Português RESUMO ESTENDIDO Diagnóstico Diferencial de Transtornos Mentais e Experiências Anômalas/Religiosas: A importância do quadro de referência e dos transtornos mentais de base Dr. ZANGARI, Wellington1 Dra. MACHADO, Fatima Regina2 Este trabalho se propõe a colaborar na discussão em andamento na comunidade científica internacional a respeito do diagnóstico diferencial para transtornos mentais e experiências anômalas/religiosas. Isto é feito por meio da problematização da lista nove sintomas diferenciadores entre experiência anômala/religiosa e transtorno mental apresentada por Menezes Júnior e Moreira-Almeida (2009), lista esta elaborada a partir de um exaustivo levantamento desses sintomas na literatura especializada. A seguir, são apresentados os nove sintomas diferenciadores nas palavras dos referidos autores e, após cada um deles, nossa problematização. I - Ausência de sofrimento psicológico. O sofrimento está relacionado à doença. Deve-se lembrar, entretanto, que os estágios iniciais de uma experiência religiosa ou espiritual podem vir acompanhados de grande sofrimento pessoal que poderão ser superados à medida que o indivíduo avançar na compreensão e no controle da sua experiência. Greyson (1997), estudando as EQM, afirma que os indivíduos, após essa experiência, sentem raiva e depressão, experimentam abalos em suas crenças religiosas, passam a duvidar de sua sanidade mental, sentem-se incompreendidos pelos familiares e profissionais de saúde e que 75% rompem casamentos, e suas carreiras profissionais podem ficar gravemente prejudicadas. Comentando quatro casos em seu artigo, ele afirma que o atendimento psicoterapêutico e psicofarmacológico adequado trouxe uma melhor compreensão da experiência vivida por eles, 1 Laboratório de Psicologia Social da Religião e Laboratório de Psicologia Anomalística e Processos Psicossociais (Inter Psi) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – [email protected] 2 Pós-Doutoranda do PEPG Ciências da Religião (Bolsa PNPD Capes) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Laboratório de Psicologia Social da Religião e Laboratório de Psicologia Anomalística e Processos Psicossociais (Inter Psi) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – [email protected] X Seminário de Psicologia e Senso Religioso, Curitiba, PUCPR, 2015. ISSN 0000-0000 1 levando esses pacientes a retomarem e muitas vezes reestruturarem sua vida de forma mais significativa. (Menezes Júnior e Moreira-Almeida, 2009, p. 88) Aqui é interessante notar que o que se rotula como sofrimento, praticamente como resultado de uma doença, refere-se a uma consequência de uma experiência anômala. A experiência anômala poderia, portanto, provocar ou produzir um transtorno mental e sofrimento psicológico. Questionamos se as experiências anômalas/religiosas poderiam, per se, levar a um transtorno mental ou se haveria uma disposição individual para o transtorno mental que poderia, essa sim, levar à emergência de um transtorno mental, independentemente das experiências anômalas. Este questionamento está fundamentado no fato haver indivíduos que jamais desenvolveram transtorno mental ou tiveram algum sofrimento após terem vivenciado experiências anômalas/religiosas. II - Ausência de prejuízos sociais e ocupacionais. A saúde psicológica implica um ego estruturado gerenciando adequadamente as relações sociais, familiares, afetivas e atividades ocupacionais. Lukoff et al. (1992), entretanto, comentam como indivíduos que tiveram uma experiência mística podem se sentir temporariamente desajustados em relação à sua vida cotidiana, enquanto não conseguirem compreendê-la e retomá-la. (Menezes Júnior e MoreiraAlmeida, 2009, p. 88) Aqui é apresentada uma situação semelhante ao primeiro sintoma: uma espécie de desorientação pessoal e social após uma experiência, a sensação de perda de referências e de controle da situação. Note-se que, assim como no primeiro sintoma, essa situação é temporária. A frase “enquanto não conseguirem compreendê-la e retomá-la”, sugere/aponta que o indivíduo, diante de uma experiência anômala/religiosa, terá que encontrar seu significado, dar sentido a ela dentro de um quadro de referência, contextualizando-a, para que ela não fuja de seu controle de modo permanente. III - A experiência tem duração curta e ocorre episodicamente. A experiência espiritual não patológica é um acréscimo às possibilidades vivenciais do indivíduo, não se interpondo às demais experiências cotidianas da consciência. Assim, espera-se que a pessoa saudável passe por uma vivência incomum e logo retome seu estado