A Hermenêutica na fundamentação da objetividade dos

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A Hermenêutica na fundamentação da objetividade dos objetos: Heidegger e a origem
metafísica do processo de objetificação
Adriano Ricardo Mergulhão
PPGFil/UFSCar, Doutorando, Bolsista CAPES
Resumo
Martin Heidegger, no final dos anos 20, propôs uma linha hermenêutica de interpretação, tão
inovadora quanto polêmica, da obra “Crítica da Razão Pura” de Kant. Iremos expor o modo
pelo qual seu livro de 1929 “Kant e o problema da metafísica” e seu seminário do semestre
de inverno de 1927/28 intitulado “Interpretação fenomenológica da Crítica da Razão Pura de
Kant”, modifica violentamente o tradicional conceito de Objetividade (Gegenständlichkeit)
ao atribuir um papel mais relevante para a intuição no processo de fundamentação da
objetividade dos objetos. Ao redefinir a ordem das relações que se estabelecem entre as
faculdades do entendimento e da intuição, inferindo que tais fontes do conhecimento possuem
uma raiz comum na imaginação, Heidegger extraí do projeto crítico uma leitura que
transforma a lógica transcendental em uma ontologia fundamental. Argumentaremos que os
motivos que o levaram a defender tais posições relacionam-se diretamente com sua afronta
com as propostas epistemológicas de leitura da escola Neokantiana de Marburgo, a qual
dominava o ambiente acadêmico do período. Neste sentido, afirma Heidegger que: “A
interpretação da de Kant, feita pela escola de Marburgo, ia mesmo tão longe que apagava a
intuição como corpo totalmente estranho à Crítica da Razão Pura (...). Todas estas
interpretações incorretas (...) tiveram como resultado que o significado desta obra, quanto à
única questão que verdadeiramente lhe está ligada, a questão acerca da possibilidade de uma
metafísica, nem foi corretamente avaliada nem, sobretudo, tornada criadoramente fecunda.”
(“Que é uma coisa?” p. 144). Demonstraremos que um caminho para a compreensão de tal
proposta Heideggeriana estaria no reposicionamento dado ao conceito de Objetividade.
Palavras-Chave: Heidegger, Objetividade, Imaginação, Neokantismo.
Legenda das abreviações:
(Obras de Heidegger)
Ser e Tempo – ST 1927
Kant e o Problema da Metafísica – KPM 1929
Interpretação Fenomenológica da Crítica da Razão Pura – IFCRP 1927
Que é uma Coisa? – QC 1935
A Tese de Kant sobre o Ser – TKS 1951
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O que é metafísica? - QM 1929
Os Problemas Fundamentais da Fenomenologia – PFF 1926
Os Conceitos Fundamentais da Metafísica – CFM 1929
A Essência da Liberdade Humana – ELH
Introdução à Filosofia – IFil 1928
Ensaios e Conferências – EC
Prolegômenos para uma História do Conceito de Tempo- PCT
Lógica a questão da verdade – LQV
Os fundamentos metafísicos da Lógica – FML
(Obra de Kant)
Crítica da Razão Pura - CRP
Prelúdio - Heidegger e a origem metafísica do processo de objetificação:
Um dos precursores dos estudos heideggerianos no Brasil, Gerd Bornheim (2001),
disse certa vez que toda evolução do pensamento ocidental está intimamente ligada a
“história da metafísica Ocidental”, embora, conforme o argumento heideggeriano, “a
Metafísica seja uma ciência que se engana continuamente de objeto”. Ele afirma que:
De certo modo, estamos todos na verdade – mas numa verdade histórica.
(...) Acontece que essa perspectiva de colocação do problema revela-se
fundamentalmente insuficiente, poder-se-ia mesmo dizer que a rigor ela é
pré histórica. Faz-se mister portanto considerar a Metafísica numa outra
perspectiva, dentro de coordenadas propriamente históricas, pois só desse
modo se torna possível entender que a Metafísica, com todos os seus
possíveis enganos, não é nada menos que um dos alicerces do nosso mundo,
ou do Humanismo Ocidental. Por isso, querendo ou não, somos todos
metafísicos. (BORNHEIN 2001, p.185, grifo nosso)
Bornheim expõe uma face de um problema já há muito conhecido, ao menos desde o
diagnóstico feito por Kant, de que possuímos uma disposição natural para a qual a razão tende
irresistivelmente, afirmando que a metafísica faz parte da essência humana. 1 No mesmo eixo
de discussão, mas no extremo oposto desta colocação, temos o testemunho de Michel
Foucault, que afirma que “a impossibilidade encontrada no pensamento ocidental de superar
o corte estabelecido por Kant”, desaguou em um movimento que dominou toda discussão
filosófica do início do século XX. Ele estava se referindo a uma escola filosófica denominada
neokantismo, a qual figurou por décadas como signo de uma época que se propunha como
1
“Em certo sentido, contudo, esta espécie de conhecimento também deve considerar-se como dada e a
metafísica, embora não seja real como ciência, pelo menos existe como disposição natural ( metaphysica
naturalis), pois a razão humana, impelida por exigências próprias, que não pela simples vaidade de saber muito,
prossegue irresistivelmente a sua marcha para esses problemas, que não podem ser solucionados pelo uso
empírico da razão nem por princípios extraídos da experiência. Assim, em todos os homens e desde que neles a
razão ascende à especulação, houve sempre e continuará a haver uma metafísica. E, por conseguinte, também
acerca desta se põe agora a pergunta: Como é possível a metafísica enquanto disposição natural? Ou seja, como é
que as interrogações, que a razão pura levanta e que, por necessidade própria, é levada a resolver o melhor
possível, surgem da natureza da razão humana em geral?” (CRP B22 p.50-51 grifo nosso)
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tarefa um “eterno” retorno a esta “imposição incessantemente repetida de reavivar este corte”
crítico transcendental. Em outras palavras, tratava-se do retorno a Kant 2, do qual nenhum
filósofo moderno ou contemporâneo escaparia ileso em sua trajetória. Mas a tese que é
anunciada na seqüência desta sua reflexão é a que nos deixa mais perplexos, pois ele destaca
por fim, que “neste sentido somos todos neo-kantianos”. 3 Tal polêmica afirmação de Foucault
parece comportar apenas uma “meia verdade”, pois mostra apenas uma face do problema das
influências históricas contemporâneas, sem, contudo tocar no problema da recusa do ponto de
vista metafísico que o neokantismo traz de esteio.
Se pesarmos ambos os argumentos apresentados acima (1. “Somos todos metafísicos”
e 2. “Somos todos neokantianos” ) talvez possamos encontrar certo equilíbrio em seus
extremos. Estas incontornáveis questões nos levam a supor que ambas teses definem os dois
principais pilares de sustentação do pensamento moderno, estabelecidos como tais a partir de
diferentes leituras de Kant. Poderíamos dizer então, que consideradas em sua mais ampla
abrangência e respeitadas suas peculiaridades, ontologia metafísica e epistemologia são os
principais eixos da filosofia ocidental. Existe obviamente grande exagero (e reducionismo)
nesta colocação, mas ela não é destituída de todo sentido, servindo aqui como exemplo de
nossa proposta, pois a partir desta configuração singular do problema da herança histórica do
pensamento filosófico contemporâneo surge no horizonte um problema interpretativo, no qual
estamos procurando nos situar. Em meio a estes dois grandes eixos do pensamento moderno,
deve o pesquisador contemporâneo se alinhar a determinada proposta de leitura da filosofia
crítica, se filiando assim a um dos extremos, ou existe um “salvo conduto” do pensar teórico
que permita transitar livremente entre ambos os pólos, fazendo então surgir uma ponte
conceitual que interligasse suas bases por meio da exposição de suas inerentes contradições e
convergências, atingindo assim um almejado “distanciamento”?
É na neutralidade interpretativa de uma terceira via teórica que a nossa proposta
procura se movimentar, investigando, como vimos na apresentação, se existem pontos de
2
Neste registro, devemos nos lembrar da grande influência promovida pelas palavras de ordem de Otto Liebman,
“Zurück zu Kant” que ainda ressoavam claramente no horizonte deste período. Acerca desta “volta a Kant” vide
PORTA (2005 p.36 nossa tradução): “Na realidade esta volta se inicia muito antes, imediatamente após a morte
de Hegel, não sendo o neokantismo “institucional” senão a culminação deste processo. Neste “retorno a Kant”
encontra suas raízes a filosofia contemporânea. Compreendendo por tal, as duas grandes tradições que marcaram
o pensamento do séc.XX, a filosofia analítica e a filosofia fenomenológico-hermenêutica”
3
“Cassirer est “”néo-kantien”. Ce qui est designe par Ce terme, c’est, plus que’un “mouvement” ou une
“école” philosophique, l’impossibilité où s’est trouvée la pensée occidentale de surmonter la coupure établie
par Kant; le néo-kantisme (en ce sens, nous sommes tous néo-kantiens), c’est l’injonction sans cesse répetée à
reviver cette coupure – à la fois pour retrouver sa nécessité et pour en prendre toute la mesure.” (Foucault, M.
Dits et Ecrits vol.1, 1994 p.574)
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conexão (além dos óbvios atritos) entre as leituras da filosofia crítica propostas pela ontologia
fundamental de Heidegger e pela epistemologia da ciência de Cassirer. E embora os meios
pelos quais iremos explorar esta intrincada problemática sejam muito distintos do método
empregado por Gottfried Martin, em certo sentido, estamos propondo um viés de discussão
que se articula com uma pontual colocação sobre as possíveis leituras da obra CRP:
A CRP é um mar alimentado por dois grandes rios: um deles a moderna
ciência da natureza, o outro a ontologia antiga. O mérito histórico dos
neokantianos consistiu em haver mostrado a importância que tiveram para
Kant as ciências naturais e especialmente a física. A CRP é, sem dúvida, uma
epistemologia da física; também é como Cohen expôs detidamente, uma
teoria da experiência. Mas a CRP não é só uma epistemologia da ciência
natural matemática, senão que, ao menos em igual medida, é também uma
ontologia. A CRP recolhe a ontologia antiga e a continua em uma recepção
produtiva. O objetivo de nossa interpretação é mostrar a conexão íntima
entre ontologia e epistemologia. (MARTIN 1971 p.11 nossa tradução)
Nossa comunicação procura situar-se em uma possível “terceira margem do rio” ao
tentar demonstrar como as possíveis correlações entre o neokantismo e fenomenologia
hermenêutica podem ser estabelecidas a partir do pensamento de Heidegger e Cassirer,
tomando como ponto de partida, o conflito de posições sobre a interpretação da CRP, este
“mar” conceitual para onde ambas correntes confluem, mas da qual também afluem suas
próprias nascentes.
