Iluminação Natural e Eficiência Energética – Parte I Estratégias de Projeto para uma Arquitetura Sustentável Cláudia Naves David Amorim, Doutora pela Università degli Studi di Roma “La Sapienza” RESUMO Apresentam-se neste artigo algumas premissas para uma arquitetura sustentável e com qualidade ambiental, onde a luz natural tem papel preponderante, no sentido de garantir maior conforto e eficiência energética. As estratégias de projeto que podem ser utilizadas incluem componentes para um melhor uso da luz natural, além da integração da mesma com o sistema de iluminação artificial, desde a concepção inicial do projeto. PALAVRAS CHAVE: Luz Natural; Eficiência Energética; Conforto; Estratégias de Projeto ABSTRACT In this article some premises to a sustainable and environmental friendly architecture are presented, where daylighting has an important role, to ensure more comfort and energy efficiency. The project strategies that can be utilized include some components for a better daylighting utilization, and the integration of daylighting with artificial lighting system, from the first steps of the architectural project. KEY WORDS: Daylighting; Energy Efficiency; Comfort; Design Strategies Introdução As restrições energéticas e o problema ambiental, temas que há tempos são objeto de discussão mundial, têm mostrado a importância de se adotar algumas estratégias, dentre as quais, por exemplo, reduzir o consumo energético dos edifícios. Também o conceito de qualidade ambiental1 dos edifícios é diretamente ligado ao de eficiência energética: o uso contínuo de energia na construção, no uso, na manutenção e demolição dos edifícios, de fato, além de diminuir a emissão de poluentes na atmosfera, determina também um melhoramento das condições de conforto dentro dos edifícios. Nesta ótica, o Environmental Building News (EBNs) propõe uma lista de prioridades para os edifícios sustentáveis, dentre as quais podemos destacar (AMORIM, 2000): • Economizar energia: projetar e construir edifícios energeticamente eficientes. O uso contínuo de energia é provavelmente o maior impacto ambiental específico de um edifício, e por isso o projeto energeticamente eficiente deve ser a prioridade número um. Isto se relaciona com diversos aspectos, dentre eles a utilização de fontes energéticas renováveis, a minimização das cargas de aquecimento e refrigeração, a otimização da luz natural, etc • Construir edifícios “saudáveis”- conforto ambiental e segurança: por exemplo, através da introdução da luz e ventilação naturais onde for possível. 1 A qualidade ambiental dos edifícios considera as relações físicas, materiais e energéticas entre a construção e o ambiente que a circunda; o conforto ambiental interno é um dos parâmetros, juntamente com o consumo energético, a segurança, o impacto ambiental da construção e do uso do edifício e outros (PIARDI et al,1999). • • Maximizar a longevidade dos edifícios: projetar pensando na duração e possibilidade de adaptação funcional dos edifícios ao longo do tempo. Quanto mais dura um edifício, maior é o período de tempo no qual os impactos ambientais serão amortizados. Reciclar edifícios: reutilizar edifícios e infraestruturas existentes. Os edifícios existentes contêm uma enorme quantidade de recursos culturais e materiais, e conferem identidade aos lugares. Mas a prioridade é otimizar a eficiência energética2, mesmo em reformas. A energia pode ser aplicada nos edifícios em diversos usos finais: os diretamente ligados ao projeto arquitetônico são a iluminação, a climatização e o aquecimento de água. Na Europa, metade da energia utilizada em edifícios não residenciais vai para a iluminação artificial (BAKER et al, 1993); no Brasil: os maiores usos finais da energia em edifícios comerciais e públicos são a iluminação artificial (49%) e o ar condicionado (35%) (LAMBERTS, 1996). É interessante observar também que, no contexto brasileiro, 42% da energia produzida no país é consumida em edifícios. A crise do ano passado demonstrou as consequências da escassez de energia e levantou ainda mais a questão do uso racional dos recursos energéticos existentes. O uso otimizado da luz natural em novos projetos ou em reformas de edifícios existentes é certamente uma estratégia eficaz para isto. Iluminação Natural e Qualidade Ambiental: Eficiência Energética e Conforto A luz natural oferece enormes vantagens, e pode ser utilizada