Gramática: entre o saber e a disciplina* Luiz Carlos Schwindt** Resumo Neste texto, aborda-se o conceito de gramática em duas perspectivas: enquanto saber, que corresponde a um conhecimento próprio à espécie humana e que independe de instrução formal, e enquanto disciplina, que se ocupa da sistematização desse saber. No que diz respeito à primeira perspectiva, discutem-se exemplos advindos da fonologia, da morfologia e da sintaxe, com o intuito de ilustrar a tarefa-chave da linguística formal: explicar o que um indivíduo sabe quando sabe uma língua. Em relação à segunda perspectiva, recuperando muito brevemente o percurso da evolução dos estudos sobre gramática, são feitas algumas ponderações acerca do papel de seu ensino sistemático na escola. A crença que norteia esta discussão é a de que o domínio, por parte dos professores, de como se organiza este saber linguístico intuitivo é condição indispensável para a eficácia do trabalho pedagógico. Palavras-chave: Gramática. Competência. Conhecimento linguístico. Norma. Ensino de língua. 1 Introdução O conceito de gramática é bastante diversificado na literatura. Para pessoas não iniciadas em Linguística, este termo traz à mente tão-somente o velho livro cheio de regras – muitas inassimiláveis – utilizado na escola. Sabemos, contudo, que "gramática" é bem mais do que isso: trata-se do conjunto de regras ou restrições que governam um sistema linguístico. O que se faz na escola (nem sempre, felizmente!) revela só uma das possíveis maneiras de se olhar para essas regras ou restrições: a de ditames de conduta verbal. Linguistas, por sua vez, estudam gramática do ponto de vista do conhecimento internalizado dos falantes, sem se preocupar em determinar formas certas em detrimento de formas erradas, seja no falar, seja no escrever. Em outras palavras: esse conjunto de regras ou restrições chamado "gramática" pode ser visto em uma perspectiva normativa ou científica. * Este texto reúne as principais ideias da comunicação homônima que apresentei em mesaredonda no I SINAL – Seminário Integrado Nacional das Linguagens, realizado na Faculdade Porto-Alegrense, em maio de 2007. ** Doutor em Linguística (PUCRS). Pós-doutor em Letras (Universidad Autônoma de Barcelona). Professor adjunto da UFRGS. Pesquisador nível 2 do CNPq. E-mail: [email protected]. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 45, p. 219-229, jan./jun. 2009 Disponível em: <http://www.fapa.com.br/cienciaseletras> 219 Neste texto, quero promover uma aproximação entre o que se entende por gramática enquanto disciplina que vem sendo praticada na escola e aquilo que se entende enquanto conhecimento internalizado de um falante nativo. O objetivo é advogar em favor da indissociabilidade dessas duas perspectivas no domínio pedagógico. 2 O conceito de gramática Conceituar gramática, mesmo em domínios específicos não é tarefa simples. No domínio escolar, o que se tem chamado de gramática tradicional merece alguma atenção. A rigor, a escola pratica sim gramática tradicional, mas, no mais das vezes, com viés normativo. Essa observação é crucial, já que a gramática de tradição grega (daí "tradicional") não necessariamente está combinada ao objetivo normativo. É o que nos ensina Neves (1987, p. 15): A gramática tradicional constitui uma exposição de fatos que tem sido examinada sempre como obra acabada, sem consideração para o que tenha representado de esforço de pensamento. Citá-la apenas como dogmática, normativa, especulativa, não-científica significa não compreender o processo de sua instituição. [...] Acima de tudo, houve uma situação histórica e cultural que condicionou o surgimento da atividade gramatical entre os gregos. Essa atividade pôde surgir, porém, porque séculos de vivência intuitiva e mais séculos de desenvolvimento de um pensamento teórico criaram condições para o exercício de uma atividade prática teoricamente fundamentada. Também no domínio da ciência, o que se tem chamado de gramática não é absolutamente consensual. Enquanto, para funcionalistas, gramática diz respeito às regras da língua em uso; para formalistas, esse conceito está intimamente ligado a conhecimento intuitivo. Mesmo na visão formalista, contudo, o termo gramática suscita alguma ambiguidade: pode nomear a atividade teórica ou o próprio conhecimento – objeto dessa atividade teórica, como afirmam Chomsky e Halle (1968), “Utilizamos o termo gramática com uma ambiguidade sistemática. Por um lado, o termo refere a teoria explícita elaborada pelo linguista com o objetivo de descrever a competência do falante. Por outro lado, o termo refere a própria competência.” A despeito das várias formulações, o que há de consensual em torno do termo gramática é o fato de que serve para designar, como afirmei no início, o conjunto de regras (ou princípios, parâmetros, restrições etc.) que governam qualquer sistema linguístico. 