Introdução

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"Desafios ao Serviço Social e à democracia na conjuntura neoliberal. Conquistas e
retrocessos nas áreas de saúde e segurança pública"
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Áurea Santos Farias2
Ísis Silva Souza Eccard3
INTRODUÇÃO
O presente trabalho é resultado de uma pesquisa em desenvolvimento sobre a
relação entre políticas de saúde e de segurança pública no Brasil, analisando: os novos
desafios e retrocessos, assim como, as estratégias desenvolvidas pelo Serviço Social para a
garantia das conquistas nessas áreas em face à conjuntura neoliberal, a partir dos anos
oitenta. Apresenta-se através dos itens seguintes a seguinte ordem de análises: o avanço do
neoliberalismo e o seu rebatimento às políticas sociais e aos direitos humanos relacionandoos ao debate do Serviço Social; o Estado coercitivo na contramão dos direitos sociais e as
estratégias de luta contra a violência e pelo acesso às políticas públicas, tendo como
finalidade contribuir para a construção de uma nova ordem societária.
Este trabalho também é fruto da pesquisa realizada por ambas as autoras para os
trabalhos de conclusão de curso apresentados no primeiro semestre de 2009 à Universidade
Federal Fluminense.
1
- Este trabalho inscreve-se no marco das pesquisas em desenvolvimento no Laboratório de
Serviço Social. Políticas sociais e Movimentos sociais na América Latina, Escola de Serviço social –
LASSAL, coordenado pela Professora Lucí Faria Pinheiro.
- Formanda em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Membro da
equipe
de
pesquisa
do
LASSAL,
Escola
de
Serviço
Social.
E-mail:
[email protected]
2
- Formanda em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Membro da
equipe de pesquisa do LASSAL, Escola de Serviço Social. E-mail: [email protected]
3
As lutas pelo direito à saúde no Brasil: o embate com as políticas neoliberais e o
papel do Serviço Social na consolidação desse direito.
A saúde durante muito tempo foi entendida como um “serviço” que não era
responsabilidade do Estado, proporcionado por instituições filantrópicas. Mas diante das
transformações ocorridas, principalmente com a forte industrialização, e as conseqüências
visíveis para a vida miserável dos trabalhadores o Estado passa a incorporar os interesses
da classe trabalhadora organizada no setor da saúde e nos sindicatos em geral.
É no contexto de redemocratização do país que a luta pelo direito à saúde adquire um
maior destaque no cenário político.
A
busca pela afirmação deste direito implicou no
fortalecimento de organizações sociais, respondendo pelo processo contínuo de renovação
de interesses, identidades e atores. Arouca (1998) considera que estava em curso uma
reforma democrática nunca vista na área da saúde e que irá se expandir para outras áreas e
movimentos.
Fleury (1989) destaca que os processos de Reforma Sanitária tanto no Brasil quanto
na Nicarágua, na Espanha, em
Portugal ou na Itália
emergiram em um contexto de
democratização e esteve associada à emergência das classes populares como sujeito
político.
Como se percebe, a saúde passa a ser encarada não só como a ausência de doença
como sugeriu a OMS4, mas também como espaço de luta e afirmação dos direitos sociais. O
seu reconhecimento como bem coletivo e direito foi alcançado a partir da participação dos
movimentos sociais num processo participativo de mudança
nas relações de poder
e de
politização das ações de saúde.
Para Faleiros (2006:18), todos os cidadãos possuem direitos universais de acesso à
saúde e para que isso aconteça ele destaca a importância de alguns sujeitos, dentre eles os
movimentos sociais dos anos pré-Constituição ao visar um novo paradigma e uma nova
forma de considerar a questão da saúde da população, coletiva e individualmente.
Ponto culminante da luta pela Reforma Sanitária foi o processo constituinte, no
período de 1987-1988, momento de incluir o direito universal à saúde na Constituição
Federal, traduzindo o instituinte do movimento em instituído para a sociedade.
