APANDE – Associação Amigos de Petrópolis Patrimônio, Proteção aos animais e defesa da Ecologia , LDZ – Liga de Defesa dos animais, a SOZED – Sociedade Zoológica Educativa e a APA – Associação protetora dos animais, referente a farra do boi. Alegando vulnerabilidade ao artigo 225, parágrafo primeiro, inciso VII, da Carta Magna, que trata do Direito à proteção da fauna e flora à extinção ou crueldade, iniciada por uma Ação Civil Pública que obteve a condenação o Estado de Santa Catarina, sobre a farra do boi e manifestações culturais assemelhadas, sob o manto de suposta comprovação de crueldade e de repercussão negativa no exterior. Rezek Afirma: “[...] não só que a ‘farra do boi’, manifestação cultural bastante entranhada em significativas parcelas da sociedade, seja uma prática intrinsecamente cruel ou violenta, como também estivesse configurada a omissão do Poder Público Estadual, que adotou várias iniciativas para coibir os excessos”. No Tribunal de Justiça de Santa Catarina a Ação civil Pública, assim foi julgada: Ação Civil Pública. Ajuizamento contra o estado de Santa Catarina. Pedido consistente na proibição da prática, nos municípios, distritos, subdistritos e outras localidades da faixa litorânea catarinense, da denominada farra do boi. Presença marcante do Estado através da Polícia Civil e Militar, com a finalidade de disciplinar o folguedo popular, sem maus tratos aos animais. Solicitação, ademais, por parte da 166 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 166 12/11/2010 10:33:52 administração do concurso de cientistas sociais para estudo e solução que se localiza apenas em segmento da população de origem açoriana. Inconfiguração de omissão do Estado na área em que cumpre atuar. Indispensável, por outro lado, não confundir com tradição, de origem açoriana, conhecida sob a determinação de tourada à corda ou boi na vara, com a violência descriteriosa infligida nos próprios bois. O erro aqui praticado, configurativo de contravenção, uma vez expungido desse contexto, por meios preventivos ou repressivos, não justifica a proibição dessa manifestação popular, desde que se mantenha à feição tradicional do boi na vara, sem a menor violência de malefícios à alimária. Recurso desprovido para, alterado o dispositivo da sentença, julgar improcedente o pedido. Neste julgado vários aspectos foram analisados, que por si só já evidenciam ponderações. Inicialmente a delimitação de territorialidade da prática da farra do boi, isto é, o litoral catarinense, que é segmento da tradição açoriana; a diligência estatal, em disciplinar o folguedo popular através das polícias civil e militar, sem maus tratos; acepção da farra do boi, consistente em não confundíla com a tourada corda ou boi na vara, com a violência descriteriosa infligida nos próprios bois; tipificação criminal: contravenção penal; Tradição cultural: que se deva manter a feição tradicional do Boi na vara , que possui a menor violência ou inflição de malefícios nos animais. Neste sentido do TJ/SC, não proibiu a prática da farra do boi, mas a ponderou com a prática de violência descriteriosa. Ao tratar do art. 225, parágrafo primeiro, inciso VII, o relator, considera que: [...] concluindo, em sentido oposto ao que concluiu o E. Tribunal a quo, em primeiro lugar que a prática da ‘farra do boi’ é necessariamente cruel e violenta e, em segundo lugar, que o poder público estadual tem sido omisso a respeito. Semelhante pretensão infelizmente não pode ser acolhida. 6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE - RECURSO EXTRAORDINÁRIO Processo: 153531 UF: SC - SANTA CATARINA Relator Ministro FRANCISCO REZEK, 30/01/2007. Disponível em: www.justicafederal.jus.br. Acesso em 14/12/2009. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 167 167 12/11/2010 10:33:52 O Ministro Francisco Rezek votou pela proibição da farra do boi. Começa a argumentar no sentido de que o art. 225, parágrafo primeiro, inciso VII, da Carta magna, em que no caso da farra do boi, está na iniciativa do poder público objetivando coibir a prática da farra do boi, conforme a interpretação constitucional “na forma da lei”, para se coibir tal prática, isto é, seguindo a norma estadual, de forma coibir prática inconsistente com a norma fundamental. Para o Ministro, não se deva ser submetido a duas tentações, intituladas como sombras metajurídicas, que devem ser repelidas pelo julgador. Estas são: 1. a consideração metajurídica das prioridades, consistente em saber quais são os motivos para num país, no qual possui tantos problemas, se tem a preocupação com a integridade física ou sensibilidade com os animais. Para o ministro, para que haja o exame de controversas, há que se considerar que: Esse argumento é de uma inconsistência que rivaliza com sua impertinência. A ninguém é dado o direito de estatuir para outrem qual será a linha de ação, qual será, dentro da Constituição da República, o dispositivo que, parecendolhe ultrajado, deva merecer seu interesse e sua busca de justiça. De resto, com a negligencia no que se refere à sensibilidade de animais anda-se meio caminho até a indiferença a quanto se faça a seres humanos. Com isso, não se institucionaliza o sofrimento humanos mas se quer o fazer com o sofrimento dos animais. De outra monta, como assumir, o que é chamado de “manifestação cultural”, nesta percepção, o Ação Civil Pública não foi direcionada às comunidades tradicionais litorâneas, mas ao Poder Público, objetivando honrar a Constituição. A segunda tentação, diz Rezek, está no fato, de que o Recurso Extraordinário ser interposto por instituições distantes geograficamente do meio catarinense, sediadas no Rio de Janeiro. O Ministro considerou que a Região, em questão, possui um índice virtualmente nulo de fraudes e de incidentes, um índice maior de apuração e dinamismo, visto que, na realidade do Rio de Janeiro, há problemas sociais de mais emergências, que seus próprios não almejam para resolvê-las, bem como não faltando instituições para reagir pelo cumprimento da Constituição. Sobre esta questão, conclui que é dever cívico de todo cidadão, querer ver honrada a Constituição em qualquer parte do território nacional, bem como procrastinou o caso, com a esperança de que o caso se resolveria sem a chancela do judiciário, no entanto, a prática se reiterou como cronicamente 168 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 168 12/11/2010 10:33:52 violenta. Sobre a relação de fato e direito, discutido no STF sobre o caso e a notoriedade do caso, postula que: “Além do mais, os fatos são de uma gritante notoriedade, que ultrapassa nossas fronteiras; poucas coisas são tão tristemente notórias quanto o ritual da chamada farra do boi e o que nela acontece no litoral catarinense a cada ano.” O ministro defende que: Não posso ver como juridicamente correta a idéia de que em prática dessa natureza a Constituição não é alvejada. Não há aqui uma manifestação cultural com abusos avulsos; há uma prática abertamente violenta e cruel com animais, e a constituição não deseja isso. Bem disse o advogado da Tribuna: manifestações culturais são as práticas existentes em outras partes do país, que também envolvem bois submetidos à farra do público, mas de pano, de madeira, de ‘papier maché’; não seres vivos, dotados de sensibilidade e preservados pela Constituição da República contra esse gênero de comportamento. Por fim, ele decide em prover o Recurso extraordinário, julgando o feito procedente nos termos da Ação Civil Pública. O Ministro Maurício Corrêa contextualiza no que o ministro Rezek o fez e faz alguns questionamentos. O Ministro contesta se haveria possibilidade de se proibir a prática da farra do boi, com fulcro no art. 215, par. 1o. da Constituição Federal, que trata do pleno exercício dos direitos culturais, bem como, sua proteção no processo de civilização nacional e considerando o art. 216, da carta Magna, que trata do patrimônio cultural. Responde a tais indagações, com a resposta não. Pontua sobre antinomias na Constituição Federal da seguinte maneira: Não há antinomia na Constituição Federal. Se por um lado é proibida a conduta que provoque a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade, por outro ela garante e protege as manifestações das culturas populares, que constituem patrimônio imaterial do povo brasileiro. Este ministro lembra que a farra do boi, é de origem açoriana e cita Lacerda: Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 169 169 12/11/2010 10:33:52 Na realidade, o povo do litoral catarinense é pescador e agricultor, descende dos portugueses açorianos, tem consigo com uma visão do mundo peculiar; um universo cultural que deve ser pesquisado, não reprimido. No caso da farra, são pegas e correrias de boi pelo mato afora, em época santa; depois o boi é tornado objeto sacrificial, oferecido como hóstia repartida aos consortes. A farra do boi é uma prática cultural resistente; está ligada a raízes rituais, pilares da história da humanidade. Diz respeito aos sacrifícios rituais com função de celebração, condenação ou encantamento. Podemos buscar suas origens rituais nos cultos da Mithra da Pérsia ou nos cultos de Dionisíacos da Grécia Antiga. Isso reclama explicação em linguagem antropológica. Defendendo que como manifestação cultural, deva-se ser tutelada pelo art. 215, par. 1o. da CF/88, o elencando como patrimônio cultural imaterial, bem como que a partir desta análise expressar, conforme o artigo 216, CF/88, como Memória cultural açoriana, que faz parte da formação cultural da Sociedade Brasileira. Portanto, não se pode confundir uma manifestação cultural com exacerbações de violência. Não conhecendo o recurso extraordinário o Ministro conclui: Desta forma, como costume cultural, não há como coibir a denominada “farra do boi”, por ser uma legitima manifestação popular, oriunda dos povos formadores daquela comunidade catarinense. Os excessos, esses sim, devem, ser reprimidos, para que não se submetem o animal a tratamento cruel. Mas esta é outra história. Resumidamente, os seguintes Ministros, com argumentos similares aos descritos anteriormente, acompanharam o voto do Ministro Francisco Rezek: Ministro Marco Aurélio; Ministro Néri da Silveira, complementando que art. 225 tem uma vinculação direta com o art. 1º, ambos da Constituição Federal, especialmente no que tange à dignidade da pessoa humana e cidadania, na construção de uma sociedade livre, justa e solidária; e que a preocupação não está em se ter a dignidade, mas sim no dever agir da dignidade, para promoção da cultura. Por fim, a decisão foi por maioria, para se proibir a prática da farra do boi, nos seguintes termos da ementa: COSTUME - MANIFESTAÇÃO CULTURAL - ESTÍMULO - RAZOABILIDADE - PRESERVAÇÃO DA FAUNA 170 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 170 12/11/2010 10:33:53 E DA FLORA - ANIMAIS - CRUELDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado "farra do boi". BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE - RECURSO EXTRAORDINÁRIO Processo: 153531 UF: SC - SANTA CATARINA Relator Ministro FRANCISCO REZEK, 30/01/2007. Fonte: www.justicafederal.jus.br. Acesso em 14/12/2009. Mesmo muito tempo depois da decisão o STF a prática da brincadeira da farra do boi é presente em Santa Catarina. Em 09 de janeiro de 20107, a Polícia Militar deste estado capturou um bovino, no bairro Pantanal de Florianópolis, que estava sendo utilizado na brincadeira da farra do boi. 3. A PONDERAÇÃO ENTRE A PROTEÇÃO DA FAUNA E DA FLORA CONTRA A EXTINÇÃO OU CRUELDADE E O A MANIFESTAÇÃO E EXPRESSÃO DE CULTURA Na Constituição Brasileira de 1988, o art. 225, parágrafo primeiro, inciso VII, trata da proteção da fauna e flora em prática de risco que podem provocar a extinção ou que as submetem animais à crueldade e os artigos 215, parágrafo 1º e 216, que tratam respectivamente de que o Estado protegerá os direitos culturais e acesso à fontes da cultura nacional; bem como a tutela de expressão dessas culturas. No caso da farra do boi, houve uma tentativa de balanceamento ou ponderação entre esses dois direitos, aparentemente contraditórios. 7 ANIMAL usado na Farra do boi em Florianópolis é capturado. O GLOBO, Caderno: Cidade, 10 de janeiro de 2010. Disponível em:< http://news.google.com.br>. Acesso em: 14 de fevereiro de 2010. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 171 171 12/11/2010 10:33:53 Para Bobbio8, pode-se entender o evento conhecido como a farra do boi nos termos, do art. 215, parágrafo primeiro e 216, ambos da Constituição Federal, como elemento do meio ambiente cultural. Meio ambiente cultural, para Silva9, é o que é “integrado pelo patrimônio histórico, artístico [...], que embora artificial, em regra é obre do homem [….] pelo sentido de valor especial que adquiriu ou de que se impregnou”, considerando-o como manifestação cultural por ser desenvolvido pelo homem. Assim sendo, a farra do boi, é uma manifestação cultural, mesmo considerando o art. 225, parágrafo primeiro, inciso VII, da Constituição Federal. Para Bobbio (1999), antinomia é a situação de normas incompatíveis entre si, tendo–se de ter duas condições10 para que seja caracterizada: as duas normas devem pertencer ao mesmo ordenamento e devem ter o mesmo âmbito de validade, existente no caso citado, sendo que o Direito não tolera antinomias e se as tivessem, dentro do direito romano, seriam eliminadas. Na classificação de Bobbio (1999) esta antinomia é classificada da seguinte maneira: por contrariedade, antinomia de princípio, na doutrina. Valendo-se disso, art. 225, parágrafo primeiro, inciso VII, da Constituição Federal, estabelece ser proibido as práticas de crueldade ou tortura contra animais, e no caso em tela, submeter os animais à crueldade, já o art. 215, parágrafo 1º e 216 são considerados como normas de obrigação, de ordenação a fazer algo, referente ao Estado se obrigar a garantir a todos os direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional, e protegerá as expressões e manifestações das culturas populares, configurada na farra do boi. Por sua extensão essas normas têm igual âmbito de validade, por isso, ser total-total, em que neste caso uma dessas normas pode ser aplicada sem entrar em conflito com a outra. Mesmo considerando uma manifestação cultural, o STF não deixou de proibi-la, utilizando-se do entendimento de ser uma crueldade. No entanto, no plano doutrinário, há antinomia entre as normas insculpidas no parágrafo primeiro, inciso VII do art. 225, e parágrafo 1º do art. 215, visto que esse tema foi tratado pelo voto do Ministro Maurício Correa, argumentando que não há antinomias na Constituição Federal. 8 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ºed., 1999. 9 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 7ºed., atualizada. São Paulo: Malheiros, 2009, p.21. 10 Op. Cit. BOBBIO, p. 86-87 172 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 172 12/11/2010 10:33:53 No caso da farra do boi, se está diante de uma contrariedade11. O parágrafo 1º do art. 215, é uma norma de obrigação, de ordenação a fazer algo, referente ao Estado se obrigar a garantir a todos os direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional, e protegerá as manifestações das culturas populares, configurada na farra do boi; já a segunda norma, o inc. VII, do parágrafo primeiro do art. 225 da Constituição Federal, estabelece ser proibido as práticas de crueldade ou tortura contra animais Por sua extensão essas normas têm igual âmbito de validade, por isso, ser total-total, em que em nenhum caso uma dessas normas pode ser aplicada sem entrar em conflito com a outra. Configura-se ainda, se valendo dos ensinamentos de BOBBIO, em uma antinomia de princípio, considerando que há valores opostos, inseridos na norma, e que um vai sobrepor ao outro, no caso, a não crueldade de animais sobre as manifestações culturais; solúvel ou aparente, por ser um caso no qual se podem aplicar duas ou mais regras em conflito entre si. Por fim, é de se salientar dois aspectos diferentes do caso em tela. Primeiro, pela decisão do STF, isto é, juridicamente, não houve antinomia, já que o mesmo considerou a manifestação cultural e mesmo assim a proibiu e; no plano doutrinário há a antinomia por contrariedade (norma que ordena versus norma que proíbe). Na procura por uma resposta correta, os juízes devem fazer uma interpretação do caso concreto. Aliando os princípios à democracia, Dworkin (2007) propõe três problemas, três direções: a) Distinção geral entre direitos individuais (homogêneos) e objetivos sociais: Grandes direitos (liberdade, igualdade, direito ao respeito), “Estes grandes direitos não parecem relevantes para decisão de casos difíceis em direito, exceto, talvez, no direito constitucional” (Dworkin, 2007:139). Deve-se demonstrar a distinção entre argumentos de princípio e argumentos de política; b) Precedentes e história institucional dos casos difíceis. É o juiz que deva realmente decide, ninguém pensa que o direito é perfeitamente justo. Mesmo que o juiz se distancie dos precedentes, ele é impulsionado pela “doutrina da consistência articulada” que exige. A impressão é equivocada, há no processo um direito político genuíno e c) Decisão por julgamento de moralidade política: é indefensável “por iludir a maioria com relação a seu direito a decidir, por si própria questões de moralidade política”. Daí se analisar o princípio da proporcionalidade, de acordo com Bonavides (2009) o conceito do princípio da proporcionalidade, possui acepções diferenciadas. Este autor se utiliza da classificação de Muller, no qual no sentido mais amplo “é uma regra fundamental a que devem obedecer tanto os que 11 Op. Cit. BOBBIO, p. 86. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 173 173 12/11/2010 10:33:53 exercem quanto os que padecem do poder” (p.393); numa escala menos ampla, o princípio é caracterizado pelo fato de se presumir a existência de relação adequada entre um ou vários fins destinados e os meios com que são levados a cabo, neste sentido, há a violação desse princípio com a ocorrência de arbítrio; quando os meios não são apropriados e quando há a desproporção dos meios utilizados e o fim manifestado. Assim, o princípio da proporcionalidade procura fazer uma relação compatível entre os meios e os fins de maneira que haja um controle do excesso, no qual, para corrigir possíveis insuficiências da dualidade anterior, estabelecendo uma relação triangular, entre o fim, meio e situação (caso concreto). Daí poder haver o princípio da proporcionalidade aliado à interpretação do legislador e do julgador, especialmente quando se trata da interpretação conforme a Constituição, o que, em conseqüência, não abala a divisão de poderes e resvala o “governo dos juízes”. Neste sentido, o princípio da proporcionalidade é um axioma para o Direito Constitucional Brasileiro, isto é, que tolhe a ação ilimitada dos poderes do Estado no quadro da juridicidade, bem como, de limitar o legislador, ou até o juiz, quando julgar legislando. Valendo-se de Barroso (2009), o princípio da proporcionalidade é empregado, na Constituição do Brasil, de modo fungível, isto é, não está expressa nesta, mas tem seu fundamento na idéia do devido processo legal substantivo e na de justiça. É um instrumento valioso de defesa dos direitos fundamentais e controle da discricionariedade do poder público, utilizado para que melhor se aplique os fins que acaba por tornar a norma embutida ou decorrente no sistema jurídico, mesmo sentido, quando não tiverem: adequação; necessidade/vedação do excesso ou proporcionalidade em sentido estrito. Barroso (2009: 375) ainda ensina que o princípio pode operar também: “no sentido de permitir que o juiz gradue o peso da norma, em uma determinada incidência, de modo a não permitir que ela produza um resultado indesejado pelo sistema, assim fazendo a justiça do caso concreto”, corroborado a ele, Dimolius & Martins (2008) postulam que a proporcionalidade no momento da análise da necessidade e adequação serve para aferir desrespeitos às normas envolvidas e “não para substituir a decisão política do legislador pela decisão política do órgão jurisdicional constitucional” (p. 232), isto é, o STF. Canotilho (2008) ensina que é através da regra da razoabilidade ou da proporcionalidade que: “[...] o juiz tentava e (tenta) avaliar caso a caso as dimensões do comportamento razoável tendo em conta a situação de facto e a regra precedente” (p. 267). Ademais Silva (2002) complementa que, se cobra a coerência nos julgados do STF e não a aplicação da regra da proporcionalidade. Isso ocorre, por causa da concepção de direitos humanos ou a forma de controlar as colisões en174 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 174 12/11/2010 10:33:53 tre os direitos fundamentais, para ele poder-se-ia criticar tal concepção, mas não a sua coerência, entretanto, a partir do momento em que o STF trata da regra da proporcionalidade como forma de deslindir a colisão dos direitos fundamentais, não somente com o intuito de ser expresso, mas também, com o intuito de ser um modelo pré-existente, e assim então, em se cobrar a coerência dos julgados do STF. Domingos (2001) afirma que os direitos em conflitos impõem-se a existência de um equilíbrio ou mesmo que um princípio prevaleça sem que se importe na negação do outro, sendo necessário o efetivo balanceamento dos direitos em conflitos. Mas para isso é necessário se ter os três aspectos dos princípios da proporcionalidade: adequação, entre a medida a ser adotada e o fim a ser buscado; exigibilidade, para que o fim tenha uma menor desvantagem ao cidadão e estrito, no sentido silogístico, que se o meio utilizado é proporcional ao fim buscado, pesando-se as vantagens e desvantagens do Poder Público. Domingos (2001) pondera que o princípio da proporcionalidade: Contudo, a grande discussão que se trata sobre a aplicabilidade do princípio da proporcionalidade está no grau de subjetividade de uma decisão a ser proferida em um caso concreto, porque o julgador poderia pender mais para um princípio ou direito que para outro segundo sua livre convicção, e daí não mais se falaria em ponderação adequada. [...] Essa ponderação deve ser tomada sob um aspecto de relatividade, uma vez que não existem princípios ou direitos absolutos entre si mesmo, mas sempre dentro de uma racionalidade objetiva, o que afasta procedimentos abstratos ou gerais. Diante das colisões os direitos fundamentais, conforme FARIAS12, não são intangíveis, mas encontram-se suscetíveis de restrições. A preocupação máxima que se tem que ter é em relação ao legislador e ao julgador, haja vista que pode haver abuso na determinação das restrições aos direitos fundamentais, o que o inviabiliza no exercício da vida social. Assim, a doutrina se preocupa em desenvolver critérios racionais para ponderar e controlar a discricionariedade da interpositio legislatoris, no que refere aos Direitos Fundamentais. Para isso, desenvolve-se o núcleo ou conteúdo essencial dos Direitos Fundamentais. 12 FARIAS, Edilsom. Liberdade de expressão e comunicação:Teoria e proteção constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 25-51 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 175 175 12/11/2010 10:33:53 Entende Farias (2004) que o núcleo essencial é o limite às leis e decisões restritivas, com a finalidade de não deixar a mercê do legislador e julgador os Direitos Fundamentais. Possuindo dois problemas de definição: um no que tange ao objeto deste: seja no direito individual ou garantia objetiva e o outro, ao valor deste, se absoluto ou relativo. Para a primeira problemática tem-se a teoria objetiva e a subjetiva. A primeira refere-se à proteção geral e abstrata prevista na norma, de forma a evitar que a redução seja de tal forma que perda a importância para a vida social; já a segunda teoria postula que se sacrificar de tal modo o direito de um individuo que o Direito Fundamental perda o sentido de ser para este. Sobre ambas as restrições dos Direitos Fundamentais devam compatibilizar, harmonizar ambas. Referente ao valor do núcleo essencial tem-se também duas teorias. A teoria absoluta consiste em que há um núcleo próprio de cada direito que é intangível e determinável em abstrato, de outro modo a teoria relativa postula que se reduz o núcleo essencial até o atendimento da máxima proporcionalidade, isto é, a restrição só seria legitima quando fosse obrigatória para se exercer outro direito ou bem constitucional, bem como na proporção de se imponha para um direito fundamental. Nestes termos, o núcleo essencial pode ser atacado. No caso de haver a colisão de direitos fundamentais ou quando estes se contrapõem aos interesses da comunidade. Vale ressaltar que, os interesses coletivos são todos mas somente aqueles que estão assegurados pelas normas constitucionais, em colisão com os valores comunitários. É de se destacar , que a farra do boi continua, mesmo depois do julgamento do STF. Ainda para FARIAS13, quando isso ocorrer, poderá resolver esses casos, comprimindo os direitos sem jogo e respeitando os requisitos do núcleo essencial dos direitos envolvidos e a regra da proporcionalidade, e considerando os limites determinados pela Constituição. Ao se tratar da farra do boi e do balanceamento ou ponderação entre o Direito à proteção da fauna e flora à extinção ou crueldade (art. 225, parágrafo primeiro, inciso VII, CF/88) e o Direito à tutela de manifestação e expressão de cultura (art. 215, parágrafo primeiro e 216, CF/88), se trata de um controle da norma constitucional. BIELEFELDT14 ensina que: O controle normativo constitucional que, eventualmente, também deve preservar os valores dos direitos humanos perante o legislador democrático, acabam por caracterizar 13 Op. Cit. FARIAS, Edilsom, p. 47 BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos Direitos Humanos. Coleção Focus, vol. 4. São Leopoldo: Unisinos, 2000, p. 245-248. 14 176 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 176 12/11/2010 10:33:53 a própria democracia como teor libertário [...] a reivindicação por liberdade dos direitos humanos refere-se tanto contra as imposições estatais e comunitárias, como contra a involuntária exclusão da sociedade. Assim, os direitos humanos comprovam ser parte integrante de uma ética social política e jurídica [...] ultrapassar a perspectiva individualista pelas possibilidades de livre congregação e engajamento republicano. A elaboração doutrinária de conteúdo ou núcleo essencial dos Direitos Fundamentais e de seus limites, é um forma de promoção da Democracia na República Brasileira, a partir da Constituição Federal. Por isso, ter-se a segurança jurídica ao se ter a possibilidade de releitura doutrinária no âmbito legal, de se flexibilizar um Direito Fundamental, com o objetivo de promovê-lo, garantindo-o no ordenamento jurídico, como eficiente e democrático. A existência desses institutos jurídicos assegura os Direitos Fundamentais e seu exercício, mesmo que legalmente restringidos. Para MELO15, seguindo o entendimento de BARQUER, ao se centralizar o balanceamento ou proporcionalidade de dois direitos fundamentais, há de se levar em conta, o conteúdo essencial de direito, que é o limite para a atividade legislativa, limitadora dos direitos, ou seja, “o limite dos limites”. O conteúdo essencial é uma fronteira que o legislador - o que no caso do julgado da farra do boi, também vale para o julgador - não tem autorização e não pode ultrapassar, pois se assim o fizer, estará incorrendo em inconstitucionalidade, o conteúdo essencial, em suma, é o núcleo fundamental, e sendo-se ao contrário, se estaria colocando em questão a própria existência do Direito Fundamental. Assim sendo, os Direitos Fundamentais não são absolutos, com a finalidade de dar a possibilidade de exercê-los, dentro da proporcionalidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS A farra do boi diante do balanceamento ou ponderação entre o Direito à proteção da fauna e flora à extinção ou crueldade (art. 225, parágrafo primeiro, inciso VII, CF/88) e o Direito à tutela de manifestação e expressão de cultura 15 MELO, Sandro Nahmias. A Garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, Ano 11, Abril – junho, nº 43, 2003, p. 82-97 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 177 177 12/11/2010 10:33:54 (art. 215, parágrafo primeiro e 216, CF/88) é um exemplo da complexidade social e jurídica que o Brasil possui. Há duas problemáticas: 1. a farra do boi é uma manifestação cultural e; 2. a crueldade infligida a animais neste caso é um forma de violência legítima e/ou consentida? Mas a pergunta dos antropólogos, que questionam o Direito é se a violência da farra do boi (ritualística e de confraternização social) é ilegítima? O STF responde, mesmo se utilizando do princípio da ponderação, que são ilegítimas, ao mesmo tempo em que considera a farra do boi como cultura, no entanto, como a considerar cultura, sem que se permita os meios de efetivá-la? Não seria o caso de se ter a alteridade, de se perguntar às comunidades envolvidas se é o não cultura? Ao se valer do princípio da ponderação, a farra do boi está, ainda, em uma área nebulosa do Direito e é indubitável que é uma cultura, que deva ser valorizada. A ponderação ou balanceamento, quando forem claramente antagônicos, tem-se de ter claro as soluções, no entanto, nos casos difíceis poderá haver a terceira via ou resposta, qual seja, a não exclusão dos dois Direitos supra, entretanto, os relativizando, de maneira que seus respectivos núcleos essenciais sejam tutelados e respeitados, pois assim se compatibiliza esses dois direitos em um caso concreto. REFERÊNCIAS ANIMAL usado na Farra do boi em Florianópolis é capturado. O GLOBO, Caderno: Cidade, 10 de janeiro de 2010. Disponível em:< http://news.google.com. br>. Acesso em: 14 de fevereiro de 2010. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: Fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7º ed. Ver. São Paulo: Saraiva. BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos Direitos Humanos. Coleção Focus, vol. 4. 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Artigo recebido em: 27/04/2010 Artigo aprovado para publicação em junho /2010. 180 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 180 12/11/2010 10:33:54 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA VIABILIDADE DA ARBITRAGEM: CONTRATOS DE REPARTIÇÃO EQUITATIVA PELO ACESSO E USO DA BIODIVERSIDADE E JUSTIÇA DEMOCRÁTICA DE PROXIMIDADE Liana Amin Lima da Silva * José Augusto Fontoura Costa ** Sumário: Introdução. 1. Admissibilidade da Arbitragem; 2. Antinomia Jurídica; 3. Diálogo entre a Lei da Arbitragem e o Código de Defesa do Consumidor; 4. Viabilidade da Arbitragem Ambiental; 5. (In) Disponibilidade dos Direitos Difusos; 6. Cláusula arbitral nos contratos de utilização do patrimônio genético e de repartição de benefícios; Conclusão; Referências Bibliográficas. Resumo: O presente trabalho trata da admissibilidade da via arbitral como solução de controvérsias no plano interno, suas vantagens e desvantagens. É traçado um estudo da relação da Lei da Arbitragem com o Código de Defesa do Consumidor, especificamente no que tange as possíveis normas antinômicas (artigo 4˚, §2˚ e art. 51, VII, respectivamente). Neste sentido, é feito uma abordagem crítica da teoria clássica de Norberto Bobbio sobre solução de conflitos de leis, bem como o dever de coerência do ordenamento jurídico, para que possamos compreender acerca do diálogo das fontes, teoria de Erik Jayme, que considera o pluralismo contemporâneo, adotada no Brasil por Claudia Lima Marques e já corroborada pelo Ministro Joaquim Barbosa. Um raciocínio que Abstract: This article deals with the domestic allowance of arbitration as a dispute resolution system, as well as its pros and cons. A study on the relations between the Arbitration Statute and the Consumers’ Protection Code is presented, specifically regarding possible antinomies (article 4˚, §2˚ and art. 51, VII, respectively). In this regard, an approach to the classical theory of Norberto Bobbio on solution of antinomies is made, as well as the duty of coherence of the legal system, in order make clear the need to proceed the Erik Jayme’s dialogue of sources, which considers the contemporary pluralism, since Claudia Lima Marques and the Minister Joaquim Barbosa also adopt such view. Since the balance of rules on consumption, environment and arbitration might be reached by * Mestranda em Direito Ambiental, Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas, PPGDA-UEA. Bolsista do CNPq. ** Doutor e Livre Docente em Direito Internacional pela USP. Professor da Universidade Católica de Santos e da Universidade do Estado do Amazonas. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 181 181 12/11/2010 10:33:54 caminha para a plena compatibilidade da Arbitragem com o Direito Ambiental. Desta forma, fundamentaremos acerca da viabilidade da arbitragem ambiental e suas condições e restrições. Traremos à tona a discussão dos contratos de repartição equitativa pelo acesso e uso da biodiversidade na Amazônia, exemplificando a possibilidade da inclusão de cláusulas arbitrais nos mesmos e sua contribuição para um acesso democrático da Justiça, considerando a peculiaridade desta temática e a hipossuficiência das comunidades envolvidas. such dialogue. Therefore, this article aims to discuss the underpinnings of environmental arbitration, as well as its conditions and limits. As instance, the contracts of equitable distribution and access to Amazon’s biodiversity will be discussed, focusing the inclusion of arbitration clauses as a possible contribution to a more democratic legal system, which takes into consideration the vulnerability of the communities involved. Palavras-chave: Antinomia. Arbitragem Key-words: Antinomy. Environmental arambiental. Contratos. Acesso à biodivers- bitration. Contracts. Access to biodiversity. idade. INTRODUÇÃO Tendo em vista o pluralismo pós-moderno, verifica-se a necessidade de se retomar e insistir no estudo da viabilidade da Arbitragem como meio de solução extrajudicial de controvérsias. Há uma resistência por parte de muitos juristas em se admitir o instrumento arbitral como um meio eficaz, célere e justo. O instrumento da arbitragem ainda é visto pela maioria dos doutrinadores com preconceito e ainda há uma perversa insistência em uma ótica antinômica e excludente. De acordo com Oppetit (2006), há desconfiança da possível elisão da regulação estatal mediante uma privatização da justiça. A discussão acerca da constitucionalidade da Lei da Arbitragem já se encontra esgotada. Agora, possuímos o dever de caminhar pensando no futuro, abertos para novas possibilidades. Neste sentido, encontramos respaldo na terminologia criada por Erik Jaymes e adotada no Brasil por Claudia Lima Marques, qual seja, o diálogo das fontes. Caminharemos vislumbrando a harmonia e coerência do ordenamento jurídico, inclusive no que tange às fontes plúrimas e extrajudiciais. Mostrar-se-á neste trabalho inicial, sem qualquer pretensão de se esgotar a discussão, a viabilidade da Arbitragem Ambiental. Para tanto, abordare182 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 182 12/11/2010 10:33:54 mos a polêmica dos direitos difusos e sua disponibilidade e visualizaremos a possibilidade da aplicação da arbitragem ambiental aos contratos de repartição equitativa pelo acesso e uso da biodiversidade na Amazônia Brasileira, como instrumento de concretização da justiça democrática de proximidade e tendo em vista também o regime jurídico diferenciado requerido por esta matéria. 1. ADMISSIBILIDADE DA ARBITRAGEM Conforme as disposições gerais da Lei da Arbitragem (LArb), Lei 9.307 , de1996, as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, sendo que a arbitragem poderá ser de direito ou de equidade, a critério das partes. As partes poderão escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública. As partes também poderão convencionar que a arbitragem se realize com base nos princípios gerais de direito, nos usos e costumes e nas regras internacionais de comércio. O artigo 3˚ dispõe que as partes interessadas podem submeter a solução de seus litígio ao juízo arbitral mediante convenção de arbitragem, assim entendida a cláusula compromissória e o compromisso arbitral. O artigo 4˚, que é do nosso interesse em estudo, define a cláusula compromissória como sendo a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato. Desde a edição da Lei 9.307, a arbitragem teve um grande progresso no Brasil, sobretudo no plano doméstico. O Judiciário tem favorecido os tribunais arbitrais, revelando maturidade na sua relação com o instituto. Neste sentido, o STJ tem afirmado a prevalência da cláusula arbitral, com a extinção do processo sem julgamento do mérito (ARAUJO, 2008: 495). No REsp 712.566 /RJ, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi (3ªTurma, DJ de 5.9.2005), ficou consignado que, "com a alteração do art. 267, VII, do CPC pela Lei de Arbitragem, a pactuação tanto do compromisso como da cláusula arbitral passou a ser considerada hipótese de extinção do processo sem julgamento do mérito". Isso significa uma maior aceitação do instituto da arbitragem como solução de controvérsias bem como, que se dê prioridade para a solução do conflito pela forma convencionada, evitando-se, assim, o excesso de demandas no Judiciário. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 183 183 12/11/2010 10:33:54 Importante destacarmos que defendemos o posicionamento de que a eleição de um árbitro para solucionar a lide não significa renuncia ao direito de ação. Também salientamos que a discussão acerca da constitucionalidade da LArb foi esgotada pelo Supremo Tribunal Federal, STF, e não restam dúvidas que esta lei é devidamente compatível com a Constituição Federal, CF, e que respeita o princípio da simetria das normas. Conforme Informativo 254 (SE-5206), o Tribunal, por maioria, declarou constitucional a Lei 9.037/96, por considerar que a manifestação de vontade da parte na cláusula compromissória no momento da celebração do contrato e a permissão dada ao juiz para que substitua a vontade da parte recalcitrante em firmar compromisso não ofendem o art. 5˚, XXXV, da CF, que dispõe que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. (ARAUJO, 2008: 493) Seguindo a orientação de Nelson Nery Júnior (2007), com a celebração do compromisso arbitral, as partes estão apenas transferindo, deslocando a jurisdição que, de ordinário, é exercida por órgão estatal, para um destinatário privado. Como o compromisso só pode versar sobre matéria de direito disponível, é lícito às partes assim proceder. No que concerne aos recursos contra a sentença arbitral, o art. 30 da LArb, em seus incisos I e II, dispõe sobre a possibilidade de se corrigir qualquer erro material da sentença arbitral e se esclarecer alguma obscuridade, dúvida ou contradição da mesma, ou que o árbitro ou tribunal arbitral se pronuncie sobre ponto omitido a respeito do qual devia manifestar-se a decisão. O parágrafo 2˚, do artigo 21, dispõe que serão sempre respeitados no procedimento arbitral os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento. Esclarece-se que o procedimento arbitral possui os meios de se corrigir possíveis erros ou omissões, havendo a previsão das hipóteses de nulidade (art. 32 da LArb), destacando-se, inclusive, as hipóteses de nulidade devidas a prevaricação, concussão ou corrupção passiva, bem como que se respeitem os princípios basilares processuais, garantindo, desta forma, uma justa solução para o litígio. Ressalta-se também que o artigo 32 da LArb dispõe que “a sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo”. Nadia de Araujo (2008: 490) observa que a jurisprudência brasileira entende que, a exemplo do que se dá com o processo judicial, não se deve declarar a invalidade da arbitragem quando ela alcança o seu objetivo, não obstante a ocorrência de irregularidades formais (STJ, 4ª Turma, REsp 15.231 – RS). O 184 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 184 12/11/2010 10:33:54 que nos revela que até mesmo o procedimento arbitral deve seguir o princípio da celeridade e da eficiência, não permitindo que irregularidades formais irrelevantes possam prejudicar a decisão de mérito do litígio, quando não se compromete a justa solução. 