220 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 45, p. 219-229, jan./jun. 2009 Disponível em: <http://www.fapa.com.br/cienciaseletras> A partir desse consenso, quero propor uma distinção entre o que vou chamar de gramática enquanto saber e o que entendo por gramática como disciplina (escolar, neste caso). 1 É evidente que assumo, para dar conta dessa distinção, um ponto de vista formalista: o de que nem todas as coisas que sabemos sobre uma língua são aprendidas, mas, ao contrário, que grande parte delas faz parte de nosso conhecimento. Esse conhecimento, também chamado de língua-I (de "internalizada") é produto do encontro de uma gramática universal, com a qual o indivíduo nasce, em contato com um input linguístico, a língua recebida dos pais – ou língua-E. Sabemos, contudo, que há coisas numa língua que são claramente produto de educação formal, isto é, coisas que se não nos tivessem sido ensinadas talvez nunca viéssemos a utilizar.2 Tomemos o exemplo da colocação do pronome em português brasileiro (PB): uma criança aos 2 anos diz algo como "me dá" e nunca "dá-me", ainda que aos 10 ou 12, na escola, ela aprenda que, se quiser seguir a norma, não deve iniciar frase com pronome oblíquo átono. Aí, claramente, se opõem o saber e a disciplina. As três situações apresentadas em (1) ajudam a ilustrar essa ideia. (1) a. Tu viu a Maria? b. Tu viste a Maria? c. *Tu vimos a Maria? A sentença (1a) parece ser a mais comum no português falado em grande parte do Rio Grande do Sul, por exemplo; (1b), por outro lado, apesar de ser a forma preconizada pela gramática normativa, é menos comum, e se restringe a usuários escolarizados, que a utilizam em situações em que se exige uma fala cuidada; (1c), por fim, é agramatical, isto é, não é atestada na fala de nativos de PB. Recuperando a dicotomia que defendo neste texto, assumo que a usabilidade de (1a) e a agramaticalidade de (1c) são do domínio do saber, enquanto (1b) depende da disciplina (aqui entendida como aprendizagem formal) para ser assimilada. De forma simplificadora, sei, é possível dizer que à Linguística Formal cumpre "formalizar" este saber intuitivo, enquanto à Linguística Aplicada cabe discutir a articulação desse saber com a assimilação da língua materna enquanto disciplina. Meu ponto de vista, como já prenunciei, é o de que não é possível discutir ensino de língua de um jeito sério sepa1 Uso a expressão "disciplina" para designar aprendizagem formal, e ligo este termo à escola por ser nela que isso se manifesta de forma mais preponderante. É preciso registrar, contudo, que não se excluem dessa expressão outras situações de instrução formal, já que se pode obtê-la mesmo em casa, com os pais ou outros familiares. 2 Isso não quer dizer que alguns aspectos "aprendidos" não venham a fazer parte do conhecimento internalizado. O objetivo aqui é imaginar um estágio estável ideal que oponha o que é intuitivo àquilo que é idiossincrático. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 45, p. 219-229, jan./jun. 2009 Disponível em: <http://www.fapa.com.br/cienciaseletras> 221 rado dessa formalização. Para clarear essa ideia, na próxima seção, exemplifico esse saber linguístico nos diversos módulos (componentes) da gramática. 3 Gramática enquanto "saber" A posse da linguagem, mais do que qualquer outro atributo, nos distingue das outras espécies. Antes mesmo de ser um fenômeno social, imerso em atravessamentos culturais, a linguagem é uma capacidade inata, de base biológica, que tem sua expressão mais concreta na fala. A maior prova disso é que qualquer ser humano normal, em condições normais, fala ainda nos primeiros anos de vida. O que as crianças adquirem do meio são códigos específicos que preenchem estruturas muito básicas comuns a todas as línguas do mundo. Uma boa analogia pode ser feita com a capacidade de se movimentar: todas as pessoas, em princípio, a possuem, mas vão fazer usos diferentes dela nas diferentes culturas e diante de necessidades específicas. O default é caminhar, mas mesmo seu modus operandi pode variar (gatinhando, sobre dois ou quatro apoios etc.). Podemos, então, dizer que o uso da