Criopreservação de embriões humanos no contexto da

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doi: 10.7213/revistapistispraxis.07.003.DS04
ISSN 1984-3755
Licenciado sob uma Licença Creative Commons
[T]
Criopreservação de embriões humanos no
contexto da saúde sexual e reprodutiva
Human embryo cryopreservation in the context
of sexual and reproductive health
Élio Estanislau Gasda*
Faculdade Jasuíta (FAJE), Belo Horizonte, MG, Brasil.
Resumo
Há 32 anos nascia Zoe Leyland, primeiro bebê fruto de um embrião congelado. Após
compreender o congelamento de embriões no contexto das técnicas de reprodução assistida, na pesquisa com células-tronco embrionárias e as discussões no Brasil, passa-se a apresentar a visão do Magistério a partir da Evangelium Vitae. Como ato clínico,
a criopreservação tem uma dimensão técnica, jurídica e uma dimensão ética. Diante
da inexistência de um conceito teórico unívoco em questões do início da vida, surge o
dilema moral: doar, descartar ou criopreservar os embriões sobrantes? Qual o futuro
da técnica da criopreservação de embriões humanos? Poderá desaparecer ou evoluirá
a níveis éticos satisfatórios?
Palavras-chave: Bioética. Criopreservação. Saúde sexual e reprodutiva. Evangelium Vitae.
EEG: Doutor, e-mail: [email protected]
*
Rev. Pistis Prax., Teol. Pastor., Curitiba, v. 7, n. 3, p. 635-661, set./dez. 2015
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Abstract
Zoe Leyland was born 32 years ago, the first baby that resulted from a frozen embryo.
After understanding the freezing of embryos in the context of methods of assisted
reproduction, in the context of embryonic stem cells and the debates in Brazil, passes
to present the vision of the Magisterium from Evangelium Vitae. As a clinical act,
cryopreservation has technical, juridical and ethical dimensions. Faced with the lack
of an unambiguous conceptual theory regarding issues on the beginning of life, the
following moral dilemmas surface: donate, discard or preserve remaining embryos?
What is the future of the method of embryos? Can this method disappear or can it
evolve to a more satisfactory ethical level?
Keywords: Bioethics. Cyropreservation. Sexual and reproductive health. Evangelium
Vitae.
Introdução
O tema da criopreservação situa-se no delicado campo da ética
aplicada para o início da vida humana. Entre as matérias que incluem o
estudo dos problemas clínicos, jurídicos e éticos da reprodução assistida,
a crioembriologia constitui uma das preocupações emergentes. Sua análise
recebe inúmeros e variados enfoques. Após contextualizar, compreender
a técnica e apresentar a visão do Magistério da Igreja, o texto abordará a
questão a partir da bioética.
A Evangelium vitae (EV) concentra sua atenção, de modo particular, sobre os gêneros de atentados relativos à vida nascente e terminal, que
apresentam novas características em relação ao passado e levantam problemas de singular gravidade (EV 11). Entre as ameaças à vida, o documento
inclui as várias técnicas de reprodução assistida: “Também as várias técnicas de reprodução artificial, que pareceriam estar ao serviço da vida e que,
não raro, são praticadas com essa intenção, na realidade abrem a porta
a novos atentados contra a vida” (EV 14). Tais técnicas são moralmente
inaceitáveis,
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porque separam a procriação do contexto integralmente humano do ato
conjugal, além de registrar altas percentagens de insucesso, a respeito não
tanto à fecundação como, sobretudo, ao desenvolvimento sucessivo do
embrião, sujeito ao risco de morte em tempos geralmente muito breves.
Além disso, são produzidos às vezes embriões em número superior ao necessário
para a implantação no útero da mulher e esses, chamados «embriões supranumerários», são depois suprimidos ou utilizados para pesquisas que,
a pretexto de progresso científico ou médico, na realidade reduzem a vida
humana a simples “material biológico”, de que se pode livremente dispor.
(EV 14).
Há 32 anos nascia o primeiro bebê fruto de um embrião congelado. Zoe Leyland foi gerada no Centro Médico Rainha Vitoria (Melbourne,
Austrália), no dia 28 de março de 1984. Dos dez óvulos fertilizados pela
mãe, sete foram congelados. Dois deles foram implantados, um sobreviveu e uma criança nasceu. Este fato inscreveu os nomes dos médicos Alan
Trounson e Carl Wood nos anais da história da medicina. A decisão de
tentar a fertilização in vitro através do congelamento de embriões foi tomada por eles e pelos pais de Zoe.
Congelamento de embriões no contexto das técnicas de reprodução
assistida
As Técnicas de Reprodução Assistida (TRA, em adiante) são uma
modalidade de tratamento médico para casais inférteis, maiores de idade
e estáveis. Tais técnicas são um fenômeno inédito e complexo, onde reações emocionais se mesclam com preocupações racionais. Soma-se a isso
calorosas manifestações públicas de grupos ligados às religiões, às visões
divergentes sobre o papel da mulher, a percepção positiva ou negativa da
medicalização de processos naturais. Campo minado, de perigosa travessia, que não permite miradas uniformes, ultrapassadas ou superficiais. A
história moderna ensina:
Qualquer mudança nos costumes ou nas práticas em dimensões emocionalmente sobrecarregadas, geram sempre uma primeira reação de negação
acompanhada de espanto diante da violação de costumes estabelecidos e,
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logo de negação livre do espanto, seguida de uma lenta curiosidade, de
estudo e avaliação para, finalmente, alcançar uma prudente aceitação”.
(COOK e DICKENS, 1999, p. 56).
As TRA situam-se no contexto da saúde sexual e reprodutiva que,
durante a última década do século XX desenvolveu um conceito baseado
na definição da Organização Mundial da Saúde (OMS): a saúde é um estado completo de bem estar físico, mental e social e não apenas a mera ausência de enfermidade ou mal estar. Segundo Cook e Dickens (2003), a IV
Conferencia Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994)
enfocou as necessidades e os direitos sociais e reprodutivos. No Programa
de Ação se pede aos governos que, em todos os níveis proporcionem técnicas de fecundação in vitro em conformidade com diretrizes éticas e normas médicas apropriadas.
