o problema dos critérios na análise musical uma abordagem

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Anais do IX Fórum de Pesquisa em Arte.
Curitiba: ArtEmbap, 2013.
O PROBLEMA DOS CRITÉRIOS NA ANÁLISE MUSICAL:
UMA ABORDAGEM ETNOMUSICOLÓGICA
Amanda Veloso Garcia1
[email protected]
Resumo
Culturas distintas têm diferentes formas de criar, expressar, entender e significar a
música. Um estudioso que se propõe a examinar apenas a estrutura musical pode cair
no erro de impor critérios irrelevantes à cultura musical alheia. Diante deste problema,
neste trabalho, apresentamos a visão de Merriam, que defende que a música deve ser
entendida como um elemento da complexidade do comportamento social que carrega
crenças e valores subjacentes. Trata-se, portanto, de um comportamento musical e
não apenas de um conjunto de fenômenos sonoros. Com base nesta necessidade, a
proposta deste artigo é, por meio da Filosofia Ecológica, oferecer ferramentas
adequadas para a análise musical que entendemos que deva se pautar na
identificação contextualizada de padrões. Acreditamos que assim é possível
enriquecer a compreensão da própria música bem como dos nichos culturais a que
pertence.
Palavras-chave: Etnomusicologia; Comportamento musical; Nicho musical; Padrões;
Antropologia da música.
Abstract
Different cultures have different ways to create, express, understand and mean music.
A researcher that aims to examine only the musical structure may make the mistake of
imposing irrelevant criterions to others’ musical culture. In face of this problem, we
present in this paper Merriam’s. This scholar argues that music should be understood
as an element of the complexity of social behavior that carries underlying beliefs and
values. Therefore the study object of the Musicologist (or Ethnomusicologist) should
involve a group’s musical behavior and not just its sound phenomena. Based on this
need, the purpose of this article is to provide appropriate tools for musical analysis
through the Ecological Philosophy, analysis which we understand should be based on
identifying patterns in a contextual environment. We believe that in this way it is
possible to enrich the understanding of music itself as well as of the cultural niches it
belongs.
Keywords: Ethnomusicology; Musical behavior; Musical niche; Patterns; Musical
Anthropology.
1
Licenciada e Bacharelanda em Filosofia pela UNESP/Campus de Marília.
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INTRODUÇÃO
A música é uma manifestação presente nas diversas culturas. Entretanto, os
modos de expressá-la, criá-la, entendê-la e dar-lhe significado diferem em muitos
aspectos. Indígenas, africanos, orientais, ocidentais, latinos, entre outros, apresentam
especificidades em suas práticas e experiências musicais.
Isto se torna evidente ao compararmos a performance musical em nossa
cultura com as práticas indígenas. Em geral, a música indígena está intrinsecamente
ligada ao ritual e, por isso, requer o gesto e a dança em sua execução, além de estar
ligada a algo além da mera execução de um som. Já, em nossa cultura ocidental, nem
sempre há essa vinculação intrínseca entre a musica e a performance de maneira que
esta pode ser vista em alguns casos como mercadoria.
Em meio a tantos diferentes comportamentos musicais, aquele sujeito que se
propõe a de algum modo analisá-los encontra diversas barreiras. Pode acabar por
atribuir-lhes classificações que estão presentes em sua própria cultura sem perceber o
quanto estas são irrelevantes para a compreensão da prática musical alheia, ou por
não conseguir abarcar toda sua complexidade artística. No exemplo supracitado, ao se
estabelecer uma análise musical dentro dos ditames da música ocidental europeia
podemos julgar “simples” as manifestações musicais indígenas; porém, se a
considerarmos enquanto expressão da cultura do povo em questão a classificaríamos
como de extrema complexidade. Análises musicais que não sejam contextualizadas
além de não contribuírem para a compreensão do nicho cultural em que se inserem
acabam sendo reducionistas.