linguagem está para a competência linguística assim como o ato de movimentar-se (caminhando, dançando etc.) está para a motricidade. Em certas culturas, inclusive, falar tem a ver com tornar-se humano. Para alguns africanos, por exemplo, um recém-nascido é um kuntu, uma coisa; tornando-se um muntu, uma pessoa, apenas quando aprende a falar (FROMKIN; RODMAN, 1993, p. 3). Esse dado cultural apenas ilustra o que parece ser uma constatação da ciência linguística, qual seja: para compreender a natureza humana, é preciso conhecer a forma como a linguagem se estrutura. A espontaneidade envolvida na fala, por vezes, nos faz julgar essa estrutura – a que chamaremos gramática – como algo artificial, criado por filólogos de mal com a vida. Mas não é assim: todas as línguas naturais conhecidas parecem se configurar a partir de um esqueleto comum, que se constitui fundamentalmente dos quatro seguintes componentes: fonologia, morfologia, sintaxe e semântica. Esses componentes estão em interface, o que faz linguistas suspeitarem muitas vezes de seus limites; parece consenso, porém, que, ao menos no que respeita aos aspectos distintivos de uma língua, eles merecem legitimidade. 3.1 Gramática: saber fonológico Um falante nativo de uma língua qualquer conhece os sons que pertencem à sua língua e também os que não pertencem. Em (2), estão alguns exemplos de sons que, apesar de serem distintivos em uma dada língua (fonemas, neste caso), não são distintivos noutra. 222 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 45, p. 219-229, jan./jun. 2009 Disponível em: <http://www.fapa.com.br/cienciaseletras> (2) a. poço – posso (em português, mas não em espanhol) b. sin – thin (em inglês, mas não em português) c. tino – chino (em espanhol, mas não em português) Embora não pare para pensar sobre isso, o falante domina um sistema complexo de traços que permitem tornar a inequívoca a distinção entre membros de pares de vocábulos em sua língua, como os que apresentei em (2). Assim, em português, para distinguir [f] de [v], em pares como faca / vaca, por exemplo, estamos nos utilizando de um mecanismo voluntário que comanda a vibração das cordas vocais – e fazemos isso muito cedo na vida –, ainda que não reflitamos sobre esse processo. Vale dizer: nossas mães não precisam nos ensinar a contrair ou relaxar as cordas vocais, para evitar o risco de construirmos uma sentença como Ele cortou a faca com a vaca. O conhecimento do sistema sonoro inclui traços que podem envolver vibração das cordas vocais, modo e ponto de articulação, entre outras características de base articulatória ou acústica. Além disso, propriedades de organização dos sons, como estrutura silábica, ou de proeminência, como acento e tom, podem também ser determinantes na diferenciação das palavras em uma língua. No caso da estrutura silábica, em português, qualquer falante sabe que um encontro consonantal como *dva, por exemplo, não constitui uma boa sílaba na língua, ainda que possa ser uma sílaba válida em hindu. 3.2 Gramática: saber morfológico Além do conhecimento dos sistemas de sons, conhecer uma língua inclui conhecer como suas palavras se estruturam. A relação entre os fonemas para formar partículas de significado (morfemas) é arbitrária, puramente convencional; por isso, ela precisa ser internalizada na gramática dos falantes.3 Por exemplo, sabemos que a palavra Linguística é constituída por pelo menos quatro elementos (morfemas), já que esses elementos podem fazer parte de outras palavras da língua. É o que se ilustra em (3). (3) morfemas do vocábulo Linguística ling-ist -ic -a vocábulos que fazem uso dos mesmos morfemas linguagem analista atômico criança 3 Apenas um pequeno grupo de palavras na maior parte das línguas é onomatopaico e mesmo essas palavras podem mudar de língua para língua (por exemplo, um latido em indonésio: gonggong; e em catalão: bupbup). Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 45, p. 219-229, jan./jun. 2009 Disponível em: <http://www.fapa.com.br/cienciaseletras> 223 Quando as fronteiras morfológicas são visíveis para os falantes, estamos diante do fenômeno de transparência morfológica. Nem todas as estruturas são, contudo, transparentes para os falantes, isto é, para exemplificar, se sui fosse um sufixo transparente em português, talvez não usássemos o verbo suicidar-se sempre com pronome. Isso é assim porque esta forma é opaca em português; tornou-se erudita. O conhecimento morfológico também se estende à compreensão dos processos flexionais e de formação de palavras nas línguas. Os nomes portugueses (e alguns pronomes) se flexionam em gênero e número; os verbos combinam flexões de modo, tempo e aspecto, de um lado, e de número e pessoa, de outro. Formamos palavras basicamente com dois processos: composição e derivação (prefixação, sufixação e parassíntese). Ao fazer uso desses processos, sabemos exatamente a posição em que um afixo pode se ancorar na base, sem riscos de usar um prefixo como sufixo ou de infixar uma flexão, por exemplo. Além de enxergar a estrutura interna das palavras, os falantes usam processos flexionais, composicionais e derivacionais para formar palavras novas. A isso se dá o nome de produtividade morfológica. No caso do português, por exemplo, os falantes sabem que plural de nomes se faz com –s à direita do tema (ex. casas, dentes, flores). Nesse sentido, aliás, fatos de aquisição ou mesmo de hipercorreção são sintomáticos: ao coletar dados sobre plural de crianças de 2 anos e meio, ouvi a expressão um lápi em oposição a dois lápis; também de uma amiga analfabeta, ao me servir um café, ouvi Vou te alcançar um pir, porque a xícara está quente. Isso denota que o plural é algo produtivo na língua, e que emerge, em princípio, de forma regular, sobretudo aonde a cultura escolar não chegou.4 3.3 Gramática: saber sintático Apesar de o léxico ser fundamental na comunicação humana, ninguém fala usando palavras avulsas. Toda língua natural se organiza a partir de sentenças. Diferentemente das palavras, que possuem um inventário mais ou menos limitado, não se podem catalogar todas as sentenças possíveis em um dicionário.5 Conhecer uma língua é também ser capaz de produzir e compreender frases inéditas. “É impensável que todas as frases possíveis estejam guardadas no nosso cérebro e que, ao falarmos, procuremos a 4 Os memoráveis exemplos do ex-ministro Magri, imexível, e do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, inconvivível são bons exemplos de formas derivadas produtivas (e bem formadas!) em português. 5 É preciso que se registre que a Morfologia Lexical (de base gerativa) vê a morfologia como produtiva, o que vale dizer que ali também há capacidade criativa. Em outras palavras: nessa perspectiva, acredita-se que também palavras (como frases) não podem todas ser listadas num dicionário. 224 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 45, p. 219-229, jan./jun. 2009 Disponível em: <http://www.fapa.com.br/cienciaseletras> frase que parece ajustar-se à situação ou que, ao ouvirmos uma frase, a comparemos com alguma já armazenada [...].” (FROMKIN; RODMAN, 1993, p. 8). Chomsky, opondo-se ao comportamentalismo, propôs que o ser humano possui, inatamente, um dispositivo de aquisição da linguagem. Esse dispositivo permite ao homem produzir um número infinito de sentenças bem-formadas de sua língua, a partir de um conjunto finito de regras. Podemos, então, criar frases infinitas a partir do mecanismo de recursividade, como ilustra (4). (4) [Esta é a casa] [Esta é a casa [que Pedro construiu]] [Esta é a casa[que Pedro[que é engenheiro]construiu]] [Esta é a casa[de que te falei][que Pedro[que é engenheiro]construiu]]. Esta é a casa de que te falei, que Pedro, que é engenheiro, construiu. Todo falante sabe, ainda, se uma sentença é ou não possível em sua língua, como mostram os exemplos em (5). (5) a. Meu irmão viu ele. b. *Joana caiu seu filho. c. (?)A casa que o muro dela é azul foi vendida ontem. Os exemplos em (5) merecem avaliações distintas: enquanto (5a), apesar de contrariar a norma, é perfeitamente gramatical em PB, (5b) não parece plausível em nossa língua, já que contraria condições de subcategorização do verbo; (5c), por sua vez, embora a mim pareça gramatical, recebeu diferentes juízos por parte das pessoas que consultei – aí reside, então, supostamente, uma questão a ser investigada pelos sintaticistas. 