Também a IV Conferência Mundial das Nações Unidas sobre a Mulher
(Beijing, 1995) adota conceito semelhante: a saúde reprodutiva inclui a
capacidade de desfrutar de uma vida sexual satisfatória e sem riscos de
procriar e a liberdade para decidir fazer ou não fazer, quando e com que
frequência. Em Beijing decidiu-se que os direitos reprodutivos se baseiam
no reconhecimento do direito básico de todos os casais e indivíduos a decidirem livre e responsavelmente o número de filho; a dispor de informação e dos meios para isso; e o direito a alcançar o nível mais elevado de
saúde sexual e reprodutiva. O texto termina especificando que a atenção
à saúde sexual e reprodutiva inclui os serviços de reprodução assistida.
As TRA foram adotadas pelos governos como estratégias para favorecer o planejamento de famílias inférteis que desejam ter filhos. Ou seja,
a criogênese está no contexto da infertilidade. Não é uma questão periférica. Aproximadamente um de cada cinco casais em idade de procriar padece de problemas de infertilidade. Em alguns países como a Dinamarca,
as TRA são responsáveis por quase 5% dos nascimentos (JUNQUERA DE
ESTÉFANI; DE LA TORRE DÍAZ, 2013, p. 112). Abordagens em torno da
terminologia utilizada ao falar de infertilidade ou esterilidade permitem
identificar discursos éticos, imperativos de normalidade e distinções nos
diversos diagnósticos da medicina.
Alguns centros de TRA preferem utilizar o termo infertilidade, já
que, a esterilidade não é situação que as TRA podem reverter. E não foram
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pensadas para isso. Também se distingue entre infertilidade primária que
se dá nas pessoas que nunca conseguiram uma gravidez, e a infertilidade
secundária que abarca as pessoas que tiveram abortos espontâneos. A primeira acepção é a que prevalece nos centros de fertilização assistida. A
infertilidade é um dos poucos termos médicos de caráter relacional, pois
envolve o casal. Aqui surge uma primeira questão: trata-se de um casal
que padece de uma enfermidade ou de dois indivíduos que buscam um
serviço para satisfazer seu desejo de paternidade ou maternidade?
Criopreservação e Fecundação in Vitro (FIV)
Não inventamos a ovulação e nem a fecundação,
simplesmente reunimos melhores condições para que possam ocorrer.
(Robert Edwards)
A história é conhecida: a primeira tentativa de inseminação artificial (IA) em humanos foi em 1970. O médico inglês John Hunter aplicou
a técnica em uma mulher utilizando os sêmens de seu marido impossibilitado de procriar em face de uma deformidade da uretra. É o primeiro
precedente de intervenção no processo de reprodução normal. O coito é
substituído pela seringa. Em 25 de julho de 1978, Robert Edwards informa o nascimento da inglesa Louise Brown, o primeiro ser humano fruto
de uma reprodução in vitro. Louise foi gerada em uma mulher com ausência de trompas. Extraiu-se um óvulo, fertilizado in vitro e logo implantado
no útero. Técnica pela qual também foi concebida Ana Paula Caldeira que,
em 7 de outubro de 1984, tornou-se o primeiro ser humano nascido no
Brasil pela mesma técnica. Desde então, inúmeras mulheres inférteis vêm
conseguindo realizar o desejo da maternidade (KABLYAMBE, ESTÉVEZ
GONZÁLEZ, 2009). Em 1984 ocorre o primeiro caso de gravidez com
óvulo doado e, também, o primeiro caso de gravidez com embrião congelado na Austrália. Zoe Leyland havia passado dois meses em estado de
criopreservação antes de ser gestada no ventre de sua mãe. As técnicas de
cultivo in vitro que permitem obter embriões mais avançados (blastocisto), são noticiadas em 1992 (SART, 2011).
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A reprodução assistida é um conjunto de técnicas da biomedicina
que tem por objeto viabilizar a gestação em mulheres com dificuldades
de engravidar. Referem-se a diferentes procedimentos que, em maior ou
menor medida, podem substituir ou colaborar em uma ou mais etapas
do processo de reprodução. Geralmente, tem como princípio de que toda
pessoa adulta tem o direito de procriar. São de diversos tipos:
Na Inseminação Artificial (IA) a fecundação se dá dentro do corpo
feminino. É um procedimento que dispensa o ato sexual. É utilizada especialmente em casos leves de infertilidade masculina e feminina. Pode
ser homóloga quando os gametas utilizados são do próprio casal; heteróloga quando um ou ambos os gametas sejam obtidos a partir de doadores
anônimos.
Quando a fecundação se dá fora do corpo da mulher, utiliza-se a
fertilização in vitro (FIV). Técnica mais sofisticada, apresenta as seguintes variantes: transferência do gameta masculino e feminino diretamente
no tubo uterino da mulher (GIFT: quando os gametas utilizados são do
próprio casal essa técnica encontra o apoio da Igreja Católica); transferência por via vaginal de um embrião já formado, em estágio pré-nuclear,
implantado na altura das tubas uterinas (TV-TEST); inoculação de espermatozóide no interior de um óvulo, seguida da transferência via vaginal
do pré-embrião formado (ICSI); colocação via vaginal de espermatozoides
diretamente na altura da tuba uterina (IAIU).
A FIV produz embriões em excesso e somente alguns serão implantados no útero. Os restantes serão congelados. A criopreservação ou congelamento de material biológico reprodutivo encontra-se entre as principais
técnicas complementares de reprodução assistida1.
O termo criopreservar se refere ao uso da criobiologia, ciência que
permite conservar material reprodutivo para utilização posterior, em caso
de fracasso no primeiro intento. Esta técnica complementar está presente
nas origens da FIV. Spallanzani, em 1776, foi o primeiro a observar o efeito da temperatura de congelamento no sêmen humano. Montegazza, em
1886, propôs a ideia de bancos para congelamento de espermatozoides.
Somente em 1952 foram criopreservados espermatozoides de mamífero.
As outras são: doação de óvulos, sêmen, embriões, diagnóstico genético pré-implantatório.
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Em 1972, Whittingham publicou os primeiros resultados de congelamento e descongelamento de embriões de ratos (WHITTINGHAM, LEIBO E
MANZUR, 1972). Atualmente, o procedimento se realiza em diferentes
espécies de mamíferos. Em 1983 Trounson e Mohr registraram a primeira
gravidez em humanos. Zeilmarker, em 1984, registra o primeiro nascimento após a transferência de embriões descongelados.