OMS - Organização Mundial da Saúde é uma agência especializada em saúde, fundada em
7 de abril de 1948 e subordinada à Organização das Nações Unidas. Para a OMS a saúde é
definida como um “estado de completo bem-estar físico, mental e social e não consistindo
somente da ausência de uma doença ou enfermidade”.
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A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do
Brasil como Estado democrático de Direito, conforme prescreve o Artigo 1º, caput e inciso
III, da Constituição Federal de 1988. O direito à saúde por sua vez, foi incluído pela
Constituição Federal entre os direitos e garantias fundamentais, sendo classificado como
direito social também no Artigo 6º.
Sendo o direito à saúde um direito fundamental da pessoa humana coube ao Estado
prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício e à sociedade através do controle
social,
um direito conquistado, participar com afinco nos processos deliberativos
relacionados à formulação de políticas de saúde e de gestão dos SUS.
Percebe-se então, que a luta pela saúde no Brasil emerge a partir da mobilização de
um novo sujeito: o cidadão. É a partir da mobilização popular e das esferas representativas
do Movimento Sanitário que o direito universal à saúde é conquistado.
O Movimento Sanitário, a Constituição
Federal
de
1988
e
as
leis
que
regulamentam o Sistema Único de Saúde5, consolidaram o direito à saúde, mas como se
sabe saúde pressupõe que a população viva em condição de plenitude: reforma agrária,
educação, lazer, liberdade, habitação, transporte etc.
A luta pelo acesso a saúde como direito fundamental e inalienável do ser humano não
se exauriu quando passa a ser um direito positivado na Constituição da República Federativa
do Brasil, pelo contrário, é a partir desse marco que a luta precisa ganhar mais força.
Sabe-se que o pensamento neoliberal surgiu na primeira metade do século XX na
Europa e na América do Norte, mas foi a partir a partir da década de 1970 que se alastrou
pelo mundo com os dois sucessivos choques no preço do barril de petróleo, passando a
significar a doutrina econômica que defende a absoluta liberdade de mercado e uma
restrição à intervenção estatal sobre a economia, devendo esta ocorrer em setores
imprescindíveis e num grau mínimo.
O Sistema único de Saúde será regulamentado dois anos depois da Constituição Federal de
1980 a partir da Lei Orgânica da Saúde – Lei 8.080, de 19 de Setembro de 1990 - que
dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a
organização e o funcionamento dos serviços correspondentes. Em dezembro do mesmo ano
é criada a Lei 8.142 que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema
Único de Saúde e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na
área da saúde. Um dos maiores avanços dessa lei foi a regulamentação da participação da
sociedade civil através – de entidades representativas – na formulação, gestão, execução e
avaliação das políticas e ações de Saúde quando cria os Conselhos de Saúde.
5
A entrada
do neoliberalismo nos países da América Latina se deu nos anos 70,
através do Chile, porém é a partir do final da década de 80 e início da década de 90 que a
maioria dos países latino-americanos se aprofundaram na pauta neoliberal.
De acordo com Soares (2002) o Brasil foi o último país do continente a implementar
uma agenda neoliberal. Diante da crise enfrentada nos anos 80, fruto de um processo
crescente de endividamento externo e interno, esta agenda foi se constituindo e se firmando
no Brasil.
Segundo Laurell (2002:238) pode-se observar a existência de duas correntes sobre o
Estado na segunda metade dos anos 80 e início dos anos 90: a concepção neoliberal que
advoga o estado mínimo e o mercado como principal agente regulador de ordem econômica
e social, e a concepção da necessidade da presença de um Estado democrático forte,
demandada pelo próprio ajuste neoliberal e pelas enormes desigualdades das realidades
latino-americanas.
A solução da crise para a vertente neoliberal latino-americana é reconstituir o
mercado, incentivar a competitividade entre os indivíduos e o mercado, para isto é
necessário eliminar a intervenção do Estado na economia. Outra estratégia é a redução da
ação estatal no campo do bem-estar social através dos cortes dos gastos sociais,
privatizações, e a centralização dos gastos sociais públicos em programas seletivos contra a
pobreza e a descentralização.