Em nosso argumento, quem contemporaneamente teve o mérito de ressaltar
pormenorizadamente o papel de ontologia na CRP foi certamente Heidegger (uma ontologia
fundamental vale ressaltar, e não apenas uma methaphysica generalis tal qual a escolástica
empregava o termo). Desconsiderando-se a notória arbitrariedade de sua interpretação, esta
chave de leitura abriu caminhos para que uma nova dimensão exegética desta obra pudesse
ser intentada posteriormente4, renovando o interesse de muitos pensadores atuais pela mesma.
4
A pensadora Hanna Arendt observa, com sua característica acuidade crítica que a releitura que Heidegger faz de
Kant não poderá nunca deixar de ser tomada seriamente, pois: “A tentativa de Heidegger – apesar e contra Kant
– de estabelecer uma ontologia levou a uma alteração de longo alcance na terminologia filosófica tradicional.
(...) Ele diz explicitamente que quer fundar uma ontologia e que nada pode ter em mente além de desfazer a
destruição iniciada por Kant do antigo conceito de Ser.” Neste quesito, embora a autora não esteja de acordo com
os rumos tomados pelo pensamento de Heidegger depois de ST, e que a mesma notoriamente possua graves
desavenças teóricas com Heidegger (tanto no campo pessoal quanto no político, como não poderia deixar de ser
mencionado), ela não deixa de reconhecer os devidos méritos e a originalidade da filosofia heideggeriana em
relação a sua retomada do pensamento kantiano: “Mas qualquer que seja o ponto de partida da tentativa de
Heidegger, sua grande vantagem foi que ela retomou diretamente as questões que Kant havia interrompido e que
ninguém depois dele havia trazido à baila. Em meio as ruínas da antiga harmonia pré estabelecida entre Ser e
pensamento, entre essência e existência, entre o ser existente e o Quê do ser existente concebível pela razão,
Heidegger afirma que ele encontrou um ser no qual a essência e a existência são imediatamente idênticos e este
ser é o Homem. Sua essência é sua existência” (ARENDT 2002, p.27-8)
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Por outro lado também devemos ver os méritos de Cassirer, que não se contentou em
seguir estritamente os passos da escola neokantiana de Marburgo, dando uma nova vertente de
interpretação para a epistemologia de sua época a partir da unidade do método critico
kantiano, superando assim a visão unilateral de leitura da CRP a partir de uma teoria da
experiência física-matemática, ampliando seu campo de atuação a outras áreas do saber
humano, como a filosofia da cultura.
Nestes autores o conceito de objetividade é redefinido de modo a alargar seu escopo e
horizonte de aplicação, pois a subjetividade não será mais concebida tal qual a proposta de
Kant. Ambas as teorias sustentam por diferentes vias de acesso, que o problema da
representação contido na questão sobre “o que posso saber” nos leva diretamente à grande
questão kantiana, sobre “o que é o homem?”5 em sua essência mais originária. Isto nos
fornece suporte para sustentar uma possibilidade de leitura original de certas obras teóricas de
Heidegger a partir do aporte inicial que foi oferecido pelo neokantismo em sua reflexão, na
tentativa de resolução da tensão existente na dicotomia entre objetividade x subjetividade, o
que permitiu posteriormente uma formulação do problema da validade e realidade objetiva
sob um enfoque inovador. Uma vez que Heidegger proponha a substituição de um ponto de
vista transcendental por uma analítica existencial do Dasein, a qual , supera em larga medida
as três questões básicas de Kant, concentrando-se no que é mais essencial da reflexão crítica:
Surge aqui uma quarta pergunta acerca do homem. Que não permanece
agregada exteriormente as outras três, nem como supérflua, pois se
considerarmos a psicologia rationalis como disciplina da metaphysica
specialis, não se trata já do homem? (...) Com isto Kant expressou
inequivocadamente o verdadeiro resultado de sua fundamentação da
metafísica. (KPM, p. 173)
Cassirer, ao se empenhar na busca por uma resposta para esta mesma grande questão,
se encaminhou metodologicamente para uma filosofia da cultura, ou seja, uma “antropologia
filosófica” balizada pela reflexão sobre o “Universo Simbólico”:
O homem não pode fugir à própria consecução. Não pode deixar de adotar as
condições da própria vida. Já não vive num universo puramente físico, mas
num universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes
5
As três grandes questões kantianas: “Que podemos saber? Que devemos Fazer? O que nos é permitido
esperar?” se conectam a uma quarta proposição: “O que é o Homem?”. As três primeiras questões se
encontram na CRP (A805, B833), a quarta questão aparece no capítulo III da Lógica (cf. AK25, onde diz Kant
que “as três primeiras questões remetem a última” vide KANT 2003 p.52-53). Esta última questão se encontra
ainda em uma carta de Kant a C. F. Stäudlin de 1793, na qual Kant afirma que as quatro perguntas constituem o
cerne de todo o seu trabalho filosófico.
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deste universo. São os vários fios que tecem a rede simbólica, e a teia
emaranhada da experiência humana. (CASSIRER 1977, p 49-50).
Um ponto importante a ser ressaltado é que tanto Heidegger quanto os neokantianos
ressaltam peremptoriamente a importância de trazer a analítica transcendental para primeiro
plano da CRP, para adentrar assim, o método transcendental em sua totalidade. Embora isto
seja feito por diferentes vias, supomos que este debate teórico possa, a partir destas indicações
anteriores, deixar de ser caracterizado pela presumível “incomensurabilidade” ocasionada por
suas perspectivas opostas quanto à possível interpretação da questão metodológica da obra
kantiana.
Pois, se é a partir da CRP que se esboçam algumas importantes diretrizes destas
filosofias existem então conexões (e talvez até um insuspeito “núcleo comum”) entre os
modos de investigação empregados por cada autor, cujas formulações teóricas orbitam (em
linhas gerais), de acordo com nossa hipótese, no entorno de uma questão fundamental para
toda tradição filosófica, aquela concernente a já mencionada quarta grande questão kantina:
“Que é o Homem?”6. Conseqüentemente, supomos que
seria a partir da questão da
objetividade que a abordagem deste fundamental questionamento sobre o ente humano melhor
se articula. Cassirer analisa as diversas propostas de leitura que se formaram ao longo da
história da filosofia para abordar a questão sobre a “essência” do homem, optando por uma
vertente de investigação que se estrutura a partir de sua inovadora “antropologia filosófica”, a
qual ele expõe como a proposta de uma filosofia das formas simbólicas. 7
Heidegger, por outro lado, vê este posicionamento de leitura baseado em uma
antropologia filosófica como um retrocesso, pois nesta via existe uma impossibilidade de se
chegar ao fundamento da questão. Sobre tal forma de abordagem, ele diz que “seria
6
Dirá Heidegger já na introdução de KPM (p.13 nossa tradução grifo nosso): “A idéia de uma ontologia
fundamental explicitamente significa: apresentar a analítica ontológica do Dasein, tal qual ela foi caracterizada,
como uma exigência necessária, deixando claro por via de qual intuito e de que modo, com que delimitação e
sob quais pressuposições ela expõe a questão concreta: o que é o homem? Entretanto, na medida em que uma
idéia se manifesta inicialmente por meio de sua força iluminadora, a idéia da ontologia fundamental deve se
confirmar e apresentar a si mesma em uma interpretação da CRP como uma fundamentação da metafísica.”
7
Depois deste breve exame dos diversos métodos empregados na resposta à pergunta: Que é o homem?
Chegamos à nossa questão central. Serão estes métodos suficientes e exaustivos? Ou existirá ainda outro enfoque
da antropologia filosófica? Existirá outro caminho aberto além da introspecção psicológica, da observação e da
experiência biológica e da investigação histórica? Procurei descobrir um enfoque alternativo dessa natureza em
minha Filosofia das Formas Simbólicas. (...) A filosofia das formas simbólicas parte do pressuposto de que, se
existe alguma definição da natureza ou “essência” do homem só pode ser compreendida como funcional, não
como substancial. Não podemos definir o homem por nenhum princípio inerente que constitui sua essência
metafísica – nem defini-lo por nenhuma faculdade ou princípios inatos, passíveis de serem verificáveis pela
observação empírica.
A característica notável do homem, a marca que o distingue, não é sua natureza
metafísica ou física – mas seu trabalho. É este trabalho, o sistema das atividades humanas, que define e
determina o círculo da “humanidade”. A linguagem, o mito, a religião, a arte, a ciência, a história, são os
constituintes, os vários setores deste círculo. (CASSIRER 1977 p.116)
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prematuro considerar - somente porque Kant reduz as três questões da autêntica metafísica
na quarta que interroga o que é o homem – esta pergunta como antropológica, transferindo a
fundamentação da metafísica a uma antropologia filosófica. A antropologia não fundamenta
a metafísica, em vista disso, apenas porque ela é antropologia” (KPM p. 193 nossa tradução).
Ou seja, Heidegger nega à antropologia filosófica uma tarefa de definição da essência do
homem, pois esta ciência do homem é apenas uma ontologia regional sendo que apenas uma
ontologia fundamental poderia colocar em movimento a tarefa de investigar de tal questão 8,
pois para ele a essência do homem (ou melhor, do Dasein humano) reside em sua existência
(cf. ST p.139, no original p.42: “Das “Wesen” des Daseins liegt in seiner Existenz”). Para
Heidegger, o problema central colocado por esta questão só pode ser investigado a partir de
uma fundamentação da metafísica, tendo em vista a finitude que se atrela inexoravelmente a
tal existência posto que para ele “Mais originário que o homem é a finitude do Dasein nele”
(KPM p.207 “Ursprunglicher als der Mensch ist die Endlichkeit des Dasein in ihm.”). Nas
suas palavras:
Disto resulta que: a razão humana não é somente finita porque ela coloca as
três questões citadas acima, mas pelo contrário: ela coloca estas questões
porque é ela finita, de tal modo que, em seu ser racional esta finitude esta em
questão. Porque estas três questões perguntam sobre este único [problema], a
finitude, estas últimas perguntas “se deixam referir” a uma quarta: Que é o
homem? Mas, estas três perguntas, não só se deixam referir à quarta, senão
que não são outra coisa que esta mesma pergunta, isto é, devem ser referidas
a esta pergunta de acordo com sua própria essência. Mas esta referência só é
necessariamente essencial quando esta quarta pergunta renuncia a
universalidade e indeterminação que tem a primeira vista, para adquirir essa
univocidade em virtude da qual nela se pergunta pela finitude do homem.