Este método vem sendo considerado uma alternativa para a obtenção da gestação, já que os embriões restantes podem ser armazenados
e transferidos em um ciclo posterior. O êxito de uma FIV nem sempre
é conquistado no primeiro procedimento, mas a potencialidade de um
possível embrião para ser acolhido em um útero é preservada. A criopreservação habilita médicos e pacientes a contarem com outras chances de
se conseguir uma gravidez. Além disso, o alto custo econômico dos tratamentos de FIV faz com que algumas pessoas aceitem a criopreservação,
como uma maneira de reduzir o custo das posteriores tentativas.
A técnica
Boa parte das informações descritas estão baseadas no Manual
de Procedimentos de Laboratório de Reprodução Assistida da Red
Latinoamericana de Reproducción Asistida (REDLARA, 2008). Outros
autores complementam os dados.
É possível congelar um embrião humano, descongelá-lo, transferi-lo a um útero, e conseguir uma nova gestação. O procedimento pode
variar, existindo protocolos para congelamento, congelamento lento e vitrificação. As clínicas devem assegurar-se que as pacientes estão informadas
e conscientes dos detalhes operacionais. Os aspectos técnicos devem ser
discutidos com antecedência para prevenir futuros impasses, tais como
taxa de sobrevivência, qualidade e número de embriões. Toda informação
procedimental deve ser rigorosamente documentada. Registros de consentimento devem ser estabelecidos em conjunto entre o Laboratório e os
médicos: aceitação do casal de realizar o processo de criopreservação; número de embriões congelados; qualidade embrionária; idade embrionária;
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alternativas de destino dos embriões congelados em caso de não desejar
outra gestação, divórcio ou morte (ÁVILA PORTILLO et alii, 2006,).
Preenchido os requisitos, o embrião pré-implantatório é obtido por
meio de um tratamento de fertilização assistida em Laboratório, a partir de
um gameta feminino e outro masculino em condições de ser criopreservado, com a finalidade de ser transferido ao útero em um momento posterior.
Atualmente, são relatados dois métodos para criopreservação: congelação lenta e a vitrificação. A congelação lenta é o método convencional.
Iniciado o processo, os embriões são expostos gradualmente ao crioprotetor, se resfriam a temperaturas abaixo de 0°C, se formam cristais de gelo
no meio externo e finalmente são armazenados em nitrogênio líquido a
-196°C. Durante o processo de descongelamento, os embriões são expostos à temperatura ambiente, se remove o crioprotetor e retornam ao ambiente fisiológico. Durante o congelamento, os cristais de gelo se formam
primeiro no meio extracelular, criando um gradiente de potencial químico
que favorece a saída de água do interior das células. Caso não se consiga
uma adequada desidratação, se formarão cristais de gelo no interior da
célula e ocorrerá a recristalização durante o descongelamento, com graves
consequências para a integridade estrutural da célula. A ciência está desenvolvendo protocolos de congelamento mais sofisticados que permitem
submeter células e tecidos a temperaturas baixíssimas sem afetar sua microestrutura e funcionalidade.
Qual é a melhor etapa para a criopreservação do material reprodutivo? Neste ponto, alguns diferenciam o embrião pré-implantatório, do
embrião já implantado. A linguagem coloquial costuma unifica a denominação, generalizando-se o termo embrião para o material reprodutivo
em questão. Mas, como se verá mais adiante, não há consenso quanto
ao conteúdo deste termo. Algumas clínicas criopreservam desde o estado de pro-núcleos até o de blastocistos. A sobrevida não é igual para todos os estados de desenvolvimento e varia segundo o protocolo de congelamento-descongelamento empregado (MUASHER e JONES, 2000). A
técnica é aplicada tanto em embriões em estado de zigoto (primeiro dia
de desenvolvimento), quanto no estado de células (segundo/terceiro dia
de desenvolvimento) e também em estado de blastocisto (quinto/sétimo
dia). Quanto à criopreservação de zigotos a sobrevivência varia entre 70%
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a 100%, alcançando uma taxa média de gestação de 30%. Esta etapa permite maximizar o número de zigotos congelados, pois não se realiza seleção embrionária no ato do congelamento. Porém, não é possível saber se
os zigotos deixados para cultivo serão os embriões de melhor qualidade
(DEWACHTER, 2004).
No estado de células (segundo e terceiro dia) a taxa média de
sobrevivência ao processo de congelamento/descongelamento alcança
80% e as taxas de gestação giram em torno de 35%. O protocolo de
congelamento lento tem mostrado bons resultados quando os embriões
são congelados lentamente, podendo-se esperar uma taxa de sobrevida de
78% de embriões clivados descongelados (NOYES et alii, 2010).
A criopreservação de blastocistos ocorre quando o cultivo in vitro
se prolonga ao quinto ou ao sétimo dia. Nestes casos não existem muitos
embriões sobrantes para congelar, pois nem todos alcançam o estágio de
blastocisto. Do blastocisto se derivam as células-tronco, pois têm a capacidade de se dividir e dar origem a células semelhantes às originais. São
Totipotentes, possuem a capacidade de originar células de todos os tecidos
do organismo (BORINI et alii, 2008).
Até recentemente, os embriões só podiam ser cultivados em
Laboratório por dois ou três dias, com uma taxa de implantação de 1015%. Com o desenvolvimento do co-cultivo de Menezo e dos meios sequenciais de Gardner (GARDNER et alii, 1998, p. 84-86) é possível cultivar embriões viáveis em Laboratório até o 5º dia. O estado de blastocisto tem
maior capacidade de implantação e, portanto, melhores taxas de gestação
transferindo um menor número de embriões, minimizando-se assim a
taxa de gestações múltiplas. A transferência de blastocistos facilita a identificação de embriões com pouco ou nenhum potencial de desenvolvimento, o que permite a diminuição do número de embriões a ser congelado.
Neste caso, o método costuma ser a vitrificação. Nos últimos anos
a medicina reprodutiva vem avançando consideravelmente na qualidade
da criopreservação de embriões humanos graças à evolução desta técnica. Para se obter uma preservação efetiva é necessária a utilização de um
sistema que previna a cristalização da água. A vitrificação soluciona esse
problema. O processo, diversamente do congelamento lento, requer um aumento radical tanto da concentração dos crioprotetores quanto da taxa de
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resfriamento. Não somente as células, mas sim toda a solução é solidificada sem a cristalização do gelo. A vitrificação e descongelamento de óvulos,
zigotos e embriões aumenta a velocidade de condução térmica e diminui
a concentração de crioprotetores.
A criopreservação celular por métodos de vitrificação tem se mostrado uma estratégia inédita, mas de impacto limitado na reprodução humana.
