“Viver com o outro, com o estrangeiro, confronta-nos com a possibilidade ou não de ‘ser um outro’. Não se trata simplesmente, no sentido humanista, de nossa aptidão em aceitar o outro, mas de ‘estar em seu lugar’ – o que equivale a pensar sobre si e a se fazer outro para si mesmo”. Serviriam essas palavras de Júlia Kristeva para introduzir uma reflexão sobre a filosofia medieval islâmica? Sim e não. Em primeiro lugar, não. Por quê? Porque tais palavras, mesmo impressionantemente verdadeiras, podem induzir-nos ao engano de tratar a filosofia medieval islâmica como algo “estrangeiro” a nós – que somos não-muçulmanos –, fazendo-nos incorrer, ainda, no equívoco de julgar a história da filosofia islâmica como um outro desconhecido, do qual não teríamos nenhuma informação nem sofreríamos a mínima influência. Em segundo lugar, sim. Especialmente no Brasil. Por quê? Porque, apesar de o pensamento islâmico, em muitos aspectos, ter entrado em profunda simbiose com o pensamento “ocidental”, ele continua, ainda em grande KRISTEVA, J. Estrangeiros para nós mesmos. Trad. de Maria Carlota Carvalho Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 21. escala, desconhecido dos leitores do Ocidente. No Brasil, essa deficiência se potencializa, dadas a precariedade de nossos recursos bibliográficos e a dificuldade de acesso à bibliografia já existente (dificuldade essa não apenas geográfica, como também lingüística, pois nós, brasileiros, ainda não desenvolvemos suficientemente a cultura do aprendizado de línguas estrangeiras, sobremaneira as línguas clássicas, que nos dão acesso às obras filosóficas antigas). O livro organizado por Rosalie Helena de Souza Pereira, intitulado Busca do Conhecimento – Ensaios de filosofia medieval no Islã, nesse sentido, prova que o pensamento islâmico não é um estrangeiro para nós. Ao mesmo tempo, contribui para sanar as deficiências brasileiras, reunindo uma coletânea de artigos – publicados em língua portuguesa – sobre a filosofia no Islã. A coletânea é composta de textos independentes, mas articulados por uma característica comum: todos concentram-se na exploração de questões ou temas do pensamento elaborado no Islã que testemunham de sua continuidade direta com o saber elaborado pelos gregos ao qual se convencionou chamar de Filosofia. E é justamente essa continuidade HYPNOS, São Paulo, número 21, 2º semestre 2008, p. 293-295 Resenha PEREIRA, Rosalie Helena de Souza (org.). Busca do Conhecimento – Ensaios de Filosofia Medieval no Islã. São Paulo: Paulus, 2007. (Coleção Philosophica, v. 3). Resenha 294 temático-metodológica que permite atribuir caráter filosófico às elaborações feitas pela cultura islâmica. O primeiro texto, intitulado Bayt al-Hikma e a transmissão da filosofia grega para o mundo islâmico e de autoria da mesma responsável pela coletânea, introduz o leitor no estudo da formação do pensamento filosófico árabe-islâmico, sobretudo pela abordagem do modo como a ética e a política gregas acomodaram-se bem à cultura filosófica islâmica e das traduções dos textos gregos em árabe, com a conseqüente introdução de Platão, Aristóteles e Plotino no Islã. O respeitado especialista espanhol, Prof. Rafael Ramón Guerrero, é o autor do segundo artigo, Conceitos de filosofia no pensamento de Al-Kindi, e presta um grande serviço ao leitor, pois o introduz, com muita perspicácia, no estudo das primeiras tentativas de elaboração de algo como uma concepção islâmica do saber filosófico. Esse serviço é continuado por Pierre Lory, com o texto A alquimia islâmica: uma ciência do devir humano, pois, articulando o conhecimento que hoje chamaríamos de “científico” com os temas mais pungentes da ética filosófica clássica, mostra a natureza moral da alquimia, concebida como saber cujo escopo é a virtude e a felicidade. Massimo Campanini, por sua vez, é autor do quarto artigo, intitulado A dialética utopia – antiutopia no pensamento político islâmico medieval, e oferece ao leitor um estudo