(KPM 1965 p.196 nossa tradução)
Assim, a partir destas linhas gerais, pretendemos averiguar quais as conseqüências
teóricas destas posições, verificando como as teses heideggerianas, acerca do conceito de
objetividade, estariam hipoteticamente conectadas a uma recusa do modo pelo qual a questão
da objetividade (em sentido amplo) é delimitada pelo neokantismo da escola de Marburgo.
8
No homem reside a possibilidade de interpretação “hermenêutica”, de si mesmo enquanto ente finito a partir da
colocação da questão que indaga pelo sentido do Ser, pois: “O ser como tema fundamental da filosofia não é
gênero de um ente e, no entanto ele concerne a todo ente” (Heidegger, ST p.129). Assim nos esclarece Aubenque
sobre este ponto: “O primeiro Heidegger, aquele de ST, utiliza ali uma função existencial. A compreensão de ser
é uma particularidade, um privilégio, mas pode ser também um fardo, que é próprio de um certo ente, que não é
um ente entre outros, mas aquele pelo qual ele é, dentro de seu ser, questão deste ser que ele é , portanto, do ser
em geral. O homem não é somente o animal que possui a fala; ele é também, desse modo, o animal
hermenêutico, isto quer dizer que, através dele a desordem e a confusão dos fenômenos externos (os objetos da
experiência e também os internos, os estados da consciência) experimentam seu reconhecer ou seu oferecer
sentido. O círculo objetivo que nós encontramos por sob nós – como falar do ser sem possuir uma pré
compreensão de ser?” (AUBENQUE 2004 p. 24, em “Heidegger l´énigme de l´être” org. J.F. Mattéi, nossa
tradução.)
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Analisaremos, a seguir, os conceitos adjacentes a esta questão, relativos à validade e a
realidade objetiva do conhecimento humano finito no processo de formação da representação.
Adágio - O Conceito hermenêutico de Objetividade em Heidegger:
“No entanto, uma vez mais: o que alcançamos com tudo isto não foi
decerto nenhuma definição da metafísica, mas algo diverso. Com nossas
tentativas iniciais de caracterização da metafísica, fomos paulatinamente
lançados para fora de nossos desvios e obrigados a apreendê-la a partir de
si mesma. Por meio desse fator teve lugar uma a retração da metafísica em
relação a nós. Mas, para onde ela nos atraía? A metafísica se retraía e se
retrai no interior do obscuro da essência humana. Nossa pergunta, “o que é
a metafísica?”transformou-se na pergunta “O que é o homem?”Quanto a
isso, também não obtivemos decerto uma resposta. Ao contrário, o homem
mesmo se tornou mais enigmático. Perguntamos novamente: o que é o
homem? Uma transição, uma direção, uma tempestade que varre nosso
planeta, um retorno ou um enfado para os deuses? Não o sabemos. Mas
vimos que a filosofia acontece nessa essência enigmática” (CFM, p.9)
Nosso artigo pretende demonstrar que a principal motivação que conduz a elaboração da
polêmica interpretação heideggeriana de Kant9 se situa na deliberada função de contraponto
que sua exposição estabelece com relação à interpretação neokantiana da escola de Marburgo,
a qual ainda figurava como chave de leitura hegemônica no início da década de vinte. Como
consequência do antagonismo deste posicionamento, defenderemos que Heidegger
intencionava relacionar o problema da objetividade (e seus atributos conceituais de validade
objetiva e realidade objetiva) ao processo hermenêutico de fundamentação de uma ontologia,
a qual teria por questão de fundo a finitude humana ligada a uma nova concepção de
temporalidade
originária. Esta
proposta
subvertia
especialmente as
interpretações
contemporâneas da CRP oferecidas por H. Cohen e P. Natorp, pois Heidegger enfatiza,
principalmente em ST e KPM, que sua analítica do Dasein, seria orientada pela questão do
sentido do ser, ligando-se ao questionamento crítico-transcendental a partir de uma proposta
original de leitura do capítulo do esquematismo transcendental, capítulo este10, que por sua
vez ainda não teria sido interpretado em toda sua profundidade pela tradição neokantiana.
9
A polêmica gerada por sua tese no meio intelectual alemão - de que a CRP é uma fundamentação da ontologia é constatada pelo próprio autor e mencionada no prefácio à segunda edição de KPM: “Constantemente [os
leitores] esbarram com a violência (Vorwurf) de minhas interpretações. A alegação de violência pode
efetivamente ser suportada pelo texto. (KPM p.1)”.
10
Para a interpretação heideggeriana do esquematismo é importante recordarmos antecipadamente a deferência
dada por Heidegger para esta seção no §18 do Kantbuch: “Kant empreende a descoberta do fundamento
essencial do conhecimento ontológico como intuição pura finita no capítulo seguinte da dedução transcendental,
que se intitula: “Do esquematismo dos conceitos puros do entendimento” (...) estas onze páginas da CRP devem
constituir o núcleo (das Kernstück) desta volumosa obra (KPM, p.86, nossa trad.)”.
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Portanto, para clarificar o conceito de objetividade, a partir da perspectiva
hermenêutica11 de Heidegger, deve-se inserir tal conceito em um contexto específico, ou seja,
uma leitura fenomenológica da CRP que se apropria do método transcendental ao sustentar a
tese de que a “teoria do conhecimento ontológico” é o núcleo de tal obra 12, assim, para que
possamos
esclarecer
tal
interpretação
heideggeriana
do
termo
Gegenständlichkeit/Objektivität, também devemos tratar de dois conceitos correlatos, que
estão diretamente vinculados com duas concepções distintas de objetividade: Validade
objetiva e Realidade objetiva. A divisão qualitativa entre ambos é de suma importância, pois
como veremos a seguir, cada termo estabelece um recorte conceitual de propriedades
específicas, sendo que o próprio Heidegger diz que tais expressões “tem importância crucial
para o problema da dedução transcendental” (IFCRP p.210).
Mas, antes de tudo, será importante nos determos previamente no significado da
palavra objetividade, para que possamos visualizar o que está por trás da proposta
heideggeriana de extrair da CRP uma possível ontologia fundamental. Ao nos concentrar-se
neste vocábulo, notamos que objetividade se relaciona à palavra objeto. Heidegger ira
enfatizar que a realidade só se mostra ao homem como ob-jeto (Gegenstand), ou seja, como
aquilo que vem ao encontro. Com uma explicação filológica nota-se que:
A palavra alemã “Gegen-stand”, “ob-jeto” surgiu apenas no séc. XVIII como
tradução do latim “ob-iectum”. O fato de Goethe sentir um peso especial nas
palavras “Gegenstand”, objeto, e “Gegenständlichkeit”, objetividade, têm
razões profundas. Entretanto, nem o pensamento medieval, nem o
pensamento grego re-presentam o vigente como ob-jeto. Chamamos aqui de
objetividade o modo de vigência do real que, na Modernidade, aparece,
como objeto. (EC a p.44).
Mas ao aprofundar o estudo do vocábulo em sua caracterização etimológica,
Heidegger irá ressaltar que o traço distintivo da palavra objeto é a posição de contraposição
perante algo, sendo que este algo, nada mais é que uma intuição finita.
A palavra “objeto” provém do latim Objectum, que deriva de Objacere, termo formado
pela preposição Ob, que significa “diante de” / “a frente de”, ligada ao verbo Jacere que
11
Convém esclarecer que a “hermenêutica” adquire um significado peculiar no pensamento de Heidegger. De
acordo com Stein (2001 p. 187) a palavra é empregada no sentido de uma ontologia da compreensão. A primeira
explicação feita por Heidegger diz que na hermenêutica o Dasein tem a possibilidade de compreender e de ser
essa compreensão, pois em seu significado original o “termo significa: determinada unidade na realização do
έρμενεύειν (do comunicar), ou seja, da interpretação da facticidade que conduz ao encontro, visão, maneira e
conceito de facticidade (OHF p.21)”.
12
Como afirmam Biemel e Waelhens na introdução da tradução francesa de KPM, “a CRP não poderia ser
interpretada como uma teoria do conhecimento ôntico. Ou melhor, tal interpretação é de uma estreiteza
inaceitável. Ela reduz a essência da Crítica a uma consequência secundária. [...] sendo que ela coloca e une os
problemas da ontologia e da transcendência, realiza uma teoria do conhecimento ontológico, que definida como
a condição necessária de todo exame do saber ôntico (KPM, p.18. Tradução nossa)”.
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significa, jogar, atirar, arremessar. O Objectum seria então algo “lançado adiante”.
Preservando este mesmo sentido, a palavra germânica Gegenstand indica aquilo que se coloca
diante de nós, mas o termo Gegen adiciona também a idéia de resistência ao Stand, que indica
o ficar/permanecer. Gegenstand seria então, em resumo, “aquilo que permanece/se contrapõe
a mim”, quer seja este “algo” um objeto da percepção, quer seja um objeto do pensamento ou
algo imaginado.
Mas de acordo com a interpretação heideggeriana, Kant propõe uma dupla
determinação do objeto, pois lança mão dos termos Gegenstand e Objekt para caracterizá-lo
de acordo com sua respectiva especificidade. Com o uso do alemão no primeiro termo, Kant
estaria se referindo ao objeto dos sentidos, que é posicionado diante de nós, sendo o resultado
de uma síntese entre uma intuição sensível e um conceito do entendimento. Já com o segundo
termo, Objekt, empregado em latim, Kant pretendia designar o objeto em sua acepção mais
geral, visto que na CRP ele admite o uso deste termo com relação ao pensamento, o qual não
necessita de uma referencia efetiva a algo existente. 13
Embora Kant, na CRP, não empregue especificamente o termo objetividade, Heidegger
nota que o caráter de contraposição que o termo carrega é superestimado pelo movimento
neokantiano, o qual estabelece que a chave interpretativa para a conhecida tese da “revolução
copernicana” do pensamento unicamente ressalta a oposição e o abismo existente entre o ente
que subjaz posicionado diante de (o objeto) e o sujeito que emite um juízo sobre este “outro”.