Nesse contexto a década de 90 faz emergir no setor da saúde um quadro adverso às
propostas do SUS e que tem por base uma política de ajustes. De acordo com Bravo (2007),
a orientação geral é de racionalização do gasto e da oferta rebatendo fortemente na redução
dos gastos públicos ao atendimento das populações vulneráveis e no estímulo ao seguro
privado.
Sendo assim, o projeto da Reforma Sanitária, alicerçado na concepção ampla de
saúde, na universalização e na equidade confronta-se com o projeto neoliberal, que faz
retroceder a concepção do direito à saúde, uma vez que a universalização cede espaço à
focalização nos moldes neoliberais, pautada na burocracia, subordinada à prática médica e
ao mercado.
A política neoliberal no Brasil será, deste modo, marcada pela redução da presença
do Estado na condução das políticas sociais e a consequente transformação destas em
políticas residuais compensatórias, promovidas por um estado mínimo e dito regulador de
um mercado soberano e liberalizado.
Nesse contexto há um reordenamento do Estado, embasado no ajuste fiscal e no
desmonte das políticas de garantia de direitos, privilegiando a lógica do capital internacional
e do monetarismo.
Para Soares (2002), o neoliberalismo produziu um “novo Estado” sob o poder das
grandes empresas que ditam as regras, passando da minimização do Estado à sua
reconstrução para um novo papel no desenvolvimento. A mudança do papel do Estado na
economia se articula ao processo e mundialização do capital, tornando os Estados nacionais
menos soberanos e com políticas e propostas semelhantes entre si. De fato, a abertura
comercial aos investimentos estrangeiros, a privatização, a terceirização, a implementação
de
parcerias
com
organismos
da
sociedade
civil,
a
desregulamentação
e
a
desresponsabilização do Estado fazem parte de um plano de ações que foram sendo
implementadas como padrão pelo Fundo Monetário Internacional.
A promulgação da Emenda Constitucional nº 29 no ano 2000 6, depois de sete anos
tramitando no congresso Nacional, configurou-se como vitória para o SUS e seus usuários. A
Emenda determinou a elevação gradativa dos gastos do governo federal, estaduais e
municipais com a saúde até chegar aos patamares mínimos em 2004. Contudo o que se
destaca nessa Emenda é a configuração dos gastos em saúde pública, proibindo a qualquer
instância redução de gastos.
Apesar dessa vitória que trouxe mais investimentos para o setor a onda neoliberal
não retrocedeu como se esperava quando da eleição de Lula em 2002.
A partir desse
período podem-se assinalar aprofundamentos e contradições na política de saúde e na
efetivação do SUS. A questão do financiamento, da qualidade dos serviços prestados aos
usuários, o enfrentamento ao clientelismo, ao corporativismo e a partidarização dos
conselhos, em contradição com a conquista da cidadania e a ótica do cuidado, são alguns
dos problemas no horizonte da garantia ao direito à saúde, como destaca Faleiros (2006).
Como já mencionado o Movimento da Reforma Sanitária propõe que a saúde seja um
direito do cidadão, um dever do Estado e garanta a universalidade do acesso a todos os
bens e serviços que a promovam e recuperem. Deste pensamento resultaram duas das
principais diretrizes do Sistema Único de Saúde que são a universalidade do acesso e a
integralidade das ações. Entretanto esses dois pontos foram os mais rechaçados pela política
Altera os artigos 34, 35, 156, 160, 167 e 198 da Constituição Federal e acrescenta o artigo
ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para assegurar os recursos mínimos
para o financiamento das ações e serviços públicos de saúde.
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neoliberal instaurada no Brasil no final dos anos 80, em toda década de 90 e reforçada na
década seguinte.