2. ANTINOMIA JURÍDICA Torna-se necessário expormos sobre a teoria clássica de Norberto Bobbio, no que se refere às antinomias e seus critérios de solução de conflitos de leis, para que possamos compreendê-las, em face do atual “pluralismo pós-moderno”, e do necessário diálogo das fontes, expressão criada por Erik Jayme, defendida no Brasil, por Claudia Lima Marques, e corroborada pelo Ministro Joaquim Barbosa, no Supremo Tribunal Federal. Na Teoria do Ordenamento Jurídico, de Bobbio (1999), temos a definição de antinomia como àquela situação na qual são colocadas em existência duas normas, das quais uma obriga e a outra proíbe, ou uma obriga e a outra permite, ou uma proíbe e a outra permite o mesmo comportamento. Para que possa ocorrer antinomia são necessárias duas condições, quais sejam: 1) as duas normas devem pertencer ao mesmo ordenamento jurídico; 2) as duas normas devem ter o mesmo âmbito de validade. Deve-se observar também que, tratando das antinomias impróprias, ressalta-se o fato de que um ordenamento jurídico pode ser inspirado em valores contrapostos, em opostas ideologias. A Constituição de 1988, por exemplo, ao estabelecer os princípios gerais da atividade econômica (art.170), traz à tona princípios antinômicos, pois além de prever a livre iniciativa e a livre concorrência, também prevê a função social da propriedade, a defesa do consumidor e a defesa do meio ambiente. As antinomias de princípios não são antinomias jurídicas propriamente ditas. No âmbito das antinomias próprias, temos a distinção entre as antinomias solúveis e insolúveis. Denominam-se “aparentes” as solúveis e “reais” as insolúveis. Os critérios clássicos para a solução das antinomias são três: critério cronológico (lex porterior derogat priori), critério hierárquico (lex superior derogat inferiori) e critério da especialidade (lex specialis derogat generali). (BOBBIO: 1999). No que concerne à insuficiência dos critérios, no caso de conflito entre duas normas para o qual não valha nenhum dos três critérios acima expostos, o intérprete, valendo-se das técnicas hermenêuticas, tem as possibilidades de Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 185 185 12/11/2010 10:33:55 eliminar uma norma (interpretação ab-rogante simples), eliminar as duas (dupla ab-rogação) ou conservar ambas (eliminação da incompatibilidade). Nesta última hipótese, deve-se demonstrar que a incompatibilidade é puramente aparente. Bobbio já se referia à tendência de o intérprete não mais eliminar as normas incompatíveis, mas sim eliminar a incompatibilidade, através da forma de interpretação corretiva. Passamos agora ao estudo da relação existente entre o art.51, VII, da Lei 8.078/90 (CDC) e o art.4˚, §2˚ da Lei 9.307/96 (LArb). Lei 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor: Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...) VII - determinem a utilização compulsória da arbitragem. Lei 9.307/96 – Lei da Arbitragem: Art.4˚. A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato. (...) §2˚ Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula. Sob a ótica dessa possível “antinomia”, alguns autores, como Carvalho e Silva (2008: 234), consideram a LArb incompatível com o CDC, pois induziria à aceitação da arbitragem em contratos de adesão, infringindo os princípios da vulnerabilidade, boa-fé e equidade que devem presidir as relações de consumo. O autor conclui que a norma do artigo 4˚, §2˚ da Lei da Arbitragem é válida para as relações civis e comerciais, conquanto não se aplique às relações de consumo. Para Bessa (2009, p. 304), em que pese o cuidado da Lei 9.307/96 com a vontade real do aderente, a doutrina sustenta majoritariamente que, em face da vulnerabilidade do consumidor, principalmente quando pessoa natural, a instituição da arbitragem em contratos de adesão é extremamente desvantajosa para o consumidor, e, portanto, nula de pleno direito. Bessa (2009) também defende a indisponibilidade das normas do CDC, pois cuida-se de norma de ordem pública e interesse social, não podendo ser afastada por conjugação de vontade. Mostrando desta forma, a possível incompatibilidade do CDC com o procedimento da arbitragem, que legalmente só 186 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 186 12/11/2010 10:33:55 pode ser instituído para “dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis” (art.1˚). É válido mostrarmos o posicionamento de Nelson Nery Júnior (2007), ao se referir ao juízo arbitral como importante fator de composição dos litígios de consumo, razão por que o Código não quis proibir sua constituição pelas partes do contrato de consumo. A interpretação a contrario sensu da norma sob comentário indica que, não sendo determinada compulsoriamente, é possível instituir-se a arbitragem. Neste sentido, considerando que apenas são vedadas as cláusulas que impliquem a utilização compulsória da arbitragem, Fontoura Costa (2009) reitera que está longe o CDC, portanto, de vedar, mesmo antes da vigência da Lei 9.307/96, a arbitragem em matéria de consumo. Ressaltando-se a constitucionalidade da LArb, o que se exclui pelo compromisso arbitral é o acesso à via judicial, mas não à jurisdição. Como nos mostra Nelson Nery Junior, não se poderá ir à justiça estatal, mas a lide será resolvida pela justiça arbitral, havendo em ambas a atividade jurisdicional. Fontoura Costa (2009) ressalta que aquilo que não está isento do crivo dos órgãos jurisdicionais estatais são as questões de ordem pública, não todo e qualquer juízo arbitral. Constituindo-se injustiça negar ao consumidor, convencido de eventuais vantagens, in casu, das formas alternativas de solução de controvérsias, adotar, de comum acordo com o fornecedor, solução alternativa à jurisdição. Importante torna-se observarmos que o próprio §2˚ do art. 4˚ da LArb, ao estabelecer que a cláusula compromissória, nos contratos de adesão, só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, demonstra estar em consonância com os princípios do CDC, visando um equilíbrio na relação contratual, de forma a se respeitar a bilateralidade, principalmente nos contratos de adesão, que dariam margem para possíveis cláusulas abusivas. Em sua conclusão, Nelson Nery Júnior (2007), afirma que o art. 4˚, §2˚ da LArb não é incompatível com o CDC, art.51, VII, razão pela qual ambos os dispositivos legais permanecem vigorando plenamente. Com isso queremos mostrar a possibilidade de nos contratos de consumo, haver a instituição de cláusula de arbitragem, desde que obedecida, efetivamente, a bilateralidade na contratação e a forma da manifestação da vontade. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 187 187 12/11/2010 10:33:55 3. DIÁLOGO ENTRE A LEI DA ARBITRAGEM E O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR No que concerne à coerência do ordenamento jurídico, Bobbio (1999) nos revela que não é condição de validade, mas é sempre condição para a justiça do ordenamento. O autor, fazendo referência ao dever de coerência, no caso das normas de mesmo nível, contemporâneas, nos mostra que não há nenhuma obrigação juridicamente qualificada, por parte do legislador, de não contradizerse, no sentido de que uma lei, que contenha disposições contraditórias, é sempre uma lei válida, e são válidas, também, ambas as disposições contraditórias. Claudia Lima Marques (2009) introduziu na doutrina brasileira a teoria de Erik Jayme, que, em seu Curso Geral de Haia de 1995, ensinava que “em face do atual “pluralismo pós-moderno” de um direito com fontes legislativas plúrimas, ressurge a necessidade de coordenação entre as leis no mesmo ordenamento, como exigência para um sistema jurídico eficiente e justo”. Pode-se conciliar o pensamento de Erik Jayme com o dever de coerência defendido por Bobbio. Todavia, com a devida vênia, pensamos ser possível atualizar a Teoria do Ordenamento Jurídico, acrescentando o diálogo das fontes, de Erik Jayme, de forma que, não mais haja necessidade de se excluir ou desaplicar a norma antinômica, mas sim compatibilizar as normas através do possível diálogo. Marques (2009, p. 89) nos orienta que: o uso da expressão do mestre, “diálogo das fontes”, é uma tentativa de expressar a necessidade de uma aplicação coerente das leis de direito privado, co-existentes no sistema. É a denominada “coerência derivada ou restaurada” (coherénce dérivée ou restaurée), que, em um momento posterior à descodificação, à tópica e à microrrecodificação, procura uma eficiência não só hierárquica, mas funcional do sistema plural e complexo do nosso direito contemporâneo, a evitar a “antinomia”, a “incompatibilidade” ou a “não-coerência”. Considera-se ultrapassada a acomodada visualização antinômica das normas acima, pois devemos ir além dos ensinamentos de Bobbio. Consideramos relevante toda sua teoria para a construção da ciência jurídica, no entanto, ela por si só não se basta. Deve-se considerá-la como bagagem teórica, mas não se pode olvidar que, na contemporaneidade, torna-se plenamente possível uma aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas. 188 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 188 12/11/2010 10:33:55 Claudia Lima Marques (2009: 90) nos orienta que as influências recíprocas podem se dar seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção pela fonte prevalente ou mesmo permitindo uma opção por uma das leis em conflito abstrato – uma solução flexível e aberta, de interpenetração, ou mesmo a solução mais favorável ao mais fraco da relação (tratamento diferente dos diferentes). Há um grande avanço não só na doutrina, como também na jurisprudência brasileira, por exemplo, quando o Supremo Tribunal Federal, julgando a ADIn 2.591, concluiu pela constitucionalidade do CDC a todas atividades bancárias, reconhecendo a necessidade do atual diálogo das fontes. O Ministro Joaquim Barbosa (MARQUES, 2009, p. 100), referindo-se à esta técnica, observa: Não há, a priori, por que falar em exclusão formal entre essas espécies normativas, mas, sim, em “influências recíprocas”, em “aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção voluntária das partes sobre a fonte prevalente”. A autora exemplifica, por meio do “conflito” de uma lei anterior, como o Código de Defesa do Consumidor de 1990, e uma lei posterior, como o Código Civil, de 2002: daí a necessária “solução” do “conflito” através da prevalência de uma lei sobre a outra e a consequente exclusão da outra do sistema (ab-rogação, derrogação, revogação). A doutrina atualizada, porém, está a procura, hoje, mais da harmonia e da coordenação entre as normas do ordenamento jurídico (concebido como sistema) do que da exclusão. Busca-se “uma eficiência não só hierárquica, mas funcional do sistema plural e complexo do nosso direito contemporâneo, uma relação mais fluida e flexível, tratando diferentemente os diferentes”. Claudia Lima Marques (2009) também se refere a convivência de leis com campos de aplicação diferentes, campos por vezes convergentes e, em geral, diferentes (no que se refere aos sujeitos). Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 189 189 12/11/2010 10:33:55 Nesse sentido, havendo um diálogo entre as Leis 8.078/90 e 9.307/96, é possível vislumbrarmos uma aplicação de ambas ao mesmo caso concreto, sem que isso signifique uma desconsideração dos princípios do CDC, sem que se prejudique a parte hipossuficiente e vulnerável da relação contratual, de forma que não se trate de direitos indisponíveis, respeitando-se a base principiológica de ambas as normas e, sobretudo, do ordenamento jurídico brasileiro, visto de forma sistemática. O CDC se originou graças a base principiológica de nossa Constituição Cidadã (artigo 5˚, XXXII), por haver estabelecido como direito fundamental a defesa dos consumidores, agentes econômicos mais vulneráveis no mercado globalizado, devendo ser conferido um tratamento diferenciado, conforme princípio da isonomia. A LArb prevê, no §2˚ do art. 21, que serão, sempre, respeitados no procedimento arbitral os princípios do direito processual civil, notadamente o princípio do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento. Isso significa que, ao se respeitar tais princípios, bem como os previstos no CDC e na CF, e observando as restrições cabíveis, torna-se plenamente possível estabelecer um diálogo sistemático de coerência, complementaridade e subsidiariedade. Importante torna-se esclarecermos que o posicionamento da Professora Claudia Lima Marques é taxativo ao se mostrar contrário à utilização da via arbitral nas relações de consumo, considerando que “cria um falso equilíbrio (Scheingleicheit, na doutrina alemã), uma falsa bilateralidade de chances no contrato, a qual não ocorrerá na prática. A passividade e vulnerabilidade do consumidor são a regra” (MARQUES, 2004, p. 1032/1037). A professora mostra que seria incompatível o parágrafo 2° do art. 4° da LArb com o CDC, tratando das cláusulas compromissórias, considerando inaplicável a Lei 9.307/96 às relações de consumo reguladas em contratos de adesão. Registra-se, portanto, que utilizamos a teoria adotada pela autora (diálogo das fontes) para nossa fundamentação, mas isso não significa que ela considere possível a utilização da LArb nos contratos de consumo, “relações per se tão desequilibradas e afeitas a abusos”. Todavia, reiteramos o posicionamento de que a relação entre o CDC e a LArb não deve mais ser visualizada como “conflito”, mas sim como comunicação, realizando uma coordenação flexível e útil das normas, a fim de restabelecer a sua coerência, que se dá com a convivência das mesmas. Portanto, entendemos ser possível a aplicação da teoria do diálogo das fontes nesse caso, estando, ainda, em consonância com os argumentos de Nery Júnior (2007) e Fontoura Costa (2009) já expostos no presente trabalho, sobre a utilização da 190 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 190 12/11/2010 10:33:55 arbitragem nas relações de consumo. E em oportunidade em que se pôde debater pessoalmente sobre a temática com a respeitada autora, esta concordou que, em situações peculiares, onde o acesso à justiça é dificultado (nos referimos aos exemplos de comunidades na Amazônia), a utilização da arbitragem seria viável e legítima, pois a solução do conflito pela via judicial se mostra repleta de obstáculos, logo, seria uma situação excepcional. Ressalta-se ainda que a hipótese central mostrada no presente estudo (contratos de repartição equitativa de benefícios) sai da esfera das relações de consumo, mas se considerou relevante ilustrar com essa polêmica discussão da (in) compatibilidade entre a LArb e o CDC, por termos em comum matéria que envolve direitos difusos e vulnerabilidade das partes. 4. VIABILIDADE DA ARBITRAGEM AMBIENTAL A proteção do meio ambiente é um direito fundamental, consagrado constitucionalmente (art. 225, caput; art. 170, VI, art.5˚, LXXIII). Com uma visão antropocêntrica, o direito ao meio ambiente se baseia na dignidade da pessoa humana. A Carta Magna reconhece que se trata de um bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e a coletividade defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Como afirma Teles da Silva (2007: 230), é necessário considerar que não há possibilidade da concretização dos demais direitos fundamentais sem o direito ao meio ambiente, que se traduz em última análise como o próprio direito à vida. Um grande avanço da CF/88 é prever a solidariedade transgeneracional, bem como a dimensão coletiva e difusa do direito e dever quanto à proteção do meio ambiente, de forma a garantir um desenvolvimento socialmente justo e ecologicamente correto. E é também na CF que podemos encontrar as respostas para as antinomias modernas e a complexidade do pluralismo contemporâneo. Nesse sentido, destaca-se sobre a garantia fundamental do conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Nahmias Melo (2003: 85) salienta que, partindo da premissa que os direitos, ainda que fundamentais, não são absolutos, é que temos que admitir a limitação dos mesmos, até para possibilitar o seu exercício e dada a necessidade de harmonização entre direitos fundamentais, torna-se imperiosa a relativização dos mesmos. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 191 191 12/11/2010 10:33:55 Para o presente trabalho, importa compreender a necessidade de harmonização em prol da visão sistemática e coerente do ordenamento jurídico brasileiro, mesmo que signifique alguma relativização de um direito fundamental em face de outro, desde que não atinja seu núcleo essencial, desde que não o exclua. E é com base numa ótica sistemática e harmoniosa do ordenamento jurídico brasileiro, que vislumbramos ser possível compatibilizar o instituto da arbitragem também quando se tratar de controvérsias que envolvam a proteção do meio ambiente, desde que respeitadas limitações e restrições para sua utilização, conforme o caso concreto. É válido destacarmos que o instituto da arbitragem em matéria ambiental é muito utilizado no âmbito internacional. Um exemplo é o funcionamento da Corte Internacional de Arbitragem Ambiental (International Court of Environmental Arbitration and Conciliation, ICEAC), constituída em 1994, no México. Para os fins do presente estudo, no que tange ao âmbito internacional, vamos nos limitar ao exemplo da Convenção da Diversidade Biológica (CDB), ocorrida em 1992, durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, Rio-92. Adam Samuel (2005), nos mostra que há dois tipos de razões para o uso da arbitragem internacional. A primeira é que a arbitragem é desejável. A segunda é que não há alternativa a ela. Neste sentido, Fontoura Costa (2009a), citando a aula, “International Arbitration is Not Arbitration”, em Montreal, de Jan Paulsson, um dos mais conhecidos e atuantes árbitros internacionais, nos faz refletir sobre a arbitragem internacional não como arbitragem, mas como única possibilidade para os casos com elevada densidade de aspectos internacionais. Apesar dessas considerações da arbitragem internacional como única alternativa, ela tem sido uma tendência para solucionar conflitos que envolvam discussão ambiental. Para Silvana Colombo (2009: 763), a aplicação do instituto da arbitragem para a solução de controvérsias em matéria ambiental é promissora no Brasil, argumentando pela comprovada utilidade da arbitragem ambiental no âmbito internacional e também por se tratar de um instrumento mais célere, contendo capacitação técnica nas decisões tomadas pelos árbitros especializados. Entre as vantagens e características da arbitragem expostas pela autora supracitada, no que concerne ao âmbito interno, está a escolha do árbitro de acordo com as qualidades que consideram relevantes para o caso; a utilização dos princípios gerais do direito e da equidade para decidir o conflito; a submissão do árbitro a certos parâmetros, entre eles, o dever de observar os comandos legais; o espírito de cooperação que circunda a relação entre as partes; 192 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 192 12/11/2010 10:33:55 a celeridade do juízo arbitral; e a possibilidade de obtenção de uma solução eficiente, rápida e justa. Na arbitragem, uma vantagem é cumular, na mesma pessoa, a qualidade de conhecedor dos aspectos relevantes para a decisão e a de juiz. Outra vantagem exclusiva da via arbitral, é a de permitir que as partes contratantes possam eleger o árbitro ou comissão arbitral que solucionará possíveis controvérsias, e isso permite que haja um consenso na escolha, de forma a garantir a imparcialidade e também permitir que um expert, conhecedor e especialista da matéria objeto do contrato, possa decidir com base no direito ou equidade. Logo, considerando a complexidade das questões ambientais, a via arbitral se apresenta como uma alternativa, como mais um instrumento legítimo que pode ser utilizado em prol da proteção ambiental e deve ser devidamente proporcional à dimensão do problema ambiental in casu. Deve-se, portanto, em termos da utilização da arbitragem ambiental, ser considerado o princípio da precaução, que emerge do artigo 225 da Carta Magna, princípio este dotado de caráter de generalidade e que deve ser utilizado para nortear as ações, possibilitando a proteção e a gestão ambiental, em face das incertezas científicas. Frangetto (2006) refere-se a inclusão do conteúdo ambiental da cláusula contratual compromissória também como forma de se aproveitar beneficamente desta via para a prática de ações ambientais positivas. Diante do exposto, considera-se a arbitragem ambiental como uma possibilidade não de substituição do Poder Judiciário, nem de exclusão de sua apreciação lesão ou ameaça de direito (art. 5˚, XXXV). Mas sim como mais uma opção de dirimir questões ambientais, respeitando-se certas restrições. Isso revela um caráter não só de solução de lides para a arbitragem, mas também de um meio de garantir, de forma eficaz, a proteção do meio ambiente, em consonância com o princípio da precaução. 5. (IN) DISPONIBILIDADE DOS DIREITOS DIFUSOS Importante lembrar que a LArb prevê sua utilização para dirimir conflitos de natureza disponível. Nas disposições gerais da LArb, em seu artigo 1˚, caput, dispõe que “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”. Aqui se encontra nosso fundamento para a utilização do instrumento da Arbitragem Ambiental, bem como a ressalva que deve ser observada. Na primeira parte do caput, temos que “as pessoas capazes de contratar poderão valerse da arbitragem”. Considerando que o objeto dos contratos é direito que se Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 193 193 12/11/2010 10:33:56 pode dispor e considerando, que há diversas situações em que se é lícito dispor de bens ambientais (os considerados microbens), estando em jogo inclusive direito patrimonial e interesses econômico-financeiros (com os devidos cuidados e limites que se deve observar, tendo em vista a supremacia da proteção ambiental sobre os interesses privados), vislumbraremos a existência de hipóteses de cabimento da Arbitragem Ambiental. Os direitos que podem ser objeto da arbitragem, portanto, são apenas aqueles que podem ser avaliados em termos pecuniários (patrimoniais) e, ao mesmo tempo, podem ser alienados ou cedidos pela parte (disponíveis). Ocorre, porém, que o bem jurídico ambiental é aquele constitucionalmente considerado como bem de uso comum do povo. Todavia, devemos retomar ao exposto acima acerca da relativização de um direito fundamental, sem que se atinja sua essência. Ou seja, havendo determinadas limitações, torna-se possível a flexibilização do direito difuso em questão, adotando o critério da ponderação. A previsão do artigo 1˚ da LArb, nos mostra a coerência do ordenamento jurídico e mais uma vez, a simetria desta lei com os mandamentos constitucionais, pois a própria LArb estabelece a limitação legal para a instituição da arbitragem, qual seja quando se tratar de direitos disponíveis, o que nos revela a nulidade da cláusula arbitral que não estiver em consonância com esta ordem principiológica. Destaca-se, neste sentido, que não há que se falar que a LArb fere interesses das partes hipossuficientes envolvidas, pois só caberá a cláusula arbitral, quando elas são aptas a contratar, livremente e de comum acordo, envolvendo bens que possam dispor. Percebe-se que muitos dos problemas ambientais não são objeto de processo que os dirima, por se tratarem de questões aparentemente irrisórias e, por isso, raramente levados à apreciação de um terceiro. Quando muito, as próprias partes, em conjunto, chegam a um acordo, conforme nos alerta Frangetto (2006). Ressalta-se que a via arbitral é cabível para questões relacionadas aos microbens ambientais, diferentemente de quando se afeta o macrobem, que constitui aquele complexo conjunto da universalidade do ambiente. Microbens são aqueles de que as pessoas podem dispor, mesmo possuindo o caráter de bem ambiental. Encontram-se, porém, delimitados pelo direito privado, pois são disponíveis, mas estão sempre amparados e sofrem influências diretas dos princípios constitucionais e de interesse público, como a função social da propriedade, por exemplo. Trata-se da concretização de uma interpretação e interpenetração de princípios “antinômicos”, é a materialização do dever de coerência e do diálogo das fontes. Adotamos a ótica da transversalidade do Direito Ambiental, e com o escopo de corroborar este entendimento, importante ressaltar o que Cristiane 194 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 194 12/11/2010 10:33:56 Derani (2008) nos ensina, pois normas de diversos ramos compõem o direito ambiental. A autora reitera que a visão setorizada não deve prosperar, se se quer tornar efetivos os princípios da Constituição Federal, prescritos sobretudo nos seus arts. 170 e 225, pois a Constituição não pode ser interpretada aos pedaços. Retomando a discussão da indisponibilidade dos direitos difusos, encontramos a conceituação de interesses ou direitos difusos, no artigo 81, I do CDC, assim entendidos os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstância de fato. Considerando que a transação é um ato jurídico bilateral que implica em renúncias e concessões recíprocas, em geral, só quem tem o poder de dispor dos direitos pode transacionar. Interessa, portanto, verificar se os direitos difusos podem ser objeto de transação, especialmente, porque não pertencem a um sujeito determinado. (COLOMBO: 2006). A admissibilidade da arbitragem ambiental se torna óbvia, ao refletirmos sobre a afirmativa de Silvana Colombo, de que “o fato do bem jurídico ambiental, qualificado como uso comum do povo, ter natureza difusa, não exclui a possibilidade de a proteção ambiental ser submetida ao regime jurídico de direito privado”. Destaca-se acerca da utilização do TAC – termo de ajustamento de conduta, previsto na Lei da Ação Civil Pública, e também citamos o instrumento da transação penal para as infrações de menor potencial ofensivo para a solução de conflitos ambientais. Neste sentido, é possível vislumbrarmos a utilização do instrumento da arbitragem, visando justamente uma proteção ambiental mais eficiente, o que confere ao instrumento da arbitragem, um meio de tutela ambiental extrajudicial. 6. CLÁUSULA ARBITRAL NOS CONTRATOS DE UTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO GENÉTICO E DE REPARTIÇÃO DE BENEFÍCIOS A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), objetiva a conservação da diversidade biológica, o aproveitamento sustentável dos recursos e a justa e equitativa repartição dos benefícios decorrentes da utilização de recursos genéticos. É necessária uma regulamentação do acesso aos recursos genéticos, para um maior desenvolvimento de medidas que assegurem uma justa e equitativa repartição de benefícios para os estados detentores do conhecimento tradicional. Neste sentido, o artigo 8 da CDB exige que as partes: Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 195 195 12/11/2010 10:33:56 Respeitem, preservem e mantenham o conhecimento, as inovações e práticas das comunidades locais e indígenas que incorporem estilo de vida tradicionais, relevantes para a conservação e o uso sustentável da diversidade biológica e promovam sua maior aplicação, com a aprovação e o envolvimento dos portadores desse conhecimento, inovações e práticas e encorajem a equitativa repartição dos benefícios originários de sua utilização. Para entendermos a problemática que envolve a utilização da biodiversidade, devemos atentar que, embora as patentes possam de fato proteger os interesses de todas as partes envolvidas, no que se refere à bioprospecção, isto muito raramente acontece, pois pouquíssimas vezes ou nunca comunidades indígenas são convidadas a ter conjuntamente uma patente ou que os curandeiros tradicionais sejam chamados de inventores (DUTFIELD: 2004). Dutfield expõe como outra possível razão para a falha da justa repartição de benefícios é que as empresas que usam material genético e conhecimento tradicional associado preferem negociar com os governos e manter distância das comunidades indígenas. Outras questões que, para o autor, tornam o sistema de patentes inútil, na promoção da repartição justa e equitativa dos benefícios são a extensão de patentes a substâncias descobertas na natureza e o problema da concessão de patentes que não seriam concedidas se os critérios de inovação e passo inventivo fossem respeitados. Sendo outra questão a oportunidade que o sistema dá a empresas e pesquisadores para que adquiram direitos exclusivos de patente por invenções que não ocorreriam sem prévio acesso ao conhecimento tradicional. Há normas legais que consideram a biodiversidade como bem público, implicando a possibilidade de restringir direitos de propriedade, enquanto outras preferem classificá-la como bem de uso comum do povo ou interesse público. Para Varella, no contexto jurídico brasileiro não cabe classificar a biodiversidade como bem público, pois a natureza jurídica dos contratos, a possibilidade de comercialização dos bens por particulares e o caráter das limitações impostas pelo Poder Público demonstram a melhor caracterização como um bem de interesse público. Considerando que as comunidades locais ou grupos indígenas formam a parte hipossuficiente no contrato de repartição de benefícios, não sendo uma relação contratual equilibrada, em geral, as comunidades não têm condição para efetivamente controlar o cumprimento do contrato. Desta forma, além da fiscalização do cumprimento do contrato e respectiva repartição equitativa de benefícios, ser feita pelos próprios atores diretamente envolvidos, deve também ser realizado 196 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 196 12/11/2010 10:33:56 pelo poder público, pela sociedade civil organizada, universidades, etc. Como Varella (2004) nos mostra, uma alternativa é que o governo assista as comunidades na implementação e sanção das cláusulas contratuais, exemplificando com o caso do contrato ICBG (Grupos Cooperativos Internacionais da Biodiversidade) da Nigéria, em que se contratou a Universidade Howard para garantir os pagamentos de royaltyies. E, por que não se acrescentar o instrumento da arbitragem como forma de solução de possíveis conflitos, com árbitros especializados e imparciais nos casos de repartição de benefícios quando a União não for parte no contrato, ou seja, quando o regime jurídico for o de direito privado. A Constituição de 1988, assim como a Lei n. 388/97 , do Estado do Amapá, propõe a efetiva participação dos povos indígenas e comunidades locais. No que tange ao contexto nacional, o Projeto de Lei do Senado, PLS 306/95, de autoria da Senadora Marina Silva (PT-AC), previa uma comissão mista para análise dos pedidos de acesso, composta de representantes do governo federal, estadual e DF, da comunidade científica, de povos locais ou tradicionais, povos indígenas, ONG’s e empresas privadas. Todavia, em 2001, o Executivo editou uma MP 2.186 e, através do Decreto 3.945, foi definida a composição do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, composto por órgãos e entidades da Administração Pública Federal. A Lei Ordinária n.388/97 do Estado do Amapá prevê uma proteção mais ampla e participação plural ao dispor sobre os instrumentos de controle do acesso à biodiversidade do Estado do Amapá, pois prevê que a autorização para acesso aos recursos genéticos não implica em autorização para sua remessa ao exterior, a qual deverá ser previamente solicitada e justificada à autoridade competente, sendo ilegal o uso de recursos genéticos com fins de pesquisa, conservação ou aplicação industrial ou comercial que não conte com o respectivo certificado de acesso. Pontos interessantes previstos na referida lei são a responsabilidade solidária e a criação de comissão plural, composta por representantes do Governo Estadual, dos municípios, da comunidade científica e de organizações não-governamentais, valendo-se da colaboração das empresas privadas para desenvolver planos, estratégias e políticas com o escopo de conservar a diversidade biológica e assegurar que o uso dos seus elementos seja sustentável, estimular a criação e o fortalecimento de unidades de conservação e capacitar pessoal para proteger, estudar e usar a biodiversidade, entre outros. Não é por acaso que as repartições de benefícios que vem ocorrendo no Estado do Amapá são uns dos poucos casos positivos, pois a Lei n.388/97 do Estado do Amapá também é um exemplo a ser seguido pelos demais Estados. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 197 197 12/11/2010 10:33:56 Considerando também, que em diversos casos na Amazônia, não há nem sequer contratos, poucos destes casos nos quais há ausência de repartição de benefícios pela exploração econômica de acesso a recursos genéticos e conhecimentos tradicionais na Amazônia vem sendo denunciados, e, através de ações civis públicas, discutidos com morosidade, mas com expectativas de decisões justas pelo Judiciário. A coincidência de no Estado do Amapá haver um histórico de contratos e mobilização das comunidades (através da COMARU, Cooperativa Mista dos Produtores e Extrativistas do rio Iratapuru, por exemplo), nos mostra que há influência da legislação estadual pertinente, pois, com os rigores, restrições e sanções previstas para a exploração econômica de produtos oriundos da floresta, de forma preventiva, ações são direcionadas visando uma maior sustentabilidade com o manejo florestal adequado e uma maior justiça social. É nesse sentido que vislumbramos o ideal de desenvolvimento sustentável, com as comunidades indígenas e tradicionais sendo convidadas a participar, sem que sejam exploradas. Conforme expõe OLIVEIRA (1999), “a recuperação da história dos dominados é muito recente”, devemos, portanto, buscar superar o “consenso imposto”, o que significa o próprio questionamento da repartição de riqueza. Portanto, espera-se que a realidade dos contratos de repartição possa estar cada vez mais expandida pela Região Amazônica, que as comunidades possam estar se organizando, se conscientizando e se beneficiando com a justiça democrática de proximidade, através da informação e acesso à justiça, podendo optar por soluções extrajudiciais para suas lides. Devemos atentar ao cumprimento efetivo do contrato e se a repartição está sendo equitativa realmente. Nesse sentido, pode-se observar a situação precária da comunidade descrita no resumo público de certificação da COMARU, feita com o propósito de avaliar a sustentabilidade ecológica, econômica e social do manejo florestal da cooperativa. Tendo em vista a grande lucratividade com a comercialização de produto oriundo do recurso genético e conhecimentos tradicionais dos povos da floresta, é nítida a situação de desigualdade, pois a porcentagem da renda aferida com a venda dos produtos convertida em benefícios para a comunidade local ainda é pequena, ao compararmos à relevância que possui o acesso e utilização do recurso. O artigo 25 da MP 2.186-16/2001 estabelece que os benefícios decorrentes da exploração econômica de produto ou processo desenvolvido a partir de amostra do patrimônio genético ou de conhecimento tradicional associado, poderão constituir-se, dentre outros, de divisão de lucros, pagamento de roy198 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 198 12/11/2010 10:33:56 alties, acesso e transferência de tecnologias, licenciamento, livre de ônus, de produtos e processos, e capacitação de recursos humanos. Todavia, devemos ressaltar que é tênue a linha que separa a repartição de benefícios equitativa e efetiva de uma política assistencialista e publicitária. Ainda estamos longe de alcançar um equilíbrio na relação contratual. Mas ressalta-se que as perspectivas são positivas e, quanto maior a mobilização social, a conscientização e participação da comunidade, mais justa será a repartição, dependendo, é claro, de um maior acesso, dos povos da Amazônia, à educação e informação, para lutarem por seus direitos. Assim como se reconhece a vulnerabilidade do consumidor, a exigência de observância à boa-fé objetiva, o dever do fornecedor de agir com transparência para se estabelecer o equilíbrio e a harmonia entre as partes contratantes e, sobretudo, o respeito aos interesses econômicos do consumidor, reconhecemos também que há uma maior vulnerabilidade e hipossuficiência quando trata-se dos povos tradicionais e indígenas e seus acordos com empresas, geralmente multinacionais, concedendo o acesso e uso dos seus conhecimentos sobre a biodiversidade. No entanto, a utilização da arbitragem ambiental nos contratos de repartição equitativa, longe de ser um meio em que as partes economicamente mais fortes teriam para se beneficiar, pode ser utilizada, conforme os preceitos constitucionais e de defesa do meio ambiente, como um instrumento para garantir o cumprimento das cláusulas contratuais que beneficiam as comunidades tradicionais, já que são explícitas as dificuldades que os povos indígenas e as comunidades tradicionais têm para exigir o cumprimento dos deveres e obrigações expressos nos contratos, seja por má informação, índice não satisfatório de alfabetização e conscientização política, dificuldades de transporte e locomoção até os centros mais urbanizados, onde se encontram os órgãos que poderão oferecer assistência judicial, entre outros fatores. Um dos princípios elencados por Francisco Arcanjo (1997), ao tratar da Convenção sobre Diversidade Biológica e Projeto de Lei do Senado n. 306/95, está a “definição clara da atribuição jurídica das comunidades para firmar contratos ou outros instrumentos de acesso e defender seus direitos, administrativa e judicialmente”. No sentido de firmar a referida atribuição das comunidades, entendemos que com a devida orientação e um acesso mais direto que estas comunidades terão em buscar auxílio com os árbitros que foram por elas eleitos para dirimir possíveis conflitos de interesses, teremos uma maior eficiência e garantia de que os direitos destes povos estarão sendo protegidos na prática, uma vez que não há que se questionar sobre as facilidades de acesso à justiça, quando se trata de Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 199 199 12/11/2010 10:33:57 formas de conciliação e solução, através de vias extrajudiciais. Boaventura de Souza dos Santos (2008) mostra a viabilidade de se adotar novas medidas que combatem à morosidade e a dificuldade do acesso à justiça, inclusive no que concerne a questão das custas judiciais. O autor menciona alguns exemplos de inovações institucionais que caminham em consonância com o raciocínio aqui exposto. Para SANTOS (2008: 57), “o que precisamos é de uma justiça democrática de proximidade”, o que exemplifica com os juizados especiais que valorizam os critérios de autocomposição, da equidade, da oralidade, da economia processual, da informalidade, da simplicidade e da celeridade. A criação de um regime jurídico verdadeiramente específico e apropriado para a proteção dos conhecimentos tradicionais associados deve se basear nas concepções do pluralismo jurídico e no reconhecimento da diversidade jurídica existente nas sociedades tradicionais (SANTILLI, 2005: 217). Nesta mesma linha de pensamento e visando a concretização de um acesso à justiça democrática de proximidade é que entendemos ser a arbitragem ambiental plenamente possível como um instrumento de solução de controvérsias nos contratos de acesso e uso da biodiversidade, visando uma isonomia na relação contratual, objetivando, sobretudo, uma tutela eficaz e extrajudicial socioambiental, com base nos princípios da precaução, da supremacia do bem ambiental sobre o interesse privado e do desenvolvimento sustentável. Nesse sentido, entendemos que a arbitragem em matéria ambiental pode contribuir para o desafio de se construir um regime jurídico diferenciado e apropriado para a proteção dos conhecimentos tradicionais, tendo em vista o caráter facilitador do acesso à justiça democrática de proximidade que este instituto possui. Salienta-se que, entre os princípios da LArb, há o da imparcialidade do árbitro. Respeitando-se esse princípio, temos uma grande vantagem na arbitragem ambiental, pois a tecnicidade, a maior especialização do árbitro ou tribunal arbitral, colabora para um maior discernimento acerca das questões socioambientais, o que poderá ensejar uma solução justa para os litígios. É válido ressalvarmos que, das vantagens sempre atribuídas à arbitragem – celeridade, tecnicidade e sigilo – não se poderá insistir na última quando em face de controvérsias sobre repartição de benefícios, nas quais o interesse público na maior transparência possível sobrepuja, com larga folga, quaisquer interesses privados de sigilo que vão além de aspectos estritamente técnicos cuja divulgação venha a acarretar indevido prejuízo a qualquer das partes na relação. Observando a convergência entre o CDC e a LArb, destaca-se que a maior resistência prática e doutrinária se opõe aos contratos padronizados e de 200 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 200 12/11/2010 10:33:57 adesão, o que não é o caso das complexas relações enfeixadas nos contratos de repartição de benefícios. Se os instrumentos de adesão contam com a possível desatenção ou fragilidade do consumidor, em instrumentos nos quais cada detalhe é revisado e a arquitetura das obrigações cuidadosamente traçada, há pouco espaço para a desinformação ou o engano. Se as comunidades envolvidas, sujeitos capazes de transacionar sem a necessidade de assistência paternalista, desejam, por qualquer razão que seja, submeter todo ou parte do acordo à arbitragem, não é legítimo impor formas mais caras, lentas e imprecisas de solução de controvérsias. No que concerne à tutela jurídica de apropriação do meio ambiente, ao comentar o §3˚ da Medida Provisória n. 2.186-16/01, que regulamenta a Convenção sobre Diversidade Biológica, Cristiane Derani (2003), nos mostra que o dispositivo limita a interpretação do direito de acesso ao valor ambiental e propriamente ao exercício da propriedade da coletividade detentora do bem. A autora nos mostra que o direito de propriedade intelectual é previsto no caso de uso econômico do conhecimento acessado, ou seja, para uso de mercado. O conhecimento como valor de uso prescinde da atribuição de direito de propriedade, basta ao direito resguardá-lo e assegurar o seu uso definindo, seus titulares e correlatos poderes (DERANI: 2003). E ainda: Quando a apropriação da cultura passa a gerar direitos de propriedade individualizados, é importante cuidar para que a fonte desta riqueza apropriada não seja destruída. A cultura representa uma riqueza, que poderá ser traduzida por um preço ao ser privatizada e inserida no mercado. Porém, nem sempre preço equivale ao valor da riqueza, sobretudo se esta riqueza não é produzida no interior do mercado. Neste sentido e aplicável ao presente estudo e propostas apresentadas, é a afirmação da autora, tratando das dimensões da tutela da relação de apropriação do meio, em que “não se trata de idealizar um e satanizar outro. O importante é conhecer as possibilidades e os limites ofertados por cada uma destas categorias para a construção do verdadeiro desenvolvimento das potencialidades humanas e do poder criativo da cultura para construir o bem-estar das sociedades humanas” (DERANI: 2003). Em suma, entende-se como viável a aplicabilidade do instrumento arbitral nos contratos de repartição equitativa de benefícios, quando o escopo da arbitragem ambiental se encontra em consonância com a proteção do meio ambiente, incluindo os aspectos sociais e culturais, além do aspecto natural; quando se respeita a isonomia na relação contratual, considerando o tratamento diferenciado Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 201 201 12/11/2010 10:33:57 dado aos hipossuficientes; quando há o acesso pleno à informação, o consenso ao se estabelecer a cláusula arbitral, e escolha dos árbitros, com imparcialidade e princípios éticos e de honestidade; quando se tratar de direitos disponíveis, ou seja, passíveis de apropriação e exploração econômica, e em conformidade com os preceitos da Constituição, da Convenção sobre Diversidade Biológica, por conseguinte, da MP 2.186-16/2001 e, quando houver, da legislação estadual pertinente (exemplo do Estado do Amapá). CONCLUSÃO Considerando que, mesmo sendo o bem ambiental um bem de uso comum do povo, esta previsão constitucional de sua natureza difusa, não é empecilho para que haja hipóteses legais e legítimas onde ocorra apropriação do Meio Ambiente, considerando também a supremacia do bem ambiental sobre os interesses privados e o princípio da precaução, além de sua essência de solucionar controvérsias, a arbitragem em matéria ambiental poderá adquirir, quanto maior for sua credibilidade, um caráter de garantia da eficácia na proteção do meio ambiente, através de ações ambientais positivas. Com base na visão sistemática e da transversalidade do direito ambiental, conclui-se como possível a utilização da cláusula arbitral nos contratos de repartição equitativa de benefícios pelo acesso e uso da biodiversidade e conhecimentos tradicionais associados. E o fundamento desta aplicação se baseia na necessária concretização da justiça democrática de proximidade, pois com a celeridade e as facilidades de acesso à justiça pela via extrajudicial e a maior informalidade que se tem na provocação do árbitro para dirimir os conflitos, considera-se a arbitragem como um meio justo e eficaz para que haja realmente o cumprimento das cláusulas estabelecidas no contrato de acesso a conhecimentos tradicionais e uso da biodiversidade, garantindo uma concreta proteção socioambiental. 