Gramática: entre o saber e a disciplina (PDF Available)

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Gramática: entre o saber e a disciplina*
Luiz Carlos Schwindt**
Resumo
Neste texto, aborda-se o conceito de gramática em duas perspectivas: enquanto saber, que
corresponde a um conhecimento próprio à espécie humana e que independe de instrução
formal, e enquanto disciplina, que se ocupa da sistematização desse saber. No que diz
respeito à primeira perspectiva, discutem-se exemplos advindos da fonologia, da morfologia e da sintaxe, com o intuito de ilustrar a tarefa-chave da linguística formal: explicar o que
um indivíduo sabe quando sabe uma língua. Em relação à segunda perspectiva, recuperando muito brevemente o percurso da evolução dos estudos sobre gramática, são feitas algumas ponderações acerca do papel de seu ensino sistemático na escola. A crença que norteia
esta discussão é a de que o domínio, por parte dos professores, de como se organiza este
saber linguístico intuitivo é condição indispensável para a eficácia do trabalho pedagógico.
Palavras-chave: Gramática. Competência. Conhecimento linguístico. Norma. Ensino de
língua.
1 Introdução
O conceito de gramática é bastante diversificado na literatura. Para
pessoas não iniciadas em Linguística, este termo traz à mente tão-somente
o velho livro cheio de regras – muitas inassimiláveis – utilizado na escola.
Sabemos, contudo, que "gramática" é bem mais do que isso: trata-se do
conjunto de regras ou restrições que governam um sistema linguístico.
O que se faz na escola (nem sempre, felizmente!) revela só uma das possíveis maneiras de se olhar para essas regras ou restrições: a de ditames de
conduta verbal. Linguistas, por sua vez, estudam gramática do ponto de
vista do conhecimento internalizado dos falantes, sem se preocupar em
determinar formas certas em detrimento de formas erradas, seja no falar,
seja no escrever. Em outras palavras: esse conjunto de regras ou restrições
chamado "gramática" pode ser visto em uma perspectiva normativa ou
científica.
* Este texto reúne as principais ideias da comunicação homônima que apresentei em mesaredonda no I SINAL – Seminário Integrado Nacional das Linguagens, realizado na Faculdade
Porto-Alegrense, em maio de 2007.
** Doutor em Linguística (PUCRS). Pós-doutor em Letras (Universidad Autônoma de
Barcelona). Professor adjunto da UFRGS. Pesquisador nível 2 do CNPq.
E-mail: [email protected].
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Neste texto, quero promover uma aproximação entre o que se entende por gramática enquanto disciplina que vem sendo praticada na
escola e aquilo que se entende enquanto conhecimento internalizado de
um falante nativo. O objetivo é advogar em favor da indissociabilidade
dessas duas perspectivas no domínio pedagógico.
2 O conceito de gramática
Conceituar gramática, mesmo em domínios específicos não é tarefa simples.
No domínio escolar, o que se tem chamado de gramática tradicional merece alguma atenção. A rigor, a escola pratica sim gramática tradicional, mas, no mais das vezes, com viés normativo. Essa observação é
crucial, já que a gramática de tradição grega (daí "tradicional") não necessariamente está combinada ao objetivo normativo. É o que nos ensina
Neves (1987, p. 15):
A gramática tradicional constitui uma exposição de fatos
que tem sido examinada sempre como obra acabada, sem
consideração para o que tenha representado de esforço de
pensamento. Citá-la apenas como dogmática, normativa,
especulativa, não-científica significa não compreender o
processo de sua instituição.
[...] Acima de tudo, houve uma situação histórica e cultural que condicionou o surgimento da atividade gramatical
entre os gregos. Essa atividade pôde surgir, porém, porque séculos de vivência intuitiva e mais séculos de desenvolvimento de um pensamento teórico criaram condições
para o exercício de uma atividade prática teoricamente
fundamentada.
Também no domínio da ciência, o que se tem chamado de gramática não é absolutamente consensual. Enquanto, para funcionalistas, gramática diz respeito às regras da língua em uso; para formalistas, esse
conceito está intimamente ligado a conhecimento intuitivo.