Neste trabalho, procuraremos expor o problema dos critérios na análise
musical buscando oferecer ferramentas mais adequadas para compreender os
diferentes comportamentos musicais. Para tanto, inicialmente exporemos algumas
ideias de Alan Merriam, pioneiro do ramo da Etnomusicologia, de modo a apresentar a
importância do aspecto antropológico na compreensão da cultura musical. E
indicaremos alguns conceitos da abordagem ecológica de James Gibson como
ferramentas eficazes para a compreensão da cognição musical de forma
contextualizada nas distintas práticas musicais.
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MÚSICA COMO COMPORTAMENTO
A música é um meio de entender os povos e o
comportamento é uma valiosa ferramenta de análise da
cultura e da sociedade (MERRIAM, 1964, p. 13, trad.
2
nossa) .
No início, a pesquisa em música procurava desvendar a sua estrutura
identificando suas tonalidades, progressões harmônicas, rítmicas etc. Há pouco mais
de cem anos, iniciou-se um movimento que deixou em segundo plano questões como
“o que é música?” para se dedicar à compreensão do “por que a música é deste
modo?”: a Etnomusicologia. Tal termo surgiu em 1950 – por Jaap Kunst – para
substituir a expressão Musicologia Comparada que era utilizada para se referir às
pesquisas da área desde o século XIX.
Tal escola, que se consolidou a partir de 1956 com a fundação da Society for
Etnomusicology nos EUA, busca entender as práticas musicais como algo além do
elemento sonoro, de maneira que a análise etnomusicológica não deve se limitar à
estrutura do fenômeno musical, mas dedica-se a entender os fenômenos culturais
enraizados que produziram tal comportamento musical. Alan Merriam (1923-1980) em
seu livro The Anthropology of Music (1964) – um dos clássicos da área e que ainda
hoje é fonte de pesquisa – chama a atenção para o aspecto antropológico da música e
sua integração com a Musicologia.
Para o autor, “a música é um produto do comportamento humano e possui
estrutura, mas sua estrutura não pode ter existência própria se divorciada do
comportamento que a produz” (MERRIAM, 1964, p. 7)3. Tal consideração é decorrente
do entendimento que o autor tem de “música”:
A música é um fenômeno exclusivamente humano que só existe em termos
de interação social; é feita por pessoas para outras pessoas, e é um
comportamento aprendido. Ela não é e não pode existir por, de, e para si
mesma; deve sempre haver seres humanos fazendo algo para produzi-la. Em
suma, a música não pode ser definida como um fenômeno de som isolado,
pois envolve o comportamento de indivíduos e grupos de indivíduos, e sua
organização particular demanda a concordância social das pessoas que
4
decidem o que pode e o que não pode (MERRIAM, 1964, p. 27) .
2
No original: "music is a means of understanding peoples and behavior and as such is a valuable tool in
the analysis of culture and society". Todos os textos de Merriam e Gibson citados no presente artigo foram
traduzidos pela autora, assim como os de Michaels e Carelo. Os textos originais em inglês são fornecidos
nas respectivas notas de rodapé.
3
No original: “Music is a product of man and has structure, but its structure cannot have an existence of its
own divorced from the behavior which produces it”.
4
No original: “Music is a uniquely human phenomenon which exists only in terms of social interaction; it is
made by people for other people, and it is learned behavior. It does not and cannot exist by, of, and for
itself; there must always be human beings doing something to produce it. In short, music cannot be
defined as a phenomenon of sound alone, for it involves the behavior of individuals and groups of
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Desse modo, a música é uma forma de relação e comunicação com o meio
social, é um comportamento aprendido socialmente. Neste contexto, a música não
pode ser entendida apenas como produto, mas constitui um comportamento social.
Para abranger a real complexidade das manifestações musicais é preciso que
seja feito um “estudo da música na cultura” (MERRIAM, 1964, p. 6)5 de maneira a
entendê-la como um elemento da complexidade comportamental do ser humano6. Por
trás de uma manifestação musical temos crenças e valores que a identificam com sua
respectiva cultura e que justificam, de certo modo, seu acontecimento.