habitual de consciência e suas atividades cotidianas. Existem casos, entretanto, de médiuns treinados que sustentam experiências espirituais por mais tempo sem comprometimento de sua saúde mental. (Menezes Júnior e Moreira-Almeida, 2009, p. 88) X Seminário de Psicologia e Senso Religioso, Curitiba, PUCPR, 2015. ISSN 0000-0000 2 Talvez o mais fundamental aqui seja a diferença entre experiências episódicas e aquelas para as quais o indivíduo realiza um treinamento para chegar a elas. No primeiro caso ocorre uma experiência inesperada, abrupta, enquanto no último, uma experiência desejada, cultivada e, o que é mais importante, compreendida dentro de uma referência simbólica específica. Esse último elemento parece ser a chave para compreender tanto o primeiro quanto o segundo “sintoma” e será útil para a compreensão/problematização dos próximos sintomas listados. IV - Existe uma atitude crítica sobre a realidade objetiva da experiência. A consciência saudável, surpreendida pela experiência espiritual ou religiosa, precisará refletir sobre o sentido dessa experiência para si mesmo e para sua vida. Enquanto o indivíduo não desenvolver uma nova compreensão sobre a experiência que esteja vivendo, ele precisará colocar sob suspeita essa nova experiência, até que ela possa ser compreendida. Enquanto isso, ele poderá não conseguir avaliar adequadamente o que lhe sucedeu, como ocorre, por exemplo, nas experiências místicas, como mostraram Lukoff et al. (1992). (Menezes Júnior e MoreiraAlmeida, 2009, p. 88) Novamente o elemento “compreensão simbólica/cognitiva” surge como fundamental. Aqui o importante é que a experiência é questionada justamente porque ela não parece, a princípio, compatível com o quadro de referência do indivíduo. O sentido da experiência pode emergir após essa mesma experiência ser confrontada com o quadro de referência “anterior”. Há, por assim dizer, um conflito entre a experiência e o modo de perceber a realidade. Esse modo pode ser alterado pela necessidade de abarcar nesse a experiência vivida. Temos, portanto, três sintomas que dizem respeito à questão do sentido. V - Existe compatibilidade da experiência com algum grupo cultural ou religioso. A compatibilidade da experiência com as crenças e os comportamentos próprios de um grupo cultural de referência sugere o ajustamento social daquele que vive a experiência com as práticas de um grupo, conferindo legitimidade a essa vivência. Entretanto, a EQM e a mediunidade podem surpreender indivíduos, seus familiares, bem como os grupos religiosos em que eles estejam inseridos, sem que alguém tenha qualquer compreensão sobre o que tenha ocorrido. (Menezes Júnior e Moreira-Almeida, 2009, p. 88-89) X Seminário de Psicologia e Senso Religioso, Curitiba, PUCPR, 2015. ISSN 0000-0000 3 Eis um quarto sintoma relacionado ao sentido. Ora, a compatibilidade ou incompatibilidade da experiência com algum grupo cultural ou religioso demarca perfeitamente o enquadramento simbólico/cognitivo disponível na cultura para dada experiência. Pelo que vimos até o momento, é fundamental para a saúde mental que as experiências anômalas/religiosas possam ser integradas pelo sujeito dentro de um conjunto organizado de símbolos que permitam retirá-las da esfera do caos existencial. “Surpresa” remete, nesse contexto, evidentemente à falta de sentido pelo menos momentânea. VI - Ausência de comorbidades. Sims (1988) apontou que a psicopatologia relacionada a uma experiência espiritual pode ser observada tanto no comportamento do indivíduo quanto na sua experiência subjetiva, manifesta-se em todas as suas áreas de vida e compõe um histórico de vida compatível com o histórico de um transtorno mental, em nada lembrando uma experiência espiritual. Quanto mais evidenciada estiver a patologia, mais probabilidade há de estarmos diante de um transtorno mental. (Menezes Júnior e Moreira-Almeida, 2009, p. 89) Parece óbvio que um distúrbio mental relacionado a uma experiência anômala/religiosa se comporte da mesma forma como qualquer outro distúrbio mental. No entanto, consideramos que o fato de o conteúdo ser de tipo anômalo/religioso em nada influencia o caráter do distúrbio uma vez que não se pode esperar que a experiência seja a causa do distúrbio, mas que a experiência ou faça eclodir uma patologia de base ou que sirva de conteúdo do discurso de uma patologia já manifesta. VII - A experiência é controlada. Cabe a um ego vigilante controlar suas vivências habituais e garantir um bom desempenho pessoal e social. Caberá a ele, da mesma forma, controlar as experiências espirituais e religiosas, de