Mesmo na visão formalista, contudo, o termo gramática suscita alguma ambiguidade: pode nomear a atividade teórica ou o próprio conhecimento – objeto dessa atividade teórica, como afirmam Chomsky e Halle
(1968), “Utilizamos o termo gramática com uma ambiguidade sistemática. Por um lado, o termo refere a teoria explícita elaborada pelo linguista
com o objetivo de descrever a competência do falante. Por outro lado, o
termo refere a própria competência.”
A despeito das várias formulações, o que há de consensual em
torno do termo gramática é o fato de que serve para designar, como afirmei no início, o conjunto de regras (ou princípios, parâmetros, restrições
etc.) que governam qualquer sistema linguístico.
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A partir desse consenso, quero propor uma distinção entre o que
vou chamar de gramática enquanto saber e o que entendo por gramática
como disciplina (escolar, neste caso). 1
É evidente que assumo, para dar conta dessa distinção, um ponto
de vista formalista: o de que nem todas as coisas que sabemos sobre uma
língua são aprendidas, mas, ao contrário, que grande parte delas faz parte de nosso conhecimento. Esse conhecimento, também chamado de língua-I (de "internalizada") é produto do encontro de uma gramática universal, com a qual o indivíduo nasce, em contato com um input linguístico, a língua recebida dos pais – ou língua-E.
Sabemos, contudo, que há coisas numa língua que são claramente
produto de educação formal, isto é, coisas que se não nos tivessem sido
ensinadas talvez nunca viéssemos a utilizar.2
Tomemos o exemplo da colocação do pronome em português brasileiro (PB): uma criança aos 2 anos diz algo como "me dá" e nunca
"dá-me", ainda que aos 10 ou 12, na escola, ela aprenda que, se quiser
seguir a norma, não deve iniciar frase com pronome oblíquo átono. Aí,
claramente, se opõem o saber e a disciplina.
As três situações apresentadas em (1) ajudam a ilustrar essa ideia.
(1)
a. Tu viu a Maria?
b. Tu viste a Maria?
c. *Tu vimos a Maria?
A sentença (1a) parece ser a mais comum no português falado em
grande parte do Rio Grande do Sul, por exemplo; (1b), por outro lado,
apesar de ser a forma preconizada pela gramática normativa, é menos
comum, e se restringe a usuários escolarizados, que a utilizam em situações em que se exige uma fala cuidada; (1c), por fim, é agramatical, isto é,
não é atestada na fala de nativos de PB. Recuperando a dicotomia que
defendo neste texto, assumo que a usabilidade de (1a) e a agramaticalidade de (1c) são do domínio do saber, enquanto (1b) depende da disciplina (aqui entendida como aprendizagem formal) para ser assimilada.
De forma simplificadora, sei, é possível dizer que à Linguística
Formal cumpre "formalizar" este saber intuitivo, enquanto à Linguística
Aplicada cabe discutir a articulação desse saber com a assimilação da língua materna enquanto disciplina. Meu ponto de vista, como já prenunciei,
é o de que não é possível discutir ensino de língua de um jeito sério sepa1 Uso a expressão "disciplina" para designar aprendizagem formal, e ligo este termo à
escola por ser nela que isso se manifesta de forma mais preponderante. É preciso registrar,
contudo, que não se excluem dessa expressão outras situações de instrução formal, já que se
pode obtê-la mesmo em casa, com os pais ou outros familiares.
2
Isso não quer dizer que alguns aspectos "aprendidos" não venham a fazer parte do conhecimento internalizado. O objetivo aqui é imaginar um estágio estável ideal que oponha o
que é intuitivo àquilo que é idiossincrático.
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rado dessa formalização. Para clarear essa ideia, na próxima seção, exemplifico esse saber linguístico nos diversos módulos (componentes) da gramática.
3 Gramática enquanto "saber"
A posse da linguagem, mais do que qualquer outro atributo, nos
distingue das outras espécies. Antes mesmo de ser um fenômeno social,
imerso em atravessamentos culturais, a linguagem é uma capacidade inata,
de base biológica, que tem sua expressão mais concreta na fala.