A descentralização, no caso da Reforma Sanitária brasileira, procurava modificar o
desenho e a lógica de um sistema público sem que necessariamente ocorresse privatização
de serviços, ou sem que o Estado abdicasse do papel de gestor e de prestador direto da
política de saúde. Entretanto, pode-se perceber que as propostas da Reforma Sanitária
estavam na contramão das políticas neoliberais.
A construção do SUS é marcada por polêmicas como as condições para manutenção
da qualidade dos serviços e o acesso universal diante da ótica do focalizada no setor privado
e uma política atual assentada sob a lógica conservadora e neoliberal. A partir dessas e
outras questões que o SUS vem enfrentando para se tornar verdadeiramente uma política
universal e equânime sua implantação tem ocorrido em meio a um contexto cultural e
político adverso às suas concepções e à estruturação de toda política pública.
O movimento sanitário cuja organização buscou integrar vários atores numa luta
comum, construído no debate plural de idéias e projetos, foi de suma importância para a
regulamentação de um sistema universal, descentralizado e participativo, demarcado na
Constituição Federal de 1988. Mas seu trabalho não se exauriu.
A luta pelo acesso à saúde é demarcada historicamente por diferentes atores sociais,
o que torna condição sine qua non para que esse direito seja encarado por todas as
instâncias governamentais como inalienável a todo cidadão brasileiro.
Sendo assim a luta – inscrita na área do Serviço Social - pela democratização desse
direito constitui um dos principais mecanismos
de mobilização
junto com movimentos
sociais e outros sujeitos sociais, por uma realocação dos recursos em favor do setor público
– enfrentando a ótica neoliberal - e reforçando a noção de direito social universal: direito
de todos e dever do Estado.
Frente ao contexto de aprofundamento da proposta neoliberal no Brasil e o
agravamento das expressões da questão social a atuação do Serviço Social no cotidiano dos
serviços de saúde deverá ter como referência à saúde, o direito universal e o controle social.
Vasconcelos (2007), destaca que aos assistentes sociais que objetivam romper com
práticas conservadoras, não cabe reproduzir o processo de trabalho capitalista, alienante.
Sendo assim, a prática do assistente social no campo da saúde deve ser orientada
para a ultrapassagem da prática imediata, onde as ações não podem ser resumidas a
atuações
isoladas
e
assistemáticas,
que
promovem
encaminhamentos,
orientações,
aconselhamentos e apoio sobre as doenças. Práticas que não oferecem suporte contínuo às
demandas implícitas dos usuários.
O que está em jogo na atuação do profissional no campo da saúde é a garantia do
pleno
acesso
dos
usuários
aos
serviços
sem
quaisquer
critérios
de
exclusão
ou
discriminação. A expansão dos direitos de cidadania, a preocupação com a universalidade,
com a justiça social e o papel do Estado na provisão da atenção social são pontos comuns
que merecem destaque no cotidiano da profissão, seja na área da saúde ou em qualquer
outra área. E para isso é necessário reafirmar os princípios contidos tanto na Constituição e
legislação relativa ao campo da saúde como no Código de ética dos assistentes sociais.
O Serviço Social deve planejar sua atuação sobre estes determinantes – sociais,
econômicos e de saúde. Segundo Teixeira (2004:39), a profissão adquire um
significado
estratégico, na medida em que se constitui como um dos referenciais que ajudam a retomar
e atualizar o conjunto de propostas do projeto da reforma sanitária, cujo escopo ultrapassa
o processo de construção do SUS. Pressupõem a formulação e implementação de políticas
econômicas e sociais que tenham como propósito uma melhoria de vida e saúde dos
diversos grupos sociais.
Romper com
o conservadorismo na
atuação profissional
significa adotar as
referências ético-políticas e apropriar de uma perspectiva teórico-metodológica que
possibilitará a reconstrução permanente do movimento da realidade. Este é o objeto da ação
profissional, expressão da totalidade social, que gera condições para um exercício
profissional consciente, crítico, criativo e politizado, consoante à defesa dos direitos sociais,
explicitados na Constituição de 1988 e em particular, o direito à saúde afirmado pelo SUS.