Contudo, os relatos de gestações bem sucedidas obtidas após a vitrificação
estimulam ainda mais os estudos (MATHIOPOULOU et alii, 2002).
Em suma, vinte anos depois da Evangelium Vitae, inúmeros seres
humanos são gerados através de TRA que utilizam a técnica complementar da criopreservação. Os casais com embriões criopreservados mantêm a
possibilidade de novos ciclos de transferência sem a necessidade de submeter-se novamente a hiperestimulação. Isso reduz custos econômicos,
físicos e emocionais. A fertilização em número limitado minimiza a possibilidade de multigestação e preserva os demais embriões para futuras
transferências. A criopreservação está maximizando a possibilidade de
gravidez, possibilitando o acesso à saúde reprodutiva e permitindo casais
a exercerem a maternidade/paternidade.
Criopreservação no Brasil
No Brasil, a fonte oficial de informação sobre a criopreservação é o
SisEmbrio (Sistema Nacional de Produção de Embriões). O sistema desenvolvido pela Anvisa (Agencia Nacional de Vigilância Sanitária), tem como
objetivos: conhecer o número de embriões humanos produzidos pelas
técnicas FIV que estão criopreservados nos Bancos de Células e Tecidos
Germinativos (BCTGs), conhecidos como clínicas de Reprodução Humana
Assistida; atualizar as informações sobre embriões doados para pesquisas com células-tronco embrionárias; divulgar informações relacionadas
à produção de células e tecidos germinativos; divulgação de indicadores de
qualidade dos Bancos, com o objetivo de promover a melhoria contínua
do controle de qualidade dos mesmos; auxiliar os inspetores sanitários a
avaliar/inspecionar os BCTGs.
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As agências reguladoras de outros países e associações/sociedades
profissionais relacionadas à área de TRA também divulgam os indicadores dos seus serviços. O Conselho Federal de Medicina (CFM) exige que
os resultados das clínicas sejam expostos no documento Consentimento
Informado (Resolução CFM n. 2013/2013).
O abastecimento do SisEmbrio é anual. Os dados a seguir são extraídos do seu 7º Relatório anual (2013) (SISEMBRIO/ANVISA, 2014).
Dos 38.062 embriões congelados em 2013, 66% estão no Sudeste, 14%
no Sul, 12% no Nordeste, 7 % no Centro-oeste e 1% no Norte do Brasil.
Destes, 1.231 embriões foram doados para pesquisa com células-tronco.
Desde a aprovação da Lei nº 11.105/2005, foram doados 5.131 embriões
para a realização de pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil.
Ainda segundo o 7º Relatório anual (2013), foram realizadas 52.690
transferências de embriões para as pacientes que realizaram técnicas de
FIV. Também foram reportados mais de 24.000 ciclos de fertilização com
aproximadamente 218.000 ovócitos produzidos. Taxa compatível com os
valores internacionais, que variam entre 65 a 75%.
O universo estimado para os Bancos de Células e Tecidos
Germinativos (clínicas) no Brasil é de 120 serviços, a adesão dos mesmos ao SisEmbrio (77, 5%) aumentou em comparação aos dados de 2012.
Os BCTGs que não enviarem a sua produção exigida em Regulamento incorrem em infração sanitária, sujeitos a penalidades previstas na Lei nº
6.437, de 20 de agosto de 1977.
O SisEmbrio informa o total de embriões descartados por ausência
de viabilidade: 32.485. Os embriões que possuem ausência de clivagem
(divisão) em período superior a 48 horas serão considerados embriões
sem viabilidade e, portanto, passíveis de descarte. O destino possível dos
embriões congelados é a doação voluntária para mulheres inférteis. A escolha do doador e da receptora do embrião é realizada pelas clínicas.
Lei de Biossegurança: 10 anos
A criopreservação está vinculada à pesquisa com células-tronco embrionárias. Na Inglaterra os embriões congelados podem ser
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utilizados para pesquisa médica. Também é permitido o uso destes embriões para a obtenção de células-tronco. A clonagem terapêutica de
células embrionárias é permitida em países como Alemanha e EUA. Em
ambos, o limite máximo permitido para o desenvolvimento do embrião
in vitro é de 14 dias.
No Brasil o uso de embriões humanos em pesquisas é restringido.
Conforme Resolução 1358/92 do Conselho Federal de Medicina (CFM),
os embriões criopreservados não podem ser destruídos ou descartados,
devendo permanecer congelados por tempo indeterminado. O destino
a ser dado a eles caso ocorra divórcio, doença grave ou morte de um ou
ambos os cônjuges, deve ser anunciado previamente por escrito pelo
casal. A legislação prevê que os embriões usados nas pesquisas precisam ser considerados inviáveis ou que tenham sido congelados até
março de 2005, com a devida autorização dos responsáveis. Em 2009,
foram 455 doações, número que passou a 1.231, em 2013.
No Poder Legislativo, a discussão sobre o uso de embriões para
extração de células-tronco teve início em 2003. A Lei de Biossegurança
(11.105/2005), aprovada pelo Congresso e sancionada com sete vetos
pelo presidente Luis Inácio Lula da Silva, permite o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas. A Lei só se tornou viável
quando, em 29 de maio de 2008, o Supremo Tribunal Federal (STF)
decidiu que as pesquisas com células-tronco embrionárias não violam o
direito à vida, tampouco a dignidade humana. Ou seja, o art. 5º da citada Lei é constitucional, pois o STF entendeu que o pré-embrião não
acolhido no útero, não se classifica como pessoa.
A ordem jurídica atribui a qualificação de pessoa apenas aos nascidos vivos, e não aos que tem a probabilidade de vir a nascer. Tais argumentos possibilitaram a utilização de células-tronco de embriões produzidos por fertilização in vitro e criopreservados para fins de pesquisa
e terapia. O procedimento pode ser feito com embriões inviáveis ou
embriões congelados a partir da data da Lei, depois de completarem
três anos ou mais, contados da data de congelamento. E com consentimento dos pais. A legislação proíbe engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano, bem como a clonagem humana.
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Foram mais de 300 anos de pesquisas. As discussões acerca do tema
tramitaram por seis anos entre o legislativo, executivo e o judiciário. O
Magistério da Igreja também deu seu veredito.
Magistério da Igreja e criopreservação
“A praga do congelamento de embriões”
A sentença acima, extraída do Texto-base da CF-2008 (CNBB, 2008,
p. 129) seria suficiente para expressar o que pensa o Magistério da Igreja
sobre a criopreservação de embriões humanos. A tonalidade do discurso
aponta para a impossibilidade de diálogo.