Merriam elaborou um modelo, que seria um subcampo da Etnomusicologia –
Antropologia da Música –, no qual a música deve ser estudada em “três níveis de
análise: conceituação sobre música, comportamento em relação à música, e o som em
si mesmo” (MERRIAM, 1964, p. 32)7. Para que se entenda de fato a música, é preciso
compreender as razões do comportamento que a produziu. Tais ideias relativas à
música, que Merriam chamou de “conceitos musicais”, são fundamentais para seu
estudo. O conceito produz o comportamento8, e este, por sua vez, produz o som.
Contudo, “conceitos sobre música, então, são fundamentais para o
etnomusicólogo que busca o conhecimento sobre um sistema musical, no qual subjaz
o comportamento musical” (MERRIAM, 1964, p. 84)9. O investigador deve procurar
identificar tais conceitos de modo a não aplicar seus próprios conceitos ao
comportamento musical alheio. Partindo desta ideia de música como comportamento,
propomos uma abordagem contextualizada da música, que deve se pautar na
identificação dos padrões que subjazem a prática musical observada.
UMA ABORDAGEM CONTEXTUALIZADA DA COGNIÇÃO MUSICAL
Para uma abordagem contextualizada da música, que defendemos aqui, é
preciso fazer um esforço para abandonar critérios prévios. Para compreender um
comportamento musical deve-se focar na identificação de padrões para que daí
individuals, and its particular organization demands the social concurrence of people who decide what it
can and cannot be”.
5
No original: “the study of music in culture”.
6
Em obras posteriores – Definitions of ‘Comparative Musicology’ and ‘Ethnomusicology’: Na HistoricalTheoretical Perspective (1977), Merriam alterou seu entendimento original de "música na cultura" para
"música como cultura".
7
No original: “three anlytic levels: conceptualization about music, behavior in relation to music, and music
sound itself.”
8
O comportamento também é dividido pelo autor em três níveis: físico, social e verbal.
9
No original: “Concepts about music, then, are basic to the ethnomusicologist who searches for
knowledge about a music system, for they underlie the music behavior”.
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possamos nos empenhar em desvendar ou refletir sobre quais conceitos e critérios os
praticantes daquela manifestação se baseiam. Para tal, explicitaremos alguns
conceitos de James Gibson (1904-1979) que se mostram ferramentas adequadas para
esta identificação. Para demonstrar a relevância de tais conceitos nos utilizaremos da
seguinte situação-exemplo: uma passista da GRES Estação Primeira de Mangueira,
moradora da comunidade e neta de membros tradicionais da Escola, ao ouvir um
samba enredo.
É muito provável que ao ouvir o samba enredo a ação imediata da passista
seja sambar. Podemos explicar tal situação dizendo que a passista estabeleceu uma
relação de reciprocidade com o ambiente em que foi criada – bairro Mangueira – de
modo a formar um sistema integrado. Podemos supor que a participação em projetos
e eventos da Escola da comunidade garantiu à moça em questão uma boa
convivência e prestígio entre seus pares, o que mostra uma relação de
complementaridade com o ambiente, pois a Escola precisa dos moradores da
comunidade e eles também precisam dela para a construção de sua identidade.
A comunidade e seus moradores, a Escola de samba, o repertório de músicas
e variações de batidas executados pela bateria da Escola, entre outros elementos,
fornecem à passista uma variedade de ações possíveis. Por exemplo, ela é capaz de
reconhecer diversas variações de sons executados pelos instrumentistas de uma
bateria de maneira que altera sua dança de acordo com elas. É também capaz de
reconhecer os instrumentos pertencentes à bateria e as variações de ritmos. Isto é
possível porque sua coevolução com esse ambiente permitiu um conjunto específico
de ações que está de acordo com a informação disponível que lhe é significativa.
Utilizando os termos da teoria gibsoniana, podemos dizer que esse sistema
integrado pela passista e sua comunidade constitui seu “nicho” formado de acordo
com o Princípio de Mutualidade. O conjunto de ações possíveis que a passista tem em
seu repertório é chamado de conjunto de affordances e estas são possíveis devido às
invariantes que a passista identifica no ambiente.