como estratégia para obter maior qualidade ambiental e eficiência energética em edifícios. Dentre os pontos positivos da luz natural, citamos alguns (MAJOROS, 1998): - a qualidade da iluminação obtida é melhor, pois a visão humana desenvolveu-se com a luz natural; - a constante mudança da quantidade de luz natural é favorável, pois proporciona efeitos estimulantes nos ambientes3; - a luz natural permite valores mais altos de iluminação, se comparados à luz elétrica; além disso, a carga térmica gerada pela luz artificial é maior do que a da luz natural, o que nos climas quentes representa um problema a mais; - um bom projeto de iluminação natural pode fornecer a iluminação necessária durante 80/90% das horas de luz diária, permitindo uma enorme economia de energia em luz artificial ; - a luz natural é fornecida por fonte de energia renovável: é o uso mais evidente da energia solar. Luz natural nos trópicos A disponibilidade de luz natural nas regiões tropicais é grande, e esta deve ser usada de forma criteriosa. Não se trata de simplesmente abrir janelas ou zenitais indiscriminadamente, mas sim equilibrar sabiamente o ingresso de luz difusa, bloqueando o calor gerado pela luz solar direta, que cria problemas de conforto térmico e luminoso (ofuscamento). Em regiões tropicais, os níveis de iluminância4 são muito altos : para Brasília, por exemplo, tem-se no verão, no mês de dezembro (21/12-12 hs), 98.000 lux (iluminância no plano horizontal); no mês de 2 Nesta ótica, o termo “retrofit energético” é utilizado quando se fala em reforma/requalificação de edifício existente com otimização da eficiência energética. 3 A luz natural pode ajudar a evitar fenômenos como a SBS (Sick Building Syndrome)- associada a edifícios com ar condicionado e luz artificial- e mais especificament da SAD (Seasonal Affective Disorder) – ligada à privação de luz. Os edifícios com luz natural, devido à variação da iluminação no tempo e espaço, fornecem os estímulos suficientes para desencadear os processos fisiológicos que evitam esta síndrome. (BAKER et al, 1993). 4 Níveis de iluminância calculados pelo software DLN (Disponibilidade de Luz Natural, Paulo Scarazzato, 1995). Estes dados foram confirmados através de medições nos mesmos dias, horário e condição de céu, pela autora, encontrando-se valores muito similares. março5 (21/03-12hs), 101.000 lux (ambos com céu parcialmente encoberto). No inverno, quando o céu é predominantemente claro, temos 96.000 lux em junho (21/06 –12 hs), 109.000 lux em agosto6 (21/08-12hs). Estes valores são em média o dobro do que se considera na Europa Central, onde muitas das estratégias e tecnologias para o uso da luz natural foram desenvolvidas. Também a luminância do céu encoberto atinge facilmente valores maiores de 20.000 cd/m2, necessitando de proteção também contra radiação difusa , tanto por motivos de conforto visual quanto pela carga térmica recebida (LAAR, 2002). Por estes motivos, é importante não repetir soluções importadas, mas desenvolver metodologias próprias e aplicar com critério os materiais e tecnologias existentes no mercado, adaptando-os quando possível às nossas necessidades específicas. Com relação ao conforto visual, é bom lembrar que, para se obter conforto na realização de tarefas visuais, os seguintes itens devem ser atendidos: • • • • Iluminância para as tarefas visuais: cada tarefa visual necessita de níveis de iluminância específicos (ver norma brasileira NB 57-1991) Uniformidade de Iluminação: uma certa uniformidade de iluminação é necessária, especialmente em se tratando de ambientes de trabalho; Ofuscamento: o ofuscamento direto ou refletido deve ser evitado, controlando os níveis de luminância da tarefa visual e de seu entorno; Modelagem de Objetos: As sombras são importantes para definir a forma e posição dos objetos no espaço, quando não há outras referências. Eficiência Energética através do Uso da Luz Natural Controlada Num país com enorme disponibilidade de luz natural como o Brasil, nota-se que este recurso é muitas vezes sub utilizado, ou utilizado de maneira equivocada, gerando problemas para os edifícios. Pode-se obter maior eficiência através do uso da luz natural controlada, basicamente em dois modos: • • Economia Direta: através do uso otimizado da luz natural, há uma redução do uso da luz artificial. É necessário que haja um sistema de controle da luz artificial incorporado, de