202 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 202 12/11/2010 10:33:57 REFERÊNCIAS ARAUJO, N. Direito internacional privado: teoria e prática brasileira. 4.ed. atualizada e ampliada. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. ARCANJO, F. E. M. Convenção sobre Diversidade Biológica e Projeto de Lei do Senado n. 306/95: soberania, propriedade e acesso aos recursos genéticos. 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Biopirataria na Amazônia Brasileira; 1.1 A necessidade de Tutela do Direito Penal sobre o Crime de Biopirataria; 1.2 A importância da identificação do bem jurídico a ser tutelado pelo direito penal no crime de Biopirataria; 1.3 Reflexões sobre formas de evitar e combater a biopirataria na Amazônia Brasileira; Considerações Finais; Referências. Resumo: Embora não possua definição jurídica ou legal, a Biopirataria pode ser considerada apropriação não autorizada do patrimônio genético de uma região, incluindo espécies da fauna, flora e dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Essa atividade ocorre nos países biodiversos, incluindo o Brasil, mais especificamente a Amazônia Brasileira, que possui uma riquíssima biodiversidade, e at- Abstract: Even so does not have no legal definition, the biopiracy can be considered a non authorized appropriation of certain region genetic patrimony, including fauna, flora and traditional knowledge associated to biodiversity. This kind of activity happens in developing countries, including Brasil, especially in the Brazilian Amazon, region rich in biodiversity, that attracts the lust for natural sources, by countries with * Advogada e Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do AmazonasUEA. ** Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Professor do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Professor convidado do Programa de Doutorado Direitos Humanos e Desenvolvimento da Universidad Pablo de Olavide em Sevilha, Espanha. Professor convidado do Programa de Doutorado em Pensamento Latinoamericano da Universidade Nacional da Costa Rica. Professor colaborador do Centro de Estudos Sociais CES, da Universidade de Coimbra Portugal. Ex-procurador Geral da Fundação Nacional do Índio. *** Doutora e Mestre em Direito Penal pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná, Professora Associada da Universidade Federal da Bahia, presidente nacional da Associação Brasileira de Professores de Ciências Criminais e membro do Conselho de Direitos Humanos da Bahia. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 207 207 12/11/2010 10:33:58 rai a cobiça dos países ricos em tecnologia e pobres em biodiversidade, que desejam fabricar novos produtos, com o objetivo exclusivo de gerar lucro. Portanto a natureza passa a ser vista como matéria prima, fonte de capital. É neste contexto que a apropriação dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, pertencentes aos povos indígenas e populações tradicionais, representam um poderoso atalho para a criação de novos produtos, pois através da bioprospecção é possível alcançar os resultados desejados com racionalidade econômica. A biopirataria atenta contra os interesses nacionais e contra os direitos humanos, por essa razão sugere-se a que a atividade seja criminalizada pelo Direito Penal, em virtude da relevância do bem jurídico a ser tutelado, o meio ambiente. Além disso, para se coibir a biopirataria na Amazônia, é necessário o aumento de fiscalização na região, investimento em ciência e tecnologia, bem como a aplicação dos princípios da informação, educação e participação ambiental como forma de aliar os esforços do Poder Público e da coletividade para que ocorra a prevenção dessa atividade nociva ao Brasil e aos detentores do conhecimento tradicional. technology, however poor in biodiversity, who intends to manufacturate new products, obtaining great financial returns. Therefore the nature is seen like raw material, source of capital gains. In this context, the appropriation of the traditional knowledge associated to biodiversity, from the Indians people and traditional populations, depicts a powerful short cut to create new products, because using the bioprospection is possible to reach the good results with economic rationality. The biopiracy attempts against the national interest and human rights, for that reason there is a suggestion to punish this activity by the criminal law, considering the relevance of the object, the environment. Also, to curb on biopiracy, there is also a necessity to improve the surveillance in the Brazilian Amazon, investment in research, and the application of the information, education and environmental participation principles, as a way of combining the State and collectivity, to prevent this harmful activity to Brazil and the traditional knowledge keepers. Palavras-chave: Biopirataria; Conheci- Key-words: Biopiracy; Traditional Knowlmento Tradicional Associado; Biodivers- edge; Biodivesirty; Brazilian Amazon; Geidade; Amazônia Brasileira; Patrimônio netic Patrimony Genético; Tutela Penal. 208 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 208 12/11/2010 10:33:58 INTRODUÇÃO A presente investigação científica tem por escopo analisar a necessidade de tutela penal contra a biopirataria na Amazônia. A relevância desta temática ocorre em razão do reducionismo responsável por considerar a biodiversidade e os conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético como mercadorias, bem como pela ausência de tipificação legal e penal para a atividade da biopirataria, a qual traz inúmeros prejuízos para o Brasil, bem como para os povos indígenas e populações tradicionais. Vandana Shiva entende que a biopirataria pressupõe uma nova forma de colonialismo, “é a ‘descoberta’ de Colombo 500 anos depois de Colombo. As patentes ainda são o meio de proteger essa pirataria da riqueza dos povos não ocidentais como um direito das potências ocidentais”. Para a autora, “resistir à biopirataria é resistir à colonização final da própria vida. [...] É a luta pela conservação da diversidade, tanto cultural quanto biológica”. A biopirataria é um problema que assola os países biodiversos, inclusive o Brasil, que possui a maior parte do ecossistema da Amazônia em seu território nacional. A região, segundo Ozório Fonseca, é também denominada Amazônia Continental, Grande Amazônia ou Panamazônia e contém as seguintes características importantes: 1/5 da água doce do Planeta (sic); 1/3 das florestas latifoliadas; 1/3 das árvores do mundo; 80.000 espécies vegetais; Mais de 200 espécies de árvores por hectare; 30 milhões de espécies animais; Aproximadamente 1.500 espécies de peixes conhecidas; Cerca de 1.300 espécies de pássaros; Mais de 300 espécies de mamíferos; 10% da biota universal; 1/20 da superfície da Terra; 750 milhões de hectares (500 milhões no Brasil); 4/10 da América do Sul; Mais de 30% da biodiversidade do Planeta; 350 milhões de hectares de florestas; 17 milhões de hectares de Reservas e Parques Nacionais; Maior rio do mundo em extensão (Amazonas, com 6.577 km); Maior rio do mundo em volume de água (vazão média de 200.000 m3/s); Aproximadamente 80.000 km de rios; Cerca de 25.000 km de vias navegáveis;. A maior província mineral do globo; Mais ou menos 30% do estoque genético da Terra. O Brasil também é rico em seu contexto humano, assim, estima-se que, na época da chegada dos europeus, existiam cerca de 1.000 povos indígenas Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 209 209 12/11/2010 10:33:58 no país, somando entre 2 e 4 milhões de pessoas. Atualmente, há no território brasileiro 227 povos, que falam, aproximadamente, 180 línguas diferentes. A maior parte dessa população distribui-se por milhares de aldeias, situadas no interior de 593 terras indígenas, de norte a sul do território nacional. O território nacional também abarca as populações tradicionais, representadas por sujeitos sociais com existência coletiva, que incorporam pelo critério político-organizativo uma diversidade de situações correspondentes aos denominados seringueiros, quebradeiras de coco babaçu, quilombolas, ribeirinhos, castanheiros e pescadores, os quais se têm estruturado igualmente em movimentos sociais. As populações tradicionais assim como os povos indígenas são detentores dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e representam os saberes pertencentes a esses povos, que possuem formas diversas de se relacionarem com a natureza. Os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade atraem o interesse das nações desenvolvidas, principalmente representadas pelos países do Norte, pobres em biodiversidade, mas ricos em tecnologia e, por essa razão, buscam apropriar-se desses saberes para fabricar produtos, com o objetivo de gerar lucro. Por fim, buscou-se com esse estudo analisar a necessidade de tutela penal contra a biopirataria na Amazônia, bem como refletir sobre formas de coibir essa atividade na região, sem pretensões de esgotar tão vasto assunto, mas contribuir de maneira reflexiva com a essa discussão. 1. BIOPIRATARIA NA AMAZÔNIA BRASILEIRA Embora a apropriação do patrimônio genético e o acesso aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade de forma não autorizada, por meio da biopirataria ocorra em vários países biodiversos, bem como em diversas regiões do Brasil, este trabalho analisa a biopirataria na Amazônia Brasileira, a qual representa uma região emblemática por possuir a maior sociobiodiversidade do Planeta e atrai a atenção financeira dos biopiratas. Nesse contexto, Bertha Becker enumera algumas características únicas da Amazônia: É fácil perceber a importância da riqueza in situ da Amazônia. Correspondendo a 1/20 da superfície da Terra e a 2/5 da América do Sul, a Amazônia Sul-Americana contém 1/5 210 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 210 12/11/2010 10:33:58 da disponibilidade mundial de água doce, 1/3 das reservas mundiais de florestas latifoliadas e somente 3,5 milésimos da população mundial. E 63,4% da Amazônia Sul-Americana estão sob a soberania brasileira, correspondendo a mais da metade do território nacional. A valorização ecológica da Amazônia, de acordo com Bertha Becker, apresenta duas faces: “a da sobrevivência humana e a do capital natural, sobretudo, neste caso, a megadiversidade e a água” . A autora considera, ainda, a existência de três grandes eldorados: os fundos oceânicos, que ainda não estão regulamentados; a Antártida, que foi partilhada entre as potências; e a Amazônia, a única que pertence a majoritariamente um só Estado Nacional, qual seja o Brasil. Ao observar as riquezas existentes na Amazônia, percebe-se o motivo de a região ser tão atrativa para os países desenvolvidos, os quais almejam se utilizar da biodiversidade para criar ou aprimorar novas tecnologias e depois vendêlas, amparados pelo sistema mundial de patentes, o qual acaba por legitimar a apropriação privada da biodiversidade. Danilo Lovisaro do Nascimento possui também o mesmo entendimento, ao afirmar que a exploração dos conhecimentos tradicionais e da biodiversidade realizada pelos países desenvolvidos, sem a autorização dos Estados ou dos povos indígenas e populações tradicionais dos países menos desenvolvidos, possui como maior estimulador o acordo de TRIPs: O principal mecanismo jurídico para garantir aos países desenvolvidos a exploração desse patrimônio alheio e colhido sem autorização tem sido o monopólio decorrente de patentes, que vêm sendo conferidas a esses países por meio do Acordo Geral sobre Propriedade Intelectual (TRIPS) no âmbito da Organização Mundial do Comércio. Por outro lado, em razão das dimensões continentais, bem como das complexidades geopolíticas da Amazônia, especificamente a Brasileira, a biopirataria na região ocorre das mais diversas formas: pesquisadores disfarçados de turistas ou estudantes, os quais adentram na Amazônia para coletar elementos da biodiversidade, organizações não governamentais (ONGs) de fachada, falsos missionários de várias seitas e religiões, contrabandistas, dentre outros, cujo único propósito é espoliar os recursos naturais, principalmente pela utilização dos conhecimentos tradicionais. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 211 211 12/11/2010 10:33:58 Quando esses “pesquisadores” se utilizam dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade para a fabricação de novos produtos, reduzem consideravelmente o tempo de pesquisa e dinheiro no patamar de até 400% de economia, motivo pelo qual esse conhecimento representa grande “valor” aos biopiratas. Além disso, observa-se que as dimensões continentais da Amazônia Brasileira representam um fator incentivador para a prática da biopirataria e, por essa razão, a imensidão da região configura um obstáculo a ser enfrentado para se evitar a biopirataria, em virtude da necessidade de fiscalização e controle, uma vez que essa atividade ilícita pode ser realizada em qualquer ponto dos cinco milhões de quilômetros quadrados da região. Da mesma forma, Ozório José de Menezes Fonseca explica que a espoliação da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais da Amazônia Brasileira, por meio da biopirataria, é facilitada por inúmeros artifícios utilizados pelos biopiratas que possuem conhecimento, dentre outras limitações, sobre a precariedade de fiscalização na região: [...] Na realidade, a experiência mostra que, para retirar material biológico da Amazônia, não há necessidade de estruturas formais. Na era da biotecnologia e da engenharia genética, tudo de que se precisa, para reproduzir uma espécie, são algumas células facilmente levadas e dificilmente detectadas, por mecanismos de vigilância e segurança. O bolso, a caneta, o frasco de perfume, os estojos de maquiagem, os cigarros, os adornos artesanais, as dobras e costuras das roupas, enfim, há milhares de maneiras de esconder fragmentos de tecidos, culturas de micro-organismos, minúsculas gêmulas ou diminutas sementes, sem que seja necessário o uso de muita criatividade . Sobre a questão em análise, Patrícia Arruda Del Nero menciona alguns dos elementos presentes na maioria dos casos de biopirataria. 1) A existência de uma organização não governamental, cuja preocupação normalmente é a suposta “defesa do meio ambiente”; 2) os passeios “ecológicos” dos turistas ambientais, os quais, com olhar de rapina e tentáculos vorazes, saqueiam a biodiversidade nacional para garantir interesses transnacionais; 3) a formalização de “acordos” com comunidades indígenas, mediante os quais os corsários tentam aproximação com os povos indígenas e ganham sua confiança, com um discurso amigo, enquanto prestam atenção em seus conhecimentos tradicionais para transformálos em conhecimento científico a serviço do capitalismo transnacional. Por fim, 212 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 212 12/11/2010 10:33:58 trancam a tecnologia obtida nos cofres dos escritórios que concedem patentes. Embora a discussão acerca da biopirataria tenha tido notoriedade apenas a partir de 1990, o problema configura uma prática antiga, visto que “fatos históricos revelam a sua ocorrência ao longo dos séculos, desde o descobrimento, como na extração do pau-brasil, no contrabando da semente da seringueira, do quinina e do curare” , não obstante essa prática não fosse denominada biopirataria, pois o conceito é atual. Nesse sentido, Clarissa Wandscheer ensina que expressão biopirataria surgiu em 1993 e foi lançada pela ONG RAFI , com o escopo de alertar sobre o fato de recursos biológicos e conhecimentos tradicionais indígenas estarem sendo apanhados e patenteados por empresas multinacionais e instituições científicas, sem a autorização do governo brasileiro. Para a autora, pretendia-se ainda denunciar os abusos sofridos pelas comunidades tradicionais, visto que elas não estavam recebendo a devida repartição de benefícios, além de isso impedir a possibilidade do desenvolvimento sustentável das comunidades, impulsionar a degradação do meio ambiente e vulgarizar o conhecimento tradicional. Contudo, é necessário esclarecer que um dos casos mais notórios de espoliação da biodiversidade amazônica foi o da Borracha, extraída a partir do látex da seringueira, Hevea brasiliensis, cujas sementes foram levadas pelo “naturalista” inglês Henry Wickman e plantadas no Kew Botanical Gardens, na Inglaterra, onde se multiplicaram e, posteriormente, foram transplantadas na Malásia. Apesar de desbancarem a produção brasileira e trazerem inúmeros prejuízos para o Brasil, não configura um caso de biopirataria, pois, conforme explica o economista Roberto Araújo de Oliveira Santos , o inglês obteve autorização legal do governo brasileiro para exportar as sementes. Além disso, as empresas britânicas e americanas desejavam transferir a produção da borracha para outro lugar em razão de o sistema brasileiro ser ineficiente e haver provocado a ira de entidades antiescravagistas. Embora legalmente não tenha configurado biopirataria, o plantio de seringueira fora do Brasil trouxe grandes prejuízos e serviu para alertar que não se pode dispor dos recursos naturais da Amazônia Brasileira, uma vez que, não tendo mais exclusividade, a região perde poder em detrimento de outras nações. Em contrapartida, não se pode negar a ocorrência da biopirataria configurada pela apropriação da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais em diversos casos, apontados pelo Instituto de Tecnologia do Paraná, por meio da Agência Paranaense de Propriedade Industrial – APPI: 1) a andiroba, usada pelos índios como repelente para insetos, contra febre e como cicatrizante, foi patenteada pela empresa Rocher Yves Vegetable, que possui direitos sobre a produção de cosméticos ou remédios que possuem Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 213 213 12/11/2010 10:33:58 seu extrato; 2) o cupuaçu, fruto amazônico que foi patenteado pela empresa Asahi Foods, para a produção do cupulate, uma espécie de chocolate. Essa patente, contudo, foi revertida por não possuir o requisito de patentiabilidade, novidade; 3) o sapo tricolor, produtor de uma toxina analgésica duzentas vezes mais potente que a morfina, a qual foi patenteada pelo laboratório americano Abbott; 4) o pau-rosa, utilizado como fixador de aroma em diversos países, atualmente é a matéria-prima do perfume Chanel 5, dentre muitos outros casos. Por seu turno, Argemiro Procópio também destaca inúmeros casos de apropriação dos conhecimentos tradicionais dos povos amazônicos por meio da biopirataria, a qual denomina “bionegócio” e, segundo ele, representa o novo campo para exportações bilionárias: Remédios vendidos nas prateleiras das farmácias do mundo inteiro trazem riquezas para transnacionais, graças ao conhecimento tradicional e causam impiedosa descrição em seu processo de cata ou colheita. Vale citar, a título de exemplo, o jaborandi, Pilocarpus jaborandi,, usado no tratamento de glaucoma; a espinheira santa, Maytenus ilicifol,a contra distúrbios estomacais; o látex antiviral da corticeira, Erythrina crista-galli; o veneno da Bothops jararaca, transformado em anti-hipertensivos; poderoso analgésico presente na pele do sapo Epipadobates tricolor. Esses e centenas de outros frutos da biopirataria enriquecem mais ainda multinacionais e grandes laboratórios como o Abbot, Bristol-Meyers Squibb, Eli Lilly, Nippon Mektron, Shapman Pharmaceuticals, Monsanto, Merco etc . Juliana Santilli considera que os casos de biopirataria possuem como fator de identificação, a ocorrência das espécies vegetais ou animais serem coletadas com ou sem o uso de conhecimento tradicional associado e sem consentimento prévio e informado do país de origem e levadas ao exterior com o objetivo de serem identificados os princípios ativos úteis, com base nos quais os produtos e processos foram patenteados, tanto sem a repartição de benefícios com o país de origem, quanto sem a população fonte do conhecimento obter qualquer benefício. Não obstante, neste estudo, considera-se que a biopirataria não está dissociada da apropriação dos conhecimentos tradicionais pertencentes aos povos indígenas e populações tradicionais. Nesse sentido, além da não dissociação que fazem os povos indígenas entre o objeto conhecido e o sujeito do conhecimento, com a ajuda da bioprospecção, é possível alcançar resultados mais rápidos e 214 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 214 12/11/2010 10:33:58 evitar, assim, o desperdício na racionalidade econômica. Por outro lado, é importante ressaltar que, para os povos indígenas, a biopirataria só ocorre quando existe a utilização do conhecimento tradicional, haja vista que esses povos não consideram os elementos da biodiversidade de forma isolada, conforme foi demonstrado no III Foro Indígena Internacional sobre a Biodiversidade, realizado na Eslováquia, em maio de 1998, quando esses povos afirmaram: Que nossas culturas se fundamentam nos princípios de harmonia, paz, desenvolvimento sustentável e equilíbrio com a natureza, por esta razão a conservação e utilização dos recursos formam parte da cosmovisão e vida diária dos Povos Indígenas e comunidades locais . Nota-se que a biopirataria está diretamente relacionada com a apropriação dos conhecimentos tradicionais, portanto entende-se necessária a tutela do direito penal para coibir essa atividade nociva, em razão da importância do fato, o que demanda suporte desse ramo do direito voltado para a proteção de bens essenciais, com o objetivo de definir essa atividade como crime, a fim de tutelar a sociobiodiversidade brasileira. 1.1 A NECESSIDADE DE TUTELA DO DIREITO PENAL SOBRE O CRIME DE BIOPIRATARIA Em face dos diversos aspectos discutidos neste estudo, entende-se que a biopirataria configura um crime, embora, no ordenamento jurídico brasileiro, essa atividade não seja tipificada ou incriminada, haja vista que nem o Código Penal Brasileiro, nem a legislação penal que trata sobre os crimes contra o meio ambiente abordam essa questão. No ordenamento jurídico brasileiro, a legislação responsável pela criminalização das ofensas ambientais é a Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 , conhecida por Leis dos Crimes Ambientais, que não tipifica a biopirataria como um crime. Contudo, é interessante ressaltar que, no projeto inicial dessa lei, devidamente aprovado pelo Congresso Nacional, havia a inclusão da biopirataria como crime, no artigo 47, que foi vetado pelo então presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 215 215 12/11/2010 10:33:58 A título meramente informativo, o vetado art. 47 possuía a seguinte redação: Art. 47. Exportar espécie vegetal, germoplasma ou qualquer produto ou subproduto de origem vegetal, sem licença da autoridade competente: “Pena - detenção, de um a cinco anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente”. As razões explanadas pelo ex- Presidente da República, para justificar o veto do artigo supracitado, foram: O artigo, na forma como está redigido, permite a interpretação de que entidades administrativas indeterminadas terão que fornecer licença para a exportação de quaisquer produtos ou subprodutos de origem vegetal, mesmo os de espécies não incluídas dentre aquelas protegidas por leis ambientais. A biodiversidade e as normas de proteção às espécies vegetais nativas, pela sua amplitude e importância, devem ser objeto de normas específicas uniformes. Ademais, existem projetos de lei nesse sentido em tramitação no Congresso Nacional . Em razão de não existir punição específica para o crime de biopirataria, alguns casos concretos se tornam difíceis de serem solucionados. Nesse contexto, um dos casos de notoriedade internacional – e que deu causa a uma decisão considerada a primeira condenação por biopirataria no Brasil –, foi o ocorrido em junho de 2007, cujo autor foi o holandês naturalizado brasileiro, Marc Van Roosmalem, renomado e premiado pesquisador internacional. O pesquisador acima mencionado foi condenado pela Justiça Federal da Seção Judiciária do Amazonas pelo cometimento de diversas práticas criminosas, como manter animais em cativeiro sem autorização do órgão ambiental competente, transportar ilegalmente macacos e orquídeas, estas últimas, sob a acusação de vender pela Internet, por preços que variavam de US$ 500 mil a US$ 1 milhão, o direito de escolha do nome das espécies de macaco por ele descobertas, dentre outras imputações penais. Pelos crimes supracitados, o pesquisador foi condenado a uma pena de quinze anos e nove meses de prisão, sendo que quatorze anos e três meses são referentes apenas à acusação de peculato. Não obstante, Van Roosmalem ficou preso por menos de um mês, em razão de ter sido liberado por ordem de habeas corpus concedida pelo Tribunal Regional Federal-TRF, da 1.ª Região, para 216 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 216 12/11/2010 10:33:58 responder a seu processo em liberdade. A condenação do cientista foi amplamente criticada por organismos internacionais, os quais alegaram entraves às pesquisas científicas, no entanto, para este trabalho, é importante observar a fragilidade das normas incriminadoras que tutelam a biodiversidade, haja vista que são incapazes de evitar a espoliação do patrimônio genético dos conhecimentos tradicionais pela biopirataria. Vislumbra-se a necessidade da tutela penal sobre o crime de biopirataria, em virtude da existência de uma preocupação legítima com relação à proteção à biodiversidade brasileira e aos conhecimentos tradicionais associados. Em razão dessa situação, é necessário saber a real intenção dos pesquisadores que adentram na região, para constatar se a pesquisa é bem intencionada ou visa apenas à espoliação da biodiversidade. Sobre a questão, Nascimento considera que: [...] O problema está em saber como reconhecer a ajuda estrangeira bem intencionada, que possa cooperar com o desenvolvimento regional e aquela que busca apenas o lucro e somente servirá para alimentar o processo de dominação dos países desenvolvidos sobre os países em desenvolvimento . Observa-se, portanto, a necessidade de tutela jurídica sobre o crime de biopirataria, e por essa razão, sugere-se a criação de norma jurídica com esse objetivo. Nesse panorama, Juan Ramón Capella ensina que, para serem criadas novas normas jurídicas, não basta haver vontade do poder jurídico político, mas deve haver uma etapa de negociação da norma futura: Nas experiências que respondem a este tipo de jogo, as normas jurídicas não nascem, em nosso tempo, somente da vontade do poder jurídico-político, ainda que esta vontade seja uma condição necessária de sua existência. Para formar a vontade normativa do poder jurídico-político, dá-se previamente uma etapa de negociação da norma futura . Capella prossegue e afirma que os distintos agentes sociais interessados em obter uma norma jurídico-política que determine direitos ou legitime interesses deve negociar com as autoridades para estabelecer o conteúdo das normas em questão. Desse modo, para, o autor: Esta negociação tem um caráter essencialmente político. Sua essência pode ser macroscópica [...] ou microscópica Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 217 217 12/11/2010 10:33:58 [...], esse caráter político não se vê afetado, sem embargo, pelas dimensões do objeto da negociação. O que se negocia, ao final de contas, é uma decisão que há de tomar um poder instituído e explícito da sociedade, legitimado para ditar normas jurídicas . Em razão de tudo que foi estudado, sugere-se que ocorra a tutela penal sobre o crime de biopirataria, quando for comprovada a intenção do sujeito ativo para cometer essa atividade ilícita e, desse modo, será vislumbrada a possibilidade de proteção do direito penal ao crime de biopirataria, bem como será identificado o bem jurídico a ser tutelado por esse ramo do Direito. 1.2 A IMPORTÂNCIA DA IDENTIFICAÇÃO DO BEM JURÍDICO A SER TUTELADO PELO DIREITO PENAL NO CRIME DE BIOPIRATARIA Para que algo seja tutelado pelo Direito e pelo Direito Penal em especial, inicialmente é necessária a identificação do bem jurídico a ser protegido, o qual deve possuir alguma importância ou valor para o direito. Nesse panorama, Alessandra Rapassi Mascarenhas Prado ensina que a importância da identificação do bem jurídico para o Direito Penal ocorre em razão da obrigatoriedade de o legislador partir do princípio de que todo crime é uma ofensa a um bem jurídico individual, coletivo ou difuso preexistente à norma, deduzido de uma fonte metajurídica (segundo teorias sociológicas), ou de uma fonte jurídica superior, que é a Constituição Federal (consoante concepção dos constitucionalistas). Segundo a mesma autora , “bem, em sentido amplo, é tudo aquilo que é valioso, que é necessário para o homem”. Desse modo, apenas alguns bens são considerados bens jurídicos, haja vista que o Direito determina os que são dotados de valor e, por esse motivo, receberão proteção jurídica. Por seu turno, Luiz Régis Prado considera que o “pensamento jurídico moderno reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penal radica na proteção dos bens jurídicos”. Portanto, para o autor, em um Estado democrático e social de Direito, é imprescindível a noção de bem jurídico para que ocorra tutela penal: Em um Estado democrático e social de Direito, a tutela penal não pode vir dissociada do pressuposto do bem jurídico, sendo considerada legítima, sob a ótica constitucio- 218 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 218 12/11/2010 10:33:59 nal, quando socialmente necessária. Isso vale dizer: quando imprescindível para assegurar as condições de vida, o desenvolvimento e a paz social [...] A noção de bem jurídico implica a realização de um juízo positivo de valor acerca de determinado objeto ou situação social e de sua relevância para o desenvolvimento do ser humano . Contudo, Álvaro Sanchez Bravo esclarece que o Direito Penal deve ser a última fronteira a ser recorrida para reparar danos experimentados pelos estados democráticos: De todos é conhecido como nos estados democráticos o Direito Penal se considera a última fronteira, la ultima ratio, a cujo auxílio se recorre ante sucessos (ações e/ou omissões) de especial gravidade que requerem a máxima censura por causar dano aos valores e direitos fundamentais, individuais e coletivos, que nos definem como pessoas e cidadãos . Ainda em se tratando de bem jurídico, Maria Auxiliadora Minahim considera que, embora exista controvérsia sobre a definição desses bens, eles são imprescindíveis para a existência comum e devem ser tutelados pelo Direito Penal: Considere-se que, apesar de reinar grande controvérsia sobre o conceito de bem jurídico, não se nega que se trata de bens ou valores considerados imprescindíveis para a existência comum e, por isso, merecedores da mais intensa tutela jurídica, ou seja, da proteção penal . Desse modo, Minahim, ao tratar sobre a aprovação do Direito Penal para tutelar as questões referentes à biotecnologia, considera que esse ramo do Direito é naturalmente convocado para emprestar sua adesão e coercitividade na tutela de bens e interesses que se deseja preservar de lesões e ameaças produzidas pela biotecnologia, em razão não somente de sua importância, mas também pela gravidade dos ataques. A autora prossegue e afirma que o ineditismo das situações referentes à biotecnologia, assim como a velocidade em que elas ocorrem têm surpreendido o Direito Penal e provocado, assim, não só uma desestabilização nesse ramo do Direito, mas também ocasionado a necessidade de alinhamento daquele com a realidade. Nesse contexto, segundo Minahim, o Direito Penal não é confrontado Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 219 219 12/11/2010 10:33:59 somente por questões postas pela Bioética, mas também “com o problema relativo ao oferecimento ou não de tutela a outros questionamentos trazidos pela sociedade pós-moderna”. Portanto, Minahim considera que os bens jurídicos, para os quais se busca proteção do Direito Penal, possuem natureza diferenciada daqueles que eram protegidos desde o Iluminismo, motivo pelo qual existe a polêmica sobre a intervenção desse Direito na denominada sociedade de risco. Nesse sentido, a autora reputa que a natureza pode ser objeto de tutela pelo Direito Penal: Pode-se mesmo afirmar que é a própria natureza (bem difuso, supraindividual) e a forma de proporcionar-lhe proteção eficaz que constituem o cerne de toda a polêmica em torno do papel da intervenção do direito penal na chamada sociedade de risco . É importante ressaltar que a sociedade de risco é representada pela comunidade contemporânea, caracterizada pela intensa divisão social do trabalho, pelo consequente crescimento da complexidade e, ainda, pela adoção de tecnologias, cujas consequências são impossíveis de se medir, os denominados riscos. Por conseguinte, a sociedade de risco é o local onde ocorrem os riscos e os fenômenos como o da irresponsabilidade organizada ou irresponsabilidade geral, que segundo Ulrich Beck pressupõe: [...] À divisão do trabalho muito diferenciada corresponde a uma cumplicidade geral e, a esta, uma irresponsabilidade geral. Cada qual é causa e efeito e, portanto, não é causa. As causas se diluem em uma mutabilidade geral de atores e condições, reações e contrarreações. Na sociedade de risco, um dos problemas a serem enfrentados diz respeito à proteção do meio ambiente e, nesse contexto, em se tratando da discussão acerca da viabilidade da proteção do Direito Penal ao meio ambiente, Luiz Regis Prado entende que o meio ambiente é digno e capacitado de receber a tutela penal. Além disso, considera que a lei penal não deve punir somente as agressões ao meio ambiente, mas ainda os comportamentos nocivos que impeçam sua utilização de forma livre e solidária. Portanto, o autor observa que: Em remate, quadra aqui a reafirmação do ambiente, como bem jurídico de natureza difusa, – digno e capacitado e merecedor de tutela penal – adequado ao livre desenvolvi- 220 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 220 12/11/2010 10:33:59 mento da pessoa humana, com vistas à proteção e melhora de sua qualidade de vida (exercício, gozo de todas as suas potencialidades), de conformidade com a diretriz (formal e material) perfilhada no texto maior. É de se reter ainda que, no Estado democrático e social de direito, a lei penal não deve se contentar em punir as agressões ao meio ambiente, mas também alcançar comportamentos que dificultem ou impeçam seu desfrute de forma livre e solidária . A importância de se punir a biopirataria na esfera penal dá-se em razão do bem jurídico a ser tutelado, qual