modo a não prejudicar suas vivências habituais. Formas orientais de meditação, por exemplo, tendem a atrair indivíduos com transtorno de personalidade borderline e narcisista, que têm uma frágil integração psicológica, podendo gerar nesses indivíduos falsas experiências de iluminação, repletas de visões aterradoras. (Menezes Júnior e Moreira-Almeida, 2009, p. 89) Aqui vemos a questão do controle da experiência que, em pessoas saudáveis, se faz pela busca ou construção de sentido para a experiência. Este sintoma ressalta o fato de que as experiências anômalas/religiosas assumem caráter de transtorno não por si mesmas, mas de acordo o transtorno de base dos indivíduos que as vivenciam. Em X Seminário de Psicologia e Senso Religioso, Curitiba, PUCPR, 2015. ISSN 0000-0000 4 “indivíduos com transtorno de personalidade borderline e narcisista”, até mesmo uma experiência nada anômala/religiosa pode assumir um caráter patológico. VIII - A experiência gera crescimento pessoal. A experiência espiritual gera significados enriquecedores para a vida pessoal, social e profissional de um indivíduo. Já a experiência patológica, mal estruturada e mal estruturada desde o princípio ampliará o desequilíbrio do indivíduo ao longo do tempo, resultando em deterioração geral da sua qualidade de vida. (Menezes Júnior e Moreira-Almeida, 2009, p. 89) Novamente, o significado é o ponto central. Após tantas referências, diretas ou indiretas à questão dos significados, é necessário questionar se se pode falar em “experiência patológica” ou se não seria mais adequado referir-se às experiências como integradas ou desintegradas ao quadro de referência, ao universo simbólico, ao mundo de sentidos que o indivíduo constrói e que a partir do qual constitui sua identidade. Além disso, haveria que se questionar se o indivíduo, para além das experiências anômalas/religiosas, tem ou não saúde mental! Em indivíduos de saúde mental frágil qualquer experiência – não apenas as anômalas – poderá ser revestida de caráter sintomatológico. IX - A experiência é voltada para os outros. A experiência voltada para os outros guarda um sentido e um objetivo social, próprios de alguém socialmente ajustado. Já a experiência egocentrada tende a ser isolacionista e pode, muito facilmente, levar o indivíduo a enredar-se nos meandros de um pensamento delirante sem que ele próprio possa se dar conta da extensão do seu desvio da normalidade. (Menezes Júnior e Moreira-Almeida, 2009, p. 89) Eis mais um caso em que a experiência anômala/religiosa e o direcionamento da ação do indivíduo decorrente dessa experiência dependerá do ajustamento social e psicológico do experienciador: ações voltadas para os outros – no caso do indivíduo mentalmente saudável – ou ações/pensamentos voltados especialmente para si mesmo, que assumem aspectos delirantes – no caso dos indivíduos desajustados. Após analisar os nove sintomas diferenciadores apresentados por Menezes Júnior e Moreira-Almeida, percebemos que eles poderiam ser reduzidos a apenas dois vetores fundamentais: (1) o quadro de referência a partir do qual o(a) experienciador(a) dá sentido às suas vivências anômalas/religiosas; e (2) a predisposição psicopatológica daquele(a) que passa por uma experiência anômala. Se o (a) experienciador(a) não oferecer à sua X Seminário de Psicologia e Senso Religioso, Curitiba, PUCPR, 2015. ISSN 0000-0000 5 experiência anômala/religiosa um sentido, essa experiência poderá ser perturbadora, sendo percebida como pertencente à ordem do descontrole, do caótico, do imponderável. Para indivíduos mentalmente sãos, as experiências anômalas/religiosas se constituem, a princípio, como fonte de conflito cognitivo e afetivo, cujo sentido ainda não foi encontrado; mas, com algum esforço pessoal e apoio social, seu significado acabará por ser construído, o que permitirá a integração simbólica dessas experiências. Em indivíduos mentalmente doentes, as experiências anômalas/religiosas são submetidas à gramática da doença de base, podendo se constituir como parte do conteúdo delirante ou mesmo como desencadeadoras de estados patológicos de base. Palavras-Chave: Diagnóstico diferencial, experiências anômalas, experiências religiosas REFERÊNCIAS GREYSON Bruce. The near-death experience as a focus of clinical attention. Journal of Nervous and Mental Disease. 1997;185(5):327-33. LUKOFF David; LU, Francis TURNER, Robert. Toward a more culturally sensitive DSMIV: psychoreligious and psychoespiritual problems. Journal of Nervous and Mental Disease. 1992;180(11):673-82. 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