Assim, é importante ressaltar que os aspectos que norteiam a profissão “não se
esgotam na afirmação do compromisso ético-político. É preciso que esse compromisso seja
mediado por estratégias concretas, articulados à competência teórica / técnica e a
capacidade de objetivá-las praticamente por meio da realização dos direitos sociais”
(Barroco, 2004:31).
Vasconcelos (2007) afirma que a distância entre a prática profissional e os conteúdos
teóricos da realidade da ação profissional, resultante da falta de leitura crítica do movimento
da realidade, revela um desperdício de oportunidades por parte dos assistentes sociais e
demais profissionais de saúde. Isto diante das possibilidades de prática a serem captadas na
realidade em que realizam suas ações, quando se objetiva redirecionar as políticas públicas
na direção dos interesses dos usuários.
Ao vencer as práticas imediatistas em saúde o assistente social contribui para
ampliar, facilitar e realizar o acesso aos direitos, resgatando a consciência social sobre
saúde, fortalecendo o caráter público das ações e serviços da seguridade social e dos
direitos sociais e a responsabilidade do Estado, definida na Constituição Federal.
“A luta pela manutenção do caráter universalizante das políticas sociais
públicas – em especial a seguridade social - no seu tripé formado pela
previdência, saúde e assistência social – é um desafio que se atualiza
no dia-a-dia do assistente social.” (Iamamoto, 2008:142)
Sendo assim, o objetivo do Serviço Social na área de saúde passa pela compreensão
dos aspectos sociais, econômicos e culturais dos usuários, que interferem na saúde do
trabalhador quanto nas estratégias de enfrentamento destas questões. O que irá requisitar
ao assistente social uma prática articulada aos princípios da Reforma Sanitária, à defesa
intransigente dos pressupostos do SUS, articulada ao Projeto Ético – Político e ao Código de
Ética, pois é a partir da referência a estes que se poderão garantir respostas não
imediatistas, mais qualificadas às necessidades apresentadas pelos usuários.
É por esse motivo que o profissional da área da saúde vem direcionando a sua
atuação para os princípios fundamentais da democracia e do pluralismo, e posicionando-se a
favor da equidade e da justiça social, vinculados ao processo de construção de uma nova
ordem societária, sem dominação-exploração de classe, etnia e gênero.
Entretanto, uma atuação que reforça os ganhos constitucionais e o projeto éticopolítico hegemônico no Serviço Social só terá êxito a partir da interlocução com outros
setores organizados da sociedade para o enfrentamento ao projeto capitalista neoliberal e a
ratificação dos interesses e necessidades das classes trabalhadoras, seja na saúde, ou em
qualquer âmbito da vida do cidadão.
O papel do Estado na implementação de políticas públicas de combate à violência.
O Estado para Engels é “um produto da sociedade em determinada etapa de
desenvolvimento”(LENINE, 1980:226), ou seja, é a admissão das contradições de classes
existentes na sociedade capitalista, e tal sociedade é o conjunto das vontades inconciliáveis
dessas classes, mas essa sociedade constituída de classes com interesses econômicos
diferentes, vontades contraditórias e inconciliáveis não é capaz de se autoregular, então a
necessidade da criação de um poder para tal feito, “tornou-se necessário um poder, que
aparentemente está acima da sociedade, que abafe o conflito e o mantenha dentro dos
limites da 'ordem'; e este poder, nascido da sociedade mas que se coloca acima dela, e que
cada vez mais se aliena dela, é o Estado”. (LENINE, 1980:226).