A teoria de Gibson (1966, 1979) – também chamada de Teoria da Percepção
Direta – tem em seu cerne o Princípio de Mutualidade, que diz respeito à ação
recíproca que se desenvolve entre organismo e ambiente. Como ressalta Gibson,
“animal e ambiente formam um par inseparável. Cada um implica o outro. Nenhum
animal poderia existir sem um ambiente que o rodeia. Do mesmo modo, embora não
seja tão óbvio, um ambiente implica um animal (ou, pelo menos, um organismo) a ser
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circundado” (1986, p. 8)10. Assim, organismo e ambiente formam um sistema
integrado.
De acordo com o exemplo, a Escola não poderia existir sem os membros da
comunidade, pois necessita deles para que executem as tarefas correspondentes ao
carnaval e para que, no decorrer do ano, levem a tradição adiante, seja por meio das
relações cotidianas seja mediante a Escola da Mangueira, que tem sua “escolinha”
que ensina crianças e jovens da comunidade a sambar e tocar. Do mesmo modo,
fazer parte deste movimento dá prestígio a seus participantes diante da comunidade, o
que mostra uma relação de dependência de ambos os lados.
Dessa relação mútua de complementaridade decorre o que o autor chama de
affordance (GIBSON, 1986, cap. 8). Ele define tal conceito como “o que ele (o
ambiente) oferece ao animal, o que provê ou fornece, seja benéfico ou prejudicial”
(1986, p. 127)11. As affordances constituem a informação significativa percebida
diretamente pelos organismos sem a mediação da representação12 – e, por isso, a
teoria Gibsoniana recebeu o nome de Teoria da Percepção Direta – e que oferecem
possibilidades para a ação. Como exemplifica Clarke, a música proporciona uma gama
de affordances: “música disponibiliza (affords) dança, adoração, trabalho coordenado,
persuasão, catarse emocional, marcha, bater os pés e uma miríade de outras
atividades” (2005, p. 38)13. No caso de nossa situação-exemplo, algumas affordances
possíveis são sambar rápido/devagar, parar no momento correto, movimentar os
braços, cantar, sorrir etc.
A diferença de affordances de um organismo para outro se deve à estrutura
corporal e história coevolutiva de autoajuste com o ambiente que disponibiliza
determinadas informações significativas e que constituem o nicho do organismo. É
esta informação significativa que fornece possibilidades de ação – affordances. Ou
seja, as affordances dependem do sistema (organismo+ambiente) em que este está
inserido. Dessa forma, um objeto pode gerar uma affordance para um organismo e
não para outro que tem uma estrutura corporal diferente que não lhe permite perceber
o objeto sob aquele viés. As propriedades que resultarem dessa relação serão
10
No original: “animal and environment make an inseparable pair. Each term implies the other. No animal
could exist without an environment surrounding it. Equally, although not so obvious, an environment
implies an animal (or at least an organism) to be surrounding”.
11
No original: “The affordances of the environment are what it offers the animal, what it provides or
furnishes, either for good or ill.”
12
A questão da representação tem sido polêmica na obra de Gibson gerando muito debate sobre sua
aplicabilidade. Não entraremos neste debate em nosso trabalho, utilizaremos apenas alguns conceitos da
teoria do autor.
13
No original: “music afford dancing, worship, co-ordinated working, persuasion, emotional catharsis,
marching, foot-tapping, and a myriad other activities”.
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emergentes no sentido de que não se reduzem apenas à soma das diversas partes
envolvidas.
Caso o exemplo em questão tratasse de alguém sem habilidades para o samba
ou com algum tipo de deficiência física que impossibilitasse a ação, essa affordance
não estaria disponível ainda que essa pessoa tenha crescido no mesmo ambiente.
Porém, se ela tem outras potencialidades como o canto, pode ter affordances
relacionadas ao cantar ou a executar cacos14.