seja o meio ambiente. Com efeito, Álvaro Sanchez Bravo considera que esse ramo do Direito só deve socorrer os atentados mais graves aos bens e interesses individuais e coletivos, suscetíveis de se submeterem à censura mais contundente à restrição de direitos mais palpáveis na liberdade e no patrimônio dos cidadãos culpados por determinados atos lesivos . Assim Sanchez Bravo entende que: A apelação ao Direito Penal para a proteção do meio ambiente supõe considerá-lo como um desses valores e interesses, como uma realidade, sem a qual não se entende a sociedade, nem os Estados, nem o próprio ser humano. Se o Direito Penal deve recorrer em defesa do medo ambiente é porque é tão importante, tão imprescindível, que um ataque contra o mesmo rachará os cimentos de nossa própria existência . Logo, ao se criminalizar a biopirataria, o bem jurídico a ser tutelado pelo Direito Penal seria a biodiversidade, representada pelos seus elementos naturais e pelos conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético. Portanto, a conduta que se pretende coibir é a apropriação não autorizada das riquezas naturais que pertencem ao Brasil e a seus povos, bem como os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, os quais pertencem a seus detentores. Sobre a tutela do Direito Penal à biodiversidade, Nascimento pensa criticamente que, na atualidade, não criminalizar a biopirataria configuraria um erro, haja vista que os demais mecanismos para coibir essa atividade tão prejudicial ao País são ineficientes. Assim, nas palavras do autor: [...] No momento presente, não criminalizar a biopirataria seria um erro, pois os demais mecanismos estabelecidos para realizar o referido controle se mostram ineficientes e pouco importa se a ineficiência é por inoperância do próprio aparelho estatal. O que é relevante, neste caso, é que o DiHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 221 221 12/11/2010 10:33:59 reito Penal, mais do que os outros meios de controle, exerce também uma função intimidadora ou de prevenção geral que necessariamente contribui para a preservação de um bem juridicamente protegido . Ainda em se tratando da necessidade de criminalização para essa conduta, Nascimento afirma que “a biopirataria atenta contra os interesses nacionais e também se constitui em uma prática violadora de direitos humanos, nunca sendo demais lembrar que tutelar o meio ambiente é proteger a própria vida”. Nesse contexto, após verificar-se que o bem jurídico a ser tutelado pelo direito penal seria o meio ambiente, sugere-se que o direito estabeleça uma tipificação penal para enquadrar esse crime em razão dos tipos penais existentes não serem eficazes para punir essa atividade ilícita. Para tanto, é necessária a aplicação de alguns princípios desse ramo do direito como o da subsidiariedade, necessidade e fragmentariedade, os quais são importantes quando se trata da intervenção do Direito Penal no que concerne aos recursos naturais. Da mesma forma, entendem Prado e Minahim: É importante frisar que não se defende, aqui, a expansão arbitrária da tutela penal, mas apenas aquela que se paute nos princípios da fragmentariedade, da necessidade e da subsidiariedade do direito penal. Dessa forma, a intervenção penal no tocante à proteção dos recursos naturais deve ser parcimoniosa, e deve incidir apenas quando a lesão for grave a ponto de justificar a privação de outros bens tão relevantes para o ser humano, como a liberdade . Para se ter uma breve noção acerca dos princípios supracitados, o princípio da fragmentariedade dispõe que “nem todo tipo de ofensa deve ser considerado pelo direito penal, mas aquelas socialmente intoleráveis em relação ao bem jurídico”. Nesse contexto, Gustavo O. Diniz Junqueira explica que: Nem toda lesão a bem jurídico com dignidade penal carece de intervenção penal, pois determinadas condutas lesam de forma tão pequena, tão ínfima, que a intervenção penal, extremamente grave seria desproporcional, desnecessária. Apenas a grave lesão a bem jurídico com dignidade penal merece tutela penal . Do mesmo modo, Damásio de Jesus entende que o princípio da frag222 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 222 12/11/2010 10:33:59 mentariedade é consequência dos princípios da reserva legal e da intervenção mínima. Para o autor, o Direito Penal não protege todos os bens jurídicos, somente os mais importantes e, dentre estes últimos, não os tutela de todas as lesões, mas somente das de maior gravidade. Por esse motivo, é fragmentário. Gustavo Junqueira entende, ainda, que o princípio da fragmentariedade decorre do princípio da subsidiariedade , o qual determina que o Direito Penal é um remédio subsidiário e, desse modo, deve ser reservado apenas para as situações em que outras medidas estatais ou sociais não foram suficientes para provocar a diminuição da violência gerada por determinado fato. Segundo o autor, se for possível evitar a violência da conduta com ações menos gravosas que a sanção penal, a criminalização da conduta se torna ilegítima ou desproporcional. Por último, o princípio da necessidade, segundo Alessandra Prado, deve ser utilizado quando determinados bens jurídicos são expostos à ofensa e não é suficiente para sua tutela a intervenção civil ou administrativa, de modo que passa a ser exigida a interferência do Direito Penal para sua proteção. Entende-se, portanto, que é urgente a necessidade de se criar um tipo penal novo para enquadrar o crime de biopirataria, não obstante essa questão deva ser estudada e aprofundada pelos operadores do Direito, alicerçados no Direito Penal e em outros ramos do Direito e até mesmo em disciplinas de outras áreas do conhecimento, visto que, por se tratar de uma questão complexa, deve ser avaliada com cautela, a fim de se evitar prejuízos às pesquisas científicas, à sociedade, aos detentores do conhecimento tradicional e à soberania do Brasil. Embora se defenda a criminalização para a conduta da biopirataria, essa não configura a única sugestão para tratar do problema. Conforme se verificou, a tutela pelo Direito Penal dá-se em razão da importância do bem jurídico a ser tutelado, embora seja importante ressaltar que somente a tipificação penal não será capaz de elucidar o problema, uma vez que ainda há muito a ser feito com relação a essa questão e, portanto, são necessárias outras reflexões sobre o tema. 1.3 REFLEXÕES SOBRE FORMAS DE EVITAR E COMBATER A BIOPIRATARIA NA AMAZÔNIA BRASILEIRA Evitar a biopirataria na Amazônia não é uma questão simples, em razão de muito precisar ser feito para coibir essa atividade nociva para a região. Por esse motivo, serão analisadas algumas hipóteses possíveis de ajudar no combate à biopirataria, a fim de buscar formas de proteção à biodiversidade e aos conheHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 223 223 12/11/2010 10:33:59 cimentos tradicionais pertencentes aos povos indígenas e populações tradicionais. Conforme já demonstrado nesta pesquisa, entende-se necessária a tutela do Direito Penal a fim de criminalizar a conduta da biopirataria e imputar punição aos agentes que cometerem a espoliação da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais. Essa tutela penal dá-se em razão da importância do bem jurídico a ser tutelado, o meio ambiente, essencial para a manutenção da vida no Planeta. Por outro lado, levando-se em consideração os estudos realizados por Álvaro Sanchez Bravo, somente a aplicação do Direito Penal não é suficiente para proteger o meio ambiente, uma vez que esse ramo do Direito tem por escopo reprimir e castigar a conduta ilícita, apesar de ser importante a prevenção do dano. Assim, Bravo ensina que: [...] Convêm assinalar que somente a apelação ao Direito Penal não bastará por si só para erradicar os atentados ao meio ambiente. Em primeiro lugar, porque o Direito Penal tenderá fundamentalmente a reprimir, a castigar uma vez o dano se haja inferido. A margem dos clássicos fins atribuídos ao Direito Penal (prevenção geral e especial), a função preventiva requer outros mecanismos e outras implicações . Bravo prossegue e afirma que, além da aplicação do Direito Penal, é imprescindível que haja a educação e o compromisso para prevenir os danos ao meio ambiente: É evidente que o Direito Penal pode jogar um papel muito importante para articular um sistema sancionador frente a condutas que anteriormente acabavam na impunidade, ou em uma leve sanção (geralmente econômica). Porém, junto a ele, para assegurar que se previnam os atentados, devem aparecer outras variações a considerar: educação e compromisso . Além disso, Bravo considera que, junto à educação e informação sobre o meio ambiente, outra variação vem determinada pelo compromisso, apesar de esse compromisso não ser somente dos cidadãos, mas também dos Estados. Nesse sentido, os Estados também devem sentir o problema como global, não circunscrito aos direitos existentes dentro dos limites de suas fronteiras territoriais. Nessa perspectiva, é importante ressaltar que, no ordenamento jurídico 224 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 224 12/11/2010 10:33:59 brasileiro, o princípio da participação, dentre outras conceituações, diz respeito à coletividade e ao Estado agirem em conjunto na preservação do meio ambiente. Desse modo, Fiorillo considera que: A Constituição Federal de 1988, em seu art. 225, caput, consagrou na defesa do meio ambiente a atuação presente do Estado e da sociedade civil na proteção e preservação do meio ambiente, ao impor à coletividade e ao Poder Público tais deveres. Disso se retira uma atuação conjunta entre organizações ambientalistas [...] e tantos outros organismos sociais na defesa e preservação . Com efeito, Fiorillo considera que, para ocorrer essa atuação em conjunto, é imprescindível a união dos princípios da informação e educação ambiental, numa relação de complementaridade. Nesse contexto, o princípio da informação ambiental está disposto no art.225 §1.°, IV, da Constituição Federal: Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder público: [...] VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; Por seu turno, o princípio da educação ambiental, segundo Fiorillo, decorre do princípio da participação da tutela do meio ambiente e está disposto na Constituição Federal no art.225 §1.°, VI, acima mencionado. Logo, para o autor, “buscou-se trazer a consciência ecológica ao povo, titular do meio ambiente, permitindo a efetivação do princípio da participação na salvaguarda desse direito”. Logo, além da tutela penal contra a atividade nociva da biopirataria, é necessário que haja a aplicação dos princípios retromencionados, quais sejam: educação, informação e participação, para que ocorra a conscientização da coletividade sobre a gravidade da biopirataria e, junto com o Poder Público, buscar formas de prevenção contra esse crime. Além do já que foi exposto, para se prevenir a biopirataria, segundo FonHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 225 225 12/11/2010 10:33:59 seca, é necessário que exista uma política de investimentos em ciência e tecnologia na região, uma vez que a Amazônia Brasileira é pouco conhecida e estudada, em razão da carência de pesquisadores, investimentos políticos, incentivos às pesquisas, dentre outros, os quais acabam por prejudicar o conhecimento sobre a região, bem como seu desenvolvimento. Nesse contexto, ressalta-se a importância de serem firmados convênios nacionais ou internacionais, alicerçados na transparência, clareza e legalidade para possibilitar a realização de pesquisas na região, a qual possui pouca base física e humana para promover estudos, por meio da busca de cooperação com outros centros de pesquisa. Sobre a situação, Ozório José de Menezes Fonseca entende que proibir acordos que viabilizem convênios com outros centros de pesquisa significa perpetuar a miséria na região: Evitar ou proibir esses acordos significa perpetuar a miséria nessa região que tem urgência em se desvendar, através da aquisição de novos conhecimentos que levem à descoberta de novas tecnologias ou benefícios. É também impedir avanços científicos importantes, sem conseguir evitar que outros países recebam e estudem nossa biota, pois os mecanismos para retirada de organismos, extratos químicos ou substâncias, seja através da exportação ou da denominada biopirataria, são quase impossíveis de serem combatidos . Em se tratando do investimento em convênios internacionais, é importante mencionar o exemplo da Costa Rica, que estabelece, por meio do INBio, diversos contratos que possibilitam desde investigação básica até a busca e identificação de recursos da biodiversidade para aplicação comercial e podem ser utilizados por indústrias de diversos segmentos: farmacêuticas, biotecnológicas e agroquímicas, além de instituições de pesquisa e acadêmicas. Segundo Rodrigo Zeledón, o INBio é uma organização da sociedade civil, de caráter não governamental sem fins lucrativos, criada em 1989 e trabalha em regime de colaboração com diversos órgãos do governo, universidades, setor empresarial e outras entidades públicas e privadas, dentro e fora do país. A organização tem personalidade jurídica e trabalha com vistas ao conhecimento da diversidade biológica do país e promove sua conservação e uso sustentável. A sua relação com o governo é regulamentada por um contrato denominado “convênio cooperativo”. Os três objetivos principais do INBio, definidos por Zeledón, são a execução de um inventário nacional, a consolidação de uma base de dados e a divulgação das 226 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 226 12/11/2010 10:33:59 informações geradas à sociedade. De acordo com essa ordem, somente depois, viria a bioprospecção, que começou a ser concretizada pelo Instituto em 1991, quando foi criada uma unidade de prospecção. Nesse contexto, Muñoz considera as ações realizadas na Costa Rica uma “boa política de acordos com grandes empresas para identificação e exploração de recursos biológicos com potencialidade” . Da mesma forma, entendem Dourojeanni e Pádua: “[...] Países como a Costa Rica alcançaram progressos notáveis na maior parte dos aspectos que compõem o complexo tema da pesquisa, do aproveitamento e da comercialização de recursos da biodiversidade”. Com efeito, Vandana Shiva é contrária a esse tipo de acordo internacional, uma vez que a autora considera que o acordo realizado entre a Merck Pharmaceuticals e o INBio da Costa Rica não respeita os direitos das comunidades locais, nem o governo daquele país. Shiva prossegue e critica que: [...] Os que venderam a bioprospecção nunca tiveram direito à biodiversidade, e aqueles cujos direitos não estão sendo vendidos ou alienados por meio da transação, nunca foram consultados nem tiveram a chance de participar. Além do mais, embora as taxas de bioprospecção pudessem ser usadas para aumentar a capacidade científica no Terceiro Mundo, o que realmente se cria é uma instalação para a empresa . É necessário ainda, o aumento de fiscalização na Amazônia, visto que, em razão de suas dimensões continentais, os ataques de biopiratas tornam-se muitas vezes impossíveis de serem percebidos e isso acaba por incentivar o aumento da espoliação da biodiversidade na região. Desse modo, a fiscalização na Floresta Amazônica é ineficaz, em razão da ausência de policiamento ambiental e organismos que atuem na proteção à sociobiodiversidade brasileira. Por outro lado, para proteger a biodiversidade, também se deveria, nos aeroportos, monitorar a entrada e saída de estrangeiros, como pesquisadores, missionários, estudantes, dentre outros. Além disso, deve-se fiscalizar a regularização de ONGs que trabalham com populações tradicionais e povos indígenas para verificar sua real intenção nesses trabalhos, bem como alguns missionários que atuam diretamente com esses povos e possuem total acesso a seus costumes e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. É importante ressaltar que, quando se sugere maior fiscalização, não se busca ocasionar entraves às pesquisas científicas, nem desabilitar instituições sérias que trabalham com povos indígenas e populações tradicionais, no entanto é necessário que elas estejam em conformidade com a legislação nacional, a Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 227 227 12/11/2010 10:33:59 fim de se evitar prejuízos futuros ao Brasil e aos povos, cujo conhecimento é utilizado de forma não autorizada. É essencial, ainda, a preservação dos territórios utilizados pelos povos indígenas e populações tradicionais para a produção de seus saberes, em razão da relação que esses povos possuem com suas terras não representar uma simples ocupação, mas, sim, configurar o local onde são desenvolvidas suas experiências com a natureza e que, segundo Fernando Dantas, são indispensáveis à manutenção da própria vida. Ainda sobre a questão da biopirataria, Eliana Calmon considera que as instituições internacionais e empresas privadas possuem três visões acerca dos planos para a utilização do conhecimento tradicional associado à biodiversidade: 1- partilhar os lucros sobre as novas patentes baseadas no conhecimento dos povos indígenas e populações tradicionais; 2- outras instituições não aceitam a partilha e defendem a cobrança de royalties; 3- algumas instituições e empresas consideram que o domínio genético está fora do mercado e não pode ser vendido a qualquer preço. A mesma autora explica que alguns setores consideram a proteção dos conhecimentos tradicionais por meio de patentes uma forma de reprimir a livre troca de informações, fundamental para o aprimoramento da condição humana. Para Calmon, os países desenvolvidos ainda não chegaram a uma conclusão definitiva sobre a questão e, assim, critica que “parece até que os países ricos não têm interesse na solução para o impasse, que seguramente não lhes trará nenhum benefício”. Também como sugestão para coibir a biopirataria, alguns autores consideram a necessidade da existência da cooperação internacional para o desenvolvimento. Segundo Bruno Pino, cooperação internacional para o desenvolvimento pressupõe: Cooperação Internacional para o Desenvolvimento, entendida como o conjunto de ações que realizam os governos e seus organismos administrativos, assim como entidades da sociedade civil de um determinado país ou conjunto de países, orientadas a melhorar as condições de vida e impulsionar o processo de desenvolvimento em países em situação de vulnerabilidade social, econômica ou política e que, além disso, não tem capacidade suficiente para melhorar sua situação por si sós . Logo, a cooperação internacional diz respeito a aspectos de negociações em que as partes envolvidas buscam o estabelecimento de um acordo benéfico 228 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 228 12/11/2010 10:33:59 para ambas. Um dos fatores mais importantes da cooperação dá-se em razão de sua utilização como mecanismo alternativo de integração e promoção do desenvolvimento. A cooperação internacional foi incluída em 1945 na Carta da ONU, em seus artigos 1, 55 e 56. Além disso, essa negociação está disposta no preâmbulo da Convenção sobre a Diversidade Biológica: Enfatizando a importância e a necessidade de promover a cooperação internacional, regional e mundial entre os Estados e as organizações intergovernamentais e o setor não governamental para a conservação da diversidade biológica e a utilização sustentável de seus componentes . Desse modo, um dos objetivos da cooperação internacional é a utilização da biodiversidade de forma sustentável, com vistas ao desenvolvimento econômico da região amazônica. Da mesma forma entende Ozório Fonseca, ao sugerir a criação de um “Tratado proibindo o patenteamento de qualquer produto de origem biológica que não tenha procedência absolutamente transparente”. Nesse contexto de cooperação internacional, pode-se citar a possibilidade de implantar o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), para buscar o desenvolvimento da região, com o objetivo de impedir a espoliação dos conhecimentos tradicionais, no entanto, não será aprofundada essa questão, por não ser objeto desta pesquisa, A título informativo, o Tratado de Cooperação Amazônia (TCA) foi celebrado em 3 de julho de 1978 e teve como partes contratantes a Bolívia, o Brasil, a Colômbia, o Equador, a Guiana, o Peru, o Suriname e a Venezuela. Esse documento foi aprovado pelo Congresso Nacional e ratificado pelo Estado brasileiro, mediante a promulgação do Decreto n. 85.050, de 18 de agosto de 1980. Por fim, além da cooperação internacional com vistas a buscar o desenvolvimento da região, e das demais sugestões analisadas neste artigo, é importante ressaltar que evitar a biopirataria envolve não apenas a criação de leis, como também a proteção pelo Direito Penal, de forma que é imprescindível maior participação do povo brasileiro com seu sentimento de nacionalidade, fortalecimento dos órgãos públicos na região, incentivo à informação, participação e educação ambiental da população, como forma de tutelar a sociobiodiversidade brasileira. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 229 229 12/11/2010 10:33:59 CONSIDERAÇÕES FINAIS Após a finalização deste estudo, verificou-se que a biopirataria configura um grave problema na atualidade e está diretamente relacionada à apropriação dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Esses conhecimentos pertencentes aos povos indígenas e populações tradicionais são utilizados para a fabricação ou aperfeiçoamento de produtos, motivo pelo qual, por meio da bioprospecção, ocorre a racionalidade econômica, aumento da aferição de lucro. A natureza passa a ser vista unicamente como fonte de capital e utilizada com o objetivo de impulsionar grandes retornos financeiros. Por essa razão, ocasiona a cobiça de países desenvolvidos, ricos em tecnologia e pobres em biodiversidade, que buscam acessar a biodiversidade por meio da apropriação dos conhecimentos tradicionais, de forma a trazer prejuízos para o Brasil e para os povos detentores do conhecimento tradicional, cujos saberes são comparados a mercadorias. A mercantilização da natureza subjuga os detentores do conhecimento tradicional, os quais possuem o entendimento contrário à lógica capitalista. Nessa ótica, verificou-se que, para os povos indígenas, a biopirataria ocorre sempre que existe a utilização da natureza, uma vez que esses povos enxergam a biodiversidade como um todo e não separam o conhecimento tradicional dos elementos da biodiversidade. Nesse contexto, as tradições e os costumes dos povos indígenas e populações tradicionais passam a ser considerados inferiores em comparação ao pensamento dominante, razão pela qual se percebe a supremacia do conhecimento científico em comparação ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade. Portanto, nota-se que se está diante de um novo processo exploratório de colonização, exercido pelos países desenvolvidos, que será extremamente prejudicial ao Brasil e aos detentores dos conhecimentos tradicionais, se não for repensada toda essa situação e vislumbradas novas formas de proteger a sociobiodiversidade brasileira. Nessa perspectiva, a Amazônia Brasileira encontra-se no centro dessas discussões, em razão de possuir uma riquíssima biodiversidade e também abarcar diversos povos indígenas e populações tradicionais, detentores do conhecimento tradicional, cuja utilização é muito importante para a fabricação de novos produtos e acaba por impulsionar a atividade nociva da biopirataria. Além disso, em se tratando da biopirataria realizada por meio da apropriação dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade da Amazô230 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 230 12/11/2010 10:33:59 nia Brasileira, verifica-se a fragilidade da atuação estatal, incapaz de coibir essa atividade nociva, em razão da carência de fiscalização na região, da falta de conhecimento sobre a biodiversidade da região, da pouca quantidade de pesquisadores, da ausência de investimentos em ciência e tecnologia, dentre outros. Em contrapartida, observa-se que os países desenvolvidos não possuem interesse em resolver a situação, posto que necessitam da biodiversidade dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento para impulsionar o aumento de capital, motivo pelo qual a solução do problema não lhes trará nenhum benefício. Apontou-se, nesta pesquisa, a necessidade de criminalizar a conduta da biopirataria, a fim de coibir essa atividade atentatória aos interesses nacionais, sendo relevante a tutela pelo Direito Penal, por força do bem jurídico protegido, qual seja, o meio ambiente, indispensável à manutenção da própria vida. Verificou-se que, além da criminalização da conduta, deve haver aplicação dos princípios da educação, participação e informação ambiental, para que a coletividade, os detentores do conhecimento tradicional, juntamente com o Poder Público possam buscar a conscientização e a prevenção dessa atividade no Brasil. Finalmente, observou-se a necessidade de maiores investimentos em pesquisa, ciência e tecnologia, aumento de fiscalização na Amazônia Brasileira, preservação dos territórios indígenas, bem como a verificação da possibilidade de utilizar a cooperação internacional para o desenvolvimento da região, no que diz respeito à utilização do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA). No entanto, essa questão precisa ser aprofundada e repensada para que seja assegurada a soberania do Brasil e a proteção aos detentores do conhecimento tradicional, associado à biodiversidade. REFERÊNCIAS ALMEIDA, A. W. B. Terras de Quilombo, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo” faxinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocupadas. Manaus: PGSCA/UFAM/Fundação Ford, 2006. ALVES, E. C. Direitos de quarta geração: biodiversidade e biopirataria. In: Revista da Academia Paulista dos Magistrados, São Paulo, p. 53, nov./2002. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 231 231 12/11/2010 10:33:59 BECK, U.. La sociedade de riesgo: hacia uma nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998. BECKER, B. K. Amazônia: geopolítica na virada do III milênio. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. BECKER, B. K. Da preservação à utilização consciente da biodiversidade Amazônica. In: GARAY, I.; BECKER, B. K. Dimensões humanas da biodiversidade: o desafio de novas relações sociedade-natureza no século XXI. Petrópolis: Vozes, 2006. BRASIL. Presidência da República. Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. BRASIL. Presidência da República. Decreto n. 2.519, de 16 de março de 1998. Promulga a Convenção sobre a Diversidade Biológica, assinada no Rio de Janeiro, em 5 de julho de 1992. Brasília, 1998. BRAVO, Á. S. 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Resumo: A responsabilidade penal da pessoa jurídica no contexto dos crimes ambientais pode ser concebida como significativo instituto na evolução do sistema jurídico brasileiro, representando importante mecanismo jurídico penal voltado à proteção do meio ambiente. O objeto do presente trabalho constitui-se em importante tema social posto pertencer à sociedade o direito constitucional a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, propiciador de melhoria na qualidade de vida e, conseqüentemente, condições dignas de sua existência, bem como por destinar-se ao estudo de um mecanismo preponderante no campo do Direito Penal Ambiental. Espera-se com a presente pesquisa a contribuição para o aprofundamento do tema da responsabilidade penal Abstract: The criminal responsability of corporation in the context of environmental crimes can be seen as significant development institute in the Brazilian legal system, representing major criminal legal mechanism aimed at protecting the environment. The object of this study represents an important social issue belong to the company put a constitutional right to an ecologically balanced environment, which can provide the better quality of life and therefore unworthy of its existence, as well as for the purpose of study of a mechanism leading in the field of environmental criminal law. It is hoped that this research contributing to the deepening of criminal liability of legal entities in environmental crimes, aiming at the improvement of knowledge about this institute criminal * Mestrando do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas – UEA. ** Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas e do Departamento de Direito da Uninilton Lins. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 235 235 12/11/2010 10:34:00 da pessoa jurídica nos crimes ambientais, visando-se ao aprimoramento do saber acerca desse instituto penal, a sua divulgação perante a sociedade, os organismos públicos e privados, às autoridades governamentais e os operadores do direito. Busca-se, portanto, o estudo da responsabilidade penal da pessoa jurídica pelos danos cometidos ao meio ambiente, bem como as conseqüências legais decorrentes de tais ações, de modo a se garantir a efetividade dos direitos constitucionais a um meio ambiente equilibrado. disclosure to society, the public and private, to government authorities and operators of the law. Search, therefore, the study of criminal responsability of corporations for the damage committed to the environment and the legal consequences arising from such actions in order to ensure the effectiveness of constitutional rights to a balanced environment. Palavras-chave: Responsabilidade Penal. Keywords: Criminal Responsability. Corporation. Environmental Crimes. Pessoa Jurídica. Crimes Ambientais. INTRODUÇÃO No âmbito da legislação brasileira, o meio ambiente goza de tutela específica, estando previstos no ordenamento jurídico pátrio, diversos mecanismos processuais e institutos penais protetivos, preventivos e repressivos, concernentes à defesa dos interesses sociais ambientais. Nesse sentido, José Afonso da Silva entende: A qualidade do meio ambiente é um valor fundamental, é um bem jurídico de alta relevância, na medida mesma em que a constituição o considera bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida, que o Poder Público e a coletividade devem defender e preservar. A ofensa a um tal bem, revela-se grave e deve ser definida como crime. O dano ao meio ambiente, enquanto bem de uso comum, atinge a coletividade, ofendendo os direitos transindividuais, ou seja, aqueles que transcendem cada indivíduo, nos acordes do artigo 225 da Constituição Federal de 1988, comprometendo não só as gerações presentes, mas as futuras, fulminando o princípio do desenvolvimento sustentável. 236 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 236 12/11/2010 10:34:00 A responsabilidade penal da pessoa jurídica por atividade lesiva ao meio ambiente, objeto desta pesquisa, constitui um desses meios revestidos de relevância no resguardo e na reparação do bem ambiental. O objetivo do presente trabalho é realizar um estudo acerca da responsabilidade penal da pessoa jurídica por danos ambientais, ressaltando-se a eficácia desse instituto no que tange à proteção do meio ambiente, visando à prevenção de riscos e a reparação de danos ambientais. Inicialmente será explanado acerca da definição e da classificação das pessoas jurídicas, sendo na seqüência analisada a previsão legal da responsabilidade penal da pessoa jurídica por lesão ao meio ambiente e nessa esteira realizar-se-á a exposição sobre as penas cominadas à pessoa jurídica no contexto da lei ambiental infraconstitucional. Em seguida, abordar-se-á a discussão acerca do cabimento ou não da responsabilização da pessoa jurídica, finalizando-se com as reflexões conclusivas atinentes ao tema em questão. Tratar-se-á ainda acerca do concurso de agentes na perpetração de ilícitos penais ofensivos ao meio ambiente, ressaltando-se a atuação do Ministério Público que inaugura, por via da denúncia, a ação penal cabível a cada caso, conforme estejam envolvidas as pessoas jurídica e física, esta última na condição de deliberante no que concerne aos interesses da primeira. O trabalho será baseado em pesquisa teórica e ao longo de todo o estudo serão apresentados os entendimentos de doutrinadores especializados na matéria e da jurisprudência, seguindo-se a necessária reflexão acerca do tema. 1. PESSOA JURÍDICA: DEFINIÇÃO E CLASSIFICAÇÃO O conceito de pessoa jurídica se traduz na corporação juridicamente reconhecida, dotada de personalidade legal, com objetivo de cumprimento de determinadas finalidades, capacitada, assim, como elemento de direitos e obrigações. As pessoas jurídicas, também conhecidas como pessoas coletivas no Direito português, segundo Washington de Barros Monteiro, podem ser definidas como associações ou instituições formadas para a realização de um fim e reconhecidas pela ordem jurídica como sujeitos de direitos. No que tange à classificação quanto à função, o perímetro de atuação das pessoas jurídicas é determinado a partir de sua natureza, constituição e finalidades, divididas em pessoas jurídicas de Direito Público interno, traduzidas nos entes públicos federativos, União, Estados, Distrito Federal e Municípios, bem Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 237 237 12/11/2010 10:34:00 como as autarquias, incluídas as associações públicas e as demais entidades de caráter público. O Código Civil faz previsão de que os Estados estrangeiros e as pessoas regidas pelo direito internacional público – por exemplo: ONU, OEA, etc., são pessoas de direito público externo. As pessoas jurídicas de Direito Privado, por sua vez, são representadas pelas associações, sociedades civis e comerciais, fundações, organizações religiosas e partidos políticos. Assim, para a compreensão da pessoa jurídica, torna-se necessário o entendimento do fato de que a sua existência encontra-se baseada na realização de uma finalidade lícita, não sendo admitido pela ordem jurídica que um ente originado sob sua anuência, atente contra a sua segurança, pois em caso contrário, estará a pessoa jurídica passível de sofrer as conseqüências legais advindas de mecanismos cerceadores e até mesmo extintivos de sua personalidade. 2. PREVISÃO LEGAL DA RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA POR LESÃO AO MEIO AMBIENTE A partir do entendimento acerca do conceito de pessoa jurídica, bem como sua classificação, é possível, então, se verificar o caráter legal do processo de previsão de sua responsabilidade penal perante as ações lesivas ao bem ambiental, as quais poderão gerar punição no âmbito penal ao autor, seja pessoa física ou jurídica, devendo a conduta encontrar-se estabelecida previamente em lei como delito. A Constituição Federal de 1998 estabeleceu uma inovação no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro, ao prever a responsabilidade da pessoa jurídica por danos ao meio ambiente, estando os seus infratores, pessoas físicas ou jurídicas, sujeitos às penas da lei, às normas administrativas e civis. Nessa concepção, Michel Prieur aduz que o dano ambiental consiste no prejuízo sofrido pelo meio natural nos seus elementos não apropriados e inapropriáveis e que afeta o equilíbrio ecológico enquanto patrimônio coletivo. A previsão constitucional de responsabilização penal da pessoa jurídica por atos lesivos contra o meio ambiente se deu a partir da constatação gradual de que as graves lesões ao bem ambiental originavam-se não apenas das condutas oriundas das pessoas físicas, mas em grande escala, das atitudes lesivas das corporações empresariais. Assim, Fiorillo afirma que: Na verdade temos que com o art. 225, § 3º, da Constituição, o legislador constituinte abriu a possibilidade dessa 238 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 238 12/11/2010 10:34:00 espécie de sanção à pessoa jurídica. Trata-se de política criminal, que, atenta aos acontecimentos sociais, ou melhor, à própria dinâmica que rege atualmente as atividades econômicas, entendeu por bem tornar mais severa a tutela do meio ambiente. Logo, com o advento da modernidade e o conseqüente surgimento de normas reguladoras das atividades econômicas e sociais, Machado verifica: A responsabilidade penal da pessoa jurídica é introduzida no Brasil pela Constituição Federal de 1998, que mostra mais um dos seus traços inovadores. Lançou-se assim, o alicerce necessário para termos uma dupla responsabilidade no âmbito penal: a responsabilidade da pessoa física e a responsabilidade da pessoa jurídica. Foi importante que essa modificação se fizesse por uma Constituição, que foi amplamente discutida não só pelos próprios Constituintes, como em todo o país, não só pelos juristas, como por vários especialistas e associações de outros domínios do saber. A partir disso, perante o ajuste da norma infraconstitucional no contexto do Estado moderno é possível a verificação de que a responsabilidade penal da pessoa jurídica encontrou guarida no âmbito da Lei nº 9.605/98, em virtude da constatação do fato dos danos ao meio ambiente, na atualidade, terem ultrapassado os limites insignificância, forçando-se, assim, à adequação das atividades empresárias, visto ser o aspecto corporativo uma das maiores características do delito perpetrado em face do meio ambiente. A Lei 9.605/98, apesar de não definir expressamente dano ambiental, em seu artigo 3º, seguindo os comandos do texto constitucional, consagrou a responsabilidade penal da pessoa coletiva por condutas lesivas ao meio ambiente, conforme se constata no texto legal: “as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício de sua entidade”. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 239 239 12/11/2010 10:34:00 3. PENAS COMINADAS À PESSOA JURÍDICA POR LESÃO AO BEM AMBIENTAL A pessoa jurídica ou ente coletivo, enquanto agente perpetrador do injusto penal ao bem ambiental, logicamente, estaria inviabilizada de receber a pena de privação de liberdade, tida como a mais gravosa dentre as sanções penais, aliás, inerente às pessoas físicas, sendo este fundamento precípuo do Direito Penal clássico brasileiro. No entanto, a modernidade, encarregada de efetivar a evolução do Direito em face das necessidades sociais, acabou por ocasionar o fenômeno da despenalização, proporcionando ao legislador brasileiro a adoção das penas alternativas. O artigo 21 da Lei nº 9.605/98 estabelece à pessoa jurídica a aplicação das penas de multa, restritivas de direitos e de prestação de serviços à comunidade. No que concerne à aplicação da pena de multa, conforme prevê o Art. 6º, inciso III da Lei 9.605/98, o juiz deve atentar para a situação econômica do infrator. Prescrevendo ainda o Art. 18 do citado diploma legal que a multa será calculada segundo os critérios do Código Penal. Se ainda assim é ineficaz, mesmo que aplicada no valor máximo, poderá ser aumentada em até três vezes, tendo em vista o valor da vantagem econômica auferida. O referido dispositivo legal, dentre as penas restritivas de direitos, no artigo 23, preconiza que a prestação de serviços à comunidade pela pessoa jurídica consistirá em: (I) custeio de programas e de projetos ambientais; (II) execução de obras de recuperação de áreas degradadas; (III) manutenção de espaços públicos e (IV) contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas. Quanto aos programas e projetos ambientais é possível se verificar que inexiste no âmbito legal, a indicação explicita de quais os programas e projetos que devem ser custeados pelo infrator condenado, ficando assim a critério do magistrado, que deverá avaliar de acordo com a casuística, determinando o cumprimento da prestação mais conveniente à reparação do ilícito penal cometido. O § 2º do artigo 22 da citada lei prevê que a interdição será aplicada quando o estabelecimento, obra ou atividade estiver funcionando sem a devida autorização, ou em desacordo com a concedida, ou com violação de disposição legal ou regulamentar. Na seqüência, o § 3º do referido artigo, diz que a proibição de contratar com o Poder Público e dele obter subsídios, subvenções ou doações não poderá exceder o prazo de dez anos. 240 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 240 12/11/2010 10:34:00 A pena de suspensão de atividade, prevista no artigo 22, § 1º, determina que esta seja aplicada quando a pessoa jurídica não estiver obedecendo às disposições legais ou regulamentares relativas ao meio ambiente. O artigo 12 que se aplica tanto à pessoa física quanto à jurídica, estabelece que a prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima ou à entidade pública ou privada com fim social, de importância, fixada pelo juiz, não inferior a um salário mínimo nem superior a trezentos e sessenta salários mínimo. Determina ainda que o valor pago será deduzido do montante de eventual reparação civil a que for condenado o infrator. O artigo 24 prevê o que pode se considerar a mais gravosa conseqüência do descumprimento da Lei nº 9.605/98, ou seja, a decretação da liquidação forçada da pessoa jurídica que fora constituída ou utilizada, com o fim, preponderantemente, para permitir, facilitar ou ocultar a prática de crime definido na lei ambiental. Como conseqüência, seu patrimônio será considerado instrumento de crime, sendo determinado o perdimento em favor do Fundo Penitenciário Nacional. Comparativamente, tal conseqüência equivaleria à pena capital no caso da pessoa singular – abstraindo-se o fato de que a pena de morte só é cabível em situações de excepcionalidade constitucional. O artigo 4º estabelece que a pessoa jurídica poderá ser desconsiderada sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente. Assim, explanadas as sanções previstas legalmente à pessoa jurídica por atividade lesiva ao bem ambiental, verifica-se que apesar de constituir inovação no aspecto jurídico ambiental brasileiro, tal instituto, acima de qualquer outro objetivo, visa o resguardo do meio ambiente ecologicamente equilibrado através do caráter protetivo, preventivo, repressivo e pedagógico ao qual se propõe enquanto norma social. 