Neste sentido, conhecer seria o mesmo que julgar, pois só assim (judicativamente) se
estabeleceria uma possível relação de conhecimento. A partir desta perspectiva a tese
kantiana, afirma Heidegger, torna-se um paradigma da teoria do conhecimento, já que
segundo esta doutrina epistemológica:
O conhecimento se dirige ao objeto do juízo. De acordo com a revolução,
que se convencionou chamar de “copernicana”, efetuada por Kant na teoria
do conhecimento, o conhecimento não será regido pelo objeto, senão, ao
contrário, o objeto será regido pelo conhecimento, o conhecimento, isto é, a
verdade do juízo, se converte em parâmetro para medir o objeto, ou, mais
precisamente, a objetividade. Mas, como mostra a cópula, no juízo sempre se
expressa um ser. O juízo verdadeiro é conhecimento do objeto. O ser jugado
com verdade determina a objetividade do objeto conhecido. A objetividade é
aquilo que o conhecimento, no sentido de juízo sobre algo, consegue do ente.
O ser do ente se identifica com a objetividade e a objetividade não quer dizer
13
Sobre este ponto é instrutiva a nota que tradutor americano, Richard Taft, desenvolve sobre o emprego dos
termos Gegenstand e Objekt na obra KPM. Assim, tomamos aqui a liberdade de transcrever parcialmente a
mesma: “Kant faz uma importante distinção entre Gegenstand e Objekt, a qual Heidegger preserva (...). Para
Kant, Gegenstand é uma coisa no espaço e no tempo que é encontrada pelos sentidos, enquanto o Objekt é um
objeto do pensamento – Espaço e Tempo são eles próprios Objekt. (...) O leitor também irá notar que o objeto é
somente um objeto da percepção, um Gegenstand, o qual pode “estar em oposição a” (entgegenstegen) um ente.
Heidegger faz um grande uso deste jogo de palavras em vários pontos através do livro, assim a conexão com o
Gegenstand deve ser mantida em vista. (KPM, n.2, p.224 da tradução inglesa)”
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outra coisa que o ser julgado com verdade (PFF p. 292, tradução
modificada).
Aquilo que se expressa no jogo de palavras da sentença “O ser jugado com verdade
determina a objetividade do objeto conhecido”, é na realidade uma crítica ao precursor do
movimento neokantiano, Hermann Cohen, para o qual, de acordo com a análise de Heidegger,
seria o juízo que determinaria a objetividade dos objetos. Deste ponto de vista, poderíamos
(regressivamente) partir dos fatos objetivos para chegar até as normas. Em outras palavras,
assim como Kant teria feito nos Prolegômenos, Cohen e seus discípulos intentam partir do
fato da ciência da natureza (a física newtoniana) em um caminho retrospectivo que nos levaria
até o estabelecimento das categorias (cf. a Analítica dos princípios), como funções lógicas do
entendimento.
14
Heidegger dirá que, para o neokantismo, esse ser “julgado é aquilo que é
verdadeiro, e que aquilo que é verdadeiro não constitui outra coisa senão a objetividade”
(PFF, p.292, trad. modificada). Em outros termos, o juízo verdadeiro sobre algo já seria
equivalente à objetividade, definida como atribuição de um sentido para algo (Bedeutung),
pois “o ser julgado de um enunciado verdadeiro é igual à objetividade, que é igual ao sentido”
(idem, pp.292-3). Disto resulta que:
Esta concepção do conhecimento, que é orientada pelo juízo, pelo logos, e
que, por isso, transformou-se em lógica do conhecimento (título da obra
capital de Hermann Cohen, o fundador da escola de Marburgo), assim como
a orientação da verdade do ser pela lógica da proposição, constitui o critério
principal do neokantismo. A concepção de que conhecimento é igual ao
juízo, de que a verdade é igual ao ser julgado, que é igual à objetividade, que
é igual ao sentido vigente, tornou-se tão predominante que mesmo a
fenomenologia foi infectada por essa concepção insustentável de
conhecimento (Idem, p.293)
A tese de que há uma equivalência entre o juízo de algo verdadeiro e a objetividade, é
recusada por Heidegger, pois uma lógica do sentido - do conhecimento tomado como juízo
verdadeiro sobre algo - não pode ser mais originária que uma ontologia fundamental. Em seu
14
Na visão de Pedro Ruiz, “Cohen assume uma postura que, em sua necessidade de manter-se fiel ao
ideal kantiano de uma filosofia situada nos limites da experiência e tendo ante si o factum das ciências,
compreende tal ideal como uma filosofia da consciência; quer dizer, Cohen busca as condições do
conhecimento no campo da consciência reduzida aos termos lógicos (...). É aqui onde começam a se
definir as diferenças entre a interpretação neokantiana e heideggeriana de Kant” (RUIZ, 2002, p.132).
Na mesma linha de raciocínio Phillipe Cabestan diz que a interpretação de Kant é o principal alvo da
disputa entre Heidegger e o Neokantismo, indagando “Qual é precisamente o lugar de Kant no seio da
filosofia moderna? A título preliminar convém lembrar que a leitura heideggeriana de Kant se opõe
explicitamente à do neokantismo (H. Cohen, P. Natorp e seus discípulos E. Cassirer, H. Richert) da
qual Heidegger reprova a profunda incompreensão do pensamento de Kant. Isso porque os
neokantianos interpretam a CRP em termos de teoria do conhecimento e, ao mesmo tempo, passam
inteiramente ao largo da significação da filosofia transcendental cuja ambição é propriamente
ontológica(CABESTAN 2013,p.6)”.
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curso ministrado em Freiburg entre 1928 e 1929, intitulado “Introdução a Filosofia”
(doravante IFil), Heidegger dedica toda uma seção para discutir a obra CRP de Kant –
“Filosofia e Visão de Mundo” - nesta parte da obra, o ponto crucial de sua argumentação,
defende que “o problema fundamental da CRP é a ontologia como tal, pois de modo algum a
CRP é uma teoria do conhecimento ou mesmo uma teoria da ciência da natureza como
pretende o neokantismo”, concluindo disto que “se o que está em questão de certa forma é
uma teoria do conhecimento, então se trata de uma teoria do conhecimento ontológico” (IFil,
p.273-4), ou seja, uma investigação da verdade ontológica, antepredicativa, orientada pela
questão do sentido- do-ser, pois “A própria forma interna da filosofia não apenas é alienada de
si por meio da lógica e da ciência, mas também é afastada de si” (idem p.416). Neste sentido,
a própria lógica torna-se alvo dos ataques fenomenológicos de Heidegger, pois em sua
concepção tal disciplina formal do pensamento tem sua base em uma ontologia, tese esta que
ele irá defender a partir de uma violenta releitura de Kant:
Todos os grandes esforços da filosofia ocidental consistem sempre em se
assenhorar do poder da própria lógica, mas esse empenho acontece de tal
modo que a lógica é inserida na casa da filosofia e todo domínio é
transferido para ela. Somente em Kant encontra-se uma tentativa totalmente
esporádica, renegada por ele mesmo e que só conseguimos enxergar se
formos ao encontro da problemática kantiana a partir de um modo mais
radical de colocação da questão, o que precisa transformar-se então em
princípio de interpretação. (IFil p.416)
Depreende-se destas afirmações que Heidegger intente desenvolver uma interpretação
original de Kant, onde toda concepção do conhecimento ainda não se encontrasse “infectada”
por uma leitura idealista objetiva, como era o caso da teoria do conhecimento neokantiana,
onde o condicionamento formal, dado pela tábua lógica do juízo, levava a cabo uma
investigação acerca das condições de possibilidade da representação, que desconsiderava a
própria relação da representação com a existência de uma coisa em si. Para Heidegger, os
caminhos trilhados pela fenomenologia também deveriam passar por uma reavaliação, uma
vez que até Husserl já estivesse comprometido com a posição neokantiana, ao dar ênfase ao
aspecto lógico formal do conhecimento, fato que o teria feito recair no problema da
subjetividade transcendental do eu/cogito,
isto teria se dado a partir de 1913, com a
publicação de sua obra “Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia
fenomenológica”.
Portanto, para realinhar o método fenomenológico e realizar o intento de uma
autêntica “fenomenologia hermenêutica”, que daria uma nova direção pata os avanços
anteriormente obtidos com as “Investigações Lógicas” (em especial a parte final das
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Untersuchungen, como a “Sexta Investigação - Elementos de uma Elucidação
Fenomenonológica do Conhecimento”, pela qual Heidegger nutria grande admiração, devido
à distinção entre intuição sensível e categorial), Heidegger
pretende desenvolver uma
concepção de conhecimento que não seja mais orientada pela definição neokantina de
conhecimento, portanto ele deveria fazer exatamente o oposto do que seus interlocutores
contemporâneos estavam propondo. Era necessário operar um rompimento entre as ciências
regionais e a filosofia, partindo de uma crítica aos seus contemporâneos que lhe permitisse
desenvolver uma concepção mais originária de conhecimento que pudesse “mostrar que até as
categorias lógicas, que possibilitam o conhecimento objetivo como tal, tem uma gênese
subjetiva, quer dizer, as categorias obteriam seu sentido do mundo histórico em que são
gestadas” (RUIZ, 2002, p.128).
Para tanto, Heidegger precisa retomar um importante questão colocada por Kant no
início da Dedução (em B122/A90), ao indagar, como as condições subjetivas do pensamento
poderão ter validade objetiva, porém, na visão de Heidegger, tal questionamento, que se liga à
dificuldade de demonstração da unidade de nosso conhecimento a partir heterogeneidade
entre intuição e conceito, não se fundamenta mais na síntese espontânea do entendimento e
sim na faculdade da imaginação produtiva. A síntese transcendental continua sendo necessária
para a atribuição de objetividade para as categorias, mas agora ela se encontraria vinculada à
finitude do conhecimento presente na intuição humana. Invertendo a ordem dos fatores da
célebre frase kantiana, para Heidegger, “(...) o conceito sem intuição é que seria vazio (...) a
recepção perceptiva carece da derivação discursiva para ser determinada enquanto tal: é, pois,
a intuição que é finita, só produzindo “imagens”, marcas temporais – cuja origem está na
capacidade da imaginação. (DUARTE 2011, p.93)”.