Como ressalta o próprio Gibson, “uma affordance [...] tem que ser medida em
relação ao animal. Elas não são apenas propriedades físicas abstratas” (1986, p. 127128)15. Affordances não se reduzem nem ao mundo físico nem ao organismo, mas
decorrem da relação entre ambos. Affordances consistem em informação específica
para um organismo com um sistema perceptivo específico para a sua detecção.
Em resumo, affordances são descrições do ambiente com referência a um
animal; affordances são o que o ambiente significa para um animal. As
affordances de um objeto, lugar, ou evento são os comportamentos que ele
convida ou permite em virtude da sua estrutura, composição, posição, e
assim por diante – e em virtude das efetividades do animal (MICHAELS;
16
CARELO, 1981, p. 159) .
O conceito de nicho é de extrema importância na abordagem gibsoniana. Para
o autor, “nicho não é exatamente o mesmo que o habitat da espécie; um nicho se
refere mais a como um animal é do que a onde ele vive. Eu sugiro que um nicho é um
conjunto de affordances” (1986, p.129)17. Dessa forma, um nicho consiste numa
junção do habitat de um organismo com seu mundo próprio que se constitui de suas
experiências,
necessidades,
estrutura
corporal,
entre
outros
elementos
que
estabelecem as affordances próprias de um organismo. E, nesse viés, o nicho diz
respeito a possibilidades cognitivas de experienciar o mundo.
O nicho da passista que utilizamos como exemplo é formado pela sua história
coevolutiva com a comunidade e, consequentemente, com a Escola de Samba, o que
envolve o cotidiano da comunidade, pessoas relacionadas ao samba, a história de
seus parentes que fazem parte da escola a três gerações, os diversos sons e músicas
executadas pela Escola etc. Sua relação intrínseca com a Escola pode levar a
affordances emocionais, como por exemplo, alguns sambas podem levá-la a chorar
14
Caco: nome dado às frases ditas pelos intérpretes de samba entre os versos da música.
No original: “affordances [...] have to be measured relative to the animal. They are unique for that
animal. They are not just abstract physical properties”.
16
No original: “In brief, affordances are descriptions of the environment with reference to an animal;
affordances are what the environment means to an animal. The affordances of an object, place, or event
are the behaviors it invites or permits by virtue of its structure, composition, position, and so on—and by
virtue of the animal’s effectivities”.
17
No original: “This is not quite the same as the habitat of the species; a niche refers more to how an
animal than to where it lives. I suggest that a niche is a set of affordance”.
15
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por suscitar lembranças de histórias, carnavais ou sambas que ela estabeleceu
alguma relação significativa mais forte. Sambas exaltação – executados para motivar
os membros da Escola – podem levá-la à emoção por sua história se confundir com a
da Escola e levar a uma identificação imediata.
Aquilo que o organismo captará em uma música estará de acordo com seu
nicho musical que consiste no contexto musical do organismo que pode ser formado
pela soma dos sons ambientais do local em que vive, repertório cultural e contextual,
gostos musicais, interesses, práticas musicais, estrutura auditiva, treinamento formal
de música, habilidades e todos aquelas práticas que fornecem os elementos para que
o organismo perceba os sons de um modo específico, ou seja, que fornecem um
conjunto específico de affordances.
O que torna as affordances possíveis é a disponibilidade de informação
significativa no ambiente. Esta consiste de padrões chamados por Gibson de
invariantes (1986, p. 73-75). As invariantes constituem propriedades do ambiente que
mantêm certo grau de permanência que permite a um organismo identificá-las dentro
de um sistema como um padrão, de modo que as invariantes fornecem informação
sobre algo. As invariantes se constituíram de processos coevolutivos de longa duração
e, assim, são inerentemente significativas e não precisam ser interpretadas, exceto
quando se está fora de seu nicho. Estas podem ser de dois tipos: estruturais, as que
são invariantes devido às suas características físico-químicas; ou transformacionais,
as que são invariantes devido a seus padrões de movimento, são invariantes na
mudança.