4. DA DISCUSSÃO ACERCA DO CABIMENTO OU NÃO DA RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA PESSOA JURÍDICA A responsabilização penal da pessoa jurídica por atividades danosas ao meio ambiente, apesar de consistir num avanço sob o aspecto legal, enseja controvérsia, sobretudo no âmbito da doutrina clássica, a qual resiste em aceitar a o caráter delitivo penal sem a presença humana direta. Em razão desses avanços no campo constitucional ambiental, Fiorillo assinala: Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 241 241 12/11/2010 10:34:00 Muita controvérsia foi trazida também. Ademais deve ser ressaltado que a responsabilidade penal da pessoa jurídica não é aceita de forma pacífica. Pondera-se que não há como conceber o crime sem um substractum humano. Na verdade, o grande inconformismo da doutrina penal clássica reside na inexistência da conduta humana, porquanto esta é da essência do crime. Dessa forma, par aqueles que não admitem crime sem conduta humana, torna-se inconcebível que a pessoa jurídica possa cometê-lo. No entendimento de Antunes (2002), a responsabilidade penal das pessoas jurídicas constitui uma questão que não está escapando ao crivo da doutrina clássica, uma vez que, estabelecida a responsabilidade penal e a cominação das penas afetas, restou vaga a sua instituição, o que ocasionou a ineficiência de sua aplicação concreta em virtude da falta de instrumentos hábeis e imprescindíveis ao referido objetivo a que se propõe. A corrente teórica que inadmite a existência de previsão da responsabilidade penal da pessoa jurídica no âmbito da Constituição Federal de 1988, afirma a ausência do sujeito ideal, dotado de capacidade de ação. Logo, inexistindo os referidos requisitos, bem como sendo a atividade finalista degrau da ação delitiva, inconcebível estaria o instituto da responsabilidade penal da pessoa jurídica no ordenamento jurídico pátrio. Arrimam o seu argumento na infelicidade da construção textual legal, entendendo que a Constituição Federal de 1988, n o seu artigo 225, § 3º, dispõe sobre as pessoas físicas quando se refere à conduta e sobre as pessoas jurídicas quando se refere a atividades. A esse respeito, cabe ressaltar a argumentação de René Ariel Dotti: A dificuldade em investigar e individualizar as condutas nos crimes de autoria coletiva situa-se na esfera processual, não na material; O princípio da isonomia seria violado porque a partir da identificação da pessoa jurídica como autora responsável, os partícipes, ou seja, os instigadores ou cúmplices, poderiam ser beneficiados com o relaxamento dos trabalhos de investigação; O princípio da humanização das sanções seria violado, pois a Constituição Federal trata da aplicação da pena, refere-se sempre às pessoas, e também veda penas cruéis; O princípio da personalização da pena seria violado porque referir-se-ia à pessoa, à conduta humana de cada pessoa; Direito de regresso. In verbis: “A se aceitar a esdrúxula proposta da imputabilidade penal da pessoa jurídica, não poderia ela promover a ação de res- 242 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 242 12/11/2010 10:34:00 sarcimento contra o preposto causador do dano, posto ser o co-responsável pelo crime gerador do dever de indenizar”. (...); O tempo do crime – quando o legislador definiu o momento do crime com base em uma ação humana, ou seja, uma atividade final peculiar às pessoas naturais; Nas formas concursais, quadrilha, os participantes se reúnem com este fim ilícito. Questiona se seria diferente na sociedade; o lugar do crime – não é possível estabelecer o local da atividade em relação às pessoas jurídicas que tem diretoria e administração em várias partes do território pátrio. Ainda que se pretendesse adotar a teoria da ubiqüidade, lugar do crime é o do dano haverá ainda intransponível dificuldade em definir onde foram praticados os atos de execução e a ofensa a princípios relativos à teoria do crime. A partir disso, é possível se verificar que somente as pessoas físicas podem ser responsabilizadas na seara penal, ficando as pessoas jurídicas sob a égide das sanções administrativas, somente são aplicados a estas, os efeitos penais da sentença condenatória proferida contra as pessoas físicas. Ressalte-se que anteriormente ao advento da teoria da realidade o principio societas delinquere non potest, inadmitindo o cometimento de crime pela pessoa jurídica e a sua conseqüente responsabilização, interpretando ser a mesmo mero ente abstrato decorrente da disposição legal, que não possui vontade própria, mas depende da vontade do administrador pessoa física, logo, de acordo com essa corrente, não pode a pessoa jurídica intentar injusto penal. Tal princípio consolidou a Teoria da Ficção de Friedrich von Savigny, a qual entende a pessoa jurídica como sujeito fictício, abstrato diante do direito penal, isto é, um ser irreal impossível de figurar no pólo passivo de uma ação penal Para os doutrinadores baseados na Teoria da Ficção, as pessoas jurídicas são incapazes de agir em conduta culposa, sendo inimputáveis, o que lhes impede a consciência do ilícito, não se podendo exigir delas conduta diversa. A doutrina entende, portanto, que a responsabilidade penal da pessoa jurídica fere princípios essenciais do Direito Penal. Conforme Capez: Para essa corrente, a pessoa jurídica tem existência fictícia, irreal ou de pura abstração, carecendo de vontade própria. Falta-lhe consciência, vontade e finalidade, requisitos imprescindíveis para a configuração do fato típico, bem como imputabilidade e possibilidade de conhecimento do injusto, necessários para a culpabilidade, de maneira que não há Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 243 243 12/11/2010 10:34:00 como admitir que seja capaz de delinqüir e de responder por seus atos. Em defesa da responsabilidade penal da pessoa jurídica, a corrente teórica penalista ambientalista adotou a Teoria da Realidade ou da Personalidade Real de Otto Gierke, e em razão disso, entende que a Constituição prevê e admite a responsabilização da pessoa jurídica. Para esta corrente doutrinária, vige a máxima – societas delinquere potest – pela qual a pessoa jurídica constitui ente real com capacidade própria, portanto, diferente da pessoa física que a integra, podendo praticar ilícitos penais. Em reforço a essa concepção, prepondera ainda o pensamento de que: O Art. 225, § 3º, da CF não se choca com o art. 5º, XLV, que diz: nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendida aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido. A Constituição proíbe que a família de um condenado – pessoa física – possa ser condenada somente porque um de seus membros sofreu uma sanção ou que alguém se apresente para cumprir pena em lugar de outrem. Contudo, o mandamento constitucional não exclui da condenação penal uma pessoa que seja arrimo de família. A sanção penal poderá ter reflexos extra-individuais legítimos, pois não se exige que o condenado seja uma ilha, isolado de todo relacionamento. Incorporada a idéia de possibilidade delitiva pela pessoa jurídica e sua conseqüente responsabilização num contexto de adaptação, é possível se notar que: O Direito Criminal em geral e o conceito de ‘vontade criminosa’ em particular foram construídos em função exclusiva da pessoa física. A própria necessidade de referência a aspectos ‘subjetivos’ (dogma da culpabilidade) traz ínsita uma implicação antropomórfica. Então, mister se faz ‘adaptar’ essas noções à realidade dos entes coletivos, para se poder trabalhar a ‘imputabilidade’ da pessoa jurídica com o in- 244 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 244 12/11/2010 10:34:00 strumental teórico sugerido pela Dogmática tradicional. A partir daí – de reformulações e construções -, pode-se chegar à sujeição criminal ativa da pessoa jurídica, sem ter de prescindir da culpa nos moldes de uma responsabilidade objetiva. Como se pode verificar, apesar do entendimento pacificado no que tange a responsabilidade civil e administrativa, muitas são as divergências acerca da responsabilização da pessoa jurídica na esfera penal. A responsabilidade penal, por sua vez, ao contrário do que ocorre nos campos civil e administrativo, não vislumbra presunção de culpa ou inversão do ônus da prova, vigendo nesse contexto, o princípio da presunção de não culpabilidade, cabendo o ônus da prova a quem acusa, ou seja, será necessário provar a ocorrência do evento danoso, sua autoria, bem como o dolo ou a culpa, conforme previsões estabelecidas excepcionalmente pela lei. No que diz respeito à abrangência da responsabilidade penal da pessoa jurídica quanto à sua classificação em pessoa jurídica de Direito Público e de Direito Privado, inexiste qualquer previsão excludente da pessoa jurídica de Direito Público – União, Estados, Distrito Federal, Municípios, autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista, agências e fundações. Assim, doutrinariamente, há divergências acerca do fato da pessoa jurídica de Direito Público, a exemplo da pessoa jurídica de Direito Privado, ser penalmente responsabilizada. A partir disso, verifica-se o entendimento de Silva e Figueiredo: Não é possível responsabilizar penalmente as pessoas jurídicas de Direito Público sem risco de desmoronamento de todos os princípios basilares do Direito Administrativo e dos próprios valores do Estado Democrático de Direito, considerando que o cometimento de um crime jamais poderia beneficiar as pessoas jurídicas de Direito Público ou seriam inócuas, ou então, se executadas, prejudicariam diretamente a própria comunidade beneficiária do serviço público. No ensinamento dos referidos autores, entender o Estado, na condição de pessoa jurídica de direito público, como agente perpetrador de delitos, consistiria na negativa do próprio Estado Democrático de Direito. Por outro lado, alguns doutrinadores argumentam que se o Estado é uma pessoa jurídica, concluir ser ele uma ficção, também o seria o direito que dele Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 245 245 12/11/2010 10:34:00 emana. A pessoa jurídica, deve ser compreendida a partir do seu sentido amplo, ou seja, todas as pessoas jurídicas, de Direito Público ou de Direito Privado, as quais poderão ser atingidas pela responsabilização imposta legalmente. Entende-se, portanto, pela existência efetiva das pessoas coletivas visto que não há como negar sua efetiva atuação na vida jurídica da sociedade, sendo numerosos negócios jurídicos aperfeiçoados através de sua vontade, tendo, tais entes, realidade objetiva para o Direito brasileiro. 5. CONCURSO DE AGENTES PERPETRADORES DO INJUSTO AMBIENTAL Sob uma concepção de ordem prática, no que diz respeito ao concurso de agentes que praticam crimes contra o meio ambiente, o Ministério Público, por ocasião do oferecimento da denúncia por delitos praticados pela pessoa jurídica, tem encontrado o óbice da existência de concurso necessário, no qual a descrição do tipo contém dentre os seus elementos a pluralidade de agentes, o que leva o parquet a obrigatoriamente incluir as pessoas físicas co-autoras da pessoa jurídica no fato delituoso, caso contrário, sendo a denúncia rejeitada. A Lei 9605/98 descreve tipos penais que são delitos de autoria singular, sendo admitido o eventual concurso de agentes, a exemplo dos demais crimes, ou seja, aquele que embora podendo ser executados por uma pessoa, eventualmente, poderão ser realizados por mais de um agente, seja como co-autor ou partícipe. O artigo 3º da referida lei, estabelece a responsabilidade concomitante entre a pessoa jurídica e a pessoa física na condição de autoras, co-autora e partícipes. Num contexto prático, como regra, haverá no mínimo uma pessoa natural à frente da pessoa jurídica, assim, haverá também, entre ambas, o concurso de agentes em caso de conduta ambiental lesiva. Assim, restará caracterizado o concurso de agentes, uma vez que a pessoa natural exerceu deliberação no interesse da pessoa jurídica, Assim, constituindo requisito para a imputação de responsabilidade penal, a denúncia deverá conter a narrativa circunstancial do ocorrido. A esse respeito, acrescenta Eladio Lecey: Outros concorrentes, eventualmente, poderão surgir, como a(s) pessoa(s) física(s) que, não sendo quem deliberou pela pessoa jurídica, contribuiu de qualquer sorte para o crime 246 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 246 12/11/2010 10:34:00 contra o ambiente, como, exemplificativamente, os empregados que executaram as tarefas degradadoras de poluição em níveis tais a configurar o tipo poluição previsto no artigo 54 da Lei 9605/98, desde logicamente, que presentes outros requisitos à sua imputação, dentre eles, a exigibilidade de conduta diversa. Trata-se, aqui, do concurso de agentes previsto no parágrafo único do mencionado artigo 3°. Ainda sobre o tema, o TRF da 4ª Região assim se posicionou: CRIMINAL. AMBIENTAL. CRIME COMISSIVO (ART. 54, LEI 9.605/98). DENÚNCIA. CO-AUTORIA DE PESSOA FÍSICA E JURÍDICA. TIPICIDADE. RELAÇÃO DE CAUSALIDADE. AMBIGÜIDADE DA IMPUTAÇÃO. INDIVIDUALIZAÇÃO DAS CONDUTAS NO CRIME SOCIETÁRIO. INÉPCIA DA DENÚNCIA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. 1. A Lei 9.605/98 estabeleceu no seu art. 2º que o administrador da pessoa jurídica potencialmente poluidora tem "por lei obrigação de cuidado", proteção e vigilância, de molde que a sua omissão, em casos em que podia ou devia evitar o resultado, é penalmente relevante, nos termos do art. 13, § 2º, alínea "a" do Código Penal. 2. O presidente da pessoa jurídica, com atribuições de fixar sua estratégia, de gerir o desempenho empresarial e as questões relativas ao meio ambiente, é, em princípio, responsável por dano ambiental causado pelas atividades de risco da empresa. 3. Descrevendo a denúncia o fato típico de "causar poluição" (art. 54 da Lei 9.605/98) e afirmando, com base no inquérito, que ele decorre de condutas omissivas e comissivas do paciente, não é viável a exclusão da relação de causalidade entre a ação e o resultado (art. 13, Código Penal). 4. Sendo difícil de fixar os limites entre o dolo eventual e a culpa consciente, não ofende aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa e, pois, não é de ser acolhida a alegação de prejuízo, em face do enquadramento da conduta em crime doloso, porque o réu se defende é dos fatos e a capitulação na denúncia é sempre provisória, mormente se existe a modalidade culposa para o delito de causar poluição. 5. Não é inepta a denúncia que descreve a participação dos agentes no evento delituoso, principalmente no crime societário, onde é de admitir-se descrição mais genérica. 6. A inépcia da denúncia, a par de Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 247 247 12/11/2010 10:34:00 não ser motivo de trancamento da ação penal,mas de nulidade da inicial, não deve ser reconhecida se ela descreve fato criminoso, com minúcias técnicas apuradas no inquérito, aponta indícios da autoria, classifica a infração e preenche os requisitos do art. 41 do CPP. Os elementos da subjetividade dos agentes devem ser analisados na sentença. 7. Há justa causa para a ação penal se existe prova da materialidade do fato e indícios da autoria (art. 43, CPP). (TRF 4ª Região Sétima Turma - H200104010710119/PR - Rel. José Luiz B. Germano da Silva - publicado no DJU de 31.10.2001, p. 1336). No entanto, algumas vezes, apesar de evidenciada a concorrência das pessoas físicas, ainda que em deliberação pela pessoa jurídica, não é possível a identificação daquelas, o que importa no fato de quem nem sempre a denúncia do Órgão Ministerial deva acusar as pessoas físicas, uma vez que o Ministério Público não pode quedar-se inerte diante da não identificação das pessoas físicas. A esse respeito, Tupinambá Pinto de Azevedo descreve: Dita conclusão tanto se aplica aos concorrentes previstos no parágrafo único do artigo 3° da Lei 9605/98, como eventuais empregados que executaram as tarefas que contribuíram ao crime, quanto aos previstos no “caput” do mesmo dispositivo legal, ou seja, aquele(s) que deliberaram pela pessoa jurídica. Tal poderá ocorrer quando não identificados aqueles que deliberaram, por exemplo, dentre os sócios membros de órgão colegiado em reunião com votação secreta em decisão não unânime. Desse modo, a denúncia deverá necessariamente comportar a descrição acerca da identificação da pessoa física que exerceu deliberação pela pessoa jurídica. Não restando a possibilidade de identificação da pessoa natural deliberante, a peça acusatória denunciar denunciando a pessoa jurídica, descrevendo o fato da impossibilidade de identificação da pessoa física, satisfazendo assim, os ditames da lei ambiental criminal. 248 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 248 12/11/2010 10:34:00 CONCLUSÃO Diante do que foi analisado no presente trabalho, levando-se em consideração os aspectos legais, no que tange à responsabilidade penal da pessoa jurídica, é de se verificar que se trata de um instituto penal protetivo do meio ambiente, previsto no artigo 225, § 3º da Constituição de 1988 e artigo 3º da lei nº 9.605/98, o que proporcionou significativas transformações no ordenamento jurídico ambiental brasileiro. A responsabilidade penal da pessoa jurídica, enquanto ente coletivo, no contexto dos ilícitos ambientais, constitui interesse universal, uma vez que o bem ambiental não pode ser considerado bem público ou privado, haja vista que a titularidade do seu direito se destina a todos indistintamente, não podendo ser concebido individualmente, mas sob o aspecto da coletividade de pessoas indefinidas, indeterminadas no exercício desse direito transindividual. Consistindo assim, no meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendo compreendido pelo patrimônio, conjunto de objetos materiais e imateriais, indispensáveis à construção orgânica do ambiente juridicamente protegido. Assim, a responsabilidade penal da pessoa jurídica deve ser entendida à luz de uma responsabilidade social, não podendo ser traduzida sob o enfoque da responsabilidade penal tradicional baseada na culpa, na responsabilidade individual e subjetiva. As atitudes da pessoa jurídica se verificam através dos seus órgãos cujas ações e omissões se fundem nas atitudes do próprio ente coletivo. Assim, torna-se desnecessário refutar os argumentos desenvolvidos por aqueles que são contrários a responsabilização penal da pessoa jurídica, dada a distinção das abordagens primárias. Muito embora haja divergência doutrinária quanto à responsabilização da pessoa jurídica nos delitos ambientais, os tribunais pátrios têm aplicado plenamente o disposto na Lei nº 9.605/98, ressalvando-se que a responsabilização penal da pessoa jurídica de Direito Público seja situação pontual. Portanto, no que pese os diversos posicionamentos e entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, como forma de suprimento da ineficácia nas searas da reparação civil e da apuração administrativa, é possível concluir-se pela possibilidade da responsabilização penal da pessoa jurídica por condutas lesivas ao meio ambiente, visto ser este vislumbrado com uma amplitude que ultrapassa os seus próprios elementos formadores, tais como ar, água e terra, sendo entendido como o conjunto das condições de existência humana de modo a integrar e influenciar os homens, sua saúde e seu desenvolvimento. Assim, Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 249 249 12/11/2010 10:34:01 os seres humanos integram o ambiente, bem como o conceito e a proteção do meio ambiente, somente podendo ser viabilizados a partir do desenvolvimento da relação ser humano-natureza. REFERÊNCIAS ANTUNES, P. B. Direito ambiental. 6. ed. 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Artigo recebido em: 05/04/2010 Artigo aprovado para publicação em junho /2010. 252 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 252 12/11/2010 10:34:01 NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS E PADRÕES JURÍDICOS NO PROCESSO DE REDEFINIÇÃO DA REGIÃO AMAZÔNICA Joaquim Shiraishi Neto * Sumário:1. Disputa pela redefinição da Região Amazônica; 2. “Novo” Direito e “Novos Movimentos Sociais”; 3. “Práticas Jurídicas” localizadas: “Novos” padrões jurídicos; Considerações Finais; Bibliografia; Documentos e Periódico. Resumo: Na última década, muito se discutiu sobre a necessidade de adotar medidas para reduzir o aumento do desmatamento na chamada região Amazônica brasileira. Os esforços utilizados para diminuir esse processo, que continua em ritmo acelerado, tendem a se tornar inócuo, diante de uma medida em curso no Congresso Nacional, que pretende alterar por meio de Projeto de Lei a área de abrangência da Amazônia legal, retirando da região os Estados do Mato Grosso, Tocantins e Maranhão. A discussão sobre a redefinição da região Amazônica está inserida no bojo de um intenso processo de conflito na região, onde os povos e comunidades tradicionais se organizam politicamente para enfrentar os problemas decorrentes da ameaça da perda dos seus territórios tradicionalmente ocupados. No interior do processo de mobilização vivenciado por esses grupos sociais, é possível identificar diferentes estratégias e ações, que se colocam em face Abstract: In the last ten years, a lot has been discussed about the needs of adopting measures to reduce the deforestation increase in the region called Brazilian Amazon. The efforts used to reduce this process, which remains accelerated, intent to become innocuous, due to the measure on course at the National Congress that intent to change, through a Project of Law, the area that holds the Legal Amazon, removing the states of Mato Grosso, Tocantins and Maranhão. The discussion about the redefinition of the Amazon Region is due to the intense conflict in this area, where the people and the traditional communities organize themselves politically in order to face the problems that come with the threaten of loosing their territories traditionally occupied. Inside this mobilization process lived by these social groups it is possible to identify different strategies and actions, placing the “traditional” against of the “new” antagonists. A distinctive * Advogado. Professor do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (PPGDA-UEA). Líder do Grupo de Pesquisa: Direito, Comunidades Tradicionais e Movimentos Sociais. Pesquisador do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA-UFAm-F.Ford). Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 253 253 12/11/2010 10:34:01 dos “tradicionais” e “novos” antagonistas, sendo que um traço distintivo, considerado comum é a “luta jurídica localizada”, que não se restringe ao âmbito dos espaços municipais. O reconhecimento jurídico de que a sociedade brasileira é uma “sociedade plural”, tem servido como argumento, acionado para a garantia e a reivindicação de direitos. As discussões em torno da noção de “pluralismo jurídico” são retomadas, ganhando novo significado e impondo “novos” padrões jurídicos. Nesse processo, o direito tem sido um poderoso instrumento, utilizado para nortear o processo de mobilização política e de construções das novas identidades. trace, considered ordinary is the so called “localized juridical fight”, which is not restricted to the counties areas. The juridical recognition that the Brazilian Society is a “plural society”, has served as an argument, within the claim for individual rights and guarantees. The discussions around the notion of the “juridical pluralism” is taken back, getting a new significance and demanding “ new” juridical pattern. Within this process, the law has been a powerful instrument, used to direct the political mobilization process and the built of new identities. Palavras-chave: novos movimentos so- Key–words: new social movements, Amaciais, redefinição da região Amazônica, zon region redefinition, new juridical patnovos padrões jurídicos. tern. 1. DISPUTA PELA REDEFINIÇÃO DA REGIÃO AMAZÔNICA Em meio às discussões relacionadas ao aumento do desmatamento na região e às medidas e estratégias para reduzi-los, a chamada Amazônia legal poderá ter sua área de abrangência reduzida em função de dois Projetos de Lei que se encontram em trâmite no Congresso Nacional. Os referidos Projetos de Lei objetivam dar nova redação ao inciso VI do §2° do art.1° da Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, para alterar a definição de Amazônia legal, retirando dessa região os Estados do Tocantins, Mato Grosso e Maranhão. Os argumentos apresentados consistem em afirmar que os critérios utilizados para a definição da região à sua época não levaram em consideração as características dos diferentes “ecossistemas” ou “biomas” existentes em cada um dos Estados . A delimitação levou em consideração critérios eminentemente políticos, sem que houvesse preocupação com os científicos, notadamente os de base geográfica, que poderiam contribuir para nortear a sua definição. A necessidade de desenvolver os Estados de acordo com as políticas públicas traçadas em consonância 254 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 254 12/11/2010 10:34:01 com um meticuloso planejamento , orientou os atuais limites da Amazônia legal. O fato de a Amazônia ser compreendida como “região problema”, fez com que os esforços governamentais se concentrassem e se dirigissem na adoção de um conjunto de políticas públicas voltadas à exploração “racional” dos potenciais da região, sobretudo pelo malogro das atividades até então desenvolvidas de exploração dos recursos de origem florestal e mineral. A exploração dos recursos naturais, que trouxeram certa “prosperidade” à região, foi objetivo de análise econômica. Os esquemas interpretativos acionados que procuravam compreender esse processo o fizeram a partir da noção de “ciclos econômicos” , segundo um discurso teórico que procura articular os temas referidos aos mitos da região, como: o “nomadismo”, o “extrativismo”, o “contato das raças” e a “entrada da civilização”, transformando-os em “verdades científicas” , que foram produzidas e difundidas enquanto tais. Nesse sentido, o desenvolvimento da região Amazônica implicava na adoção de políticas que tinham como pressuposto a necessidade de incorporá-la ao País. O processo de “integração” ocorreu atraindo capital privado por meio de incentivos fiscais e monetários. O desenvolvimento e a ocupação da região se tornaram objetivos e em nenhum momento os Estados se opuseram ou mesmo rivalizaram a esse modelo de desenvolvimento marcadamente de caráter autoritário , na medida em que “desconhece” a existência de diversos grupos sociais portadores de distintas “temporalidades” e “axiologias” , levando à destruição das identidades coletivas. O viés autoritário do modelo serviu para atender aos interesses dos Estados e de determinados grupos locais, que de forma ampla pôde se beneficiar dessas políticas. Nas últimas décadas duas tendências entrelaçadas vêm redefinindo a região Amazônica. A primeira está relacionada ao papel do Estado na região, que tem se ocupado em promover o desenvolvimento a partir dos interesses dos interessados em explorar economicamente a região. Observa-se que o discurso ambientalista , que serviu como norte das discussões nas últimas décadas, aos poucos, perde força, diante da intensificação do processo de exploração econômica na região. Em outras palavras, o modelo em expansão retoma e “atualiza” o pensamento geopolítico brasileiro de vertente militar desenhado em tempos passados, cujo objetivo era a inserção da região na expansão capitalista contemporânea. A aquisição e ocupação de terras por grandes proprietários e empresas para o cultivo das monoculturas (de soja, cana de açúcar, dendê, eucalipto, dentre tantas...), bem como a exploração e intensificação dos recursos minerais e energéticos evidenciam o caráter predatório desse processo, que se coloca de forma antagônica ao vivenciado pelos diversos povos e comunidades tradicionais. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 255 255 12/11/2010 10:34:01 A segunda tendência refere-se à emergência dos movimentos sociais na região Amazônica , que se definem e são autodefinidos por critérios de identidade étnica, e reivindicam a manutenção e garantia de direitos, frente às situações que lhes apresentam adversas. O avanço da exploração econômica sobre as terras e os recursos naturais coloca em risco as formas de reprodução física e cultural dos mais variados grupos. Em meio a esse intenso processo de disputas, os povos e as comunidades tradicionais vão desenhando seus territórios, que segundo Almeida encontramse em “processo de territorialização” . Desta forma, rivalizam com os territórios pretendidos, sendo que isso implica na redefinição da própria noção de região a partir dos critérios de mobilização política. Observa-se que é a noção de região Amazônica se encontra em jogo mais uma vez. No entanto, os critérios acionados para sua definição se encontram delineados num campo de disputa, onde distintos interesses entram em conflito, diferentemente da sua primeira definição, quando os critérios dominantes foram àqueles identificados pela “objetividade científica”. 2. “NOVO” DIREITO E “NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS” As reflexões em torno do ordenamento ou sistema jurídico tendem a “apagar” a possibilidade de considerar a existência de direitos, que possam estar para além ou aquém dos limites de seu tempo e espaço . Os juristas se esforçam em fazer coincidir o espaço jurídico com a sociedade, modernamente com o Estado . Trata-se do dogma da completude do ordenamento jurídico, que consiste na propriedade do direito regulamentar toda e qualquer situação que exista de fato . Esta leitura formal do direito, que privilegia a interpretação das normas e a coerência do ordenamento tem se constituído em objeto de discussão em face dos fenômenos sociais e econômicos recentes, que tem se apresentado de forma múltipla e complexa, obrigando a uma reflexão permanente acerca dos significados do direito. Percebe-se que o formalismo excessivo utilizado para compreender os fenômenos sociais e econômicos tem impedido a interpretação dos processos de extrema complexidade, que se colocam distantes da forma como o direito se produz, reproduz e difunde. Os intérpretes do direito têm encontrado enormes dificuldades em atender de forma satisfatória as demandas, embora tenham se demonstrado bastante criativos em relação a elas . A recusa em se admitir a insuficiência do ordenamento ou sistema jurídico, enseja a necessidade de revisitar o próprio direito e, nesse sentido, as reflexões dogmáticas mais procuram se atual256 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 256 12/11/2010 10:34:01 izar e o fazem se apropriando da noção de “pluralismo jurídico”, que sempre foi tomado como algo residual do direito positivado . O “pluralismo jurídico” era formulado segundo o campo jurídico por historiadores e sociólogos do direito. Eles se utilizavam dessa noção operacional para demonstrar a insuficiência do ordenamento jurídico, bem como para descrever as situações da realidade, que não se encontravam catalogadas no direito. Contudo, as reflexões jurídicas mais recentes reconhecem o fato de que somos uma “sociedade plural”. Para essa análise: “o pluralismo é uma realidade, pois a sociedade se compõe de uma pluralidade de categorias sociais, de classes, grupos sociais, econômicos, culturais e ideológicos” . Optar pelo reconhecimento de que somos uma sociedade plural, tende a impor uma ruptura com os esquemas de pensamento jurídico tradicionais e a necessidade de repensá-lo à luz das discussões do “pluralismo jurídico”. A diversidade importa no acatamento de “práticas jurídicas” diferenciadas, nem sempre catalogadas e que necessitam ser incorporadas às reflexões jurídicas para garantir direitos efetivos à diversidade de sujeitos e grupos sociais, que sempre ficaram distantes dos tratamentos jurídicos . As dificuldades de interpretar os fenômenos sociais à luz dos padrões jurídicos tradicionais, sempre ficaram evidenciadas diante dos fatos , embora os intérpretes preferissem ignora-los, já que a todo custo procuravam enquadrar as situações aos dispositivos legais, apesar de reconhecerem as dificuldades. Para cada situação, um dispositivo, o que implicava numa simplificação das situações, quando reduzidas ao mundo jurídico. Nesse sentido, o processo em curso que valida o pluralismo na ordem jurídica, importa, também, no reconhecimento de que a norma se origina de uma situação particular e que se universaliza no ambiente jurídico. O discurso jurídico e o “senso teórico comum dos juristas” têm garantido a produção, reprodução e difusão da universalidade da norma jurídica, “livre” de qualquer tipo de interesses que possam maculá-la. Isso se constituiu num dos “obstáculos epistemológicos” , que tem impedido a compreensão do próprio direito, inclusive a sua possibilidade de atualização. A necessidade de o direito ser pensado e organizado para atender determinados problemas torna-se “obstáculo” à própria capacidade do direito se modificar diante das situações que se complexificam, na medida em que a sociedade se globaliza. As situações complexas têm implicado na necessidade de envolver uma maior participação dos interessados e dos que detém conhecimentos específicos a respeito, na medida em que esses procedimentos permitam contribuir na tomada das decisões judiciais, que possam ser consideradas mais justas. Os resultados do reconhecimento de que somos uma “sociedade plural” implica numa ampliação dos problemas, em decorrência do grau de disputas Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 257 257 12/11/2010 10:34:01 acirradas, que se colocam por vezes de forma contraditória no interior da sociedade . Os esforços teóricos devem se concentrar na possibilidade de intensificar as reflexões do papel do direito na sociedade contemporânea e de sua aplicação frente à dinâmica da realidade, que é reconhecidamente plural. Nesse sentido, as tentativas de simplificação dos procedimentos, a fim de proporcionar maior celeridade à resolução dos conflitos devem ser vistas com ressalva , sobretudo pelo fato de existir no momento atual reflexões no âmbito do direito, que procuram encontrar na idéia do “consenso”, senão a única, mas a melhor forma para a resolução dos conflitos sociais existentes. As reflexões que se encontram ancoradas nas discussões de Democracia e Estado de Direito vêm sendo objeto de crítica , já que trazem no seu bojo a idéia de que o direito representa os interesses da sociedade, diluindo a política sob o conceito de direito. Observa-se que o critério de identidade vem contribuindo numa maior capacidade dos grupos sociais exerceram mobilização política para reivindicarem direitos. A organização e mobilização dos povos e comunidades tradicionais se constituem em um importante instrumento para enfrentar as situações concretas, que se evidenciam nos processos de disputas pelos territórios. Nesse intenso processo vivenciado pelos grupos sociais, o enfrentamento jurídico tem sido uma arena de luta privilegiada. As manifestações políticas dos movimentos nas mais diversas situações revelam diferentes estratégias e ações, que se colocam em face dos seus antagonistas. Um traço distintivo que pode ser considerado comum a todos esses grupos sociais é o que pode ser denominado de “luta jurídica localizada” , que não se restringe aos limites do espaço municipal. É localizada no sentido de que os grupos têm acesso aos meios e ao Poder Público responsável para atender e executar as medidas eventualmente propostas. Os esforços dos grupos sociais em manter a “luta jurídica localizada” decorre da utilização de diversas práticas, que não se encontram referidas ao aspecto discursivo, acabando por impor formas próprias: junto às Câmaras Municipais e Assembléias Legislativas dos Estados, os povos e comunidades tradicionais além de participarem das audiências públicas para discutir projetos que lhes afetam direta ou indiretamente, apresentam proposições por meio de representantes, as quais têm se transformado em leis ; em discussões com Poder Executivo vem discutindo e firmando determinadas medidas , que tem se traduzido em políticas específicas ; e em discussão com o Ministério Público Estadual e Federal apresentam e discutem a particularidade de seus problemas para a defesa de seus direitos. Percebe-se que há uma apropriação das “práticas” e do discurso jurídico, na medida em que esse campo tem se demonstrado extremamente favorável às disputas políticas. O fato do direito representar os interesses de determinados grupos - “o reino de um direito”, como afirmou Jacques Rancière - não tem se 258 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 258 12/11/2010 10:34:01 apresentado neste momento, pelo menos, como um obstáculo aos movimentos sociais que, ao se apropriarem das “práticas jurídicas”, procuram propor dispositivos legais que estejam mais alinhados com a sua maneira de viver. Em determinados momentos, procuram interpretar os dispositivos consoante os seus interesses e vontades, apesar de que a interpretação nem sempre encontra “eco” nos esquemas de pensamento jurídicos dominantes, estruturados em consonância com os padrões jurídicos tradicionais. Neste contexto em que os grupos sociais se organizam e se mobilizam, é importante destacar o papel do Poder Judiciário, que tem procurado reconhecer a relevância da ampla participação da sociedade nos julgamentos, diante da complexidade e da pluralidade de situações, que impõem novas formas, onde os pré-intérpretes são determinantes no processo decisório. No caso, há uma necessidade de ocupar o campo jurídico, sobretudo em função do momento vivenciado, em que os próprios intérpretes autorizados reconhecem a necessidade de uma maior participação da sociedade. Os esforços do Poder Judiciário em ampliar a participação da sociedade nos processos decisórios se encontram coadunados com os interesses dos povos e comunidades tradicionais. Extensivamente a esse processo, os grupos sociais intensificam sua luta em explicitar a sua existência social, bem como demonstrar a necessidade de protegê-la, mesmo que para isso seja necessário repensar os próprios padrões jurídicos instituídos. No processo que envolve o reconhecimento da diversidade, a primeira ação consiste em reafirmar e afirmar a idéia da diferença, que motiva as reivindicações dos diversos povos e comunidades tradicionais. A partir do intenso processo de organização e mobilização política, os grupos sociais adotam a seguinte estratégia: a elaboração e proposição de dispositivos legais que, inicialmente, permitam reconhecer a sua existência social, bem como seus modos de “fazer”, “criar” e “viver”. As discussões em torno da elaboração e proposição dos dispositivos legais tem sido um elo importante no processo de construção das identidades coletivas , na medida em que as discussões políticas em torno das proposições permitem ao mesmo tempo, afastar as divergências e aproximar os grupos, frente os antagonistas. A força e a intensidade dos processos fazem com que os grupos apaguem as diferenças e reforcem os laços de solidariedade. As idéias da existência de coesão social - que serviam para distinguir a região das demais - são recuperadas, mas sem perder a possibilidade de realçar as diferenças existentes entre os diversos grupos sociais que compõem a Amazônia. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 259 259 12/11/2010 10:34:01 3. “PRÁTICAS JURÍDICAS” LOCALIZADAS: “novos” padrões jurídicos O deslocamento dos enfrentamentos políticos para a “luta jurídica localizada”, sobretudo a produção de dispositivos legais no âmbito municipal e, também, estadual revela um dado “novo”, que merece ser incorporado às análises. Nesse processo, os movimentos sociais passaram a ser os protagonistas e intérpretes de suas próprias ações e estratégias, diferentemente de outros períodos, onde o discurso era mediado. Até a década de 1980, observa-se que os conflitos se referiam às disputas pela terra na região Amazônica, envolvendo uma intensa discussão em torno dos direitos de posse e propriedade. Na maioria das situações, as discussões eram encaminhadas ao Poder Judiciário . O procedimento de encaminhar prevalentemente os conflitos ao Poder Judiciário representava uma das estratégias mais utilizadas em face de seus antagonistas. O seu objetivo consistia em garantir ou mesmo evitar qualquer tipo de medida que pudesse implicar na ameaça ou perda da terra em disputa, embora não se esperasse que as ações fossem êxitosas, isto é, julgadas favoravelmente. Os argumentos acionados eram os perfilados pelos advogados, que promoviam a disputa no campo jurídico. As ações eram organizadas com intuito de demonstrar a existência da posse mansa e pacífica sobre a terra ou mesmo a insuficiência dos documentos acostados aos processos judiciais. As disputas jurídicas cingiamse aos processos e às medidas administrativas junto aos órgãos fundiários, que eram acionados para promover o processo de desapropriação ou mesmo regularização fundiária do imóvel, objeto do litígio. Na década de 1990, a esse discurso do direito agrário, foram incorporadas as discussões de meio ambiente. A força do discurso ambiental, que buscou identificar formas de preservação e conservação da região Amazônica, fez com que os grupos sociais passassem a ter uma participação mais ativa, aproximando-os das formulações e dos debates jurídicos ambientais, que procuravam identificar formas para melhor disciplinar as ocupações e usos dos territórios. A experiência dos seringueiros com os Projetos de Assentamento Extrativistas (PAEXs), incorporado pela Política Nacional do Meio Ambiente por meio das Reservas Extrativistas (RESEXs), é um exemplo recorrente. Ele se espraiou por toda região Amazônica, vindo a se incorporar na Política Nacional de Unidades de Conservação. No entanto, somente a partir do aumento do grau de organização e mobilização dos grupos sociais é que as demandas jurídicas passaram a se tornar mais complexa, impondo questionamentos aos procedimentos comumente utilizados, que vinham se demonstrando ineficazes diante dos problemas, que se colocavam e que ameaçavam a reprodução física e cultural dos grupos. As discussões 260 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 260 12/11/2010 10:34:01 não mais se referiam ao direito à terra, mas a um conjunto de proposições, que implicam no reconhecimento da existência social dos povos e comunidades tradicionais. Os discursos jurídicos, agrário e ambiental, até então hegemônicos foram perdendo gradativamente força junto aos movimentos sociais, que passaram a articular as lutas a partir de “novas” formas. Tal processo reflete as “novas” ações e estratégias dos grupos sociais, que procuram como medida na manutenção de seus direitos, ações mais localizadas em que pudessem deter o controle político do processo. A maioria dos projetos de lei apresentados pelos representantes dos movimentos sociais foram e estão sendo aprovados nas diversas Câmaras Municipais de toda região Amazônica . Os projetos de lei, que implicam numa maior liberdade ou restrição de determinadas “práticas sociais”, apesar de sofrerem forte resistência, acabam sendo aprovados. Os conteúdos dos projetos representam o grau de enfrentamento envolvendo interesses diversos, que se realiza no interior dos espaços políticos. Verifica-se que o maior grau de organização e mobilização dos grupos reflete os ganhos e as perdas dos projetos de lei apresentados . As estratégias utilizadas para a discussão e apresentação da proposição - que vai desde a escolha do vereador ou parlamentar - bem como as articulações que ocorrem no decorrer de toda tramitação do projeto, incluindo o dia da votação, são dados relevantes que necessitam ser analisados, uma vez que contribuem com o maior ou menor êxito da maioria das propostas apresentadas. Nessa arena, onde os interesses divergentes se explicitam, a ação política exercida pode significar um grande passo em direção a aprovação dos projetos. O conteúdo dos projetos aprovados além de expressarem a correlação de forças localizadas, evidencia as situações existenciais de fato, vivenciadas diferentemente por cada grupo social, por isso mesmo não há restrições legais em relação ao que foi aprovado. Uma vez aprovadas, as leis ficam “sacramentadas” e herméticas aos questionamentos. As leis aprovadas são acatadas, sendo que os diversos grupos e o Poder Municipal procuram cumprir o que foi previamente pactuado. O “pacto” envolve uma “consciência geral” do profundo conhecimento da questão e a necessidade de regulamentá-la, sob pena de “novos” conflitos. Observa-se que os envolvidos possuem plena consciência dos direitos em jogo, bem como da necessidade de protegê-los. Os deslocamentos das ações e estratégias para o plano jurídico local, especificamente para o da elaboração e proposição de leis vêm servindo para reconhecer a existência social dos grupos sociais e, sobretudo legitimar as suas ações. Trata-se de promover a passagem de uma situação de “invisibilidade” para a de “visibilidade” jurídica, pois o direito somente protege os visíveis. Contudo, esse processo é pouco refletido, em função dos resultados positivos Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 261 261 12/11/2010 10:34:01 até aqui alcançados. Os grupos sociais vêm apostando suas lutas nesse processo que, sem dúvida, contribui com a construção de suas identidades. A elaboração e proposição dos dispositivos legais auxiliam no reforço e atualização dos laços sociais. Os indivíduos passam a se identificar enquanto membro do grupo. Os novos dispositivos legais criados a partir do controle exercido pelos movimentos sociais determinaram de certa forma, a ampliação e abertura do ordenamento ou sistema jurídico até então indiferente aos direitos desses grupos. Os novos dispositivos necessitam ir se acomodando ao universo jurídico, sendo que esse processo pode implicar em um menor controle dos grupos sociais, em função da “autonomia” do campo jurídico. A “autonomia” é construída em face das necessidades de produção, reprodução e difusão de um discurso jurídico, que sempre se ocupou em negar direitos a esses grupos. Isso deverá implicar em um novo conjunto de ações e estratégias, sobretudo na capacidade dos grupos explicitarem a legitimidade dos seus direitos que, em muitos momentos, se encontram em conflito com o próprio direito. Os esforços dos grupos deverão se dirigir e concentrar no direito em dizer o direito. CONSIDERAÇÕES FINAIS No bojo da dinâmica da região Amazônica, os novos movimentos sociais ganharam força e vitalidade, em face dos projetos de intervenção na região, que procuram incluí-la na expansão capitalista. Em decorrência, as “práticas sociais” dos diferentes grupos sociais vêm se impondo na ordem, acarretando uma intensa disputa sobre os territórios e no processo de redefinição da região. É por esse motivo que os debates sobre a redefinição da região Amazônica não podem prescindir da participação e do conteúdo desses grupos sociais. A força e vitalidade dos movimentos sociais residem, em primeiro lugar, no fato de terem garantido a sua existência enquanto grupo socialmente distinto. A sua permanência e perenidade rivalizaram com todos os esquemas científicos de pensamento, que deduziam o seu “fim” ou “assimilação” diante da sociedade nacional. Segundo essas leituras, esses grupos estariam fadados ao desaparecimento. Em segundo, porque a partir dessa primeira, lograram questionar o direito na sua concepção universalista, obrigando -o a se debruçar sobre as diversidades e as singularidades. Em outras palavras, a “luta jurídica localizada”, enquanto instrumento, vem aproximando o direito das situações mais particularizadas, implicando num repensar do próprio conteúdo jurídico. 262 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 262 12/11/2010 10:34:01 Tal processo vem fazendo com que os grupos sociais transitem de uma situação de invisibilidade para visibilidade; enquanto sujeitos coletivos de direitos têm suas “práticas jurídicas” igualmente reconhecidas dentre tantas. A região Amazônica expressa e contém essa diversidade sócio-cultural, que deve ser preservada, sendo que é por esse motivo, tomando emprestado o título do livro de Ronald Dworkin, “levar a sério” as proposições dos povos e comunidades tradicionais, incorporando-as como legitimas no interior da ordem jurídica, sob pena de negar direitos, comprometendo a reprodução física e cultural desses grupos sociais. BIBLIOGRAFIA ACSELRAD, H. 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C. A “Comomoditização do Conhecimento Tradicional: notas sobre o processo de regulamentação jurídica”. ALMEIDA, A. W. B. (org.). Conhecimento Tradicional e Biodiversidade: normas vigentes e propostas. Manaus: UEA-PPGDA/ UFAm- PPGSCA/ Fundação Ford, Fundação Universidade do Amazonas, 2008, pp. 57-83. SHIRAISHI NETO, J. Leis do Babaçu Livre. Práticas Jurídicas das Quebradeiras de Coco Babaçu e Normas Correlatas. Manaus: PPGSCA-UFAM/ F.Ford, 2006. WALD, A.; MARTINS, I. G. S. Dez anos da Lei de Arbitragem. Folha de São Paulo, 24 de setembro de 2006. A3. WARAT, L. A. Senso Comum Teórico: as vozes incónitas das verdades jurídicas. Introdução Geral do Direito. Interpretação da Lei Temas para uma Reformulação. Porto Alegre: Fabris, 1994. pp. 13-18. WOLKMER, A. C. Pluralismo Jurídico. Fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3º ed. São Paulo: Alfa Omega, 2001. DOCUMENTOS E PERIÓDICOS CURITIBA. Decreto n.889/ 2004, outorga permissão e uso. D.O.M., n.74, de 28 de setembro de 2004. DEFICIENTE auditiva terá intérprete na sala de aula. Folha de São Paulo, 28 de junho de 2008. p.C4. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei n° 1.278, de 2007, “Dá nova redação ao inciso VI do §2° do art.1º da Lei n° 4.771, de 15 de setembro de 1965, para alterar a definição de Amazônia Legal.” 134 CANDIDATOS se declaram gays ou ‘aliados´, diz ABGLT. Folha de São Paulo, 16 de agosto de 2008. p.A6. 266 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 266 12/11/2010 10:34:02 SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº 005, de 2005, “Altera o inciso VI do §2° do art.1° da lei 4.771, de 15 de setembro de 1965, na redação alterada pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 24 de agosto de 2001, que dispõe sobre a abrangência da Amazônia Legal, e dá outras providências.” STF amplia participação no debate público. Folha de São Paulo, 10 de agosto de 2008. A12. Artigo recebido em: 01/06/2010 Artigo aprovado para publicação em junho /2010. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 267 267 12/11/2010 10:34:02 ÍNDICE - PARTE III PLURALISMO JURÍDICO COMO VALOR JURÍDICO FUNDAMENTAL DO ESTADO BRASILEIRO: ESTUDO DE CASO SOBRE A LEI Nº 145/2002 DO MUNICÍPIO DE SÃO GRABRIEL DA CACHOEIRA E A COOFICIALIZAÇÃO DAS LÍNGUAS NHEENGATU, TUKANU E BANIWA Moysés Alencar de Carvalho........................................................................271 Introdução 1. Pombal ecoando na política indigenista nacional pré- 1988 2. O direito à diferença na Constituição Federal de 1988 3. Pluralismo jurídico: A comunicação entre direito e realidade na Terra das Línguas 4. (In)Constitucionalidade e (in)competência: questões formais sobre a Lei Municipal nº 145/2002 Considerações Finais Referências SUJEITOS INDÍGENAS E ESTADO NO CAMPO DA REGULAÇÃO JURÍDICA DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS À BIODIVERSIDADE Sheilla Borges Dourado................................................................................287 1. Apresentação do campo 2. Inovação tecnológica e valoração econômica dos conhecimentos tradicionais associados 3. Novos bens, novos sujeitos de direitos 4. Campo científico e “definições legítimas” Em resumo, para finalizar livro hileia11,12,13.indd 269 12/11/2010 10:34:02 PLURALISMO JURÍDICO COMO VALOR JURÍDICO FUNDAMENTAL DO ESTADO BRASILEIRO: ESTUDO DE CASO SOBRE A LEI Nº 145/2002 DO MUNICÍPIO DE SÃO GRABRIEL DA CACHOEIRA E A CO-OFICIALIZAÇÃO DAS LÍNGUAS NHEENGATU, TUKANU E BANIWA Moysés Alencar de Carvalho* Sumário: Introdução, 1. Pombal ecoando na política indigenista nacional pré- 1988; 2. O direito à diferença na Constituição Federal de 1988; 3. Pluralismo jurídico: A comunicação entre direito e realidade na Terra das Línguas; 4. (In)Constitucionalidade e (in)competência: questões formais sobre a Lei Municipal nº 145/2002; Considerações finais; Referências. Resumo: Com o advento da Constituição Federal de 1988, o sistema jurídico brasileiro abriu seus olhos para a riqueza da diversidade cultural existente no país, reconhecendo a pluralidade de modos diferenciados de criar, fazer e viver e garantindo proteção jurídica às distintas coletividades formadoras da sociedade nacional e suas práticas. A partir de tal inovação no modo de atuação do Estado foi possível surgir no município de São Gabriel da Cachoeira uma lei municipal que co-oficializou três línguas indígenas – Nheengatu, Tukano e Baniwa. Este trabalho pretende discutir brevemente as mudanças paradigmáticas do tratamento jurídico adotado no Brasil ao lidar com a pluralidade cultural aqui existente, o status atual do tema e, finalmente, a relevância e Abstract: With 1988’s Federal Constitution, Brazilian’s legal system has opened its eyes for the richness of the cultural diversity existing in the country, recognizing the plurality of differentiated ways of creating, making and living and guaranteeing juridical protection to the distinct collectives which helped forming national society and their practices. Through this new way of State action, it was possible to see the emerging of a local law which made three indigenous languages – Nheengatu, Tukano e Baniwa – co-official to Portuguese. This article aims briefly discussing the paradigmatic changes of Brazil’s juridical treatment towards the existing cultural plurality, current status of the issues and finally, the relevance and constitutionality the Law 145/2002, of São Ga- * Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (PPGDA-UEA). Bolsista FAPEAM. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 271 271 12/11/2010 10:34:02 constitucionalidade da Lei n.º 145/2002, briel da Cachoeira, Amazonas, as a space do município de São Gabriel da Cachoeira, of cultural protection and improvement of Amazonas, enquanto espaço de proteção indigenous peoples’ dignity. cultural e ampliação da dignidade indígena. Key-words: Indigenous languages; juridiPalavras-chave: Línguas indígenas; plu- cal pluralism; Law 145/2002 of São Garalismo jurídico; Lei n.º 145/2002 do mu- briel da Cachoeira, Amazonas. nicípio de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas. INTRODUÇÃO O presente artigo tem como objetivo proceder a uma breve análise da questão do pluralismo jurídico no estado contemporâneo brasileiro a partir de um caso concreto: a promulgação da Lei n.º 145/2002 no município de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, que co-oficializou as línguas indígenas Nheengatu, Tukano e Baniwa. O trabalho propõe-se a apontar a relevante mudança de paradigma que esta lei municipal representa em nosso ordenamento jurídico e, com ainda maior impacto, na realidade social dos grupos indígenas atingidos pelo espectro de sua regulação, imediatamente, e para as demais comunidades indígenas e grupos étnicos, por via oblíqua. Contudo, antes, e parar melhor fazê-lo, mostra-se pertinente traçar uma breve retrospectiva histórica da atuação estatal para com os indígenas, através das políticas públicas implementadas e dos instrumentos normativos utilizados pelo Estado brasileiro ao lidar com estes sujeitos diferenciados até a promulgação da Constituição Federal de 1988. Na seqüência, far-se-á uma leitura dos preceitos trazidos pela Constituição Federal de 1988 que apontam os novos rumos da política indigenista brasileira, sua postura mais sensível à inegável diversidade cultural e pluralidade étnica existentes na realidade social brasileira. Desta feita, intenta-se demonstrar como esses princípios e preceitos emancipatórios constitucionais albergam a possibilidade explorada pela lei objeto deste artigo de reconhecer formalmente as línguas indígenas, utilizadas como ferramentas essenciais de comunicação e reprodução de modos específicos de criar, fazer, viver, conhecer o mundo e (re)conhecer-se, essenciais à 272 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 272 12/11/2010 10:34:02 sobrevivência de suas culturas. Uma das questões levantadas com relação à Lei n.º 145/2002 do município de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, diz respeito à competência, ou a falta desta, do município para legislar sobre o assunto. Afora isso, o art. 13 de nossa Carta Maior relega à língua portuguesa o status de idioma oficial da República Federativa do Brasil e, neste aspecto, levanta-se, inclusive, a hipótese de inconstitucionalidade da lei, que será também analisada no transcorrer do texto, sem que se pretenda, contudo, alargar seus objetivos a uma discussão mais profunda de Direito Constitucional. 1. POMBAL ECOANDO NA POLÍTICA INDIGENISTA NACIONAL PRÉ- 1988 Desde a chegada dos colonizadores europeus ao Brasil, os povos indígenas foram sistematicamente subjugados, utilizados como mão-de-obra escrava, braços, no sistema de produção baseado na monocultura, e aqueles que se opunham à dominação portuguesa eram programaticamente exterminados. Muitos dos povos que conseguiram escapar do extermínio físico, não puderam resistir ao perecimento de suas culturas. Uma das formas encontradas pelo colonizador para facilitar o processo de “domesticação” dos indígenas, e assim ampliar sua utilização como mão-de-obra e a produtividade de suas plantações monocultoras era restringir suas práticas culturais, dentre elas a utilização de suas línguas (ALMEIDA, 2007, p. 18). Para facilitar o controle e a comunicação com as populações indígenas, ao mesmo tempo em que paulatinamente invisibilizavam as línguas e demais práticas próprias dos nativos, os missionários incumbidos da tarefa de sua catequização e cooptação para a Coroa portuguesa, inseriram entre as diversas populações o uso do Nheegatu, ou língua geral. Em meados do séc. XVIII, por determinação do diretório pombalino, mesmo o Nheegatu foi proibido, impondo-se a utilização do Português por todos os indígenas, como tentativa de eliminar definitivamente as demais línguas faladas no Brasil e aumentar as chances de sucesso do processo civilizatório dos “gentios” e de sua submissão ao Estado constituído e ao Príncipe. Tal iniciativa não logrou êxito graças a um detalhe com o qual as autoridades não contaram: em resistência silenciosa “as línguas indígenas outrora proibidas mantiveram-se resistentes e vívidas, na vida cotidiana das aldeias, nos afazeres e nos segredos da vida doméstica” (ALMEIDA, 2007, p. 22), sobrevivendo ao tempo e a pressões de toda sorte , alcançando o presente. Não sem Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 273 273 12/11/2010 10:34:02 que muitas delas se perdessem para sempre nos corredores da história nacional. História recheada de massacres, exclusões e omissões. Omissões como a perpetrada pelo estado brasileiro, que mesmo após a transição para a forma de governo republicano, nunca corrigiu essa injusta proibição às línguas indígenas. Nas palavras de Alfredo Wagner B. de Almeida: As constituições republicanas jamais desdisseram Pombal. A noção operacional de ‘povo’, de inspiração positivista, pressupunha uma unidade geográfica e lingüística, sob uma administração a mesma, cujo artefato de comunicação era a língua dominante, a mesma da sociedade colonial. (ALMEIDA, 2007, p. 22) Essa busca por uma homogeneização ideal, distinta e conformadora da realidade concreta que se apresentava diversificada e plúrima, dirigida à construção de uma identidade nacional fazia parte do ideário do governo republicano brasileiro, uma vez que “a identidade nacional tem como objetivo o direito ‘monopolista de traçar a fronteira entre o nós e o eles’” (SÁ, 2006, p. 15), e já não fazia parte das políticas do Estado Republicano o extermínio, ao menos explícito, dos indígenas que continuavam a ser “eles”. Dessarte, não podendo mais livrar-se oficialmente dos índios fisicamente, aniquilando seus corpos, seu novo objetivo seria civilizá-los, integrá-los à sociedade nacional um a um, destruindo suas culturas e suas almas. Esta fora a estratégia encontrada pelo governo brasileiro para alcançar a almejada homogeneidade do povo, um dos tripés do Estado moderno. O Código Civil de 1916 listava em seu art. 6º, II, o silvícola, termo carregado de carga simbólica ideológica pejorativa, como relativamente incapaz para realizar atos da vida civil, sendo que no parágrafo único do mesmo artigo releva-se o propósito do Estado de cooptar os indígenas à sociedade estabelecida nos moldes do pensamento cartesiano ocidental . No mesmo sentido vem o art. 1º do Estatuto do Índio (Lei n.º 6.001/73), exibindo a meta de progressivamente integrar os índios à comunhão nacional , ou seja, inseri-los em nosso modelo de vida, apropriação e conhecimento do mundo. Este modelo de pensamento e de relação com os grupos diferenciados que compõem o tecido social de nosso país guiou as práticas estatais até o fim da década de 1980 quando se registrou formalmente, e justamente no ápice da pirâmide que ilumina nosso ordenamento jurídico, um novo rumo, acolhedor das diversidades múltiplas. Sobre o modelo de pensamento adotado pelo Estado até então, o Prof.º Fernando Dantas assim escreveu: 274 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 274 12/11/2010 10:34:02 Durante muito tempo, ou melhor, durante séculos, a racionalidade cartesiana, norteadora dos ideários político-estatais no Brasil, guiou-se pelo olhar míope da mirada etnocentrista e colonizadora ocidental, não encontrando nas ações, nas narrativas, nos modos de vida, enfim, no pensar de indivíduos e povos nativos, algo importante, com qualidades epistêmicas ou humanas para assim desqualificar, por irracional ou folclórico, a complexidade das formas de vida e organização social de povos étnica e culturalmente diferenciados. (DANTAS, 2003, pp. 473-474) 2. O DIREITO À DIFERENÇA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Trataremos de dois momentos da Constituição Federal de 1988 que representam uma mudança de paradigma no que tange ao pluralismo existente na concretude de nossa sociedade, por muito tempo espoliado do reconhecimento formal do Estado nacional. Primeiramente, no capítulo dedicado à cultura, reconheceu-se a importância e abrigou-se de garantia protetiva estatal o patrimônio cultural nacional, formado pelos bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira . Entre estes grupos encontram-se os indígenas que, por sua vez, e no segundo momento da mudança paradigmática citada, foram escolhidos como protagonistas de um capítulo especial e exclusivamente dedicado a eles, dentro do qual lhes são reconhecidos sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, além dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Os bens culturais peculiares aos grupos identitários litigantes, os “diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”, somente alcançaram o status de pertencentes ao patrimônio cultural nacional na Constituição Federal de 1988, assim como passaram também a ser alvo da proteção constitucional que lhes ficou ausente durante boa parte da história do país, apontando “para um novo momento da historicidade do direito no que diz respeito ao não ocultamento das múltiplas e plurais representações culturais dos povos formadores do tecido social e, conseqüentemente, da memória brasileira.” (DANTAS, 2006, p. 02) Ainda no art. 216 da CF/88, em seu inciso II, foram incluídos entre os bens culturais os modos de criar, viver e fazer, que podem ser tomados como Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 275 275 12/11/2010 10:34:02 a base da diferenciação e auto-identificação de um povo. Ademais, garantemlhes a dinâmica dos processos culturais, essenciais à sua sobrevivência fática, sendo complementarmente responsáveis pela criação, reprodução e renovação dos demais bens culturais. A proteção constitucional atribuída a esses bens é salutar quando interpretada como garantia de realização contínua no plano fático, nunca no sentido de engessamento, petrificação, assegurando sua prática e a continuação do processo dinâmico de criação e recriação da cultura. A diversidade cultural é uma característica dos agrupamentos humanos, seja analisando-se as diferenças entre indivíduos de uma mesma sociedade, ou essa em comparação as que lhe são exteriores. O processo de assimilação do diverso, do diferente, do novo, e sua assimilação, reinterpretação e resignificação simbólica, mostra-se como um sinal de liberdade na determinação dialética dos rumos de sua história. A diversidade e seu reconhecimento configuram-se como concreções ontológicas de tamanha relevância na atualidade que no dia 20 de outubro de 2005, na Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) Unesco, foi celebrada a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais que, entre seus objetivos, destacou a proteção e promoção da diversidade cultural , o incentivo ao diálogo entre culturas, o reconhecimento da cultura para o desenvolvimento de todos os países e a reafirmação do direito soberano de os Estados conservarem, adotarem e implementarem as políticas e as medidas que considerem necessárias para a promoção e proteção da diversidade. A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, ao dispor sobre povos indígenas e tribais encarrega os Estados signatários, entre os quais se encontra o Brasil, de promover, entre outras coisas, a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando a sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, e as suas instituições. Reconhece assim a diversidade cultural dos povos indígenas e propugna a efetivação de seus direitos em consonância com suas referências simbólicas. Pode-se perceber a sinergia entre a Constituição brasileira e o pensamento de organismos internacionais, e seus respectivos países membros, positivado nas convenções citadas, na busca de uma forma de diálogo entre a cultura ocidental, por muito tempo, e ainda hoje, hegemônica, e os demais grupos étnicos, no caso os indígenas. Nas palavras de Fernando Dantas: Neste sentido, o reconhecimento constitucional dos índios, e de suas organizações sociais de modo relacionado, configura, no âmbito do direito, um novo sujeito indígena, diferenciado, contextualizado, concreto, coletivo, ou seja, 276 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 276 12/11/2010 10:34:02 sujeito em relação com suas múltiplas realidades socioculturais, o que permite expressar a igualdade a partir da diferença e concretizá-la a partir do ‘diálogo intercultural.’ (DANTAS, 2003, p. 513) Este diálogo multi e intercultural incorporado ao sistema jurídico pátrio permite novos campos de discussão e um novo campo de batalha por direitos, além de permitir a construção de categorias jurídicas diferenciadas, que fujam à tríade família, tradição e propriedade conformado ao espírito cartesiano positivista norteador da sociedade ocidental como parâmetro de validade da verdade. 3. PLURALISMO JURÍDICO: A COMUNICAÇÃO ENTRE DIREITO E REALIDADE NA TERRA DAS LÍNGUAS O reconhecimento e a garantia constitucional reservados aos modos de criar, fazer e viver dos diversos grupos formadores da sociedade nacional permitem aos indivíduos e grupos diferenciados buscar alcançar a realização efetiva da dignidade e dos direitos humanos por seus próprios meios. Direitos estes que para Joaquín Herrera Flores, “non son outra cosa que la materialización concreta de las luchas por ‘el poder hacer’ y el ‘poder crear’” (FLORES, 2005, p. 12), e diz ainda mais o autor sobre o cultural: (…) o lo que es lo mismo, lo humano - consiste en un continuo proceso de ‘reacción’ frente a las realidades en que se vive. Es decir, frente a los conjuntos de relaciones que mantenemos con los otros (…), con nosotros mismos (nuestro luchador sabe decir a los demás y, sobre todo, a sí mismo, la verdad, por más dura que sea), y con la naturaleza (…) (FLORES, 2005, p. 17) Quando tratamos de grupos étnicos específicos como os indígenas, tratamos de povos que, diferentemente do que fora durante muito tempo propagado, de fato possuem história e conhecimentos vários sobre o mundo, diferentes daqueles das sociedades ocidentais, mas, nem por isso, menos ricos e dignos de reconhecimento. Esses conhecimentos acumulados diferem em vários aspectos, embora em um deles com maior nitidez: são transmitidos oralmente. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 277 277 12/11/2010 10:34:02 Por isso mesmo, no art. 216, I, da CF/88, o legislador constituinte incluiu entre os bens de natureza imaterial formadores do patrimônio cultural brasileiro as formas de expressão, entre as quais podemos citar a língua, utilizada pelo homem como ferramenta de expressão, comunicação, (re)conhecimento e (re) produção dos seus modos de criar, fazer e viver. Ademais, reconheceu expressamente aos índios o direito às suas línguas , como que entendendo a necessidade de assegurá-las como forma de garantir-lhes a possibilidade de reproduzir sua existência física e espiritual. Após séculos de imposição dos modos de vida ocidental aos indígenas, e de negação de suas características culturais enquanto representações simbólicas de formas diferenciadas de apreensão e relação com o mundo, o reconhecimento estatal do direito de utilizarem suas línguas em todas as instâncias de suas vidas inclusive nos espaços públicos e institucionalizados , alcançado pelos indígenas residentes no município de São Gabriel da Cachoeira com a lei nº. 145/2002 pode ser o marco inicial de uma bem-aventurada guinada fática da relação destes povos com o Estado e a sociedade brasileira. Como destacou o Prof. Alfredo Wagner de Almeida, “em suma, pode-se asseverar que os movimentos indígenas começam a desdizer o regimento pombalino, unindo o que ele procurou separar e levando em conta a diversidade cultural como um elemento estruturante da sociedade brasileira.” (ALMEIDA, 2007, p. 25) O direito como espaço onde se diz a verdade tem um papel proeminente nos padrões comportamentais da sociedade, uma vez que a cultura vive um processo cíclico, “num vaivém contínuo” de retro-alimentação “ ad infinitum.” (REISEWITZ, 2004, p. 85), do qual o direito faz parte, recebendo inputs da realidade ontológica e conformando-se a ela, ao mesmo tempo em que influencia a concretude fática e altera a cultura. Ao promulgar esta lei, o município de São Gabriel da Cachoeira não apenas garantiu a todos os indígenas da região acesso digno aos serviços públicos através da comunicação em línguas dominadas por eles, mas também garantiulhes visibilidade e legitimidade perante o restante da comunidade. Essa assertiva pode ser confirmada no relato de Edílson Martins Baniwa, indígena Baniwa graduado em Letras pela UFAM. Segundo ele, a Lei nº. 145/2002 trouxe para os não-indígenas “uma certa contribuição para que os mesmos pudessem compreender, valorizar e respeitar a nossa cultura.” (BANIWA, 2007, p. 52) Finalmente, podemos dizer que o esforço coordenado dos diversos grupos indígenas em São Gabriel da Cachoeira, objetivado na forma de movimento social, possibilitou a promulgação de uma lei inédita no ordenamento jurídico pátrio, capaz de reconhecer a pluralidade cultural e lingüística existente na região, possibilitando assim sua reprodução física e espiritual, enquanto socie278 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 278 12/11/2010 10:34:02 dades diferenciadas e dotadas de complexos e valiosos conhecimentos e formas de vida. Essa conquista (u)tópica sucedida em um lugar específico da Amazônia, tornada real graças à luta obstinada da população indígena local, reforça a importância dos espaços compartilhados enquanto instâncias de comunhão, vivência da socialidade, do ser/estar-junto-com (MAFFESOLI, 2004). Cabe citar também o pertinente comentário do geógrafo José Aldemir de Oliveira a respeito do lugar: O lugar tem um tempo e um espaço que são pouco globais e estão prenhes de significados. No lugar emerge a diferença e brota a luta que aparece como possibilidade de produzir uma nova história, de onde podem brotar reações que nos levam para outra percepção da história e encorajam a superação da práxis tradicional, abrindo lugar para a utopia e a esperança. Então a ‘história e os lugares seriam da nossa humanidade comum e não mais apenas dos dominantes’. (OLIVEIRA J. A., 2004, pp. 110-111) A inegável pluralidade cultural existente na realidade cotidiana contamina beneficamente o direito e o sistema jurídico que se abre a formas de práticas sociais diversas, acolhendo-as e transformando em leis sua práxis. É o caso de modelos de apropriação comunal de determinado bem natural no caso das Quebradeiras de Coco Babaçu, do compartilhamento da terra nos faxinais, com o padrão de vida errante e a relação com a terra dos ciganos, e com as diversas práticas culturais dos indígenas, entre outros. O preâmbulo da Constituição Federal define o Brasil como um Estado Democrático, pluralista e sem preconceitos, e define ainda a dignidade da pessoa humana como um de seus fundamentos, no art. 1º, III. Para se alcançar a plenitude deste princípio fundante é necessário que seu conteúdo seja compreendido em consonância com as situações vivenciadas, levando em consideração as diferenças sociais, econômicas e culturais de grupos portadores de identidades que os diferenciem dos demais grupos e indivíduos no interior do Estado brasileiro. (SHIRAISHI NETO, 2006, pp. 27-28) O conceito de pluralismo jurídico, outrora relacionado a práticas externas ao direito positivado estatal atravessa uma reformulação e passa a discutir a assimilação de práticas diferenciadas pelo sistema jurídico nacional. Nas palavras do Prof. Joaquim Shiraishi Neto: Acesa a discussão em torno do pluralismo como valor Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 279 279 12/11/2010 10:34:02 fundamental de uma Constituição democrática, tem-se observado uma preocupação dos intérpretes do direito acerca da necessidade de se atentar para quem são e como se constituem os diversos sujeitos e grupos sociais no País. Os resultados desse procedimento apontam para uma construção de uma política de reconhecimento dos diversos grupos existentes, o que implica no reconhecimento formal de suas ‘práticas sociais’. (SHIRAISHI NETO, 2007, p. 72) É certo afirmar que a Lei n.º 145/2002 do município de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, que co-oficializou as línguas indígenas Nheengatu, Tukano e Baniwa, abriu um novo mundo de possibilidades na reivindicação e reconhecimento de direitos diferenciados pelo Estado nacional. Ou, como observou Ivani Ferreira de Faria: Sem dúvida, esta iniciativa representa uma vitória dos povos indígenas do Rio Negro e de todo o Brasil na reconquista de seus direitos, de suas culturas e sua autonomia de poder decidir sobre o próprio futuro conforme seus códigos e linguagens e visão de mundo específicos. (FARIA, 2007, p. 57) 4. (IN)CONSTITUCIONALIDADE E (IN)COMPETÊNCIA: QUESTÕES FORMAIS SOBRE A LEI MUNICIPAL Nº 145/2002 Uma das questões levantadas com relação à lei objeto deste estudo diz respeito à competência do município, ou sua falta, para legislar sobre o assunto. A Constituição Federal relega à língua portuguesa, em seu art. 13, o status de idioma oficial da República Federativa do Brasil, contudo, em nenhum momento refere-se à língua portuguesa como única língua do país. A opção lógica pela língua portuguesa como idioma oficial de nosso Estado repousa no fato de que, por motivos históricos e políticos, a maioria da população nacional tem como primeira língua o idioma herdado de Portugal. As demais línguas faladas no território nacional, num total de quase 170, estão relacionadas a grupos diferenciados, habitantes de regiões específicas, como o caso de São Gabriel da Cachoeira, o que demanda uma atuação legislativa própria dos municípios, pois não parece ser de interesse da União, ou mesmo dos estados, legislar sobre o reconhecimento e mecanismos de difusão e utilização de línguas utilizadas em espaços tão pontuais, cuja complexidade das 280 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 280 12/11/2010 10:34:02 relações intersubjetivas pode ser melhor captada por normas produzidas a partir da vivência dos grupos que ali habitam. É possível visualizarmos uma lacuna quanto à competência constitucional para legislar sobre questões lingüísticas. Não há expressão neste sentido no Texto Maior, e a partir daí uma interpretação sistemática deve ser feita, utilizando-se de um exercício hermenêutico para preencher esta lacuna e chegar à competência municipal que permitiu ao legislativo de São Gabriel da Cachoeira promulgar a Lei nº 145/2002. Uma grande inovação visualizada no programa normativo constitucional foi a inclusão de um capítulo dedicado à cultura e, dentro dele, no art. 216, o reconhecimento dos bens imateriais portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira como constituintes do patrimônio cultural nacional, indo o constituinte originário ainda além, ao incumbir o Poder Público, com a colaboração da coletividade, do dever de promovê-los e protegê-los. Sob esse prisma, a língua como ferramenta essencial de comunicação e reprodução de modos específicos de criar, fazer, viver, conhecer o mundo e (re) conhecer(se), demanda proteção imediata e de mesma sorte que os próprios povos indígenas que as utilizam recebem, sob pena de, perecendo aquela, estes venham a perder o ponto básico de (auto) identificação como grupo diferenciado dos demais, o que tornaria letra morta tudo o quanto lhes fora reconhecido pela CF/88 em seu art. 231. Como forma de assegurar a continuidade da existência física e espiritual dos povos indígenas habitantes do município de São Gabriel, além de permitirlhes buscar a plenitude de suas potencialidades na realização de sua dignidade humana, o projeto de co-oficializar as línguas indígenas Nheêgatu, Baniwa e Tukano está de acordo com o art. 30, I, que prevê ser de competência dos Municípios legislar sobre assuntos de interesse local. Esse interesse fica ainda mais claro quando se toma conhecimento do fato que, de acordo com estimativas, entre 77% (BRUNO, 2007, p. 33) a 95% (OLIVEIRA G. M., 2007, p. 45) dos habitantes da “Terra das Línguas”, de um total de 40 mil, é composta por indígenas pertencentes a 23 diferentes etnias, e que grande parte destes indígenas é multilíngüe, dominando ao menos uma das três línguas co-oficializadas. Vale ressaltar que a língua portuguesa não sofreu alteração em seu status de oficialidade no Município. O que se fez, em verdade, foi ampliar o espaço de atuação política nas diversas instâncias – institucional, oficial e intersubjetiva – da vida de seus habitantes, ao reconhecer a existência de falantes de outras línguas e assegurar-lhes o direito de compreender e se fazer compreender a partir de seus modos peculiares de ser, criar, fazer e viver, expressados através de suas Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 281 281 12/11/2010 10:34:03 línguas próprias. Nas palavras do presidente do STF, Gilmar Mendes, “aos Municípios é dado legislar para suplementar a legislação estadual e federal, desde que isso seja necessário ao interesse local” (MENDES, COELHO, & BRANCO, 2008, p. 824). No caso, a legislação suplementar foi feita em face da Constituição Federal que somente delimitou uma situação geral, ao especificar a língua portuguesa como o idioma oficial do país, sem descer à regulamentação dos casos concretos e plurais das diversas realidades locais ao redor do Brasil. Além disso, o art. 23, III, CF/88 , aponta como competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios proteger, entre outras coisas, bens de valor cultural. Ora, como bem cultural de valor inestimável, diga-se de passagem, a língua de um povo pode e deve ser alvo de proteção municipal, especialmente quando silentes o Estado e a União a respeito do assunto. Ao reconhecer aos índios suas línguas , e não definir os parâmetros e limites dentro dos quais esse reconhecimento seria implementado, o legislador constituinte originário deixou uma permissão tácita para que a resolução fosse aplicada de acordo com o caso concreto, levando-se em consideração as características próprias da situação, e legislada por quem tivesse o interesse, no caso em estudo, o município de São Gabriel da Cachoeira. CONSIDERAÇÕES FINAIS A promulgação da Lei n.