As religiões, em geral, exercem importante papel nos rumos da
humanidade (CAMBIAGHI, 2010). Também no tema da criopreservação
elas vêm se manifestando. As questões atuais são interpretadas à luz de
antigos textos da tradição. A maioria das posições morais do campo religioso está fundamentada em verdades reveladas, dogmas e nas teorias de
especialistas (médicos, cientistas, teólogos e filósofos) que comungam da
mesma posição da autoridade religiosa.
No Brasil, seus principais representantes são as religiões de tradição cristã. Aqui a abordagem se restringe à posição da Igreja Católica através de seu Magistério. É inegável sua presença na esfera pública, tanto nas
questões sociais como nos assuntos relativos à sexualidade e à reprodução
humana. A Igreja não se limita à orientação pastoral de seus fiéis. Sua
atuação chega às instâncias do Estado. Existem grupos de pressão no poder legislativo e judiciário. Basta recordar a ação de inconstitucionalidade
(ADI) 3.510 contra o artigo 5º da Lei de Biossegurança. No STF, a CNBB
foi representada como parte interessada do processo. Em abril de 2007,
na audiência pública da ADI, ela foi a única entidade a indicar expositores.
Semelhante comportamento repetiu-se no debate sobre a interrupção da
gestação em casos de anencefalia. No Legislativo, o bloco parlamentar católico tem somado forças com os parlamentares “evangélicos” na tramitação do projeto de descriminalização do aborto e do Estatuto da família.
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Imago Dei e Inseparabilidade: os dois pilares da argumentação
A Igreja Católica tem sido um ator destacado no debate sobre a
reprodução assistida. Seu juízo moral acerca dos métodos é formulado
com base em dois argumentos centrais: “a vida do ser humano chamado à
existência; a originalidade da sua transmissão no matrimônio.” (DV 4a).
Quanto ao primeiro argumento, desde o momento da concepção,
a vida de todo ser humano deve ser respeitada de modo absoluto, porque
o homem é, na terra, a única criatura que Deus quis por si mesma, e
a alma espiritual de cada um dos homens é imediatamente criada por
Deus; todo o seu ser traz a imagem do Criador. A vida humana é sagrada porque desde o seu início comporta a ação criadora de Deus e permanece para sempre em uma relação especial com o Criador, seu único
fim. Somente Deus é o Senhor da vida, desde o seu início até o seu fim:
ninguém, em nenhuma circunstância, pode reivindicar para si o direito
de destruir diretamente um ser humano inocente (DV 5b). Pode-se contra-argumentar afirmando que as criaturas humanas geradas pelas TRA
também são imago Dei.
Quanto ao segundo, o Magistério argumenta contra a moralidade das TRA com base no princípio da inseparabilidade dos significados
unitivo e procriativo da relação sexual: a procriação humana exige uma
colaboração responsável dos esposos com o amor fecundo de Deus; o
dom da vida humana deve realizar-se no matrimônio, através dos atos
específicos e exclusivos dos esposos, segundo as leis inscritas nas suas
pessoas e na sua união (DV 5b).
A sexualidade e a reprodução estão confinadas ao matrimônio. E
as TRA são métodos extra-coito de concepção, ou seja, separam o duplo
significado (unitivo e procriativo) do ato sexual. Os dois argumentos aparecem no parágrafo 14 de Evangelium Vitae, conforme citado no início
deste artigo. O Magistério argumenta que as TRA violam os relacionamentos conjugais, portanto, ameaçam a estabilidade da família.
Pode-se contra-argumentar que, apesar das técnicas não dependerem do ato sexual para a reprodução, em alguns casos, elas realizam
tanto os fins da união quanto da procriação, considerando o casamento
como totalidade interpessoal íntima e não apenas um ato genital. Se as
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Criopreservação de embriões humanos no contexto da saúde sexual e reprodutivaI
técnicas podem ajudar a casais inférteis a “realizar essa dádiva suprema de Deus que são os filhos” (Gaudium et Spes 50), é questionável a
veracidade do princípio de inseparabilidade na condenação das TRA. As
técnicas não suprimem o amor conjugal. Podem inclusive, aprofundá-lo.
O Magistério defende seu ponto de vista em termos de lei natural ampliada pela Revelação e mediada pelo seu próprio ensinamento.
Entretanto, muitas técnicas auxiliam a alcançar o fim natural da sexualidade, que é a reprodução da espécie. De fato, é preciso reconhecer que
as novas tecnologias, não apenas as reprodutivas, estão complicando
notavelmente conceitos católicos tradicionais como maternidade, paternidade, filiação e família.
Posição absoluta
A lógica do discurso do Magistério chega à seguinte conclusão:
As técnicas de fecundação in vitro são contrárias à dignidade de ser humano
própria do embrião e, ao mesmo tempo, lesam o direito de cada pessoa a ser
concebida e a nascer no matrimônio e pelo matrimônio. Também as tentativas
destinadas a obter um ser humano sem conexão alguma com a sexualidade, mediante fissão gemelar, clonagem ou partogênese, devem ser consideradas contrárias à moral por se oporem à dignidade tanto da procriação
humana como da união conjugal. (DV 6a).
Quanto ao descarte de embriões, como alternativa adotada na
criopreservação, a base da argumentação aparece com toda sua força na
encíclica Evangelium Vitae:
O valor em jogo é tal que, sob o perfil moral, bastaria a simples probabilidade de encontrar-se em presença de uma pessoa para se justificar a mais
categórica proibição de qualquer intervenção tendente a eliminar o embrião humano: O ser humano deve ser respeitado e tratado como uma pessoa
desde a sua concepção e, por isso, desde esse mesmo momento, devem-lhe
ser reconhecidos os direitos da pessoa, entre os quais e primeiro de todos,
o direito inviolável de cada ser humano inocente à vida. (EV 60).
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Portanto, “a avaliação moral do aborto deve aplicar-se também às
recentes formas de intervenção sobre embriões humanos, que, não obstante
visarem objetivos em si legítimos, implicam inevitavelmente a sua morte”
(EV 63). O Magistério vincula o início da vida ao início de um indivíduo
pessoal da espécie humana no momento da concepção, fruto da união
conjugal: “A todo o ser humano, desde a concepção até à morte natural,
deve reconhecer-se a dignidade de pessoa” (Dignitas Personae 1). Convém
lembrar aqui o critério ético fundamental reafirmado na Donum Vitae: “O
fruto da geração humana, desde o primeiro momento da sua existência,
isto é, a partir da constituição do zigoto, exige o respeito incondicional
que é moralmente devido ao ser humano na sua totalidade corporal e espiritual” (DV 1e).