Para Marx, não surgiria o Estado se não fosse essa relação conflituosa entre as
classes, sendo impossível uma conciliação entre as mesmas. Esse Estado foi criado e é
mantido como instrumento de dominação de uma classe sobre outra, com função de através
da opressão manter a ordem vigente mediando o conflito e interesses
na sociedade. O
Estado é, então, através da coerção e da violência, um órgão de dominação da classe no
poder, a burguesia, sobre a classe subalterna, o proletariado. Para Lenine (1980), a
emancipação da classe dominada e oprimida só é possível através da luta armada e
“revolução violenta”, porque cada vez mais o Estado que foi criado pela classe dominante,
torna-se um poder acima da sociedade alienando-se completamente dela. O Estado, para
cumprir seu papel de mediador de conflitos e interesses inconciliáveis, utiliza-se da polícia e
do exército para oprimir a classe subalterna, “o exército permanente e a polícia são os
principais instrumentos da força do poder do Estado(...)”. (LENINE, 1980: 228).
As funções do papel do Estado em face das políticas sociais expandiram-se após a
grande depressão de 1929, onde o capitalismo entrou em uma profunda crise. É a partir
dessa expansão do Estado e de suas funções que surge a ligação entre política social e
serviço social, passando as políticas sociais a serem voltadas para a classe social dos
trabalhadores industriais, estes que estavam emergindo com o processo de industrialização
e urbanização acelerada no Brasil. É nesse contexto que o Estado passou a voltar-se mais
para a área social.
“Na ditadura militar pós-64 o país viveu mais um processo de
modernização conservadora, talvez o último suspiro nessa modalidade
marcante do desenvolvimento nacional: industrialização e urbanização
aceleradas, e modernização do Estado brasileiro, inclusive com
expansão
de
políticas
sociais
centralizadas
nacionalmente”.
(BEHRING, 2008:15).
O Brasil, após a ditadura via-se diante de um quadro em que a crise não era somente
econômica, mas também política. Segundo Behring, “com a emersão de uma sociedade civil
mais complexa, que inclui uma classe trabalhadora organizada e concentrada(...)”, O que se
verificou então foi uma grande disposição no meio profissional para organizar as políticas
sociais na perspectiva de democratizar os direitos e garantir a plena cidadania dos sujeitos
sociais. Vale ressaltar que o
serviço social foi fundamentalmente marcado por uma
presença em todo esse processo de reflexão e elaboração das políticas sociais no cenário
nacional. Para a autora, “contudo, esse acerto tratou lateralmente o tema da política social,
cuja presença cresce no debate profissional crítico a partir da segunda metade da década,
impulsionada
pela
conjuntura
de
redemocratização
e
de
formulação
constituinte”.
(BEHRING, 2008:16). As políticas sociais são pensadas com o intuito de superar as
desigualdades sociais.
“Esse movimento trouxe também um afastamento em relação à
‘teoria do engodo’ (Coimbra, 1987), que marcou muitas abordagens
marxistas sobre política social. Segundo essa teoria, a política social
se restringiria à dominação/cooptação dos trabalhadores, buscando a
adesão e a docilidade do movimento operário e popular”.
(BEHRING,2008:17).
No entanto, pensar em política social atualmente como instrumento de erradicação
das desigualdades sociais através da redistribuição da renda, pode ser um tratamento
utópico dessa política se não levarmos em conta a “natureza do capitalismo”, principalmente
o seu viés neoliberal, onde a produção e reprodução de desigualdades alimentam esse
sistema. Também seria limitado pensar a política social como reguladora de conflitos de
classes, ou como resposta às reivindicações dos Movimentos Sociais entre outras funções
que, segundo Behring, a superestimam e reduzem suas verdadeiras funções.