Podemos considerar, no exemplo supracitado, invariantes nos ritmos
executados pela bateria, pois há alguns padrões que indicam o começo de uma nova
batida ou o fim da “batucada” e até mesmo o início do samba enredo. Se focarmos nos
ritmistas componentes da bateria as affordances serão outras; por exemplo, as batidas
são executadas conforme os sinais indicados pelo mestre de bateria por meio do apito
e de símbolos apresentados com os dedos da mão. Apenas conseguem identificar as
batidas correspondentes aqueles acostumados com os sinais.
O próprio entendimento do estilo “samba”, que permite aos ritmistas executar
corretamente suas nuances, pode ser explicado pelas invariantes. Um estilo musical
tem invariantes auditivas que caracterizam o tipo de acento, tipo de ataque sonoro,
timbre, tonalidade, entre outros. Há, por exemplo, invariantes estruturais, como o
timbre dos instrumentos executados, e transformacionais, como o ritmo específico do
gênero. As invariantes fornecem informação sobre algo, no caso, o gênero samba.
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Contudo,
acreditamos
que
identificando
tais
padrões
conseguimos
compreender um pouco melhor as manifestações musicais em questão. Nesse esforço
de entender a cultura musical alheia, deve-se evitar o estabelecimento de critérios
anteriores às próprias práticas musicais estudadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Merriam nos mostra o quanto a música está intrincada numa rede complexa de
relações irredutíveis a apenas seu aspecto formal/estrutural, atentando para a
necessidade de se levar em conta seu aspecto antropológico. Haja vista que a música
é um comportamento social, o autor frisa que “sem um entendimento dos conceitos,
não há real entendimento da música” (MERRIAM, 1964, p. 84)18. Assim, para
compreender diferentes comportamentos musicais, é preciso considerar não apenas
as escalas, ritmos e notas executadas – pois estão imbricadas nesse comportamento
–, diversos outros elementos antropológicos/sociológicos que carregam crenças,
valores e ideias.
Além disso, é preciso que se tenha a consciência de que “todo conhecimento é
uma reconstrução/tradução por um espírito/cérebro numa certa cultura e num
determinado tempo” (MORIN, 2000, p. 34). Embora o esforço para abandonar critérios
prévios deva ser buscado, é preciso assumir nossas limitações para não recairmos
numa ingênua neutralidade. É preciso ter clareza quanto à existência de nossos
valores e hábitos estéticos e de sua influência sobre nossa percepção ainda que não
consigamos delimitá-los. E, neste sentido, o esforço de analisar honestamente a
cultura musical dos povos pode levar a uma compreensão melhor de nossa própria
cultura por meio da análise comparativa, isto porque o expandir da percepção permite
olhar de forma diferente para nossa própria cultura. Como ressalta Pinto (2008, p. 7),
buscar entender essas manifestações musicais de outros continentes
significa estudá-las, e estudá-las exige um conhecimento mais aprofundado
da sociedade em foco, ao mesmo tempo que conhecer outras civilizações é
também emancipar-se das normas ao próprio redor, relativizando-as, para,
inclusive, enxergar a própria cultura com outros olhos e, por conseguinte,
ouvi-la com outros ouvidos.
Contudo, é importante que ocorra essa ampliação dos horizontes para que os
preconceitos arraigados não nos impeçam de experienciar e/ou compreender outros
nichos musicais e, consequentemente, nichos culturais. E, principalmente, para que
possamos, tratar com respeito as diferentes culturas existentes.
18
No original: “Without an understanding of concepts, there is no real understanding of music”.
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REFERÊNCIAS
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GIBSON, J. J. Ecological approach to visual perception. Hillsdate: Lawrence Erlbaum
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MERRIAM, A. The Anthropology of Music. Evanston: Northwestern University Press,
1964.
MICHAELS, Claire F.; CARELLO, Claudia. direct perception. New Jersey: PrenticeHall, 1981.
MORIN, Edgar. Da necessidade de um pensamento complexo. In: MARTINS,
Francisco Menezes; SILVA, Juremir Machado da (Orgs). Para navegar no século XXI,
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PINTO, Tiago de Oliveira. Etnomusicologia: da música brasileira à música mundial.
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