Ainda segundo a Donum Vitae,
este conteúdo doutrinal oferece o critério fundamental para a solução dos
diversos problemas suscitados pelo progresso das ciências biomédicas
neste campo: uma vez que deve ser tratado como pessoa, o embrião também deverá ser defendido na sua integridade, tratado e curado, na medida
do possível, como qualquer outro ser humano, no âmbito da assistência
médica. (DV 1f).
O Magistério entende que o encontro dos cromossomos do pai com
os cromossomos da mãe gera uma pessoa. A vida da pessoa humana, a
partir da biologia, começa no momento da penetração do espermatozóide no óvulo. A fase de zigoto, célula, blastócito, de embrião, nidificação, são
etapas de diferentes estágios de uma mesma vida. Portanto, o embrião
humano já é uma pessoa atual. Essa representação de pessoa como indivíduo autônomo fundado no essencialismo genético naturalista é reiterado ao
longo de todo o discurso.
A posição absoluta do Magistério na compreensão do status do embrião apela para a base biológica para proclamar o valor transcendente
da vida como dom de Deus. Tais referências atestam a condição de pessoa do embrião, não importando se dentro ou fora do corpo materno.
O discurso da dignidade da pessoa humana conferida a zigotos, fetos e
blastócitos aponta para a sacralidade da vida. E, por essa razão, depositário de todos os direitos. Assim, o embrião é uma realidade “sagrada”
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Criopreservação de embriões humanos no contexto da saúde sexual e reprodutivaI
independentemente de seu contexto. O conceito absoluto da existência
defende o início da vida humana no momento da fecundação.
A partir desta base argumentativa, a condenação da criopreservação de embriões humanos é uma obviedade:
O congelamento dos embriões, mesmo se executado para assegurar uma
conservação em vida do embrião − crioconservação − constitui uma ofensa
ao respeito devido aos seres humanos, uma vez que os expõe a graves riscos
de morte ou de dano à sua integridade física, priva-os ao menos temporariamente da acolhida e da gestação maternas, pondo-os em uma situação
suscetível de ulteriores ofensas e manipulações. (DV 6b).
Portanto, trata-se de uma guerra em defesa do sagrado embrião. A
CNBB convoca os fiéis para “lutar por uma legislação que combata a praga
do congelamento de embriões nas clínicas de reprodução assistida” (CNBB,
2008, p. 129). Um dia após o Conselho Federal de Medicina divulgar as
novas regras para a reprodução assistida, a CNBB alertou para o risco de
"coisificar o ser humano" com o descarte dos embriões excedentes2.
Diante da existência de inúmeros embriões congelados, o
Magistério não aborda a questão da adoção desses embriões órfãos. Essa
é uma possibilidade não muito distante (BERKMAN, 2002, p.117-138).
Porém, a aprovação dessa prática levaria, por consequência, à legitimação
moral da separação do ato conjugal na procriação? A adoção de embriões
órfãos criopreservados supõe uma reconsideração da posição absoluta sobre
a proibição das TRA. Não só, mas também dos fins da sexualidade humana e do conceito de Família, pois casais homossexuais também poderiam
decidir pela adoção destes embriões órfãos.
Os católicos são instruídos a seguir o ensinamento do Magistério.
O fato de ser um ensinamento dirigido aos fiéis católicos dispensa os demais cidadãos de seu cumprimento. A tensão surge quando existe a pretensão de impor um ensinamento religioso na legislação de um Estado
A normativa do CFM estabelece que, após cinco anos congelados, os embriões poderão ser descartados se
essa for a vontade dos pais. Outras possibilidades são a doação para outros casais e para a pesquisa ou a
manutenção dos embriões congelados. A resolução também permite que casais do mesmo sexo podem se
beneficiar do procedimento.
2
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Laico. No Brasil, a maioria da população se declara católica, mas utiliza
métodos contraceptivos não aprovados pela Igreja3.
O Brasil possui 120 centros de TRA. Na América Latina − região de
maior concentração de católicos do mundo − existem aproximadamente
270 destes centros (Red Latinoamericana de Reprodução Assistida). Ou
seja, entre os fieis católicos é comum a prática da dupla moral nas questões da sexualidade e da reprodução humana.
Bioética no conflito de estatutos
A criopreservação, como ato clínico, tem seu momento técnico e
seu momento jurídico, ambos anteriormente abordados, e um momento ético. A bioética é um campo teórico e prático, de natureza descritiva
e prescritiva, multi, inter e transdisciplinar. Existem variadas correntes e
escolas bioéticas que mantêm sustentações teóricas e práticas distintas
sob as perspectivas ideológica, filosófica, religiosa e política. Se não há
um conceito teórico unívoco em questões do início da vida, é possível um
consenso ético sobre a criopreservação?
Como visto acima, o Magistério tem no estatuto do embrião humano
um dos seus pilares no argumento contra as TRA e, por extensão, do congelamento de embriões. Entre os especialistas em TRA, como na sociedade
civil e na medicina, a criopreservação de embriões é tema polêmico. As
principais questões da bioética levantadas pela criogênese convergem no
estatuto do embrião (FINDLAY et alii, 2007). Aliás, todos os problemas
éticos do início da vida humana convergem, sempre, de diversas formas,
nesta questão. Este debate está longe de terminar.
Muitas divergências poderão ser aparadas à medida que se estabeleça um consenso em torno do estatuto jurídico do embrião humano.
Existe um choque de linguagem no debate. Se, por exemplo, os cientistas
favoráveis ao uso de embrião em pesquisa chamam-no de blastocisto, o
Magistério e movimentos pró-vida o chamam de criança (não-nascida),
3
Apenas os métodos Ogino-Knaus, de Billings e de temperatura basal são aceitos pelo Magistério.
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Criopreservação de embriões humanos no contexto da saúde sexual e reprodutivaI
ou mesmo de pessoa humana. Ora, a criopreservação levanta problemas
morais quando se considera o embrião uma pessoa.