É o Estado o gerenciador das políticas sociais, e é seu dever provê-las, mas também
se verifica o envolvimento de instituições públicas e privadas nessa relação. Historicamente,
segundo Guimarães, o Estado a partir dos anos 30 englobou principalmente os interesses
burgueses e engendrou novas relações com a classe operária que emergia junto com o
processo de urbanização naquela época. Foi a partir do período denominado de “democracia
populista” que as políticas sociais foram colocadas em prática para ampliar a cooptação da
classe trabalhadora. Historicamente, então se destaca a implementação das políticas sociais
com o intuito de “docilizar” a classe trabalhadora no sentido de obter maior cooperação da
mesma e amenizar os conflitos com os interesses burgueses. Para Guimarães, “no plano das
políticas sociais(...), o que se observa é a reprodução dos mecanismos de cooptação e
controle das massas assalariadas, através da distribuição de benefícios sociais a segmentos
selecionados da classe trabalhadora.”(Guimarães, 1993:6). Nesse mesmo período a
máquina estatal se reforçava através da hegemonia do poder executivo, onde se
privilegiavam os setores majoritários da sociedade, e destacando-se a fragmentação dos
programas sociais e o favorecimento dos setores privados que começavam a emergir
nacionalmente.
“Os programas sociais, apesar de públicos passaram a ter sua
execução privatizada. Alteraram-se os segmentos populacionais
beneficiados pelas políticas sociais. O Estado dirigiu sua ação
principalmente à classe média, nos programas de habitação e
assistência médica, em detrimento dos setores populares”.
(GUIMARÃES, 1993:7).
Os profissionais, então incumbidos de pensar as políticas sociais perceberam que esta
deveria estar em consonância e articulada entre Estado e Sociedade civil. A política social
não deveria ser vista apenas como “subproduto da economia”, mas como intervenção
política do Estado na área social. O processo de abertura política num contexto de profunda
heterogeneidade econômica e social gerou uma reformulação do debate político e da ação
estatal na sociedade. (GUIMARÃES, 1993: 8). As ações do Estado voltaram-se mais para a
área social percebendo-se também uma descentralização nas esferas do governo, mas essas
ações pautaram-se em programas emergenciais a assistencialistas, o que se verifica até
hoje. É importante destacar o significativo papel da nova Constituição de 1988 que “ampliou
os direitos sociais” e englobou segmentos da sociedade antes deixados de lado pelas
constituições anteriores.
O Estado deve estar sempre comprometido com a justiça social e a democracia,
incorporando através de políticas públicas, as classes subalternas ao pleno exercício da
cidadania, e essas políticas devem ser de cunho abrangente e universal. O Estado também
deve ter como prioridade a preocupação com o combate a todas as formas de violência,
desde a fome à tortura, ao desemprego, à criminalidade etc.
“Todas essas expressões da violência se alimentam reciprocamente: a
impunidade promove injustiças, que estimulam crimes, que geram
gastos, difundem a cultura do medo, condicionam a redução de
investimentos e ameaçam a indústria do turismo (entre outras), o
que, por sua vez, exerce impacto negativo sobre o nível de emprego e
amplia a crise social.” (INSTITUTO CIDADANIA: 9).
Todo esse processo de violência, corrupção, injustiça e criminalidade, entre outros,
gera um “ciclo vicioso”. A população passa a não confiar mais no Estado e desacredita as
instituições públicas, principalmente a instituição policial, por constituir-se em mais um
veículo da sociabilidade burguesa de repressão às classes subalternas.
Nesse contexto, as políticas públicas são implantadas com o intuito de combater as
injustiças socioeconômicas e principalmente as diferentes formas de violência que se
articulam na sociedade, dentre as quais a criminalidade e a corrupção policial.
As pesquisas em torno da segurança pública no Brasil e principalmente no Rio de
Janeiro dão maior destaque ao problema da “violência criminal”, que segundo dados do
Instituto Cidadania, atinge “todos os segmentos sociais, dos mais ricos aos mais pobres, o
que faz da insegurança uma experiência amplamente compartilhada”. No entanto, há um
diferencial nos crimes que atingem a classe burguesa e a classe subalterna, ou seja, os
crimes contra o patrimônio atingem as camadas ricas da sociedade, enquanto os crimes
contra as pessoas (homicídios dolosos por exemplo) atingem mais os pobres. As políticas de
segurança são voltadas para a proteção dos ricos, o que gera uma política de segurança
pública “violenta” e essa violência se volta contra as classes subalternas, onde os pobres
moradores
da
periferia
são
os
mais
atingidos.