É dentro deste viés que Heidegger irá propor uma contraversão metodológica radical,
ao afirmar que é “a lógica que se funda na metafísica e nunca o inverso”, questionando,
partir desta tese, o predomínio concepções lógicas na resolução de problemas, por excelência,
metafísicos. Ao defender que toda a filosofia, seja antiga, moderna ou contemporânea:
“Nunca se colocou em questão o fato de e o modo como a lógica como tal está fundada na
metafísica, isto é, sempre se deixou que ela se desenvolvesse aparentemente apenas como que
puramente a partir de si mesma.” (IFil , p.296), ele impõe seu ponto vista como o caminho
para a “desinfecção” da relação epistemológica presente na tradição metafísica ocidental.
Com tal proposta Heidegger deseja que a metafísica seja levada mais além,
circundando seus limites extremos para que então se possa intentar a “ultrapassagem” de tais
concepções. A pergunta pelo fundamento do Dasein, em seu sentido ontológico, não levaria a
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uma continuação da busca por uma fonte última da verdade pautada em axiomas demonstrado
a partir de proposições lógicas, ou ainda um fundamento último que garantisse que todos
argumentos subsequentes fossem sustentados unicamente por um princípio de razão
suficiente, o qual afirma que nada é sem razão pela simples identificação de tal razão
suficiente com a totalidade dos requisitos da demonstração causal.
Leibniz – e
consequentemente Wolff - não teria atentado ao fato de que a questão “Porque há algo ao
invés de nada?”, não serviria como ponto de partida para uma ontologia fundamental, uma
vez que aí já se pressupõe que “Ser” e “Nada” sejam algo que já nos é conhecido, o que é por
princípio altamente questionável. Assim, para Heidegger, as proposições lógicas, não seriam
algo definidor do verdadeiro ou do falso em seu valor fundamental de realidade e isto servirá
como base argumentativa para que ele rejeite a posição de uma interpretação epistemológica,
ou lógico/científica da CRP.
Heidegger expõe que a mais urgente tarefa da filosofia de sua época se situa na
tentativa de superar o “erro axiomático” da metafísica tradicional. Com esta motivação ele
propõe que a metafísica clássica seja destruída 15 a favor de um novo caminho do pensamento,
agora pavimentado através de uma ontologia
fundamental. Este caminho já havia sido
preparado pela CRP, tratava-se, portanto, de trilhá-lo adequadamente, pois de acordo com
Heidegger, o problema central, indicado, mas não explorado por Kant, se resumia na questão
sobre o Dasein humano, o qual só poderia ser problematizado a partir de uma refundamentação da metafísica, que enfatizasse a finitude que se atrela inexoravelmente à
intuição humana, pois: “Mais originário que o homem é a finitude do Dasein
nele”/“Ursprunglicher als der Mensch ist die Endlichkeit des Dasein in ihm.” (KPM p.207).
Por isso tal projeto se delimita como uma ontologia fundamental:
A idéia de uma ontologia fundamental explicitamente significa: apresentar a
analítica ontológica do Dasein, tal qual ela foi caracterizada, como uma
exigência necessária, deixando claro por via de qual intuito e de que modo,
com que delimitação e sob quais pressuposições ela expõe a questão
concreta: o que é o homem? Entretanto, na medida em que uma idéia se
manifesta inicialmente por meio de sua força iluminadora, a idéia da
ontologia fundamental deve se confirmar e apresentar a si mesma em uma
interpretação da CRP como uma fundamentação da metafísica. (KMP p.13)
15
Para Heidegger, o projeto de superação da metafísica inicia-se com a “destruição” da metafísica clássica,
porém, destruição não significa seu abandono, mas uma confrontação hermenêutico-interpretativa com as
posições dualistas dominantes: “A destruição (destruktion) da metafísica não significa o seu desmantelamento,
mas sua desconstrução (abbau) a partir de sua origem pré-metafísica. Trata-se de uma tarefa que obedece a leis
próprias, distintas das que regem estudos histórico-filosóficos e filológicos (as traduções “violentas” dos textos
gregos oferecidas por Heidegger são a melhor prova disto). Da mesma maneira a expressão “o fim da
metafísica” não designa a eliminação da vida cultural do Ocidente, mas tão somente a libertação do ente do
poder da representação. (LOPARIC 2003 p.25).”
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Para ilustrar seu contraponto com seus contemporâneos, Heidegger defenderá que sua
interpretação da CRP, como fundamentação da metafísica, reivindica uma radicalidade que
visa superar os equívocos causados pela via de leitura epistêmica. De acordo com Heidegger
seria duplamente errôneo conceber a “Crítica” como uma teoria do conhecimento da ciência
matemática da natureza e não ver, inicialmente que se trata de ontologia (IFCRP p.46), pois
a principal novidade trazida pela CRP - especialmente em sua primeira edição - seria a
preparação do terreno para uma ontologia fundamental, baseada na pergunta pelo sentido do
Ser, pois esta proposta se configura dentro de uma analítica existencial onde a temática
transcendental gira em torno do circulo hermenêutico e da diferença ontológica16. É ainda
significativo que Heidegger privilegie a edição A, de 1781, pois esta fornece o respaldo
necessário para a sua interpretação fenomenológica que redefine a função desempenhada pela
imaginação, concebendo-a como a faculdade fundamental, à qual, o próprio entendimento
estaria subordinado ao longo de toda estrutura interna da Dedução, este recorte de leitura
demarca sua trincheira teórica com relação ao neokantismo que fazia uso apenas da edição
subsequente.
Em resumo, Heidegger desejava reabilitar uma via de abordagem “ontológica” na
filosofia crítica e vislumbrava neste projeto a preparação de uma fenomenologia hermenêutica
pautada pela analítica existencial - que se coloca como método sui generis a compreensão do
sentido do ser – isto significa, para Heidegger, reabilitar a intenção original de Kant de
escrever a CRP como uma “metafísica da metafísica”. Porém para que possamos assimilar
estes passos, é preciso compreender, antes de tudo, o modo pelo qual Heidegger demarca a
originalidade de sua leitura a partir da posição de antípoda do campo intelectual de seu tempo.
Exposto isto, fica mais compreensível à afirmação que:
A CRP é uma fundamentação da metafísica. Não é nem o destroçamento
nem – como afirma o neokantismo- uma teoria do conhecimento das ciências
matemáticas da natureza. Ao contrário como o próprio Kant diz em uma
carta de 1781 ao seu amigo Marcus Herz, uma carta que seguia juntamente
com a obra que acabara de ser publicada: A CRP é a metafísica da
metafísica. (IFil p.267)
No tocante à ontologia fundamental, a interpretação fenomenológica de Heidegger
possui a vantagem, por ele alegada, de ser a única capaz de colocar adequadamente a questão
do sentido do ser dentro do registro de pensamento transcendental. A tradição neokantiana,
16
Como ele mesmo indaga e justifica, “Como se inter-relacionam as duas deduções, a dedução subjetiva e a
objetiva? Transcendência e, em verdade transcendência ôntico-ontológica. Justamente a transcendência se mostra
ao mesmo tempo e como tal como a origem da diferença ontológica.” (IFil, p. 306)
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orientada pela via lógico/científica comete um erro de princípio17 que precisa ser contornado
por uma posição originariamente filosófica que reconheça a verdade como acontecimento e
como desvelamento, e não como verdade proposicional. Fazer da filosofia uma serva da
ciência é retirar da primeira sua primazia e esvaziar toda sua capacidade de pensar a partir do
que é mais radical. Deve-se recusar a unilateralidade da leitura epistemológica, que serve
meramente de apêndice explicativo ou prospecto
das ciências naturais. Em sua mais
conhecida preleção, “Que é Metafísica?” (doravante QM) Heidegger diz que:
Elas (as ciências) pensam que com a representação do ente se esgota toda
circunscrição do investigável e problemático; de que fora do ente não existe
nada mais. Esta opinião das ciências é assumida provisoriamente pela
pergunta pela essência da metafísica, e aparentemente partilhada com elas.
Entretanto, cada um que sabe refletir já deve saber que uma pergunta pela
essência da metafísica só pode, somente pode ter em mira o que caracteriza a
meta-fisica: isto é a ultrapassagem, o ser do ente. Ao contrário, na
perspectiva da representação cientifica que somente conhece o ente, aquilo
que de nenhum modo é ente (a saber, o ser) apenas se pode oferecer o nada.
(QM, p.54)
Para Heidegger, devemos nos contrapor as interpretações epistemológicas impostas
como chave de leitura para a filosofia transcendental kantiana, pois dentro das estreitas
concepções da teoria do conhecimento o estatuto científico impede o aprofundamento da
reflexão ontológica e obscurece a concepção fundamental que está subjacente à CRP, isto é, a
questão do ser. Ao se basear unicamente nos argumentos de orientação lógica, a visão crítica
do neokantismo se situa no nível mais superficial das possibilidades de leitura oferecidas pela
obra kantiana, uma vez que se satisfaz unicamente em rejeitar a metafísica clássica ao invés
de “superá-la”:
Conseqüentemente a interpretação da Crítica como uma epistemologia da
ciência natural matemática falha fundamentalmente em dois aspectos.
Primeiro esta interpretação falha em ver que a Crítica esta preocupada com
ontologia e não epistemologia. Segundo, ela falha em ver que a ontologia da
natureza não é uma ontologia da natureza material, mas sim uma ontologia
do que é existente em geral (IFCRP, p. 46 ).
Assim, pode-se concluir que de sua parte Heidegger demonstra a impossibilidade da
leitura da CRP unicamente como uma teoria do conhecimento científico, destacando em sua
visão da obra um referencial ao conhecimento ontológico em detrimento do conhecimento
ôntico. Pois ele supõe que a filosofia transcendental inaugurada por Kant, ou seja, a filosofia
17
Vide o que é dito por Heidegger, ainda em 1925 em seu “Prolegômenos a história do conceito de tempo”
(doravante PCT), sobre tal erro de princípio do neokantismo: “Mais exatamente, esta teoria da ciência (diese
Wissenschaftstheorie) enquanto investigação da estrutura do conhecimento (Erforschung der Struktur der
Erkenntnis) absolutamente situada no horizonte kantiano realizou-se como uma elaboração dos momentos
constitutivos do conhecimento no sentido de uma ciência da consciência (Bewusstsein). (PCT, p.18)”.