A ética obriga a respeitar a todos os seres humanos. A questão, no
contexto da criogênese é: o que é um ser humano atual? Quando começa
a existir um ser humano? A resposta depende do estatuto que se possa
atribuir ao embrião a partir de perspectivas elegidas. O estatuto de algo
ou de alguém é uma descrição do estado em que se encontra e a consideração que merece. Neste sentido, o embrião pode ter diversas classes de
estatuto: científico, ontológico/antropológico, ético, jurídico, religioso. Assim,
a licitude e moralidade da criopreservação de embriões humanos dependem do estatuto adotado.
Em primeiro lugar, não há como avançar no debate ético sem estabelecer, previamente, o marco inicial para a vida. O estatuto ético do embrião
aborda o grau de reconhecimento atribuído a ele. Atualmente existem pelo
menos quatro posturas: respeito absoluto em que a vida humana é inviolável e superior a qualquer outro valor em conflito (Magistério Pontifício);
respeito gradual crescente segundo o nível de desenvolvimento; valor de
coisa/material genético; valor especial (não é material, não é pessoa) − valor singular diferente das pessoas atuais, mas que merece respeito.
As definições costumam enfatizar os dados da biologia. Este artigo,
por exemplo, teve início inserindo as TRA − e por extensão suas técnicas complementares como a criogênese − no contexto da saúde sexual e
reprodutiva da OMS. Para o International Committee Monitoring Assisted
Re-productive Technologies (ICMART, 2000), um embrião é produto da
concepção desde o momento da fecundação, até o fim do período embrionário, oito semanas após a fecundação.
Definições como essa deixam em aberto uma série de questões. O
estudo das possibilidades reprodutivas, as formas fisiológicas, os tipos
distintos de tecnologias reprodutivas destacam os aspectos fundamentais
para entender o que é um embrião: participação de um gameta masculino ou feminino; fecundação, divisão celular, mórula, blastocisto, potencial
de implantação, potencial de desenvolvimento de um feto, e potencial de
gerar um nascido vivo (GÓMEZ-LOBO e STRONG, 2007).
Neste universo conceitual é inevitável utilizar o termo embrião de
maneira indefinida. Existem distinções entre zigoto, mórula, blastócito,
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embrião pré-implantatório (pré-embrião), embrião implantado (terceira
semana) e feto. O termo potencial quer vincular os estudos da biologia
molecular aos estudos da biologia do desenvolvimento. O potencial de
desenvolvimento implícito no embrião permite a passagem do plano ontológico ao plano ético. Potencial entendido como sinônimo de ser o que
se pode vir a ser em alguma fase do desenvolvimento (BEDATE, 2002).
Em segundo lugar, o aspecto relacional da vida humana tornou-se
um fator importante. O desacordo gira em torno do que se considera concepção. Segundo Salem (1997), a caracterização do embrião como pessoa,
com base em critérios biológicos, oculta relações sociais, particularmente
as de parentesco, no caso a relação com a gestante, representando-o em
termos do ideal de indivíduo. O momento de fecundação é um processo
que dura mais de vinte horas. Conceber se refere a uma ação de receber
no ventre um óvulo fecundado que, após a diferenciação celular, começa
um processo de intercâmbio com sua genitora, para constituir um novo
ser nas semanas seguintes. Aplicar o termo nova vida humana a um óvulo
fecundado, a um embrião-pré-implantatório ou a uma realidade pessoal já
constituída não é a mesma coisa. É preciso distinguir o zigoto como uma
nova vida nascente e diferente das células que deram lugar a ele; um
novo organismo individual pertencente à espécie humana; um novo ser
pessoal com suficiência constitucional.
Vida, vida humana, indivíduo e pessoa
Há também mal-entendidos no emprego de termos como vida,
vida humana, vida humana individual e pessoal. O uso do conceito começo
da vida humana está recheado de ambiguidades. Um óvulo ou espermatozoide são matéria viva, mas poderia ser considerado indivíduo
humano?
A posição evolutiva entende que um óvulo humano fecundado − no
estágio de zigoto, mórula ou blastócito − está no início de um processo
de diferenciação que, se continuar no útero materno, poderá dar lugar à
consumação do processo de constituição de uma nova realidade humana
individual. Conforme Diego Gracia, “um embrião de ser humano está
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Criopreservação de embriões humanos no contexto da saúde sexual e reprodutivaI
vivo, mas não é um ser humano constituído; tem a possibilidade de ser,
mas ainda não é. Essa possibilidade supõe muitos fatores necessários
para a constituição de um novo ser humano” (MAIOR ZARAGOZA e
BEDATE, 2003, p. 85).
O embrião, em suas primeiras fases (blastocito) possui individualidade genética, mas ainda não está constituído como um indivíduo
multicelular. O que existe a partir do momento da fertilização é algo
que contém o potencial para desenvolver-se como pessoa, mas ainda
não é. A noção de pessoa é filosófica, ética, valorativa. Falar de pessoa
potencial supõe o dever moral de respeitá-lo como pessoa ainda que não
o seja?
O conceito de pessoa potencial inclui a potencialidade como possibilidade de vir a ser. Existem dúvidas se o embrião em sua fase pré-implantatória não é pessoa atual nem é tão claramente pessoa potencial (GALIANA et al. 2003). O embrião tem a potencialidade de ser uma
pessoa humana. Mas o potencial de desenvolvimento de um embrião é
incerto do ponto de vista biológico, tanto da reprodução humana natural como na TRA. Seu futuro é incerto. Não há garantia que o embrião a
descartar originaria um ser humano caso fosse implantado.
O embrião deve ser respeitado, mas já deve ser considerado
como um sujeito de direitos? Os direitos atribuídos à pessoa são bens
jurídicos. A noção de pessoa sempre é jurídica e o direito à vida está
subordinado ao direito da pessoa. Toda pessoa tem uma qualidade intrínseca de dignidade da qual brotam os direitos que devem respeitados. Por um lado, esta afirmação que é aceita universalmente para a
pessoa humana é discutida em sua aplicação ao não-nascido, que não é
pessoa jurídica. Seria ainda mais discutível para um embrião na etapa
pré-implantatória, que é a fase na qual se realiza na maioria dos centros
a criopreservação como parte das técnicas de medicina reprodutiva
(TESARIK e GRECO, 2004).