A maior prova disso é que qualquer ser humano normal, em condições
normais, fala ainda nos primeiros anos de vida. O que as crianças adquirem do meio são códigos específicos que preenchem estruturas muito básicas comuns a todas as línguas do mundo. Uma boa analogia pode ser feita
com a capacidade de se movimentar: todas as pessoas, em princípio, a
possuem, mas vão fazer usos diferentes dela nas diferentes culturas e diante de necessidades específicas. O default é caminhar, mas mesmo seu modus
operandi pode variar (gatinhando, sobre dois ou quatro apoios etc.). Podemos, então, dizer que o uso da linguagem está para a competência linguística assim como o ato de movimentar-se (caminhando, dançando etc.) está
para a motricidade.
Em certas culturas, inclusive, falar tem a ver com tornar-se humano.
Para alguns africanos, por exemplo, um recém-nascido é um kuntu, uma
coisa; tornando-se um muntu, uma pessoa, apenas quando aprende a falar
(FROMKIN; RODMAN, 1993, p. 3). Esse dado cultural apenas ilustra o que
parece ser uma constatação da ciência linguística, qual seja: para compreender a natureza humana, é preciso conhecer a forma como a linguagem se
estrutura.
A espontaneidade envolvida na fala, por vezes, nos faz julgar essa
estrutura – a que chamaremos gramática – como algo artificial, criado por
filólogos de mal com a vida. Mas não é assim: todas as línguas naturais
conhecidas parecem se configurar a partir de um esqueleto comum, que se
constitui fundamentalmente dos quatro seguintes componentes: fonologia,
morfologia, sintaxe e semântica. Esses componentes estão em interface, o
que faz linguistas suspeitarem muitas vezes de seus limites; parece consenso, porém, que, ao menos no que respeita aos aspectos distintivos de uma
língua, eles merecem legitimidade.
3.1 Gramática: saber fonológico
Um falante nativo de uma língua qualquer conhece os sons que
pertencem à sua língua e também os que não pertencem. Em (2), estão
alguns exemplos de sons que, apesar de serem distintivos em uma dada
língua (fonemas, neste caso), não são distintivos noutra.
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(2)
a. poço – posso (em português, mas não em espanhol)
b. sin – thin (em inglês, mas não em português)
c. tino – chino (em espanhol, mas não em português)
Embora não pare para pensar sobre isso, o falante domina um sistema complexo de traços que permitem tornar a inequívoca a distinção
entre membros de pares de vocábulos em sua língua, como os que apresentei em (2).
Assim, em português, para distinguir [f] de [v], em pares como faca /
vaca, por exemplo, estamos nos utilizando de um mecanismo voluntário que
comanda a vibração das cordas vocais – e fazemos isso muito cedo na vida –,
ainda que não reflitamos sobre esse processo. Vale dizer: nossas mães não
precisam nos ensinar a contrair ou relaxar as cordas vocais, para evitar o
risco de construirmos uma sentença como Ele cortou a faca com a vaca.
O conhecimento do sistema sonoro inclui traços que podem envolver vibração das cordas vocais, modo e ponto de articulação, entre outras
características de base articulatória ou acústica. Além disso, propriedades
de organização dos sons, como estrutura silábica, ou de proeminência,
como acento e tom, podem também ser determinantes na diferenciação das
palavras em uma língua. No caso da estrutura silábica, em português,
qualquer falante sabe que um encontro consonantal como *dva, por exemplo, não constitui uma boa sílaba na língua, ainda que possa ser uma sílaba
válida em hindu.
3.2 Gramática: saber morfológico
Além do conhecimento dos sistemas de sons, conhecer uma língua
inclui conhecer como suas palavras se estruturam. A relação entre os fonemas para formar partículas de significado (morfemas) é arbitrária, puramente convencional; por isso, ela precisa ser internalizada na gramática
dos falantes.3
Por exemplo, sabemos que a palavra Linguística é constituída por
pelo menos quatro elementos (morfemas), já que esses elementos podem
fazer parte de outras palavras da língua. É o que se ilustra em (3).