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dentro dos limites da razão e da experiência possível, não é intercambiável com a intenção da
nova “dogmática” - os novos dogmáticos, seriam ninguém menos que os epistemologistas. A
ontologia fundamental possui um diferencial com relação aos projetos anteriores, pois se seus
argumentos partem da metafísica geral (ontologia), estes desembocam nas questões sobre a
possibilidade da metafísica especial, isto é, tem em vista
um ponto partida crítico
transcendental mais originário, que conjugas as duas esferas: “O conhecimento do ente
(Seienden) em geral (metaphysica generalis) e o que se refere as suas regiões principais
(metaphysica specialis), se tornam então uma “ciência [estabelecida] na pura (Blosser) razão”.
(KPM p.19 nossa tradução).
Heidegger, na sua proposta de leitura fenomenológica da CRP, ira interpretar esta
relação entra ambas as esferas como o indício do surgimento de uma nova ciência metafísica
– onde não caberia uma epistemologia da ciência como desejavam os adeptos de Marburgo estabelecida a partir da possibilidade de fundamentação de uma ontologia fundamental, em
suas palavras, unicamente, “A fundamentação da metafísica como revelação da essência da
Ontologia é uma CRP” (idem p.23).
Colocando o problema nestes termos, Heidegger vê a necessidade de fornecer uma
nova concepção do conceito objetividade, o qual passa a adquirir uma relação direta com a
subjetividade do sujeito, adquirindo nuances que de certo modo extrapolam a letra da CRP.
Aqui é significativo o fato de que Heidegger dará predileção à edição A de 1781 desta obra,
encontrando ali um respaldo para sua via fenomenológica de leitura ao redefinir a função
desempenhada pela imaginação (em detrimento do entendimento) como a faculdade
fundamental que estaria no centro da estrutura interna de toda a Dedução (tanto da dedução
subjetiva quanto da objetiva). Esta releitura será pautada pela esfera hermenêutica, na qual o
conhecimento de todo e qualquer ente deveria ser pre-cedido por um âmbito de compreensão
que fornecesse as bases estruturais necessárias para o posterior conhecimento objetivo da
constituição ontológica do ser do ente, isto é, do conhecimento sintético a priori. 18 Como diz
Heidegger,
18
Ernildo Stein afirma que esta é a especificidade da proposta heideggeriana, que intenta radicalizar a teoria
kantiana do conhecimento: “Heidegger rompe aqui, à diferença de Kant e toda tradição transcendental, é com a
ideia da construção do objeto. O objeto não precisa ser construído, não se trata de construir o objeto na
proposição, na sentença, porque o objeto já está constituído pela compreensão que eu tenho, pela précompreensão (...). A teoria da experiência de Heidegger não é uma teoria como Kant a constrói, mas é uma teoria
que, partindo de Kant, radicaliza Kant via esquematismo, e termina produzindo uma teoria da experiência que
não constrói o objeto desde fora. O objeto já sempre é compreendido. E com isso se rompe a relação sujeitoobjeto como sendo o modelo do conhecimento a nesse nível transcendental (...). As condições de possibilidade
para atingir pela empiria o objeto são postas de maneira diferente. O que Kant quer é a construção da
objetividade. E em Heidegger a construção da objetividade chega tarde. Há uma questão anterior, que é a do serno-mundo” (STEIN, 1993, p.43).
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No conhecimento do ente, o que está em questão é um conhecimento prévio,
um conhecimento apriorístico da essência do ente em questão, da coisa,
trata-se de um conhecimento objetivo a priori, um conhecimento tal que me
revela o que pertence a uma coisa; Kant denomina um conhecimento que
amplia o saber um conhecimento sintético. Desse modo um conhecimento do
ente deve ser precedido por um conhecimento objetivo da constituição
ontológica do ente, por um conhecimento sintético e, porquanto ele é
precedente = a priori, por um conhecimento sintético a priori (IFil, p273).
Uma vez que, para Heidegger, a questão motivadora de toda a Crítica consiste no fato
da razão ser, em sentido lato, uma faculdade de conhecer a partir de princípios a priori, como
é possível, esta razão pura, se revele, para Kant, como índice máximo da finitude humana?
Existe uma relação inextrincável entre a finitude humana e a finitude do ser, uma vez que
Heidegger defende que o homem é finito, pois é também finito o ser. A finitude humana é um
caráter essencial da metafisica, pois a finitude humana se caracateriza como tal pelo fato de
que o ser é finito. É o próprio Heidegger que indica, no início do § 3 de KPM, que “Kant
reduz o problema da possibilidade da ontologia à pergunta: “Como são possíveis os juízos
sintéticos a priori?”. Acrescentando que , em sua linha de interpretação, o problema da
fundamentação da metafísica tomado como “revelação da essência da ontologia”, se realiza na
história da filosofia na forma de uma CRP19, pois “A pergunta acerca do conhecimento
ontológico exige a caracterização prévia do mesmo” (KPM, p.22 ).
De acordo com Heidegger, estes parâmetros teóricos indicariam que “O problema da
possibilidade da metafísica torna-se o problema da possibilidade da ontologia, ou seja, da
methaphysica generalis.” (IFil, p.273), De acordo com o Pegoraro, isto ocorre, porque “o
desvelamento do ser-aí em sua essência mais íntima é ao mesmo tempo a condição de
possibilidade da ontologia. Desvelar a essência íntima do ser-aí é buscar a síntese ontológica,
ou pesquisar o conhecimento sintético a priori.” (PEGORARO 2006 p.23). Segue-se disto que
a intuição pura - ou seja, aquilo que se revelará por fim como o tempo originário - seria
relacionado à síntese pura - de acordo com Heidegger uma “síntese ontológica” - a qual
concerne à imaginação pura, que por sua vez tem por tarefa a abertura de um campo de
19
Tal argumento é apresentado detidamente em sua IFCRP, ali se infere que, se existe uma propensão à ciência
na Crítica, esta é subjacente à Ciência Primeira (i.e. Ontologia), que pergunta pelo ente enquanto ente, e não a
ciência natural, que serve unicamente de mote para tal investigação: “Nós podemos resumir inicialmente e
esquematicamente a resposta à questão “O que significa a CRP?”, dizendo que a Crítica estabelece a
fundamentação da metafísica como ciência. Aqui repousa a sugestão que a Crítica estabelece a fundamentação
da ciência do ser em geral. Isto significa mais detalhadamente, que a Crítica estabelece a fundamentação para ao
campo de construção (Grundstück) da ciência dos seres em geral, i.e., ela estabelece a fundamentação para o
conhecimento sintético a priori como tal. A crítica estabelece a fundamentação para a essência deste campo de
construção, ou seja, ela estabelece a fundamentação para a relação para objetos. A Crítica é uma investigação
transcendental, que estabelece a fundamentação da filosofia transcendental ou ontologia, ela é a fundamentação
transcendental da ontologia como tal (IFCRP p.40).”
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compreensão transcendental, em outras palavras, um horizonte de objetivação. Como afirma
Barreto:
A interpretação de Kant empreendida por Heidegger representa uma ruptura
com a interpretação tradicional, sobretudo aquela predominante à sua época;
o neokantismo. A diferença consiste, não somente no privilégio (...) da
primeira edição da Crítica, mas aliada a esta condição pode-se assinalar
também a inserção da dimensão da finitude, enquanto índice da
transcendência, no horizonte da temporalidade originária, alcançado com
base na interpretação da imaginação transcendental, como raiz comum do
conhecimento e condição da sensificação dos conceitos. (BARRETO, 2011,
p.77)
É relevante atentar, nesta passagem, ao termo “sensificação” dos conceitos, pois tal
neologismo toca em um ponto central da proposta heideggeriana, isto é, na correlação
inextrincável entre as formas da intuição e a própria origem das categorias.20 Heidegger
afirma que “conhecer é primariamente intuir [Erkennen ist primär Anchauen] (KPM, p.29)”,
portanto as categorias teriam sua origem na intuição. De acordo com Heidegger, os
neokantianos teriam desconsiderado a letra e o espírito desta tese kantiana, ao fornecem uma
interpretação que descuida do fato decorrente da admissão, por parte de Kant, de que não é
outra coisa que põe em ação nossa capacidade de conhecer, que o objeto, o qual afeta nossos
sentidos e que estes, por sua vez, originam as representações e põe em movimento nosso
entendimento. Para se chegar a tal conclusão, basta que nos fixemos ao que já é indicado pela
primeira sentença da CRP; “todo nosso conhecimento começa pela experiência” (B 1, p.36).
Fato para o qual os neokantianos não teriam se atentado ao tentar fornecer uma leitura da
dedução baseada na análise lógica do juízo sem notar que também o “conhecer é pensar
intuitivo portanto é por fundamento, um juízo” (KPM p.30).
No decorrer desta conexão necessária entre intuir, conhecer e pensar repousa o fato de
que para além do conhecimento em geral, o que se encontra em jogo na dedução
transcendental seria o conhecimento humano que nos é peculiar, ou seja, o conhecimento
finito, sendo que, para tal ente finito, todo conhecimento consta da relação entre intuição e
conceito, adquirindo o primeiro termo, primazia em relação ao segundo. Essa conexão
deveria então ser apresentada em sua essência ontológica a partir dos capítulos da Analítica
dos conceitos e dos princípios.