º 145/2002 no município de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, que co-oficializou as línguas indígenas Nheengatu, Tukano e Baniwa certamente representa uma mudança de paradigma na política estatal nacional e os precedentes inéditos abertos a partir deste ato registram-se como um marco na legislação infra-constitucional nacional ao colocar em prática a valorização da diversidade étnica e pluralística cultural. A partir de preceitos trazidos pela Constituição Federal de 1988, o reconhecimento estatal das práticas e modos de vida dos grupos diferenciados arma-os com uma série de ferramentas para a construção efetiva de sua dignidade humana, calcada na liberdade dos indivíduos e das coletividades em ser, criar, fazer e viver, a partir de suas próprias referências, nas quais se identificam e se reconhecem. Como visto ao longo do estudo, somente a partir de 1988, com a promulgação da nova Carta Magna, tornou-se possível pensar num pluralismo jurídico apto a abraçar as diferenças e, num movimento expansivo, habilitar o sistema 282 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 282 12/11/2010 10:34:03 jurídico pátrio a se abrir a novas formas de regulação do coletivo, tendo como ponto de referência essencial a realidade social, a partir de e em razão de quê existe. Essa transformação declara um fim, ao menos formalmente, a uma invisibilidade de toda a pluralidade cultural que não se alinhava aos padrões ocidentais, e aos povos indígenas em especial, que durante séculos serviu como moldura à atuação estatal em nosso país, como pudemos perceber através de uma breve leitura de passagens do Estatuto do Índio e do Código Civil de 1916. Em consonância com o reconhecimento e as garantias às culturas e modos de viver indígenas inscritos na CF/88, a Lei n.º 145/2002 do município de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, não poderia mostrar-se mais oportuna, demonstrando a preocupação do Município não só em legislar sobre um tema de extremo interesse e, portanto, competência local, como em fazer da letra de nossa Carta Maior uma construção viva e efetiva, e não mero grafismo vazio em um pedaço de papel. REFERÊNCIAS ALMEIDA, A. W. B. “Os movimentos indígenas e autoconsciência cultural.” In: ALMEIDA, A. W. B. (org). 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Inovação tecnológica e valoração econômica dos conhecimentos tradicionais associados. 3. Novos bens, novos sujeitos de direitos. 4. Campo científico e “definições legítimas”; Em resumo, para finalizar. Resumo. A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), de 1992, inaugurou um campo de debates acerca da proteção jurídica dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Os países signatários assumiram a responsabilidade realizar a a regulação jurídica dos conhecimentos de comunidades e povos tradicionais, inclusive os povos indígenas, que passaram a ser sujeitos de direitos econômicos, relativos à propriedade intelectual de seu patrimônio imaterial. Aqui, esse campo de debates é analisado a partir da teoria de Pierre Bourdieu, considerado um lugar de disputas em que agentes e agências interagem em relações de força e de dominação. O objetivo desse artigo é demonstrar a complexidade desse tema que reúne questões ambientais e econômicas, de direitos humanos e de propriedade intelectual, em torno dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Abstract. The Convention on Biological Diversity (CBD), in 1992, opened a field of discussion on legal protection of traditional knowledge associated with biodiversity. The signatory countries have taken the responsibility to promote in their territories the legal regulation of knowledge held by traditional communities and peoples, including indigenous peoples, who became subjects of economic rights related to intellectual property of their intangible heritage. Here, this field of debates is analyzed based on the theory of Pierre Bourdieu, considered a place of disputes in which agents and agencies interact in relations of power and domination. The aim of this paper is to demonstrate the complexity of this issue that brings together environmental and economic issues, human rights and intellectual property around the traditional knowledge associated to biodiversity. Palavras-chave: conhecimentos tradicio- Key-words: traditional knowledge; indigenais; povos indígenas; propriedade intelec- nous peoples; intellectual property; intangible heritage. tual; patrimônio imaterial. * Advogada. Pesquisadora do Núcleo Sociedades e Culturas Amazônicas (NCSA/CESTU/UEA), do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA) em Manaus, AM. Mestre em Direito Ambiental (PPGDA/UEA). Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 287 287 12/11/2010 10:34:03 1 APRESENTAÇÃO DO CAMPO A regulação jurídica do acesso e do uso de patrimônio genético e de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade é terreno de variadas disputas protagonizadas por uma multiplicidade de instituições e indivíduos, entidades governamentais, organizações não-governamentais, movimentos sociais, setores industriais e pesquisadores. Estar ciente dessa multiplicidade de agentes sociais, defensores de interesses da mesma forma diversos, consiste num dos pressupostos para a compreensão do processo de regulação jurídica em curso. Adoto a “teoria do campo” de Pierre Bourdieu como instrumento de análise desse processo e através dela pretendo esboçar a constituição desse espaço de lutas travadas no ambiente político em que se dá a discussão em torno da criação de normas jurídicas reguladoras do acesso e do uso de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Trata-se, portanto, de um campo político, que não exclui a interferência de outros campos, conforme a teoria de Bourdieu. A construção do campo se justifica, pois permite enxergar as diferentes posições e os limites de validade das diferentes tomadas de decisão (BOURDIEU, 2004, p. 45). O campo é um mundo social composto por agentes – indivíduos e instituições – os quais ocupam posições que dependem do seu capital simbólico. Os agentes desenvolvem estratégias que dependem elas próprias, em grande parte, dessas posições ocupadas (BOURDIEU, ibid., p. 29). Para o sociólogo, as relações estabelecidas no campo, caracterizam-se pela força e pela dominação. Tais relações são objetivas e dinâmicas e encontram-se desequilibradas, detidas conforme a medida do capital simbólico de que dispõe cada um dos agentes (ou agências). O campo é o lugar em que os agentes nele envolvidos encontram-se em posição de concorrência. A estrutura do campo num dado momento é determinada pela distribuição de capital simbólico (BOURDIEU, ibid, p. 22-24). Em sendo dinâmicas as relações que se estabelecem entre os agentes, as posições dos mesmos podem variar constantemente. Tudo é relacional. Aliás, para Bourdieu, no conjunto que constitui o sistema de desvios e desníveis que caracteriza o campo, as agências e os agentes nada produzem senão relacionalmente, por meio do jogo de oposições e distinções (BOURDIEU, 2007, p. 179) Bourdieu identifica variados tipos de campos, como universos particulares em que os agentes produzem, reproduzem e difundem princípios e regras específicas. Os campos científico, artístico, literário, jurídico, político, econômico, intelectual, dentre outros, são assim, espaços regidos por regras próprias. O campo deste modo entendido constitui um microcosmo inserido no 288 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 288 12/11/2010 10:34:03 macrocosmo (o conjunto da sociedade), com o qual mantém relativa autonomia (BOURDIEU, 2004, p. 20). No campo político, são gerados produtos políticos, problemas, programas, análises, comentários, conceitos e acontecimentos, cuja compreensão exige do político uma preparação especial. De acordo com Bourdieu, em primeiro lugar, ele precisa adquirir um corpus de saberes específicos, composto por teorias, problemáticas, conceitos, tradições históricas e dados econômicos, que são produzidos e acumulados pelo trabalho político dos profissionais do presente e do passado. O domínio de certa linguagem e de certa retórica política, para as ocasiões de tribuna e de debate, também faz parte desse conjunto de saberes necessários para a atuação no campo. Essas competências técnicas também compõem o capital simbólico do agente (BOURDIEU, 2007, p. 169). O campo político é o lugar de concorrência pelo poder que se faz por intermédio de uma concorrência pelo monopólio do direito de falar e de agir em nome de uma parte ou da totalidade de representados. É o espaço em que aparecem os representantes, os delegados e os mandatários, destinatários de poderes outorgados pelo grupo representado e que fazem esse grupo existir no campo político, uma vez que o personifica (BOURDIEU, 2005, p. 77). Para Bourdieu, nos espaços mediados, os cidadãos comuns (que ele denomina “profanos”) estão reduzidos à condição de “consumidores” dos produtos políticos gerados pelos profissionais, afastados que estão do lugar de produção política. Para ele, o porta-voz - que também chama de mediador ou delegado -, apropria-se não só da palavra desse grupo mas, na maioria dos casos, do seu silêncio (BOURDIEU, 2007, p. 185). A questão da mediação e da representação é essencial no estudo sobre o que se pode entender hoje em dia por participação de povos e comunidades tradicionais nesse campo político. Assim, na tentativa de esboçar uma descrição do campo em que se discute a regulação jurídica do conhecimento tradicional associado, destaco primeiramente, as agências do Estado. Inúmeras agências governamentais estão nele presentes, a exemplo dos órgãos diretamente vinculados ao poder executivo federal, os ministérios e a Casa Civil da Presidência da República, as entidades vinculadas ao governo federal com finalidades específicas, como o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA/MCT) e a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ/MS), dedicados à pesquisa científica. Ainda vinculado à Administração federal, destaca-se o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), voltado para a política de propriedade intelectual e a SUFRAMA, superintendência fomentadora da Zona Franca de Manaus que administra o Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA), em Manaus. Dentre as agências governamentais estaduais no Amazonas, não se pode deixar de destacar a recém-extinta Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 289 289 12/11/2010 10:34:03 Fundação Estadual dos Povos Indígenas do Amazonas (FEPI), voltada para a elaboração e execução de políticas indigenistas no estado e hoje substituída por uma secretaria estadual. Tem ainda relevo a atuação da Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia (SECT) e da Fundação de Amparo à Pesquisa no Amazonas (FAPEAM), no que diz respeito ao fomento à ciência e à tecnologia. Essa fundação também é responsável pelo programa de bolsas de estudos a alunos indígenas. Juntamente com a Universidade do Estado do Amazonas, a FAPEAM está envolvida na formação de estudantes indígenas, com o objetivo de proteção da cultura e dos saberes dos diversos povos que compõem a população do Amazonas. Todos os órgãos e entidades mencionados têm adotado políticas de valorização da inovação tecnológica, especialmente na área da biotecnologia. Fora do âmbito governamental, os agentes e agências são ainda mais numerosos e diversos. O setor da indústria biotecnológica dedicada à produção de alimentos, de cosméticos e de fármacos é controlado por grandes empresas. Elas dominam os mercados de produtos e processos com destinação específica, obtidos através de aplicação tecnológica com a utilização de sistemas biológicos, organismos vivos ou derivados (Convenção sobre Diversidade Biológica - CDB, art. 2). Nesse contexto, as implicações da regulação jurídica sobre o exercício da propriedade intelectual, especialmente as patentes, despertam grande interesse do setor industrial. O setor acadêmico também faz parte desse campo político, composto por agentes vinculados às instituições de ensino e pesquisa. No Estado do Amazonas, destacam-se as universidades públicas federal e estadual, UFAM e UEA, respectivamente, sendo que esta possui programa de formação e de educação indígena, e as faculdades privadas, como a FUCAPI, que oferecem cursos em biotecnologia. O INPA, já mencionado, tem sede em Manaus e na condição de instituto nacional de pesquisa, vinculado ao Ministério de Ciência e Tecnologia, tem sua missão voltada para os interesses do Estado brasileiro na Amazônia. As organizações da sociedade civil distinguem-se enormemente entre si. Assumem posição de relevância as grandes ONGs socioambientais, como a ACT-Brasil, ramificação da Amazon Conservation Team (ACT), dos Estados Unidos, e o Instituto Socioambiental (ISA), experiente em trabalhos e pesquisas junto a povos e organizações indígenas . Destaca-se nesse campo uma organização não-governamental indígena especializada em assessoria técnica sobre propriedade intelectual a povos indígenas, qual seja, o Instituto Indígena Brasileiro para a Propriedade Intelectual (INBRAPI). As mobilizações e as formas organizativas de que se utilizam os povos indígenas e as comunidades tradicionais para a defesa de seus interesses também 290 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 290 12/11/2010 10:34:03 são diversificadas. Esses agentes sociais têm reafirmado a sua diferença cultural e étnica perante os outros grupos sociais e lutado em favor da garantia do seu modo de vida através da mobilização social. Na Amazônia, além dos indígenas, os piaçabeiros, as quebradeiras de coco babaçu, os pescadores e os quilombolas, entre tantos outros, constituem grupos humanos diferenciados que se autodenominam tradicionais . O Amazonas possui a maior população indígena do país e nesse estado estão sediadas importantes organizações de representação política, como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), de âmbito regional e a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), de âmbito estadual, com sede em São Gabriel da Cachoeira (AM). Todas essas agências brevemente apresentadas estão posicionadas no campo político em que se discute a regulação jurídica do conhecimento tradicional associado à biodiversidade. Os povos indígenas brasileiros estão muito longe de constituir uma população homogênea. O direito à diversidade cultural e à pluralidade étnica tem sido encarado como uma das faces do direito à dignidade humana (SHIRAISHI NETO, 2008) e vem sendo afirmado reiteradamente no discurso do movimento indígena, amparado por documentos internacionais de direitos humanos. A despeito da diversidade de agentes sociais indígenas e da diversidade das formas organizativas que eles adotam para mobilizar-se na luta por direitos, há um consenso aparente no discurso do movimento indígena acerca dos posicionamentos em torno da regulação jurídica dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Esse discurso é dinâmico e, uma vez caracterizado por relativa flexibilidade, cria as condições de força para o embate com os outros agentes que se encontram no campo. Para Miaille, os discursos são produzidos pelos homens com o fim de realizar uma comunicação social e compreender os fenômenos que os envolvem e os assaltam. O autor entende por discurso “um corpo coerente de proposições abstratas implicando uma lógica, uma ordem e a possibilidade não só de existir mas, sobretudo, de se reproduzir, de se desenvolver, segundo leis internas à sua lógica. Este discurso diz-se abstrato no sentido em que é formulado com noções ou conceitos e graças a métodos de raciocínio, todos eles marcados pela abstração” (MIAILLE, 1994, p. 33). Segundo o autor, múltiplos são os discursos que coexistem. Sobrepõem-se e competem entre si no seio da sociedade. Assim, estamos cotidianamente sujeitos à influência de diversos discursos: religioso, filosófico, científico, econômico e ambiental. Esses discursos se articulam uns com os outros, de modo que não é possível traçar nenhuma fronteira entre eles. A par dessa multiplicidade, Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 291 291 12/11/2010 10:34:03 no entanto, cada discurso teria, para Miaille, uma vocação hegemônica, ou seja, uma “vocação para falar de tudo, para dar uma interpretação global da vida social” (MIAILLE, ibid. p. 33). É de se observar que os discursos não se separam rigorosamente entre si. Há sobreposições e interseções entre os mesmos. O que o autor pretende dizer é que não há discurso exclusivamente político, religioso ou econômico, mas que os discursos se interpenetram, mantendo, no entanto, uma certa “vocação hegemônica”, que serve como fator de aglutinação de opiniões em torno de uma causa. A separação apenas é válida aqui para esclarecer o que Miaille compreende por discurso: um conjunto de proposições abstratas, vinculadas por uma determinada coerência e lógica interna. Aqui o discurso é entendido como uma expressão de um grupo ou setor da sociedade. No entanto, adoto aqui um conceito mais abrangente, concebido por Michel Foucault, para quem o discurso consiste num jogo estratégico. O discurso não é apenas aquilo que se traduz nas falas e nas expressões, as lutas ou os sistemas de dominação, mas confunde-se com o próprio poder. Cada agente ou agência almeja a hegemonia do seu discurso no campo político (FOUCAULT, 1996, p. 10). Bourdieu alega que a força de um discurso depende menos das suas propriedades intrínsecas do que da força mobilizadora que ele exerce. Quer dizer com isso que a força de um discurso depende mais da medida que ele é reconhecido por um grupo numeroso e poderoso do que propriamente de seu conteúdo. A força do discurso é atribuída conforme o seu poder de mobilização, legitimada de acordo com o maior número de pessoas que nele se reconhecem (BOURDIEU, 2007, p. 183). Estamos tratando de um campo político em que se discute a regulação jurídica de uma categoria recente de bens jurídicos, os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Aqui, a CDB é considerada um rito de passagem dos saberes tradicionais para o mundo jurídico: uma passagem da condição de folclore , de “patrimônio da humanidade” ou de um conhecimento de domínio público, para a condição de informação , bem imaterial com potencial econômico. Ocorre que as tentativas de enquadrar esse novo bem ao sistema de propriedade intelectual, como se imaginou em princípio, parece ensejar muito mais problemas que soluções. O Estado representado pelas suas agências ocupa lugar privilegiado nesse campo político. Ele é possuidor de um “metacapital” e assume a posição de maior concentração e exercício do poder e da violência simbólicos (BOURDIEU, 1997, p. 107). O Estado é o produtor do direito e conta com este instrumento para exercer a dominação. Nas palavras de Bourdieu: 292 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 292 12/11/2010 10:34:03 O Estado é resultado de um processo de concentração de diferentes tipos de capital, capital de força física ou de instrumentos de coerção (exército, polícia), capital econômico, capital cultural, ou melhor, de informação, capital simbólico, concentração que, enquanto tal, constitui o Estado como detentor de uma espécie de metacapital, com poder sobre os outros tipos de capital (que vai junto com a construção dos diversos campos correspondentes) leva, de fato, à emergência de um capital específico, propriamente estatal, que permite ao Estado exercer um poder sobre os diversos campos e sobre os diferentes tipos específicos de capital, especialmente sobre as taxas de câmbio entre eles (e, concomitantemente, sobre as relações de força entre seus detentores). Segue-se que a construção do Estado está em pé de igualdade com a construção do campo do poder, entendido como o espaço de jogo no interior do qual os detentores de capital (de diferentes tipos) lutam particularmente pelo poder sobre o Estado, isto é, sobre o capital estatal que assegura o poder sobre os diferentes tipos de capital e sobre sua reprodução (notadamente por meio da instituição escolar) (BOURDIEU, 1997, p. 99). Esse mesmo Estado, além da função de regulador, de produtor de normas jurídicas vinculantes, é também interventor na economia, tomando medidas de estímulo, de correção e de controle da economia de mercado. Aliás, desde o surgimento da chamada sociedade de mercado no século XVIII, a manutenção da mesma depende da intervenção estatal (POLANYI, 1980). A seguir, apresento uma breve descrição do contexto econômico em que se dá o processo atual de regulação jurídica dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, no qual o Estado aparece como um “acelerador” da economia. 2 INOVAÇÃO TECNOLÓGICA E VALORAÇÃO ECONÔMICA DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS Na década de 80, as imagens de desmatamento acelerado da Amazônia alarmaram o mundo todo . As queimadas representavam a perda da riqueza biológica da floresta tropical antes mesmo que ela fosse estudada e conhecida. Segundo Laymert Garcia Santos, os especialistas - biólogos, botânicos e zoóloHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 293 293 12/11/2010 10:34:03 gos – passaram então a advertir que, além dos valores científico, estético e ético da biodiversidade, sua perda afetava imediatamente o bem-estar material das pessoas em toda parte. Dessa forma, foi construída a idéia da utilidade da biodiversidade. Segundo o autor, uma dessas “utilidades” dizia respeito às possibilidades de tornar a floresta uma fonte de riqueza farmacológica, tendo em vista que um quarto dos produtos vendidos nas farmácias é fabricado a partir de materiais extraídos de plantas tropicais. Assim, nas palavras do sociólogo, “a ênfase no valor medicinal da biodiversidade tornou-se uma constante nas advertências dos experts” (SANTOS, 2006, p. 18). A discussão atual sobre conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade no Brasil e no mundo tem priorizado como objeto aqueles conhecimentos que interessam principalmente às indústrias farmacêutica, cosmética e alimentícia, conhecimentos que são passíveis de geração de patentes para essas indústrias. Nesse contexto, os saberes dos pajés e dos xamãs sobre plantas de cura e de efeito terapêutico passam a ser “informações que se tornam mercadorias num circuito de trocas. De fato, o exemplo mais difundido de utilização dos conhecimentos tradicionais associados é o farmacológico, que se tornou senso comum nos diversos discursos que tratam desse tema. Um resultado da CDB foi a mudança sensível no tratamento jurídico dos conhecimentos tradicionais, na medida em que atribui aos “conhecimentos, inovações e práticas” o status de bem jurídico. A partir da CDB, os conhecimentos tradicionais associados passaram a ser vistos e reconhecidos como parte do patrimônio cultural imaterial de povos e comunidades tradicionais. Assim, os conhecimentos tradicionais, de um modo geral, antes encarados como expressão folclórica e de domínio público, foram transformados em bem jurídico, com todas as implicações dessa “passagem”, principalmente econômicas. A esse respeito, observa Rezende que, até poucas décadas atrás, a polêmica sobre os conhecimentos tradicionais eram travadas em entidades como a ONU e a OMC “sob a eurocentrista denominação de folklore” (REZENDE, 2006, p. 9). Nesse sentido, é de se observar ainda que o Comitê Intergovernamental especializado para tratar de patrimônio genético e conhecimentos tradicionais associados na OMPI é denominado “Comitê Intergovernamental sobre Propriedade Intelectual e Recursos Genéticos, Conhecimentos Tradicionais e Folclore”. Com a CDB, tanto o patrimônio genético quantos os saberes a ele relacionado são tratados como recursos, integrados à dinâmica do mercado. A lógica da repartição de benefícios é a da permuta: se esses grupos tradicionais contribuem com seus saberes para alcançar os objetivos traçados na Convenção, quais sejam, a “conservação da biodiversidade” e a “utilização sustentável de seus componentes”, nestes incluídos os recursos genéticos, são-lhes atribuídos 294 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 294 12/11/2010 10:34:03 direitos de receber benefícios decorrentes dessa contribuição. Um dos pontos mais polêmicos acerca da repartição de benefícios diz respeito às condições de sua realização. Como já foi sublinhado, preconiza a CDB que ela deve ser “justa e equitativa”. Não se pode perder de vista que tanto a repartição de benefícios quanto o consentimento prévio fundamentado, elementos condicionantes da legalidade do acesso e do uso de conhecimentos tradicionais associados, vêm sendo pensados segundo a lógica do contrato no sistema de propriedade intelectual. O contrato está pautado por um conjunto de normas jurídicas criadoras de artificialidades que atende aos anseios das sociedades de mercado do capitalismo global. Seguindo o pensamento de Polanyi, Sádaba lembra que a terra, o trabalho e o dinheiro, após serem transformados em mercadorias fictícias, foram coisificados sob relações técnicas e impessoais de forma que todo o seu rastro social foi ocultado, no fenômeno denominado por Marx de fetichização da mercadoria (SÁDABA, p. 79, 2008). Os saberes tradicionais estão sendo enquadrados no sistema jurídico de propriedade intelectual, implicitamente como resultado do trabalho intelectual coletivo de povos indígenas e comunidades tradicionais, capazes de traduzir-se em inovação tecnológica. O Brasil, assim como outros países capitalistas, seguiu o padrão norteamericano no qual o Estado assume a responsabilidade de fomentar a pesquisa básica, considerada aquela sem fins econômicos . O constituinte de 1988 dedicou capítulo exclusivo à ciência e tecnologia, destacando o papel prioritário do Estado na produção de ciência básica (art. 218, caput e parágrafos). Ainda de acordo com essa divisão do trabalho cientifico, às corporações, ou empresas, caberia realizar o desenvolvimento tecnológico. No momento atual, o fomento estatal da inovação tecnológica tem ensejado a formação de inúmeras parcerias entre agências estatais brasileiras e organizações produtivas para a geração de inovações tecnológicas. Inovação é uma categoria definida pela Lei n. 10.973/04, conhecida como Lei da Inovação. Pela definição legal, consiste na “introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo ou social que resulte em novos produtos, processos ou serviços” (art. 2º, inc. IV). Essa idéia de inovação, portanto, corresponde à novidade aplicada ao ambiente produtivo, cujo resultado se apresenta no mercado sob a forma de produtos ou processos. A Lei de Inovação é uma iniciativa estatal que tem a finalidade de aproximar a academia do setor produtivo. O instrumento legal pretende coordenar os esforços das Instituições Científicas e Tecnológicas (ICTs) e das empresas, através do estabelecimento de regras para o desenvolvimento tecnológico Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 295 295 12/11/2010 10:34:03 conjunto, o que envolve a disciplina da distribuição de benefícios e das porcentagens relativas ao uso de inovações tecnológicas resultantes dessa parceria. Segundo o discurso estatal, a lei visa estimular as pesquisas tecnológicas conjuntas, aproveitando a grande quantidade de recursos humanos especializados encontrados nas universidades brasileiras, que constituem um capital intelectual não convertido em desenvolvimento tecnológico. Dessa forma, mais do que nunca, o produto da ciência parece estar cada vez mais inserido no circuito das trocas de mercado, na forma de tecnologia. Além das ICTs, são relevantes nesse processo as entidades de fomento a elas vinculadas, quais sejam, as fundações públicas responsáveis pelo financiamento de projetos e apoio de iniciativas de pesquisa científica e tecnológica, como FINEP, CAPES e CNPq. Em todo o Brasil, realizam-se encontros e fóruns de discussão sobre propriedade intelectual e inovação, com o apoio de entidades e órgãos estatais, federais e estaduais, a exemplo do FORTEC, dos eventos da REPICT e dos seminários da Rede Norte de Propriedade Intelectual, Biodiversidade e Conhecimento Tradicional (Rede Norte PIBCT) . Tem-se, nesses encontros, a construção do que é designado por “ideologia da inovação” (SÁDABA, ibid., p. 85). Consciente do potencial econômico das suas reservas biológicas, vistas como provedoras de matéria-prima da promissora indústria biotecnológica, o governo federal brasileiro declarou a biotecnologia como área de especial interesse nacional, colocando-a em posição de destaque no Plano de Aceleração do Crescimento do Brasil (PAC), lançado em janeiro de 2007 . A regulação jurídica do acesso e uso de recursos genéticos e de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade aparece como medida legislativa prioritária no Plano de Ciência, Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Nacional (PCT&I). O interesse crescente pelo desenvolvimento da biotecnologia no contexto do PAC se faz sentir principalmente na Amazônia. O Brasil possui o território mais extenso coberto pela floresta amazônica, considerada o reservatório natural mais importante do mundo . O Decreto federal n. 6.041/2007 dá suporte jurídico ao PCT&I instituindo a Política de Desenvolvimento da Biotecnologia . Essa visão é refletida também na política pública estadual do Amazonas. O estado tem a peculiaridade de apresentar a maior extensão territorial de floresta amazônica no país, possuindo mais de 90% de cobertura vegetal. Além da riqueza natural representada pela diversidade biológica, o Amazonas também abriga enorme diversidade social e, portanto, cultural. Aqui vivem diversos povos indígenas e comunidades tradicionais, com modos de vida próprios, culturalmente diferenciados. O estado possui a maior população indígena do Brasil: são 296 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 296 12/11/2010 10:34:03 aproximadamente 130.000 indivíduos de 62 povos de etnias distintas, falando 11 línguas nativas. O Amazonas também foi o primeiro estado brasileiro a editar uma lei estadual de inovação tecnológica. Os esforços do governo federal e estadual em parceria para o desenvolvimento da biotecnologia têm se concentrado recentemente na implantação de política industrial voltada à produção de biocosméticos com matéria-prima amazônica no Pólo de Manaus . Essas iniciativas têm movimentado não apenas as indústrias de cosméticos locais e regionais, inclusive com a realização de feiras de exposições, mas também provocado a criação de cursos técnicos e universitários em áreas que envolvem biotecnologia, como a cosmetologia. Observa-se que os recursos genéticos e os conhecimentos tradicionais associados estão no centro das discussões sobre o desenvolvimento tecnológico do país. A Convenção sobre Diversidade Biológica reconhece os “conhecimentos, inovações e práticas” dos povos indígenas e comunidades tradicionais e lhes atribui direitos coletivos sobre esse patrimônio cultural imaterial. A referência às inovações realizadas por povos e comunidades tradicionais pode indicar uma relativização do preconceito histórico contra os povos indígenas e comunidades tradicionais acerca da sua capacidade inventiva. Além disso, essa classificação dos saberes tradicionais indica que a “tradicionalidade” de que se fala não é estática, mas refere-se a uma situação dinâmica que coaduna com a idéia de inovação. Porém, considerando o caráter econômico da convenção internacional, vale lembrar que esse reconhecimento tem o objetivo de aproximar as inovações dos grupos tradicionais da inovação tecnológica almejada pelo capitalismo, objeto de proteção jurídica através do sistema de propriedade intelectual. Nesse sentido, novos sujeitos de direitos surgem a partir da CDB como proprietários em potencial, em decorrência do surgimento de novos bens jurídicos no sistema capitalista global. Com a discussão sobre a regulação jurídica dos conhecimentos tradicionais associados, esses novos sujeitos coletivos de direitos, como os povos indígenas, passam a lutar por um lugar no campo político através de suas representações. 3 NOVOS BENS, NOVOS SUJEITOS DE DIREITOS As imagens dos sujeitos e dos povos indígenas feitas pela sociedade nãoindígena, ainda hoje, são permeadas de diversos preconceitos e ainda remetem ao “índio” selvagem, primitivo, e além de tudo, genérico . A legislação indigenisHiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 297 297 12/11/2010 10:34:03 ta ao longo do século XX contribuiu para a construção dessa imagem, evidenciando a situação de tutela oficial dos sujeitos indígenas até a Constituição de 1988. Comunidades e povos tradicionais, nos seus modos particulares de viver, concebem idéias inovadoras e produzem invenções, resultados do intelecto, frutos da observação e da experimentação, ainda que não voltadas para a aplicação industrial ou para o mercado. No entanto, a capacidade inventiva dos grupos tradicionais e dos povos “primitivos” foi reiteradamente negada pela história e pelo próprio direito. Suas inovações foram, por muito tempo, negligenciadas e vistas como meras descobertas provocadas pelo acaso. Para o jurista Tinoco Soares, apenas o homem “civilizado” poderia ser um gênio. Em seu livro intitulado Tratado de Propriedade Industrial, de 1998, o autor apresenta sua visão acerca da inventividade humana desde a pré-história: A princípio, portanto, o homem nada mais fez do que “descobrir”, ou melhor, apenas e tão-somente encontrar para consumir, utilizar ou mesmo adaptar. Ao depois, combinando uns e outros elementos foram resultando outros tantos que nada mais eram do que, ainda, “descobertas”, posto que concernentes ao simples fruto do acaso, uma vez que não havia nada em profundidade ou mesmo sob criteriosa investigação (SOARES, 1998, p. 46). Soares afirma que o século XVII marca o começo da “ciência moderna”, “que só então entra no caminho verdadeiro, servida por uma série de homens eminentes, de autênticos gênios” (SOARES, ibid., p. 32). Assim, sob o seu ponto de vista, apenas a “ciência moderna” era capaz de produzir invenções: Quando, no entanto, a pesquisa, o ensaio, o teste, chegava a um resultado prático, pela junção de elementos conhecidos ou não, estava realizada a sua “invenção”. Esta, depois de feita em pequenas, médias ou grandes quantidades, possibilitava a introdução de melhoramentos, inovações ou aperfeiçoamentos (SOARES, 1998, p. 47). Lévi-Strauss discorda veementemente da idéia do jurista, para quem “ao homem moderno estariam reservadas as fadigas do trabalho e as iluminações do gênio” (SOARES, ibid, p. 47). Para ele, a explicação do nascimento das invenções já feitas pelo acaso é, no mínimo, preguiçosa. Lembra que comumente é encontrada nos tratados de etnologia a noção de que o homem teria vivido primeiramente numa espécie de “idade de ouro tecnológica”, em que as inven298 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 298 12/11/2010 10:34:03 ções eram colhidas com a mesma facilidade que os frutos e as flores. Segundo Lévi-Strauss, esses tratados atribuem, por exemplo, o conhecimento do fogo ao acaso do raio ou ao incêndio na mata; e a origem da cerâmica ao esquecimento da bola de argila perto do forno (LÉVI-STRAUSS, 1976, p. 352). Para o antropólogo, tal forma de excluir o ato inventivo desses grupos, oculta a complexidade dos procedimentos indispensáveis à fabricação de utensílios desde a pré-história, que envolve a necessidade de conhecimento vasto de um conjunto de noções variadas sobre o ambiente, bem como sobre os materiais e os processos mais adequados . Lévi-Strauss argumenta que nenhum período ou cultura é absolutamente estacionário em termos de invenções técnicas. “Todos os povos possuem e transformam, melhoram e esquecem técnicas suficientemente complexas para permitir-lhes dominar seu meio; sem o que já teriam desaparecido há muito tempo” (LÉVI-STRAUSS, ibid., p. 357). As “comunidades locais” e as “populações indígenas” com “estilo de vida tradicional” aparecem como sujeitos de direitos relacionados ao seu patrimônio imaterial coletivo na Convenção sobre Diversidade Biológica em 1992. No entanto, até então, desde a assinatura da Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial em 1883, os povos indígenas e as comunidades tradicionais jamais figuraram como sujeitos de direitos de caráter econômico nos tratados, acordos e convenções internacionais sobre propriedade intelectual. Seus conhecimentos foram sempre considerados de domínio público e por essa razão não ensejavam direitos de propriedade intelectual sobre produtos ou processos industriais obtidos a partir deles. Caldas entende que são esses “novos bens”, ou seja, o patrimônio genético e os conhecimentos tradicionais associados, que condicionam a abertura do sistema jurídico para “novos sujeitos”. A autora ressalta que o fato de as comunidades tradicionais passarem à posição de sujeitos de direito implica na possibilidade de que elas passem a manter relações jurídicas como titulares de direitos, ou seja, como proprietárias, podendo dispor de bens como lhes aprouver (CALDAS, 2001, p. 5). Assim, para Caldas, ao contrário do que se poderia supor, a construção de novos bens jurídicos antecede, lógica e cronologicamente, a constituição de um novo sujeito de direito (CALDAS, ibid., p. 81). Nas palavras da jurista, A ‘descoberta’ tardia da contribuição das comunidades tradicionais na preservação, conservação e utilização sustentável da biodiversidade e, principalmente, a comprovação do potencial do conhecimento tradicional destas comunidades para utilizações terapêuticas e medicinais, vão Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 299 299 12/11/2010 10:34:04 ser olhadas pelo mercado como mais uma possibilidade de exploração comercial e obtenção de lucros. De um momento para o outro, portanto, os saberes de comunidades e povos ancestrais tornaram-se mercadoria. Mediante um esforço teórico e legislativo de adaptação, redimensiona-se o sistema jurídico para que essas mercadorias tornem-se bens jurídicos passíveis de regulação segundo o sistema proprietário (CALDAS, Ibid., p. 4) Seguindo esse pensamento, Shiraishi Neto e Dantas asseveram que, para o direito moderno , o “sujeito de direito” é o centro das relações privadas, vinculado à idéia de contrato e de propriedade privada. Ser sujeito de direito significa poder adquirir e vender, inclusive a sua força de trabalho a outro sujeito de direito. Os autores ratificam o pensamento de Edelman, para quem a ideologia jurídica nasce postulando que o homem é um sujeito de direito, ou seja, um proprietário em potencial, visto que é de sua essência apropriar-se da natureza (EDELMAN, 1976, p. 25). Para esses professores, mesmo sendo atribuída às “populações indígenas” e “comunidades locais” a condição de “novos” sujeitos de direito, isso não implica num novo tratamento jurídico desses grupos enquanto sujeitos coletivos, em face das suas peculiaridades culturais e sociais (SHIRAISHI NETO & DANTAS, 2008, p. 63). Para Edelman, o contrato surge como o instrumento privilegiado da dominação capitalista, porque designa a mercantilização do homem enquanto objeto de direito (EDELMAN, 1976, p. 70). Com a transformação da atividade criadora do artista ou do inventor em trabalho intelectual, submetido à lógica da propriedade intelectual, a personalidade do homem passaria a sujeitar-se a um contrato. É pertinente a afirmação dos professores Shiraishi Neto e Dantas, referenciando Oliveira, quando lembram que, na atualidade, estamos vivendo uma “nova” forma de conquista do capital, ou melhor, uma “reconquista”, cuja palavra chave é a biodiversidade e o conhecimento tradicional a ela vinculado. Para eles, é um dado “novo” para o direito que os povos e comunidades tradicionais apareçam como protagonistas do processo de uso sustentável da diversidade biológica. As conseqüências desse fato vão sendo percebidas no desenrolar do processo de apropriação dos conhecimentos tradicionais associados pelo capital (SHIRAISHI NETO & DANTAS, 2008, p. 58-60). No que diz respeito aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, a Convenção sobre Diversidade Biológica refere-se aos povos e comunidades tradicionais como detentores dos seus saberes. No caput do artigo 9º da Medida Provisória n. 2186-16/2001, os povos e comunidades tradicionais 300 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 300 12/11/2010 10:34:04 também aparecem como detentores do conhecimento tradicional associado. Um pouco adiante, no inc. III do mesmo artigo da MP, afirma-se que os grupos tradicionais são titulares do conhecimento tradicional associado. No entanto, o artigo 8º parágrafo 2º da Medida Provisória estabelece que “o conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético (...) integra o patrimônio cultural brasileiro e poderá ser objeto de cadastro”. Para Caldas a postura da Medida Provisória é oscilante e seus dispositivos contraditórios, já que, de um lado, proclama o direito das comunidades e povos tradicionais sobre seus saberes e, de outro, estabelece que tais conhecimentos integram o patrimônio cultural brasileiro, podendo inclusive ser objeto de cadastro. Nesse último dispositivo, a mensagem implícita é a de que o Estado tem o poder cadastrar os conhecimentos tradicionais associados independentemente do consentimento dos “detentores” (CALDAS, 2001, p. 164). Posicionando-se contrariamente a tal entendimento, o Instituto Indígena Brasileiro para a Propriedade Intelectual (INBRAPI) elaborou parecer técnico no sentido de que os povos indígenas devem ser consultados sobre a conveniência de se criarem e manterem bancos de dados sobre os seus conhecimentos tradicionais. De acordo com o Código Civil brasileiro, detentor é “aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas” (art. 1.198). Esse, porém, não é o sentido que os indígenas esperam da norma jurídica que disciplina o acesso e o uso de seus conhecimentos. Os povos indígenas, por meio de seus representantes, vêm reafirmando-se proprietários de seus saberes e exigindo que esse reconhecimento seja expresso na legislação que ora se discute. Nesse sentido manifesta a Declaração do Rio Negro , item 2: Discordamos da utilização das expressões detentores e possuidores de conhecimentos tradicionais em referência aos povos indígenas. O projeto de lei deve reconhecer que somos titulares dos conhecimentos tradicionais que integram nossas culturas. Nesse sentido, queremos a alteração do artigo 5º do projeto para incluir uma disposição reconhecendo nosso domínio sobre nossos saberes, inovações e práticas, nos termos do caput do artigo 42, cujo inciso I deverá incluir o direito dos povos indígenas de dispor dos nossos conhecimentos, inovações e práticas, inerente aos direitos que um titular pode exercer sobre o bem que lhe pertence (Declaração do Rio Negro. 