3.4 Gramática: saber semântico Qualquer falante conhece, ainda, os significados dos vocábulos e das sentenças de sua língua, o que lhe permite decidir pela boa-formação semântica dessas estruturas. Observem-se os exemplos em (6). (6) a. O menino leu o livro. b. O livro leu o menino. (SVO) c. Bin Laden passeia todo dia de mãos dadas com Bush nos jardins da Casa Branca Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 45, p. 219-229, jan./jun. 2009 Disponível em: <http://www.fapa.com.br/cienciaseletras> 225 A sentença (6a) está bem-formada, já que sujeito e predicado cobrem a seleção semântica do verbo; o mesmo não se pode dizer de (6b), em que sujeito e objeto não são semanticamente adequados às exigências do verbo; (6c), por outro lado, apesar de ser uma sentença bem-formada em todos os aspectos estruturais, falha em suas condições de verdade, já que não parece passível de ser atestada. Esse juízo, contudo, envolve aspectos que extrapolam a noção de significado em sua acepção mais restrita, dependendo em geral de condições pragmáticas, isto é, que envolvem a linguagem em uso. 4 Gramática enquanto "disciplina" Apesar de sermos falantes nativos de nossa língua, todos temos, na escola, uma disciplina formal chamada Língua Portuguesa. Estudar português na escola é diferente de estudar inglês ou espanhol justamente por isto: a primeira é a língua que usamos desde cedo para nos comunicar e as outras – para a maioria ao menos – representam novidade. Não deveria, então, ser a disciplina de língua materna a mais fácil para todos os aprendizes? Não é, contudo, o que se constata na maior parte das vezes. Para além de razões metodológicas (professores de língua estrangeira são mais acessíveis em geral que professores de língua materna), há um problema na constituição dessas disciplinas escolares. O fato é que se acredita que, por já se saber muito da língua, o que é importa é estudar aquilo que ainda não se sabe. Arrisco dizer que isso não está de todo equivocado. O problema talvez resida numa indefinição de base, que precisa achar respostas para as seguintes perguntas: (i) (ii) por que alguém vai à escola? por que é preciso que os indivíduos obtenham instrução formal na língua materna? (iii) qual o objetivo do ensino sistemático de gramática? Quanto à questão (i), se perguntarmos a qualquer indivíduo em fase de alfabetização (criança ou adulto) por que ele vai à escola, a resposta será sempre a mesma: para aprender a ler a escrever! Isso sugere que todo o ensino de língua materna deva ser focado precipuamente na lecto-escrita. Não quer dizer que os alunos não devam "falar" em sala de aula, mas esse certamente não deve ser o principal objetivo do ensino sistemático de língua materna. A fala deve ser abordada no ensino na medida de sua articulação com a escrita. Acrescento: já que todo mundo fala antes de entrar na escola (e não precisa da escola para falar), quando abordado pedagogicamente, o exercício da fala deve estar focado nos diversos usos que esta pode apresentar. 226 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 45, p. 219-229, jan./jun. 2009 Disponível em: <http://www.fapa.com.br/cienciaseletras> Se é verdade, então, que vamos à escola sobretudo para apreender o código escrito, a resposta à questão (ii) emerge naturalmente. Escrever – diferente de falar – é uma atividade puramente cultural: nada há de biológico na escrita. Por essa razão, não é possível ler ou escrever sem instrução formal. Resta, então, a tarefa de responder à questão (iii), e esta toca mais diretamente ao tema deste artigo. Considerando que defendo que gramática é um saber humano, um contraditor poderia me dizer que não há, pois, o que fazer nesse sentido na escola. O fato que lhe escapa supostamente, contudo, é o de que uma língua, em qualquer modalidade, está sujeita a atividade normativa. Essa atividade normativa é construída a partir da língua escrita e se espraia para língua falada, parametrizando os usos que uma língua pode ter em diferentes situações de comunicação. Como esse parâmetro provém da escrita (de uma norma "cultuada", nos termos de Faraco, 2001), é preciso que a escola o apresente ao indivíduo. Aí vão surgir conflitos entre a gramática internalizada e a escolar, e é nesse ponto que a prática pedagógica pode adquirir um papel importante. De forma mais ou menos prática, retomando o exemplo que dei na seção sobre morfologia: a criança que diz "o lápi" ou o analfabeto que diz "o pir" precisam saber, primeiro, que sua intuição estava absolutamente correta; segundo, que, apesar disso, nesses casos, a língua tem comportamento excepcional. Ensinar gramática é, assim, ensinar como uma língua se estrutura do ponto de vista fonológico, morfológico, sintático e semântico. Duas subquestões surgem naturalmente agora: (iiia) que tipo de gramática ensinar? (iiib) que objeto é passível de uma análise gramatical? Quanto à primeira subquestão, podemos afirmar que a gramática a ser ensinada é aquela que apresentar a melhor abordagem à norma culta escrita (que é o alvo do ensino sistemático de língua materna). Nesse sentido, muito mais problemático do que o ensino da gramática normativa é a postura normativa ao ensinar gramática. Essa postura compromete o ensino de língua materna porque associa o professor a um legislador. Ainda nesse quesito, é preciso dizer que, já que toda a língua em uso está sujeita a atividade normativa, a escola, ainda que a priorize, não deve se restringir à norma culta. É tarefa da escola mostrar os diversos usos que uma língua pode ter, discutindo os fatores linguísticos e sociais que contribuem para essas diferenças. Casos como os de (7), então, precisam receber sua atenção. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 45, p. 219-229, jan./jun. 2009 Disponível em: <http://www.fapa.com.br/cienciaseletras> 227 (7) a. Tu trouxe o texto pra mim lê? b. Esse aqui é o material [ ] que tu precisa? Esses exemplos trazem situações típicas da língua coloquial, mas não podem escapar ao ensino de língua materna. Entendo que é preciso mostrar que, do ponto de vista da língua culta, sobretudo em sua modalidade escrita, há inadequações, em (7a), quanto à concordância verbal e ao emprego do pronome com função de sujeito e que, em (7b), há uma omissão de preposição. O que não se pode fazer é tentar mistificar o ensino, sob o argumento de que essas formas estão erradas e, por isso, não permitem veicular as ideias que pretendem; ao contrário, é preciso mostrar que elas "respeitam" a gramática internalizada, ainda que possam sofrer ajustes para se encaixar noutra modalidade gramatical – a da língua escrita culta. No que respeita à segunda subquestão, podemos dizer que o ensino de gramática deve ter como alvo todas as unidades do saber linguístico que possuem contraparte na comunicação. Nesse sentido, todas as entidades que constituem a comunicação ou parte dela são objetos passíveis de uma análise gramatical: as sílabas, as palavras, as sentenças, os enunciados etc. Não há, contudo, como se alcançar eficácia num ensino que aborde apenas frases ou palavras – ou que as aborde sem que seu sentido último seja o de entender o mecanismo da comunicação. 5 Considerações finais Quando falo em saber e em disciplina, estou propondo uma visão conciliadora entre o objeto da Linguística – este saber – e um conjunto de teorias que procuram explicar este saber – a disciplina. No caso deste artigo, explorei a disciplina escolar: o ensino sistemático de português mais especificamente. O ensino, por um longo tempo, esteve distante da preocupação com o saber linguístico, enfocando tão-somente uma disciplina de base normativa. Isso fazia dele não-científico. A reflexão que propus aqui sugere que a atividade pedagógica seja conduzida cientificamente, isto é, que busque o saber que quer discutir em sala de aula, em forma de uma disciplina. Isso permitirá a reintrodução da gramática (tão custosamente desintroduzida!) nos bancos escolares. Neste momento, estaremos colocando a gramática a serviço do conhecimento linguístico e não assumindo a equivocada direção contrária. Recebido em maio de 2009. Aprovado em junho de 2009. 228 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 45, p. 219-229, jan./jun. 2009 Disponível em: <http://www.fapa.com.br/cienciaseletras> Grammar: Between Knowledge and the Discipline Abstract In this paper, we focuses on the concept of grammar in two perspectives: as knowledge, which corresponds to personal knowledge of the human species that does not depend on formal education, and as discipline, which deals with the systematization of this knowledge. Regarding the first approach, example derived from phonology, morphology and syntax are discussed in order to illustrate the key task of the formal language: explain what an individual knows when knowing a determine language. In relation to the second perspective, briefly recovering the course of evolution of research on grammar, some considerations about the role of the systematic education in school are made. The belief that guides this discussion is that the mastery, by teachers, of how this intuitive linguistic knowledge is organized is an indispensable condition for the effectiveness of pedagogical work. Keywords: Grammar. Competence. Linguistic knowledge. Norms. Language teaching. Referências BRITTO, L. P. L. À sombra do caos: ensino de língua versus tradição gramatical. Campinas: Mercado de Letras. 1997. (Col. Leituras no Brasil.) CHOMSKY, N. Novos horizontes no estudo da linguagem e da mente. São Paulo: EDUNESP, 2002. CHOMSKY, N.; HALLE, M. The Sound Pattern of English. 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