20
Sabemos que, em Kant, a sensibilidade se refere às formas puras da intuição, ou seja, ao Tempo e ao Espaço,
porém, Heidegger ira privilegiar apenas o primeiro destes termos, demonstrando seu elo indissociável com a
Imaginação transcendental, a qual se paulatinamente revela em KPM como o principal fundamento do método
fenomenológico, posto que ela se desvela ao fim como “tempo originário”. De acordo com Pegoraro, em KPM:
“A imaginação transcendental é o tempo, que funda a unidade do entendimento, da sensibilidade e a essência
subjetiva do homem. (PEGORARO p.43)”
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Heidegger – já na introdução de sua IFCRP - argumenta que tarefa da analítica dos
conceitos seria apresentar uma observação original das proposições puras do entendimento,
bem como de suas estruturas. Enquanto que a analítica dos princípios apresentaria, segundo a
análise heideggeriana, o conhecimento ontológico que pertence necessariamente à
possibilidade da experiência, em que os conceitos puros do entendimento representam um
momento essencial. É por este motivo que a proposta de leitura, intentada por Heideger nestas
passagens é orientada pelo fenomenológica, que, por sua vez, contraria a análise lógica do
neokantismo:
A analítica oferece este conhecimento com a intenção de justificar as
categorias em sua realidade objetiva, em sua verdade transcendental. Isto
significa que o título de meros princípios não mais indica apenas lógica, ou
ainda somente a lógica primariamente, mas que é precisamente o problema
da origem dos puros elementos do entendimento com respeito a sua verdade
transcendental com a qual estamos lidando aqui. Isto é, aqui nós estamos
lidando com o problema da origem das categorias a partir da intuição. Se
tomarmos a lógica transcendental como a lógica da origem como é feito na
escola de Marburgo, então devemos considerar a ambigüidade do conceito
de “origem”: (1) Por um lado “origem” se refere à origem dos conceitos
puros do entendimento na pura atividade do entendimento como tal, i.e. a
crucial e constitutiva interconexão entre categorias e o puro emprego do
entendimento, e (2),por outro lado, “origem” refere-se à origem deste
elemento do entendimento como se ele fosse originado a partir do elemento
do conhecimento puro, o qual é diferente do entendimento – a origem dos
puros princípios do entendimento na intuição pura, a origem das categorias
no tempo. Não somente a interpretação de Kant de Marburgo geralmente
interpreta mal este último problema significante da origem, mas isto também
distorceu os pontos iniciais que eram claramente presentes, fazendo-os
irreconhecíveis. (IFCRP, p. 143-144, nossa trad.)
Observemos também um argumento em que, tanto o conceito de realidade objetiva,
quanto o de validade objetiva estão implicados. Assim, poderemos discutir melhor o que está
realmente em jogo quando se questiona a possibilidade de se atribuir realidade21 ou validade
objetiva às categorias, o que possibilitará a compreensão adequada da radicalidade de sua
interpretação fenomenológica da obra crítica de Kant. É relevante que se note, no trecho
citado abaixo, a acusação de Kant hesita entre a lógica e a psicologia, com a qual Heidegger
prepara o caminho para lançar um tópico central de sua discussão: a necessidade de se e
explicitar a conexão entre o pensamento puro, a intuição pura e a imaginação, ou, em
21
De acordo com Heidegger o termo realidade é empregado na CRP de modo muito peculiar, variando de
significado dependendo do contexto em que esta sendo empregado por Kant: “Ser real para Kant (A 583, B611)
significa objetivar algo, algo dado, dentre outras coisas, algo passível de ser enunciado. Temos de distinguir
disso as noções de “hipostasiar” , “personificar”. Realidade = realidade empírica (objetiva e subjetiva) (A37,
B53), “experiência interna”; realidade: realidade absoluta, pura e simplesmente advém às coisas como condição
ou propriedade; realidade: transcendental (A36,B53) “meramente subjetiva”. (IFil p.302 nota)
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trocando em miúdos, categorias do entendimento, sensibilidade e tempo, lembrando que,
como já foi brevemente mencionado, na perspectiva heideggeriana, o pensamento esta a
serviço da intuição:
Não há estágios rigorosos de desenvolvimento na dedução porque a direção
do percurso e a meta [da dedução] não são estabelecidas claramente. O único
caminho para dar claridade é concebê-la como exposição preparatória e
antecipatória, seja o que for que tenhamos até então discutido na analítica
transcendental de Kant – por isso será acompanhado pelo estabelecimento
concreto e será examinado o que é agora programaticamente especificado.
Isto porque em Kant a noção de puro conceito do entendimento vacila,
significando por vezes somente noções ou somente categorias, para ele a
execução da tarefa da dedução, que é iluminação da possibilidade interna
das categorias a partir da genuína dimensão original, resulta ser
simultaneamente a resposta para a questão jurídica concernente à
legitimação do relacionamento a priori dos conceitos puramente lógicos
para objetos. Em suma coloca o problema da realidade ob-jetiva das
categorias como a revelação da possibilidade interna de seu conteúdo tornarse o problema da validade ob-jetiva como justificação jurídica da validade de
algo subjetivo para algo ob-jetivo. A insegurança de Kant com o conteúdo é
essencialmente condicionado pela sua insegurança com o método. Kant
vacila entre psicologia e lógica. (...) o que é preciso é um claro
discernimento que nós estamos lidamos aqui com a interpretação puramente
fenomenológica do conhecimento humano Dasein – com a fenomenologia, a
qual sustenta a psicologia e a lógica (IFCRP, p. 219).
Ao interpretar a dedução como vacilante e o método como inseguro, Heidegger é
levado a uma questão central, pois em seu argumento a exposição estará centrada na
explicitação da conexão entre o pensar puro a intuição pura e a imaginação, e como veremos
adiante, de seu ponto de vista o pensamento se encontra a serviço da intuição. Disto decorre,
que para que se possa compreender o significado último da dedução transcendental, com
mais radicalidade que a tradição corrente, será preciso admitir o fato de que é a “atuação da
imaginação transcendental que propicia a criação de uma intuição pura para as categorias”
(IFil, p.290). Sobre o trecho citado acima, é relevante notar que é a fenomenologia que
sustenta tanto a psicologia quanto a lógica22, outro aspecto importante reside no fato de que
22
No momento em que Heidegger elabora tais comentários em sua IFCRP (entre 1924 e 1925), ele possui o
cargo de professor ordinário na universidade de Marburgo e neste mesmo período, quem se encontra na
vanguarda da “escola de Marburgo” é o herdeiro direto de Cohen, Paul Natorp, sendo que, para tal autor, existe
uma correção direta entre lógica e psicologia, fato que ilustra contra quem o argumento de Heidegger se dirige.
Na visão de Natorp, a psicologia é o fato a ser inicialmente investigado, mas deve-se inferir a subordinação
desta última com relação à lógica. Wagner Sassi resume a posição de Natorp da seguinte maneira: “Natorp em
sua obra Die Logische Grundlagen der exakten Wissenschaften.(...) parte do princípio de que a filosofia não é,
como as ciências positivas, ciência de coisas, mas ciência da ciência. Essa teoria da ciência conduz a uma
investigação sobre a consciência como tal, isto é, a teoria do conhecimento se torna psicologia entendida, não no
sentido experimental, mas antes transcendental. E a psicologia, por sua vez, conduz necessariamente à lógica.
Assim sendo, para Natorp, o conhecimento dá-se na e para a consciência, mas os fundamentos do conhecimento
não são processos psíquicos empiricamente descritíveis, e sim estruturas lógicas da consciência, precisamente de
uma consciência transcendental. O conhecimento, por sua vez, realiza-se sempre em duas direções opostas: a
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nesta passagem, Heidegger estabelece uma importante diferença conceitual entre realidade
objetiva e validade objetiva. Com relação ao primeiro termo, realidade objetiva, tal
qualificação do conceito com o termo realidade possui, para a proposta da dedução, um
significado mais restritivo, que, a rigor, estaria relacionado à revelação da possibilidade
interna do conteúdo das categorias. Como esclarece a IFil:
Realidade não significa para Kant, tal como usamos hoje o termo, realidade
efetiva, existência do ente. Ao contrário, ele emprega o termo “realidade”
no sentido da escolástica, como aquilo que determina uma res, uma coisa em
seu conteúdo quiditativo. Realidade significa o mesmo que essentia. Todo o
neokantismo desconheceu completamente esse conceito e foi impelido em
parte para questionamentos paradoxais. (IFil, p. 273)
Assim, reconhecer que as categorias possuem realidade objetiva não implica nenhuma
contradição entre termos, posto que não se esteja afirmando que estes conceitos puros do
entendimento possuem uma substancialidade ontológica (realidade efetiva ou formal), cuja
relação estabelecida com os objetos se situa no âmbito do pensar.
Para Heidegger,
inicialmente a dedução estabelecia e demonstrava a tese que:
Categorias possuem realidade objetiva, isto é, seu conteúdo
qüiditativo se deixa representar in concreto e, em verdade, a priori nos
objetos (na intuição a priori de tempo), ou seja, a partir daquilo com
que estes conceitos estão ligados segundo o seu uso pleno; tomados
como puros conceito do entendimento, logicamente isolados, mesmo
eles já não podem ser representados in concreto, mas, de qualquer
modo, continuam ligados a priori com os fenômenos(A 567, B595)
(IFil p.309)
Mas com isto ainda não se resolve a seguinte dificuldade: Se as categorias são de
ordem intelectual e os fenômenos de ordem sensível, como poderiam os primeiros poderiam
ser aplicados aos segundos? A realidade objetiva, do ponto de vista conceitual, não se refere
à realidade formal de um objeto exterior ao pensamento, sendo um mero produto da
possibilidade lógica. As dificuldades, neste passo da dedução, surgem quando se pretende
relacionar a característica apresentada pela realidade objetiva ao problema da validade
objetiva das categorias, pois o qualificativo de “validade” pressupõe uma referência a objetos
dados, como diz a citação acima, “o problema da realidade ob-jetiva das categorias como a
revelação da possibilidade interna de seu conteúdo tornar-se o problema da validade ob-jetiva
como justificação jurídica da validade de algo subjetivo para algo ob-jetivo”.
objetivação e a subjetivação. As ciências positivas em geral trabalham com a objetivação. A filosofia, porém,
enquanto teoria do conhecimento (psicologia e lógica), descobre que o objectum não é senão o projectum de um
subjectum. Daí sua tarefa de trazer à representação o subjetivo(SASSI, p.30).”
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De acordo com o diagnóstico de Heidegger, este último questionamento, embora de
caráter restritivo, seria àquele que confere, ao problema da dedução,
maior escopo
“ontológico”, pois a validade objetiva, ao denotar a legitimação da validade de algo subjetivo
(singular) para algo objetivo (geral), amplia a problematização. Diante disso, surge a seguinte
questão: seria um aspecto individual que garantiria a validade objetiva do universal?