03/12/2007). O pleito do movimento indígena, nesse caso, é pelo reconhecimento de direitos reais sobre o conhecimento, agora transformado em bem jurídico. Na Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 301 301 12/11/2010 10:34:04 Declaração do Rio Negro, acima citada, os signatários indígenas exigem o reconhecimento da faculdade de usar, gozar e dispor de seus conhecimentos, e o direito de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua ou detenha, como preceitua o artigo 1228 do Código Civil Brasileiro. A propriedade, juntamente com a posse, compõem as titularidades, um dos institutos fundamentais do Direito Civil. Elas são disciplinadas pelos Direitos das Coisas que, segundo Gomes, “regula o poder dos homens sobre os bens e os modos de sua utilização econômica (GOMES, 2004, p. 7-8). O direito de propriedade é o mais amplo dos direitos reais. Ser proprietário, pelo Código Civil, é exercer poderes sobre determinadas coisas, dentro dos limites legais, dos quais se destacam os relativos à função social da propriedade. Gomes define o direito de propriedade como “um direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei” (GOMES, ibid., p. 109). Ensina o mesmo autor civilista que o objeto do direito de propriedade deve ser um valor econômico materializado e individualmente determinado (GOMES, ibid., p. 113). O conhecimento tradicional associado à biodiversidade, nesse contexto, assume um potencial econômico de acordo com a lógica da propriedade. A partir da noção de trabalho como mercadoria fictícia, pode ser remunerado na condição de informação resultante de uma atividade intelectual. O discurso do movimento indígena se apropria dessa noção de propriedade ao reivindicar o cumprimento dos seus direitos e a participação de seus representantes nas decisões pertinentes à proteção dos conhecimentos tradicionais associados. 4 CAMPO CIENTÍFICO E “DEFINIÇÕES LEGÍTIMAS” Um campo científico se impõe ao campo político nas discussões em torno da regulação jurídica dos conhecimentos tradicionais associados. É possível notar a existência de uma divisão do trabalho científico nesse processo, caracterizada por tensões entre formações acadêmicas que disputam as “definições legítimas”, especialmente no âmbito do CGEN . Segundo o pensamento de Bourdieu, o objeto da ciência é a concorrência pelo monopólio da divisão legítima, e as relações de concorrência que se estabelecem, no campo intelectual ou científico, também pertencem ao domínio da ciência (BOURDIEU, 1968, p.111). Um aspecto dessa complexidade que caracteriza os atos de participar de uma discussão sobre esse tema, diz respeito às implicações da língua e da lin302 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 302 12/11/2010 10:34:04 guagem da norma, especialmente quando os sujeitos de direitos e obrigações consagrados por essa norma são sujeitos indígenas. Na pesquisa junto ao CGEN, ficou flagrante a ostensiva preocupação por parte dos conselheiros de deliberar com o máximo de segurança jurídica (DOURADO, 2009). A segurança jurídica aparece condicionada à total clareza dos “conceitos” da legislação e, muitas vezes, enseja a normatização de mais noções operacionais. Esta necessidade dos conselheiros movimenta diversos pareceres jurídicos, principalmente da Advocacia Geral da União (AGU) que, provocada pelos órgãos do poder executivo, “dá a última palavra” sobre as dúvidas e dissensos em torno da legislação vigente relativa ao acesso e ao uso de patrimônio genético e de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, constituída atualmente de atos normativos do Poder Executivo. As definições de termos inscritas na legislação são, supostamente, baseadas em estudos científicos disponíveis à época da elaboração da norma. Diferentes textos legais definem termos com base nos princípios da antropologia, da biologia, da geografia e de outras áreas do conhecimento. Essas definições têm o objetivo de operacionalizar a norma, além de definirem seu escopo. Em sua dissertação de mestrado, Andressa Caldas observa que os conceitos e as classificações jurídicas são instrumentos construídos - portanto artificiais, arbitrários, particulares e historicamente determinados (CALDAS, 2001, p. 70) Definições de expressões como “comunidade tradicional”, “patrimônio genético” e “conhecimento tradicional associado à biodiversidade” estabelecem o que está dentro e o que está fora da abrangência da norma. Daí a relevância do papel das “noções operacionais” consagradas pela legislação. Estas, no entanto, não se confundem com os conceitos. As noções operacionais são delineadas para se atingir a um fim prático, qual seja, viabilizar o cumprimento da norma. Já os conceitos problematizam relações e se detêm no tratamento rigoroso das especificidades. Segundo Almeida, a noção operacional serve basicamente para fins operacionais imediatos ou de aplicação genérica e direta, sob uma lógica do ponto de vista prático. Já o conceito tem significado, é dinâmico e por isso implica numa relação e na possibilidade de mudança de significado (ALMEIDA, 2008, p. 18). Vale lembrar que a maior parte das legislações ambientais recentes, inclusive as que regulam o acesso à biodiversidade e ao conhecimento tradicional associado inicia seus textos com definições terminológicas (CALDAS, 2001, p. 11) . Caldas ressalta que os conceitos jurídicos têm uma racionalidade interna e que postulam a neutralidade científica. A fim de que se estabeleça e se faça funcionar perfeitamente o sistema jurídico formal, pressupõe-se que tais conceitos jurídicos são intemporais, universais, neutros, gerais e abstratos (CALDAS, Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 303 303 12/11/2010 10:34:04 ibid, p. 12). No lugar do que Caldas chama de “conceitos jurídicos”, prefiro utilizar a expressão “definições jurídicas”, por entender que se tratam de noções operacionais e não propriamente de conceitos, seguindo o pensamento de Almeida (2008). As definições jurídicas nada mais são do que noções operacionais inseridas – e congeladas - no texto normativo. Elas são consideradas indispensáveis à delimitação da abrangência da norma e, em sendo supostamente científicas, oferecem um certo grau de segurança aos seus operadores. Não é por acaso que um “grupo técnico de peritos”, especializado em “conceitos, termos e definições”, foi formado na última Conferência das Partes em Bonn, na Alemanha para contribuir para a elaboração de um regime internacional de acesso e uso de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Nesse aspecto, vale notar que se observa uma tendência à “homogeneização jurídica” (BOURDIEU, 2001, p. 107), no plano global, na regulação de variados temas através de convenções e tratados internacionais (DOURADO, 2009). EM RESUMO, PARA FINALIZAR Proponho neste artigo apresentar o campo político em que se debate a criação de normas jurídicas reguladoras do acesso e do uso de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. O intuito declarado da norma jurídica, seja ela internacional ou nacional, é proteger os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade de povos e comunidades tradicionais. O tema “conhecimentos tradicionais”, no entanto, não é um tema estritamente ambiental. Ele enfeixa questões relacionadas à conservação ambiental e ao “uso sustentável” da biodiversidade, ao exercício de direitos humanos culturais, sociais e econômicos de povos e comunidades tradicionais e aquelas concernentes à propriedade intelectual e ao fomento da inovação tecnológica. Nesse sentido, a multiplicidade de agentes e agências, com interesses e discursos próprios e em situações de disputa no campo político, tornam a questão dos conhecimentos tradicionais, um emaranhado de posições de difícil discernimento. Aqui destacam-se as posições dos povos indígenas e do Estado brasileiro nesse processo regulatório. Ao mesmo tempo em que a biotecnologia se apresenta como uma área promissora para o desenvolvimento econômico do país e, portanto, tem sido fomentada pelas agências governamentais e produtivas, os povos indígenas reivindicam não apenas seus direitos econômicos relativos aos conhecimentos tradicionais potencialmente geradores de tecnologias, mas 304 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 304 12/11/2010 10:34:04 também os direitos culturais e étnicos relativos aos conhecimentos tradicionais associados, considerados elementos de sua identidade e de seu patrimônio cultural. Através da teoria do campo, de Bourdieu, é possível visualizar os agentes e agências que participam da regulação jurídica dos conhecimentos tradicionais associados, bem como seus respectivos discursos e estratégias políticas. Eles interagem em relações de força e de dominação, variando o seu capital simbólico. Vale notar que até mesmo os diversos significados dos conhecimentos tradicionais também são objetos de disputa nesse campo, o que demonstra o dinamismo e a complexidade do processo atual de regulação jurídica. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Al. W. B. “Darwin e Marx: diálogos nos trópicos para uma interpretação do Brasil.” In: Somanlu: Revista de Estudos Amazônicos. Ano 5. n. 2. Manaus. PPGSCA-EDUA-UFAM, julho-dezembro, 2005 pp. 9-27. ______,_______. Antropologia dos Archivos da Amazônia. Rio de Janeiro: Casa 8/Fundação Universidade do Amazonas, 2008. ARNAUD, A.-J. “Da regulação pelo direito na era da globalização.” In: Revista Anuário Direito e Globalização, vol. 1, 1999, pp. 23-51. 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Artigo recebido em: 01/06/2010 Artigo aprovado para publicação em junho /2010. 310 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 310 12/11/2010 10:34:04 ÍNDICE - PARTE IV ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA NO MUNICÍPIO DE MANAUS: análise sobre direito à saúde e ao meio ambiente Arlete Batista de Lima..................................................................................313 O DIREITO À SAÚDE PSÍQUICA DO TRABALHADOR NO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO Kely Silva de Araújo.....................................................................................315 O TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA: ÁREAS PROTEGIDAS E REGIMES AMBIENTAIS Carla Cristina Alves Torquato.....................................................................316 POLÍTICAS PÚBLICAS, QUALIDADE DE VIDA E PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA: O DIREITO À SAÚDE DOS POVOS INDÍGENAS EM RORAIMA Teresa Cristina Evangelista dos Anjos........................................................317 O REGIME DA RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL NA LEGISLAÇÃO DOS PAÍSES AMAZÔNICOS LATINO-AMERICANOS Cristiniana Cavalcanti Freire......................................................................318 ÉTICA, DIREITOS HUMANOS E PESQUISA BIOTECNOLÓGICA: Uma abordagem complexa nos espaços amazônicos Lincoln Alencar de Queiroz..........................................................................320 A CIDADE REAL NA CIDADE FORMAL: UM ESTUDO SOBRE A CONSTRUÇÃO DA TERRITORIALIDADE DO QUILOMBO DO MAICÁ EM SANTARÉM-PARÁ. Judith Costa Vieira........................................................................................321 A BIOPIRATARIA E A APROPRIAÇÃO DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS À BIODIVERSIDADE DA AMAZÔNIA BRASILEIRA Aline Ferreira de Alencar.............................................................................322 livro hileia11,12,13.indd 311 12/11/2010 10:34:04 E ST RAT É GI A SAÚDE DA FAMÍ L IA NO MU NI CÍP IO DE MA NAUS: análise sobre direito à saúde e ao meio ambiente Mestranda: Arlete Batista de Lima Banca Examinadora: Prof. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo (Orientador-UEA) Prof. Dr. Sandro Nahmias de Melo (UEA) Profa. Dra. Rosirene Martins Lima (Universidade Estadual do Maranhão) Resumo: O estudo faz uma análise do direito à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrando no município de Manaus tendo como referencial a política pública de saúde denominada Estratégia Saúde da Família (ESF). Essa política tem como principal desafio reorganizar o modelo de atenção básica para garantir o acesso da população aos serviços públicos de saúde na perspectiva da promoção da saúde, deslocando a questão saúde centrada na doença e no hospital para privilegiar aspectos preventivos e curativos. Desse modo, são identificados os fundamentos jurídicos que corroboram para a proteção do direito à saúde e a defesa do meio ambiente, assinalando a história da saúde pública brasileira consolidada como direito na década de 80 com a institucionalização do Sistema Único de Saúde (SUS). O direito à saúde na vigente Constituição assume a posição de direito fundamental recebendo especial atenção pelo legislador brasileiro no que se refere à garantia do seu conteúdo essencial, devendo o Estado assegurar um mínimo existencial por meio de políticas sociais. A Constituição brasileira de 1988 preconiza que saúde é direito de todos e dever do Estado, e que todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. A sadia qualidade de vida depende fundamentalmente de condições ambientais adequadas. Portanto, saúde e meio ambiente estão intrinsecamente relacionados, devendo o Estado garantir mecanismos de articulação desses direitos de forma a construir uma sociedade sustentável. Foi realizada pesquisa no Distrito de Saúde Sul de Manaus, pelo expressivo número de Unidades de Saúde da Família, que utilizou como método de investigação a observação direta, com participação no cotidiano dos profissionais envolvidos no nível da atenção básica à saúde, questionando suas práticas, repensando as ações de saúde de modo coletivo. A ESF tem, entre outros objetivos, aproximar a equipe de saúde da população assistida, fomentando um espaço de construção de cidadania. Por essa razão, a sociedade deve participar desse processo de mudança das condições de saúde, Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 313 313 12/11/2010 10:34:04 sendo o controle social um mecanismo importante na efetivação de políticas sociais que atendam às suas reivindicações. No entanto, como política pública de saúde a ESF apresenta os seus próprios desafios como a limitação de recursos financeiros e a inadequada capacitação profissional. Do ponto de vista do desenvolvimento, essa política ainda não conseguiu responder satisfatoriamente às demandas da população assistida cuja participação no processo de construção da saúde é quase nula por relegarem esse papel aos gestores públicos. É possível mudar esse cenário a partir de um controle social efetivo que se aproprie de espaços coletivos, como os conselhos e conferências de saúde, e de instrumentos como a política nacional de promoção da saúde, a política de atenção básica e da atenção primária ambiental que representam diretrizes na garantia do direito à saúde. Essas diretrizes têm em comum a participação da comunidade ao estimular práticas democráticas voltadas para soluções às suas necessidades básicas. A atenção primária ambiental (APA) é uma estratégia que valoriza os esforços de cidadania e os orienta para o desenvolvimento de uma nova cultura que reconhece os direitos ambientais e as reivindicações sociais como necessários para a sadia qualidade de vida da coletividade. Palavras-chave: Direito à saúde; Direito ao meio ambiente; Políticas Públicas; Estratégia; Saúde da Família; Sadia Qualidade de Vida. 314 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 314 12/11/2010 10:34:04 O DIREITO À SAÚDE PSÍQUICA DO TRABALHADOR NO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO Mestranda: Kely Silva de Araújo Banca Examinadora: Prof. Dr. Sandro Nahmias Melo (UEA– ORIENTADOR) Prof. Dr. Edson Ricardo Saleme (UEA) Prof. Dr. Aldemiro Rezende Dantas Júnior (CIESA) Resumo: Há muito se discute sobre a influência do trabalho na qualidade de vida do trabalhador. Contudo, somente a partir da Revolução Industrial é que a saúde mental vem sendo considerada importante para que se possa alcançar um meio ambiente de trabalho hígido. A preocupação maior sempre foi com a saúde física, ou seja, o acidente do trabalho típico e as doenças ocupacionais. Pouco se falava em agressões psíquicas como o assédio moral, o estresse e a depressão, contudo elas sempre existiram. O estudo do tema se mostra de grande valia uma vez que o meio ambiente do trabalho saudável é um direito fundamental, pois, ligado, por seu conteúdo, ao direito à vida. E, como direito fundamental que é, deve ser assegurado por meio das garantias constitucionais dentre as quais se destaca a ação civil pública. O assédio moral no meio ambiente do trabalho configura-se como sendo toda e qualquer conduta abusiva que atente contra a dignidade ou a integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho. O assédio pode ser de forma vertical (chefe-empregado) ou de forma horizontal (entre trabalhadores). O assédio moral no trabalho é uma das causas do estresse, e o estresse crônico gera a depressão. Com objetivo geral de analisar os meios de proteção jurídica à saúde psíquica do trabalhador, realizou-se uma pesquisa exploratória, descritiva e explicativa. Quanto aos meios a pesquisa foi bibliográfica e documental. A ação civil pública, como garantia fundamental que é, configura-se como o meio capaz de garantir o equilíbrio no meio ambiente do trabalho. Ou seja, tal ação é o meio adequado para assegurar condições mínimas de trabalho de forma que ele seja realizado sem gerar danos à saúde física e psíquica do trabalhador. Palavras-chave: Meio ambiente; Meio ambiente do trabalho; Saúde psíquica do trabalhador; Assédio moral; Estresse; Depressão; Ação civil pública. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 315 315 12/11/2010 10:34:04 O TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA: ÁREAS PROTEGIDAS E REGIMES AMBIENTAIS Mestranda: Carla Cristina Alves Torquato Banca Examinadora: Prof. Dr. José Augusto Fontoura Costa (Orientador- UEA) Prof. Dr. Fernando Fernandes da Silva (UniSantos/SP) Ozorio Jose de Menezes Fonseca (UEA) Resumo: Este trabalho trata da análise das áreas protegidas Amazônicas, isto é, as áreas territorialmente protegidas dos países pertencentes à Bacia Amazônica, Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela, que através do Tratado de Cooperação Amazônica firmaram o compromisso de promover o desenvolvimento harmônico da região por meio da cooperação e reciprocidade de esforços em prol do crescimento econômico da região atrelado a proteção do meio ambiente. A partir desta premissa as partes contratantes do Tratado procuram realizar esforços e ações conjuntas e uma destas ações são os sistemas de áreas territorialmente protegidas existentes nestes países, que tiveram como base de construção a Convenção de Diversidade Biológica – CDB e o Sistema de diretrizes de áreas protegidas da União internacional de conservação da natureza – UICN e na construção das mesmas e qual o papel destes dois instrumentos dentro do Direito Internacional. Com isso são analisadas semelhanças, possibilidades de harmonização ou unificação entre os sistemas, o fenômeno da Juridificação, a função da CDB e do Sistema de diretrizes de áreas protegidas da UICN enquanto instrumentos da soft law, a formação e a mudança de um regime ambiental e a tentativa do Estado constitucional cooperativo como gérmen do uma cooperação mais ampla Palavras-Chave: áreas protegidas; Direito Internacional; Tratado de Cooperação Amazônica; juridificação; soft law; Regimes Internacionais. 316 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 316 12/11/2010 10:34:05 POLÍTICAS PÚBLICAS, QUALIDADE DE VIDA E PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA: O DIREITO À SAÚDE DOS POVOS INDÍGENAS EM RORAIMA Mestranda: Teresa Cristina Evangelista dos Anjos Banca Examinadora: Profa. Dra. Clarice Seixas Duarte (Orientadora – UEA) Prof. Dr. Fernando Mussa Abujamra (FGV – SP) Profa.dra. Deise lucy Oliveira Montardo (UFAM) Resumo: A presente dissertação trata da regulação jurídica estatal instituída no Brasil com a finalidade de proteger, promover e recuperar a saúde dos povos indígenas por meio de políticas públicas. Objetiva-se analisar se a atual regulamentação jurídica de proteção, promoção e recuperação da saúde indígena é compatível com as peculiaridades pertinentes a esses povos. O reconhecimento de seus modos de ser, fazer e viver lhes foi garantindo constitucionalmente, pela primeira vez em nossa história, através da Constituição Federal de 1988, em seu art. 231. Verificamos que a participação desses povos, sozinhos ou de forma coletiva, através de suas comunidades, como novos atores nos movimentos sociais, tem gerado novas e peculiares formas de elaboração de políticas públicas. Especialmente no que diz respeito à proteção, promoção e recuperação da saúde específica e diferenciada desses povos e suas comunidades, merece destaque a organização de Distritos Sanitários Especiais Indígenas – DSEI’s, espaços de concretização e democratização do direito à saúde desses grupos. Ao final do trabalho, procedeu-se a uma análise do Distrito Sanitário Especial Indígena Leste de Roraima-RR, a fim de se verificar o seu potencial como instrumento de participação popular na elaboração e no controle social de políticas públicas, levando-se em conta o modelo teórico de conceituação jurídica de políticas públicas utilizado na presente dissertação. Palavras-Chave: Povos indígenas; políticas públicas; saúde; Distritos Sanitários Especiais Indígenas; Constituição Federal de 1988. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 317 317 12/11/2010 10:34:05 O REGIME DA RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL NA LEGISLAÇÃO DOS PAÍSES AMAZÔNICOS LATINO-AMERICANOS Mestranda: Cristiniana Cavalcanti Freire Banca examinadora: Prof. Dr.José Augusto Fontoura Costa (Orientador – UEA) Prof. Dr. Fernando Fernandes da Silva (Universidade Católica de Santos) Prof. Dr. Ozorio Jose Menezes Fonseca (UEA) Resumo: Esta pesquisa trata da análise do regime da responsabilidade civil ambiental na legislação dos países amazônicos latino-americanos, membros do Tratado de Cooperação Amazônica. A responsabilidade civil por dano ambiental constitui um importante instrumento de proteção ambiental e de implementação dos princípios ambientais fundamentais. A região amazônica, ao congregar em sua dimensão territorial diferentes países, com características sociais, econômicas e políticas diferenciadas, e de grande biodiversidade, imprescinde de mecanismos de proteção ao seu acervo ambiental em sua integralidade, sendo importante o desenvolvimento de instrumento que possibilite a proteção do bioma amazônico como um todo, em face da sinergia e ausência de fronteira dos danos ambientais, de forma a garantir-se, para a região, o adequado acesso aos recursos naturais, a responsabilidade intergeracional e o desenvolvimento em bases sustentáveis. O presente trabalho tem como objetivo analisar as normativas ambientais a respeito da responsabilidade civil por dano ambiental nos países latino-amazônicos, Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela, com fins a perspectivar uma harmonização normativa sobre a matéria, visando uma proteção efetiva e duradoura do ecossistema amazônico em sua integralidade. A pesquisa parte da análise das legislações dos respectivos países e da doutrina disponível sobre a matéria, além da verificação de possibilidade de harmonização de seus regimes, a partir da disposição dessa intenção em suas normativas.A harmonização dos regimes de responsabilidade civil por dano ambiental pode contribuir para efetivar e implementar a proteção integral do bioma amazônico e, além dos benefícios ecológicos, poderia garantir o equilíbrio na balança comercial desses países, na medida em que a harmonização impediria a evasão de empreendimentos poluidores para países onde a normativa ambiental se apresente mais frágil ou menos eficaz, além da incorporação dos custos com medi318 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 318 12/11/2010 10:34:05 das de prevenção e precaução, de forma a erradicar a privatização dos lucros e socialização dos prejuízos, garantindo os estudos para o desenvolvimento de tecnologias mais limpas. A análise da normativa ambiental dos países latinoamazônicos permite observar que os princípios ambientais foram incorporados, desde os textos constitucionais respectivos, até as legislações infraconstitucionais. Porém, divergências normativas podem impedir uma proteção integral do meio ambiente amazônico, além de outras relativas à ordem política, econômica e cultural, que acabam por interferir na aplicação dos princípios ambientais. A possibilidade de harmonização normativa quanto à responsabilidade civil pelo dano ambiental pode ter como ponto de partida o Tratado de Cooperação Amazônica, através da Organização respectiva, apta a articular e orientar os esforços para uma atuação com enfoque regional convergente na matéria, como já vem ocorrendo com a proteção da propriedade intelectual entre os países da bacia amazônica. Palavras-chave: Amazônia; Direito ambiental; Responsabilidade civil. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 319 319 12/11/2010 10:34:05 ÉTICA, DIREITOS HUMANOS E PESQUISA BIOTECNOLÓGICA: UMA ABORDAGEM COMPLEXA NOS ESPAÇOS AMAZÔNICOS Mestrando: Lincoln Alencar de Queiroz Banca Examinadora: Prof.Dr. FernandoAntônio de Carvalho Dantas (Orientador – UEA) Profa. Dra. Assunción Cambrón Infante (Co-Orientadora – Universidade de La Coruña – Espanha) Profa. Dra. Sandra Patrícia Zanotto (UEA) Resumo: A genética se inicia no jardim de Mendel, mas esse conhecimento sofre modificação, é apropriado pelo biopoder e, hoje, está plantado no jardim do consumo. A ciência não é axiologicamente neutra e, atualmente, é incorporada aos processos produtivos. Apropriada pelo mercado, a ciência segue suas leis que, em todo lugar, são as mesmas. Aplicada aos seres humanos, a ciência se apropria de seu objeto de pesquisa, através das patentes, visando assegurar lucros e o retorno dos investimentos. No direito, vê-se o paradoxo entre a indisponibilidade do corpo e o patenteamento da vida. Os novos conhecimentos afetam a todos, por isso, a defesa da dignidade se inicia pelo resguardo do espaço democrático. O uso da genética humana visando o lucro é incompatível com a dignidade da pessoa e, por essa razão, é indigno porque se apropria da pessoa despindo-a de sua história e de sua cultura. Dessa indignidade, foram vítimas índios da região amazônica ao serem forçados a participar de experiências científicas que beneficiaram apenas ao poder e ao prestígio dos próprios pesquisadores. A ciência tem poder e influi na vida de todos, por isso, tem a responsabilidade de proceder segundo o que é bom para o ser humano. O que é bom para o homem é decidido no âmbito de sua cultura e da sua comunidade. Os direitos humanos são fundamentos ético-jurídicos para formular o conceito da dignidade humana e, também, base para a crítica ao direito tradicional que enxerga a pessoa sob a ótica da propriedade e, por isso, não a protege contra o risco da sua mercantilização. Palavras-chave: Ciência; Genética; Mercado; Patentes; Dignidade humana; Direitos humanos; Mercantilização. 320 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 320 12/11/2010 10:34:05 A CIDADE REAL NA CIDADE FORMAL: UM ESTUDO SOBRE A CONSTRUÇÃO DA TERRITORIALIDADE DO QUILOMBO DO MAICÁ EM SANTARÉM-PARÁ. Mestranda: Judith Costa Vieira Banca Examinadora: José Joaquim Shiraishi Neto (Orientador – UEA) Heloísa Helena Corrêa da Silva (UFAM) Prof. Dr. Fernando Antônio da Carvalho (UEA) Resumo: Desde a promulgação da Constituição Federal Brasileira de 1988 vem se dando muita ênfase na problemática urbana a qual passou a ser abordada sob a perspectiva da necessidade da realizado de uma reforma urbana por meio de um processo de participação democrática. Porém, esse novo projeto de cidade idealizado pelo Direito, escamoteia as disputas políticas engendradas no espaço das cidades, as quais têm ganhado cada vez notoriedade frente ao surgimento dos grupos éticos como categorias urbanas que demandam perante o Estado o reconhecimento de suas formas particulares de ocupação do espaço urbano. Diante disso, o objetivo do presente estudo consiste em entender a relação estabelecida entre duas formas distintas de ordenar o uso do território. Uma desencadeada pelo Estado mediante seus instrumentos de Planejamento Urbano e outra vivida pelos grupos éticos a qual, por vez, entra em confronto com um projeto único de cidade. Visando pensar as questões aqui levantadas diante de uma realidade concreta parte-se da tentativa de compreensão do surgimento do Quilombola Urbano de Maicá, na Cidade de Santarém, Estado do Pará, que se organizaram pela Associação de Remanescentes de Quilombos do Arapemã, residentes no Maicá. A constituição desse grupo social na cidade permite repensar a construção do espaço a partir da constituição peculiar do seu território. A maneira com o grupo se expressa ultrapassa as classificações arbitrárias de fracionamento do espaço realizadas pelo Direito, como a dicotomia rural e urbana, posto que suas relações e atividades se encontram esparramadas por vários contextos espaciais do município. Portanto, a defesa de um modo de vida peculiar perpassa pela compreensão dos aspectos essenciais a sua manutenção entre elas a formação e a constituição dos territórios etnicamente configurados como é o caso deste que está sendo tratado no presente estudo. Palavras- Chave: Direito; Cidade; Planejamento Urbano; quilombolas; Maicá. Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 321 321 12/11/2010 10:34:05 A BIOPIRATARIA E A APROPRIAÇÃO DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS À BIODIVERSIDADE DA AMAZÔNIA BRASILEIRA Mestranda: Aline Ferreira de Alencar Banca Examinadora: Prof.Dr.FernandoAntôniodeCarvalho Dantas(Orientador –UEA) Prof.ª Dr.ª Maria Auxiliadora Minahim (UFBa) Prof. Dr. Ozorio Jose de Menezes Fonseca (UEA) Resumo: A biopirataria é apropriação não autorizada do patrimônio genético de uma região, incluindo espécies da fauna, flora, micro-organismos e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Essa atividade ocorre nos países biodiversos, inclusive o Brasil, mais especificamente a Amazônia Brasileira, cuja riquíssima biodiversidade atrai a cobiça dos países ricos em tecnologia e pobres em biodiversidade, que desejam fabricar novos produtos, com o objetivo exclusivo de gerar lucro. Portanto, a natureza passa a ser vista como matéria-prima, fonte de capital. Nesse contexto, a apropriação dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, pertencentes aos povos indígenas e populações tradicionais, representa um poderoso atalho para a criação de novos produtos, visto que, por meio da bioprospecção, é possível alcançar os resultados desejados com racionalidade econômica. A biopirataria atenta contra os interesses nacionais e contra os direitos humanos, por essa razão sugere-se a que a atividade seja criminalizada pelo Direito Penal, em virtude da relevância do bem jurídico a ser tutelado, o meio ambiente. Além disso, para coibir a biopirataria na Amazônia, é necessário aumento de fiscalização na região, investimento em ciência e tecnologia, bem como aplicação dos princípios da informação, educação e participação ambiental como forma de aliar os esforços do Poder Público e da coletividade para que ocorra a prevenção dessa atividade nociva ao Brasil e aos detentores do conhecimento tradicional. Palavras-chave: Biopirataria; Conhecimento tradicional associado; Biodiversidade; Amazônia Brasileira; Patrimônio genético. 322 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 322 12/11/2010 10:34:05 NORMAS EDITORIAIS As normas editoriais da Hiléia - Revista de Direito Ambiental da Amazônia são as seguintes: 1) A revista é de periodicidade semestral, observando-se o caráter de interdisciplinaridade no que tange ao papel crítico do periódico e constitui-se em um veículo para publicação de artigos, ensaios e resenhas críticas, bem como à livre circulação de idéias e opiniões sobre temas relacionados ao Direito e, especialmente, ao Direito Ambiental, sendo de inteira responsabilidade de seus autores as opiniões expressas nos artigos publicados. 2) Os artigos serão submetidos à aprovação do Conselho Editorial. 3) O recebimento do artigo, ensaio ou resenha não implica a obrigatoriedade de sua publicação. 4) Não será efetuado qualquer pagamento ou contraprestação pela publicação dos artigos selecionados. Serão enviados 5 (cinco) exemplares do número correspondente para cada autor de artigo, ensaio ou resenha publicado. 5) Os trabalhos deverão ser inéditos e conter os dados de identificação (título, nome do autor, vinculação institucional) e, obrigatoriamente conter sumário, resumo em português e em inglês, devendo ser acompanhados de currículo resumido do autor. 6) Além dos trabalhos que integrarão as sessões, a revista terá um espaço reservado para publicação das atividades desenvolvidas pelos Núcleos e Projetos de Pesquisa e pelo Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental. 7) A formatação, citações e referências deverão obedecer às normas da ABNT e, no que couber, as Normas Técnicas internas do Programa. 8) Os trabalhos deverão ser entregues em disquete ou como anexo de email, digitados com fonte Times New Roman, tamanho 12, com espaçamento entre linhas de 1,5, margens superior e esquerda de 3 cm e margens inferior e direita de 2 cm, em editor compatível com o Word, comportando entre 15 a 20 laudas para artigos e ensaios e entre 5 a 10 laudas para resenha, incluídas as referências. 9) Para deliberação quanto à aprovação dos artigos com indicação para publicação, o Conselho Editorial adotará os seguintes critérios: • Interesse acadêmico – serão priorizados os trabalhos cuja reflexão mantenham pertinência com as linhas de pesquisa do Programa, quais sejam: Conservação dos recursos naturais e desenvolvimento sustentável, que Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 323 323 12/11/2010 10:34:05 engloba: tutela jurídica do meio ambiente; unidades de Conservação; Ecoturismo; educação ambiental; espaço urbano; recursos naturais; mecanismos de resolução de conflitos; desenvolvimento sustentável; direito ao desenvolvimento; políticas públicas e Direitos da sócio e biodiversidade, que engloba: biodiversidade; biossegurança; bioética; direito dos povos, povos indígenas e populações tradicionais; agricultura sustentável; direito ambiental econômico e empresarial; meio ambiente do trabalho. • Relevância e atualidade jurídica – os textos deverão trazer para o debate questões cuja abordagem jurídica ensejem o diálogo interdisciplinar entre o direito, o direito ambiental e as demais áreas do conhecimento. • Rigor acadêmico – os textos deverão seguir, rigorosamente, a metodologia científica, oportunizando o debate acerca do conhecimento jurídico. 10) Artigos, ensaios ou resenhas recebidos e não publicados no número correspondente à chamada editalícia do envio, integrarão banco de trabalhos e poderão ser publicados posteriormente, em número subseqüente, mediante comunicação e consentimento prévio do autor. Esta obra foi composta em Manaus Pela UEA Edições. 324 Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 livro hileia11,12,13.indd 324 12/11/2010 10:34:05