(3)
morfemas do vocábulo
Linguística
ling-ist
-ic
-a
vocábulos que fazem uso dos
mesmos morfemas
linguagem
analista
atômico
criança
3
Apenas um pequeno grupo de palavras na maior parte das línguas é onomatopaico e
mesmo essas palavras podem mudar de língua para língua (por exemplo, um latido em
indonésio: gonggong; e em catalão: bupbup).
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Quando as fronteiras morfológicas são visíveis para os falantes, estamos diante do fenômeno de transparência morfológica. Nem todas as
estruturas são, contudo, transparentes para os falantes, isto é, para exemplificar, se sui fosse um sufixo transparente em português, talvez não
usássemos o verbo suicidar-se sempre com pronome. Isso é assim porque
esta forma é opaca em português; tornou-se erudita.
O conhecimento morfológico também se estende à compreensão
dos processos flexionais e de formação de palavras nas línguas. Os nomes
portugueses (e alguns pronomes) se flexionam em gênero e número; os
verbos combinam flexões de modo, tempo e aspecto, de um lado, e de
número e pessoa, de outro. Formamos palavras basicamente com dois
processos: composição e derivação (prefixação, sufixação e parassíntese).
Ao fazer uso desses processos, sabemos exatamente a posição em que um
afixo pode se ancorar na base, sem riscos de usar um prefixo como sufixo
ou de infixar uma flexão, por exemplo.
Além de enxergar a estrutura interna das palavras, os falantes
usam processos flexionais, composicionais e derivacionais para formar
palavras novas. A isso se dá o nome de produtividade morfológica. No
caso do português, por exemplo, os falantes sabem que plural de nomes
se faz com –s à direita do tema (ex. casas, dentes, flores). Nesse sentido,
aliás, fatos de aquisição ou mesmo de hipercorreção são sintomáticos: ao
coletar dados sobre plural de crianças de 2 anos e meio, ouvi a expressão
um lápi em oposição a dois lápis; também de uma amiga analfabeta, ao me
servir um café, ouvi Vou te alcançar um pir, porque a xícara está quente. Isso
denota que o plural é algo produtivo na língua, e que emerge, em princípio, de forma regular, sobretudo aonde a cultura escolar não chegou.4
3.3 Gramática: saber sintático
Apesar de o léxico ser fundamental na comunicação humana, ninguém fala usando palavras avulsas. Toda língua natural se organiza a
partir de sentenças.
Diferentemente das palavras, que possuem um inventário mais ou
menos limitado, não se podem catalogar todas as sentenças possíveis em
um dicionário.5 Conhecer uma língua é também ser capaz de produzir e
compreender frases inéditas. “É impensável que todas as frases possíveis
estejam guardadas no nosso cérebro e que, ao falarmos, procuremos a
4
Os memoráveis exemplos do ex-ministro Magri, imexível, e do ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso, inconvivível são bons exemplos de formas derivadas produtivas (e bem
formadas!) em português.
5
É preciso que se registre que a Morfologia Lexical (de base gerativa) vê a morfologia
como produtiva, o que vale dizer que ali também há capacidade criativa. Em outras palavras: nessa perspectiva, acredita-se que também palavras (como frases) não podem todas
ser listadas num dicionário.
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frase que parece ajustar-se à situação ou que, ao ouvirmos uma frase, a
comparemos com alguma já armazenada [...].” (FROMKIN; RODMAN,
1993, p. 8).
Chomsky, opondo-se ao comportamentalismo, propôs que o ser
humano possui, inatamente, um dispositivo de aquisição da linguagem. Esse
dispositivo permite ao homem produzir um número infinito de sentenças
bem-formadas de sua língua, a partir de um conjunto finito de regras.
Podemos, então, criar frases infinitas a partir do mecanismo de recursividade, como ilustra (4).