Essa
violência
caracteriza-se
pela
cumplicidade e legitimação do Estado através da polícia e eventualmente do exército, em
momentos de impotência do aparato de segurança pública.
A sociedade civil precisa estar atenta à questão da segurança pública, fiscalizando no
seu limite de atuação as políticas do Estado voltadas para essa área e principalmente
através de estudos e pesquisas, participar na eleição dos principais fatores de violência e
decidir por políticas que atinjam a raiz do problema. Uma mobilização da sociedade civil e
principalmente dos movimentos sociais, seriam capazes de melhor identificar os principais
fatores que disseminam a violência na nossa sociedade.
Considerações Finais
No
atual
contexto
neoliberal
identifica-se
um
retrocesso
nas
sociedades
contemporâneas no que tange à conquista dos direitos sociais pela classe dos trabalhadores,
tendo em vista a proliferação das desigualdades sociais, a redução dos gastos sociais, os
cortes públicos e o desmonte do Estado.
A política neoliberal sustenta que os serviços públicos, organizados à base de
princípios
de
universalidade
e
gratuidade,
superdimensionam
o
gasto
estatal
e
conseqüentemente surge a necessidade de diminuir despesas e, em especial, os gastos
sociais, diminuindo o atendimento e restringindo o acesso às políticas públicas.
O componente ideológico neoliberal da proposta de redução do setor público está
baseado na idéia de que este é ineficiente e ineficaz, ao contrário do setor privado. E isto é
claramente visto no ideário da saúde pública, encarada como sucateada e incapaz de prover
a qualidade da assistência aos cidadãos brasileiros. Entretanto, pode-se perceber que a
“superioridade” do setor privado em detrimento do público não é mais do que um
componente neoliberal para estabelecer um Estado “mínimo”, para implementar reformas
nas áreas sociais que afetarão principalmente as políticas sociais e seus usuários.
Na área da segurança pública, o Estado desenvolve uma política de repressão aos
pobres, onde os mais atingidos são os moradores da periferia. A criminalização da pobreza é
o meio que o Estado utiliza para justificar as mortes de milhares de civis nessa guerra
declarada nas favelas do nosso país, onde são contabilizados apenas os números de mortos
deixando de lado no meio dessa guerra o número de inocentes, naturalizando as mortes e
responsabilizando a própria população pela violência desencadeada.
É notório o embate entre o Projeto Ético Político do Serviço Social e a ofensiva
neoliberal, que vem promovendo uma política macro-econômica pautada na privatização do
Estado, no sucateamento das políticas públicas, afetando principalmente os serviços
prestados pelo assistente social cujas demandas partem da classe trabalhadora. Na área da
saúde esse embate se concretiza na atuação direta destes profissionais na garantia de
acesso a uma política pautada na equidade e na universalidade aos usuários do SUS e na
área da segurança pública a profissão estreitamente vinculada às ações estatais, tem
contribuído significativamente no combate à violência, caracterizando-se deste modo em
uma resposta organizada coletivamente a esta barbárie que vigora no Brasil.
Nessa onda neoliberal que afetará as políticas públicas , dentre elas a de saúde e de
segurança, o Serviço Social marca presença na construção de uma sociedade mais
igualitária, com a emancipação dos sujeitos sociais, revelando caminhos e possibilidades de
superação das desigualdades. Encontra-se inserido na luta pelos direitos sociais tendo como
instrumentos legítimos o Código de Ética e as demais Leis que regulamentam a profissão,
comprometendo-se com o projeto societário da classe trabalhadora em defesa de uma
sociedade onde haja a equidade e a justiça social.
Referências Bibliográficas
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http://bvsarouca.icict.fiocruz.br/index.html. Site acessado em 01-03-2009
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