Por outro lado, não há dúvida de que é vida humana que poderá
ser uma pessoa caso seu desenvolvimento não seja interrompido. A valorização do embrião como vida humana em sua fase inicial de desenvolvimento, confere-lhe uma dignidade, que pode ser denominada de
dignidade conferida (FULLER e PAYNTER, 2004). Aceitar esta dignidade
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conferida ao embrião humano implica protegê-lo. Aqui podem ser aplicados os princípios de não-maleficência e de justiça da bioética principialista. Também aplica-se a ética da responsabilidade para com esta entidade que possivelmente chegará a ser pessoa no futuro. Estes deveres
morais podem ser o início de um consenso mínimo na controvérsia em
torno do congelamento de embriões.
A realidade, porém, é mais complexa. Já não é suficiente argumentar apenas a partir do principialismo. O conflito de valores e de interesses é total. Os centros que contam com um programa de criopreservação de embriões tem que lidar com uma série de problemas éticos
diariamente. A intervenção de terceiros por si só já suscita problemas,
pois implica a manipulação de material germinal (óvulos, espermatozoides e embriões) que não lhe pertencem. Material este detentor de
vários estatutos simultâneos. Como fazê-los convergir? Como articular
estatutos autônomos de uma mesma entidade?
Decisão moral: descartar, doar ou criopreservar?
Neste debate, a neutralidade não é permitida sequer aos profissionais da saúde. Pesquisadores, bioquímicos, médicos e enfermeiros
trabalham com “fatos”. É fato que quase todas as clínicas de FIV apelam para a criopreservação de embriões sobrantes. É fato que as TRA
abriram caminho para contornar a infertilidade. E é fato que a criopreservação aumentou suas potencialidades. É fato que investigações continuam buscando elementos que unifiquem a contribuição da biologia
molecular e da biologia.
Por um lado, prover as condições para transferir à mulher mais
de um embrião é uma alternativa biomédica para oferecer aos pacientes
uma probabilidade de gestação equivalente à natural. Com a criopreservação se consegue que um ciclo de estimulação hormonal garanta ao
casal mais de um ciclo de transferência, aumentando assim as possibilidades de gestação ampliadas no tempo. A taxa de aborto clínico tem
sido menor na transferência de embriões descongelados, se comparada
com a transferência de embriões frescos.
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Criopreservação de embriões humanos no contexto da saúde sexual e reprodutivaI
Mas, por outro lado, é um fato que o estoque de material genético não para de aumentar. Para esses embriões as opções possíveis são:
criopreservar, descartar, doar. A criopreservação, por sua vez, levanta a
questão dos possíveis destinos: transferir para a mãe quando ela deseja
ter mais filhos; a doação abre duas possibilidades: doar para clínicas
(terapia de fertilidade para oferecer oportunidades de tratamento a outro); investigação.
Diante de tantos impasses existem tentativas de reduzir ao máximo o número de embriões a criopreservar (SIRIS TATIDIS; HAMILTON,
2007). Uma vez que um casal com transtornos de fertilidade leva a termo uma gravidez conquistada por transferência de embriões congelados, fica latente o tema dos restantes embriões em disponibilidade. O
que fazer? Postergar a transferência, doar os embriões para casais inférteis doar para pesquisa, descartar os embriões.
Como as pessoas assumem o fato de ter seu próprio material genético preservado em Laboratório? É material biológico ou é um filho
congelado? Alguns, quando já tiveram outros filhos, preferem descartar os embriões que restam porque não querem doar seu material genético. Além disso, há muitos embriões abandonados após a separação
do casal, viuvez ou mudança de cidade. Quando o casal abandona os
embriões é o banco que assume as despesas da manutenção.
O que fazer com estes embriões órfãos? O que é permitido ser feito?
Quem decide e o que se decide sobre o destino dos mesmos, prestando
atenção nos acordos estabelecidos entre as partes interventoras, pacientes e instituições de saúde? A tendência é que, num futuro próximo, seja possível transferir somente um embrião. Algumas clínicas
já limitam o número a não mais de três (LELANNOU et alii, 2006;
FRAZIER, 2008).
Outro problema ético da criopreservação é o fato de deter no
tempo uma pessoa potencial enquanto seus pais avançam com cada mudança de estação no tempo. É difícil prever o que pode ocorrer com este
casal, com a família e com a sociedade durante a passagem do tempo.
Ninguém está seguro do futuro deste embrião em particular. Ninguém
tem certeza se um dia será implantado. Não é evidente que todo embrião irá gerar uma pessoa humana. Incertezas abundam.
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Considerações finais: futurologia
Qual o futuro da técnica da criopreservação de embriões humanos?
Será interrompida? Evoluirá a níveis éticos satisfatórios? A medicina
continuará aprimorando este método até alcançar uma prática minimamente aceitável do ponto de vista da bioética? Criar menos problemas
morais, talvez. Seu desaparecimento é muito improvável.
Todos os seres vivos tendem a dar continuidade à sua espécie
através da procriação. A sobrevivência da raça tem sido um elemento
essencial presente em todas as culturas, épocas e civilizações. A saúde
reprodutiva e a infertilidade são questões que afetam a muitos homens
e mulheres do nosso tempo. O sentido da paternidade e maternidade,
deixar descendentes, mantém-se como valor primordial para muitas
pessoas.
A razão humana tem sido muito criativa na busca de soluções
para problemas que possam impedir a continuidade da espécie através do coito. A evolução das TRA e da criogênese exige a investigação
profunda dos estágios mais iniciais da vida humana. É possível e imprescindível um conhecimento melhor sobre a reprodução humana que
pode beneficiar a todos, ricos e pobres.
Prognósticos sobre o futuro são incertos. Inclusive, talvez algum
dia a criopreservação deixe de ser condenada de forma radical pelo
Magistério. A criopreservação pode ser reduzida a mero ato tecnológico
despersonalizado quando se realiza em contexto de um casal que vive
um projeto de amor? Até que ponto Zoe Leyland, cujo ser traz a imagem
e semelhança de Deus, não seria fruto do amor esponsal unitivo e procriativo de seus pais?
Vinte anos depois, a Evangelium vitae tem razão em alertar sobre
os atentados à vida humana, mas o risco de incorrer em abusos não
deveria impedir o uso de uma tecnologia que sirva a interesses verdadeiramente humanos. Todo avanço tecnológico é necessariamente
ambíguo. Deus nos dá os filhos que fazemos. Crescei e multiplicai-vos!
(Gen 1, 28).
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Recebido: 08/06/2015
Received: 06/08/2015
Aprovado: 08/10/2015
Approved: 10/08/2015
Rev. Pistis Prax., Teol. Pastor., Curitiba, v. 7, n. 3, p. 635-661, set./dez. 2015
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