forma que quando há suficiente luz natural, a luz artificial seja desligada ou diminuída. Desta forma, é importante que o projeto de luz artificial seja integrado desde o início com o estudo do comportamento da luz natural. Economia Indireta: através da redução da carga do ar condicionado. Quando se há um bom projeto de luz natural, proporcionando a entrada de luz natural difusa controlada, há menores ganhos de calor solar e reduzem-se os ganhos de calor gerados pela iluminação artificial. Isto diminui a carga de refrigeração do ar condicionado. Estratégias de Projeto para Edifícios: Sistemas e Componentes para a Luz Natural Os sistemas e componentes que podem ser utilizados para aproveitamento da luz natural vão desde os mais simples, como proteções solares fixas, prateleiras de luz até tecnologias mais sofisticadas. BAKER et al (1993) apresentam uma classificação dos componentes que podem ser utilizados para a luz natural, inseridos no projeto de arquitetura. 5 6 Medido pela autora, em condição de céu parcialmente encoberto, 100.000 lux Medido pela autora no mesmo mês, em condição de céu claro, 100.380 lux. Componentes para a Luz Natural (BAKER et al, 1993) Componentes de Condução Componentes de Passagem Elementos de Controle Superfícies de Separação Espaços de Luz Intermediários Laterais Galeria Janela Divisória Convencional Pórtico Sacada Divisória Ótica Estufa Parede Translúcida Divisória Prismática Espaços de Luz Internos Cortina de Vidro Divisória Ativa Proteções Flexíveis Pátio Interno Zenitais Átrio Lucernário Horizontal Toldo Duto de Luz Luc. Tipo Monitor Cortina Duto de Sol Luc. Tipo “Shed” Proteções Rígidas Domo Beiral Teto Translúcido Prateleira de luz Globais Peitoril Membrana Aleta vertical Filtros Solares Persiana (interna ou externa) Lamela (fixa ou móvel) Brise (fixo) Obstáculo ao Sol Veneziana Quadro 1. Classificação dos Componentes para a Luz Natural (BAKER et al, 1993). Dentre estes, alguns podem ser destacados por serem de utilização adequada a climas quentes, além de apresentarem custo relativamente baixo e exigências de manutenção simples. LUCERNÁRIOS TIPO “SHED” E LAMELAS DIFUSORAS Em se tratando de componentes de passagem zenitais (ver quadro 1), estes devem ser cuidadosamente projetados, para evitar ganhos de calor excessivos, já que a cobertura recebe mais que o dobro da carga solar se comparada às fachadas. Os lucernários lineares podem ser agrupados segundo sua geometria (horizontais, monitor, sheds, etc). Os “sheds”, por exemplo, caracterizam-se por serem fechados por material opaco na parte de cima, tendo somente uma das laterais com material transparente. Podem ser uma boa solução em climas quentes, pois permitem um melhor controle da luz e carga térmica; devem ser, no entanto, orientados corretamente, ter proteção solar e possivelmente lamelas para auxiliar na difusão da luz. No projeto de requalificação do edifício Plaza di América, em Seviiha (Espanha), foram utilizados lucernários tipo “shed”, que foram redesenhados e orientados para o sul (hemisfério norte)7. Esta estratégia permite o controle da penetração solar durante o ano, além de permitir o ingresso de calor para o aquecimento passivo; as lamelas situadas abaixo da abertura contribuem para difundir ainda mais a luz. Os cálculos demonstram que estes sistemas de controle, além de outros não descritos aqui, garantem a iluminação natural dos ambientes durante 80% do tempo, reduzindo a carga energética para a iluminação artificial e o ar condicionado. 7 Para o hemisfério sul, na latitude de Brasília, a orientação sul é adequada, pois permite que se ganhe luz difusa sem entrada de calor excessivo da radiação direta (com uma pequena proteção para os meses de verão). Alguns projetos do arquiteto João Filgueiras Lima (Lelé) utilizam este tipo de solução com bons resultados. Figura. 