23
De
acordo com Heidegger, se aceitarmos que o problema da origem das categorias se situa na
relação, sempre mediada pela intuição, do conceito com o objeto, devemos admitir também
que todo pensar tende necessariamente à intuição. Em outras palavras, não só o pensar, mas
também o próprio conhecimento finito, que é peculiar ao homem, dependente essencialmente
da intuição. Por isso Heidegger – paradoxalmente –
nomeia este primeiro termo uma
intuição pensante, afirmando que, em última instância, também o conhecimento nada mais é
que intuição; “weil eben Erkennen eigentlich Anchauung ist” (KPM, p.31). Considerando que
Kant estabelece uma importante distinção entre conhecer e pensar, é relevante atentar à
seguinte advertência de Heidegger:
Toda determinação pensante como determinação de algo como algo precisa
necessariamente tomar como uma perspectiva em relação a algo, uma
perspectiva em vista da qual o objeto aí defronte vem a ser determinável. O
pensar não é intuição, mas precisa sim passar indiretamente pela perspectiva
a partir da qual é determinado. Segundo Kant o pensar por predicação não é
imediato, mas mediato. De acordo com sua essência, ele se constitui a partir
de um desvio. Assim, vem à tona a dupla finitude no conhecimento, não
apenas a finitude da intuição e a finitude do pensar como tal, mas, o que
segue juntamente com isso, uma dependência em relação a um outro. (IFil
p.280)
Segue-se daí a “hipótese de que Kant, no capítulo da Dedução Transcendental, teria se
referido originariamente, ao modo de ser do sujeito, ou as estruturas que integram a
subjetividade do sujeito” (cf. BARRETO, 2011 p.77), projeto que teria sido abandonado na
segunda elaboração da Dedução, na edição de 1787. Este fato, como vimos, é interpretado
por Heidegger como um recuo perante suas mais importantes descobertas. Sendo que este
empreendimento não tivesse sido concluído satisfatoriamente, Heidegger se Vê autorizado a
se apropriar desta tarefa, a partir de um diálogo pensante com Kant, na intenção de se
23
Para Stein, a questão kantiana da relação entre as categorias e a “construção” objeto se reconfigura no
pensamento heideggeriano da seguinte maneira: “Penso que a questão kantiana fundamental se resume na
questão das regras, no sentido de que o que Kant quer saber é a construção do objeto. Em Heidegger, não é
simplesmente a construção do objeto que interessa porque nele há uma critica a priori do objeto, no sentido do
objetivismo (...) o transcendental em Heidegger não comanda a construção do objeto – esse objeto que nós
conhecemos empiricamente precisamos conhecer como ele é objeto de nosso conhecimento? É isso que Kant
tenta fazer. Heidegger dirá que o existencial compreensão já sempre produziu o caráter de objetividade deste
objeto. Nós já sempre sabemos o que é o objeto. Nós não podemos ir atrás do processo que produz o objeto ou
pelo qual nós produzimos o objeto. O objeto já sempre está condicionado pela compreensão do Dasein enquanto
ser-no-mundo. Esta compreensão é anterior ao objeto.(STEIN 1993, p.45)”
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resgatar fenomenologicamente a originalidade de tal projeto. Retomando a primeira e mais
originária elaboração da CRP, e relendo toda dedução A, Heidegger toma como fio condutor a
síntese transcendental da imaginação e as lições da Estética Transcendental que focalizam a
finitude de um sujeito adstrito à doação 24. Fica claro, assim, que, embora o grande tema da
Dedução seja a objetividade do objeto, esta objetividade requer uma fundamentação ulterior,
exigindo que se questione metafisicamente a subjetividade do sujeito:
Assim surge a pergunta propriamente dita acerca da dedução transcendental:
como é que os conceitos a priori do entendimento podem ter realidade
objetiva, isto é, como é que eles podem pertencer a priori ao conteúdo
objetivo do objeto? Esse esquematismo é analisado por Kant tão amplamente
que ele tenta mostrar como em um determinado aspecto o tempo constitui o
esquema, isto é, a representabilidade possível de todas as categorias. (...) No
entanto, se enxergarmos o problema de uma fundamentação da metafísica de
uma maneira essencialmente mais profunda, então a questão é saber se
podemos tratar a imaginação transcendental pura simplesmente como arte
oculta da alma ou se ela não é justamente aquilo que nos auxiliou a
conquistar o conceito de alma (IFil p.291) .
Para Heidegger, toda relação de conhecimento é determinada principalmente pela
intuição, na medida em que “conhecer é um intuir pensante” (IFil p.283). Assim, se
admitirmos a legitimidade de tal argumento e definirmos o conhecimento primordialmente
como intuição, segue-se que este conhecimento intuitivo não pode se restringir unicamente a
juízos lógicos, pois estes prescindem de toda relação direta com a sensibilidade, o que
impossibilitaria a emergência de uma ontologia na CRP25.
24
Novamente, ressaltamos que a determinação da objetividade do objeto se condiciona a questão da imaginação
tanto no conhecer quando no pensar: “Na interpretação de Kant tem-se fundamentalmente de atentar para o fato
de que aquelas ideias de representação próprias da razão, ideias que precisam abdicar cada vez mais da realidade
objetiva, tornaram-se cada vez mais decisivas para a estrutura fundamental da razão finita. Depois da conclusão
da obra, Kant deve ter se dado conta de algo desse gênero, deve ter percebido que, justamente a partir da raiz que
ele se esforçou por expor, seria preciso desenvolver positivamente o todo da obra com base em um trabalho de
elaboração mais originário (IFil p. 311).”
25
Em sua tese de doutorado (“Heidegger e a destruição do processo de objetivação”) Wanderley Ferreira Jr.
defende que Heidegger teria percebido que a CRP possuía limitações intrínsecas que impediram tal autor de dar
prosseguimento ao seu projeto crítico sem que a unidade da razão fosse ameaçada de ruir, assim: “Heidegger
mostra-nos que nos limites da crítica kantiana prevalece uma reflexão sobre o ente concebido como ob-jecto
(Gegenstand), como aquilo que se antepõe a um sujeito, que possuiria a priori as regras e as categorias que
permite distinguir esse ente como um isto qualquer. A crítica kantiana proporia, assim, um conceito restritivo de
ser do ente e do próprio ente. O ser do ente como tal é identificado ao objeto, o que impediu Kant de colocar em
questão os modos de ser daquele ente que pergunta pelo seu ser e o ser das coisas em geral que é condição de
possibilidade de todo dar-se, o Dasein”. Kant teria ficado impossibilitado de superar tal condição privativa
devido ao recuo perante sua tese mais original a respeito da síntese transcendental da imaginação, assim
Heidegger teria retomado este conceito, como fio condutor, no intuito de reabilitar a leitura esboçada
originalmente por Kant para que ficasse claro que: “As estruturas fundamentais da subjetividade e o processo de
objetivação determinado por tais estruturas não podem ser compreendidos senão sobre o fundamento da doutrina
da imaginação transcendental desenvolvida na primeira edição e substituída na segunda pelo papel dado ao
entendimento” ( FERREIRA JUNIOR 2005, p.72)
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Sobre este ponto, é importante retomar a discussão sobre o significado dado por
Heidegger ao termo validade objetiva.
Pois
não se deve confundir
tal termo com a
“validade lógica”, uma vez que, para Heidegger, a própria “lógica formal é fundamentada na
ontologia formal” (IFCRP p.140). Partindo desta tese ele argumenta que, é “um
empreendimento deveras questionável assumir a lógica como fio condutor de uma
fundamentação da metafísica (...) essa questionabilidade aumenta essencialmente quando nos
lembramos de que justamente a lógica, na configuração que se encontrava diante de Kant,
repousa sobre pressuposições metafísicas.” (IFil, p.295). A partir disso Heidegger sustenta a
tese de que “a tarefa da dedução é revelar a possibilidade interna das categorias como
conceitos a priori os quais se relacionam a objetos” (IFCRP, p. 233).
E é por uma
consequência direta deste motivo que:
Kant fala inicialmente sobre a justificação da validade objetiva das
categorias, ele primeiramente tem em mente a tarefa fenomenológica de
revelação das categorias a partir de uma dimensão original. (...) Kant
também afirma que o pensamento a priori dos objetos não deve ser tomado
meramente como operação lógica do pensamento. Pelo contrário, além do
entendimento, outras faculdades estão envolvidas neste pensamento a priori,
nomeadamente a intuição e a imaginação (IFCRP, p.233, tradução nossa).
Para Heidegger, a intuição e a imaginação são os principais ingredientes da receita de
sua Dedução, pois estas faculdades da alma, presidem todos os estágios da tripla síntese
exposta por Kant na dedução A26, a qual, por seu turno, só poderia ser subsumida a partir de
um “campo de experiência hermenêutica” pré-conceitual. Para tanto, impõe-se que uma
síntese mais originária que àquela realizada pelo entendimento seja o fio condutor de toda
Dedução Transcendental, assim, ele irá reputar esta função à síntese da imaginação
transcendental, também denominada como síntese ontológica, portanto, conclui-se disto que
“(...) a imaginação, faculdade radical e função unificadora leva a cabo a tripla síntese de
apreensão, reprodução e recognição porque as três se unificam no tempo (BARRENECHEA
1977, p.42, nossa trad.).”
26
Como é exposto em A95 da CRP, logo no início da Dedução A: “Há, porém, três fontes primitivas
(capacidades ou faculdades da alma), que encerram as condições de possibilidade de toda experiência e que, por
sua vez, não podem ser derivadas de qualquer outra faculdade do espírito; são os sentidos, a imaginação e a
apercepção. Sobre elas se fundam 1) a sinopse do diverso a priori pelos sentidos; 2)a síntese do diverso pela
imaginação; finalmente 3) a unidade dessa síntese pela apercepção originária.” (CRP p.125-6 ). A estas três
faculdades, em seu uso transcendental corresponderiam três atividades sintéticas elementares, a assim
denominada “tripla síntese”: 1) Apreensão na intuição (para a apreensão prévia) 2) Reprodução na imaginação
(para a retenção) e finalmente 3) Recognição no conceito (para a obtenção de um reconhecimento do próprio ato
de síntese).
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2015 / 11ª edição
ISSN (Digital): 2358-7334
ISSN (CD-ROM): 2177-0417
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