que toma duas vertentes paradigmáticas da filosofia política islâmica: aquela de Al-Mawardi e Ibn Taymiyya, que concebem um Estado islâmico, e aquela de Al-Farabi e Averróis, que se conectam diretamente com as teorias políticas gregas. O quinto artigo é assinado pelo Prof. Josep Puig Montada, reconhecido arabista espanhol, sob o título Ibn Tufayl, a aventura da humanidade. Nesse texto, o autor explora as relações entre física e metafísica, na busca de união com o Ser Supremo como a plenitude da ciência e da felicidade. Explorando as alegorias presentes na narrativa Vivente, filho do Desperto, de Ibn Tufayl, o Prof. Puig Montada explora o caráter unitário dos saberes, permitindo supor a continuidade direta com a unidade grega dos saberes, tendo, inclusive, como escopo da atividade humana, a contemplação do Bem Supremo (mas, agora, por via também unitiva e não apenas teórica). O sexto e o sétimo artigos são dedicados a Averróis, o mais conhecido dos autores muçulmanos da Península Ibérica. O primeiro deles, de caráter mais filológico, ocupa-se do sentido assumido pelos termos “decisivo, determinação e conexão” no título da obra de Averróis, Livro do Tratado Decisivo e da Determinação da Conexão entre a Lei e a Sabedoria, e é assinado por Charles E. Butterworth. O autor, nesse artigo, aborda a querela para a qual Averróis pretende ter dado solução definitiva, a respeito da legitimidade jurídica da reflexão filosófica sobre ensinamentos da Escritura, tais como a eternidade do mundo, o conhecimento dos particulares por parte de Deus e a retribuição dos atos humanos na vida futura. HYPNOS, São Paulo, número 21, 2º semestre 2008, p. 293-295 outras vias, das quais uma merece ser destacada: todos eles testemunham da continuidade direta, temática e metodológica, de boa parte da reflexão desenvolvida no Islã com a tradição grega mais autêntica, explicitando, por conseguinte, e sem artifícios mirabolantes (como às vezes é necessário fazer para se falar de “Filosofia no Oriente”), que a herança filosófica islâmica não é nada estrangeira para a história do pensamento ocidental. A coletânea, nesse sentido, permite o exercício de pôr-se no lugar do outro; de assumir as perspectivas filosóficas desenvolvidas no Islã. Isso não apenas faz com que se entenda esse “outro”, mas, sobretudo, como dizia Julia Kristeva, que se pense sobre si e se faça outro para si. Ocorre que, pela leitura desses textos, descobrimos o quanto, pelos laços de consagüinidade filosófica, temos de relações profundas com o patrimônio filosófico do Islã. Assim, em vez de “outro” como estrangeiro, pareceria mais coerente, neste caso, falar de outro como irmão. Ou, no mínimo, como concidadão. Juvenal Savian Univ. Fed. S.Paulo [email protected] HYPNOS, São Paulo, número 21, 2º semestre 2008, p. 293-295 295 Resenha Poderá o leitor constatar o método racional de demonstração de verdades de fé, como propunha Averróis, e não a teoria da “dupla verdade”, como lhe será imputado, no século XIII, por autores latinos. O segundo dos dois artigos dedicados a Averróis é assinado pelo pesquisador brasileiro Tadeu Mazzola Verza, com o título Sobre a pré-eternidade do mundo no Tahafut al-Tahafut de Averróis, e aborda a questão da eternidade do mundo, no debate averróico com Al-Gazali. O último estudo consiste na tradução de um fragmento da Lógica de Avicena, conservado no tratado De diuisione philosophiae, de Domingos Gundissalvo (séc. XII). A tradução é acompanhada de notas sobre a estrutura e a divisão aviceniana das ciências, e é assinada por Alfredo Storck. Se fosse necessário perguntar por um fio condutor entre os vários artigos, certamente o título dado à coletânea ofereceria a resposta. Isso quer dizer que a busca de conhecimento é o que une todos os textos, mostrando como cada um deles, a seu modo, investiga o esforço islâmico para chegar à ciência e à sabedoria. Mas, dada a obviedade desse fio, parece possível dizer que os textos articulam-se por