1. Corte transversal do edifício Plaza di América em Sevilha (Fonte: ROGORA, 1998) Figura 2. Esquema de funcionamento dos “sheds” e lamelas, mostrando as curvas de iluminância embaixo dos mesmos (Fonte: ROGORA, 1998). PRATELEIRAS DE LUZ As prateleiras de luz foram estudadas pela primeira vez por Hopkinson nos anos 50, com relação ao controle e distribuição da luz difusa e redução do ofuscamento. O recente interesse nestes componentes é devido à sua habilidade nestas duas funções e também no direcionamento de luz direta no ambiente, quando desejado (BAKER et al, 1993). Uma prateleira de luz normalmente é posicionada horizontalmente acima do nível do observador em um componente de passagem vertical (uma janela, por exemplo), dividindo-o em uma parte superior e uma inferior. Protege as zonas internas próximas à abertura da luz solar direta e redireciona a luz que cai na superfície superior para o teto, melhorando a distribuição de luz interna. A superfície superior da prateleira pode ter acabamento em material refletor, como espelho, alumínio ou outros. As dimensões dependem dos ângulos solares da região. As prateleiras de luz podem ser internas, externas ou mistas, retas ou curvas. Podem ser usadas também debaixo de elementos zenitais, melhorando a distribuição de luz e/ou protegendo da radiação direta. Figura 3. Exemplos de prateleiras de luz plana (a) e curva (b) e seu funcionamento (Fonte: MAJOROS, 1995). Figura 4. Exemplo de utilização de prateleiras de luz abaixo de aberturas zenitais (Fonte: AMORIM, 2000). Um exemplo de aplicação de prateleiras de luz em edifícios é o Centro de Treinamento do Banco de Agricultura da Grécia, localizado em Atenas. Projeto do escritório de arquitetura Tombazis e Associados, o edifício é quase totalmente subterrâneo, para minimizar o volume aparente da construção (a área é residencial), além de favorecer o sombreamento e estabilizar as temperaturas num clima muito quente durante o verão. A luz natural foi também um parâmetro determinante do projeto: dado que o edifício é quase todo abaixo do nível do terreno, muitas das janelas dão para pátios internos e lucernários, utilizando as prateleiras de luz para garantir uma melhor penetração da luz. Uma sala de aula típica tem altura de 3.10 m e largura de 7 m: a prateleira de luz localiza-se 2.40 m de altura acima do piso (90 cm externa, 60 cm interna) e é fabricada em chapa metálica pintada de branco, para otimizar a reflexão da luz. As prateleiras de luz agem (fachadas sudeste e noroeste) diminuindo a penetração de luz direta e criando um ambiente luminoso mais uniforme, o que é muito importante em se tratando de salas de aula. Figuras 5 e 6. Centro de Treinamento em Atenas (Grécia): foto da fachada noroeste, com prateleiras de luz. e corte transversal:prateleiras de luz na fachada sudeste (Fonte:FONTOYNONT, 1998) Considerações Finais: No âmbito da luz natural, muitos componentes para serem utilizados como estratégias de projeto estão disponíveis, tanto em novos edifícios, como em reformas. Alguns podem também ser combinados a outras estratégias, como a ventilação natural. Neste artigo, alguns exemplos são apresentados, enfatizando o uso de estratégias simples para o incremento da luz natural nos edifícios. As estratégias escolhidas devem considerar a questão do custo e da manutenção dos componentes, além do desempenho dos mesmos. Num próximo artigo, serão apresentados alguns componentes e tecnologias de última geração, desenvolvidos nos últimos anos, além de exemplos de aplicação destes em projetos. A disseminação de informações é muito importante, para que a utilização destas estratégias em larga escala possa tornar-se uma realidade palpável, colaborando para a sustentabilidade da arquitetura de forma concreta. Bibliografia AMORIM, C.N.D. "Illuminazione Naturale, Comfort Visivo ed Efficienza Energetica in Edifici Commerciali: Proposte Progettuali e Tecnologiche in contesto di clima Tropicale". Tese de Doutorado. Università degli Studi di Roma "La Sapienza". Dezembro 2000. BAKER, N.; FANCHIOTTI, A.; STEEMERS, K. Daylighting in Architecture. A European Reference Book. James and James Editors, London, 1993. FONTOYNONT, M.(Ed.). Daylighting Performance in Buildings. James and James, London, 1998. LAAR, Michael. “Daylighting Control Systems in Tropical Latitudes-Impact on energy consumption in office buildings”. Renewable Energy Congress VII. Köln, Alemanha, 2002. Anais. LAMBERTS, R., LOMARDO, L.L.B., AGUIAR, J.C. e THOMÉ, M.R.V. Eficiência Energética em Edificações: Estado da Arte. Procel/ELETROBRÁS,1996. MAJOROS, András. Daylighting. PLEA Notes, Note 4. PLEA in Association with Department of Architecture, the University of Queensland. Edited by S.V.Szokolay, 1998. PIARDI et al. La Qualità Ambientale degli Edifici. Maggioli Editori, Milano, 1999. ROGORA, A. “Riqualificazione del padiglione Plaza di America a Siviglia”. In: Revista Ambiente Costruito, n. 3, Milano. Julho/setembro 1998.