(4)
[Esta é a casa]
[Esta é a casa [que Pedro construiu]]
[Esta é a casa[que Pedro[que é engenheiro]construiu]]
[Esta é a casa[de que te falei][que Pedro[que é
engenheiro]construiu]].
Esta é a casa de que te falei, que Pedro, que é engenheiro, construiu.
Todo falante sabe, ainda, se uma sentença é ou não possível em
sua língua, como mostram os exemplos em (5).
(5)
a. Meu irmão viu ele.
b. *Joana caiu seu filho.
c. (?)A casa que o muro dela é azul foi vendida ontem.
Os exemplos em (5) merecem avaliações distintas: enquanto (5a),
apesar de contrariar a norma, é perfeitamente gramatical em PB, (5b) não
parece plausível em nossa língua, já que contraria condições de subcategorização do verbo; (5c), por sua vez, embora a mim pareça gramatical,
recebeu diferentes juízos por parte das pessoas que consultei – aí reside,
então, supostamente, uma questão a ser investigada pelos sintaticistas.
3.4 Gramática: saber semântico
Qualquer falante conhece, ainda, os significados dos vocábulos e
das sentenças de sua língua, o que lhe permite decidir pela boa-formação
semântica dessas estruturas.
Observem-se os exemplos em (6).
(6)
a. O menino leu o livro.
b. O livro leu o menino. (SVO)
c. Bin Laden passeia todo dia de mãos dadas com Bush nos jardins da Casa Branca
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A sentença (6a) está bem-formada, já que sujeito e predicado cobrem a seleção semântica do verbo; o mesmo não se pode dizer de (6b),
em que sujeito e objeto não são semanticamente adequados às exigências
do verbo; (6c), por outro lado, apesar de ser uma sentença bem-formada
em todos os aspectos estruturais, falha em suas condições de verdade, já
que não parece passível de ser atestada. Esse juízo, contudo, envolve
aspectos que extrapolam a noção de significado em sua acepção mais
restrita, dependendo em geral de condições pragmáticas, isto é, que envolvem a linguagem em uso.
4 Gramática enquanto "disciplina"
Apesar de sermos falantes nativos de nossa língua, todos temos,
na escola, uma disciplina formal chamada Língua Portuguesa. Estudar
português na escola é diferente de estudar inglês ou espanhol justamente
por isto: a primeira é a língua que usamos desde cedo para nos comunicar e as outras – para a maioria ao menos – representam novidade. Não
deveria, então, ser a disciplina de língua materna a mais fácil para todos
os aprendizes? Não é, contudo, o que se constata na maior parte das vezes. Para além de razões metodológicas (professores de língua estrangeira são mais acessíveis em geral que professores de língua materna), há
um problema na constituição dessas disciplinas escolares. O fato é que se
acredita que, por já se saber muito da língua, o que é importa é estudar
aquilo que ainda não se sabe. Arrisco dizer que isso não está de todo
equivocado. O problema talvez resida numa indefinição de base, que
precisa achar respostas para as seguintes perguntas:
(i)
(ii)
por que alguém vai à escola?
por que é preciso que os indivíduos obtenham instrução formal na
língua materna?
(iii) qual o objetivo do ensino sistemático de gramática?
Quanto à questão (i), se perguntarmos a qualquer indivíduo em
fase de alfabetização (criança ou adulto) por que ele vai à escola, a resposta será sempre a mesma: para aprender a ler a escrever! Isso sugere
que todo o ensino de língua materna deva ser focado precipuamente na
lecto-escrita. Não quer dizer que os alunos não devam "falar" em sala de
aula, mas esse certamente não deve ser o principal objetivo do ensino
sistemático de língua materna. A fala deve ser abordada no ensino na
medida de sua articulação com a escrita. Acrescento: já que todo mundo
fala antes de entrar na escola (e não precisa da escola para falar), quando
abordado pedagogicamente, o exercício da fala deve estar focado nos
diversos usos que esta pode apresentar.
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Se é verdade, então, que vamos à escola sobretudo para apreender
o código escrito, a resposta à questão (ii) emerge naturalmente. Escrever –
diferente de falar – é uma atividade puramente cultural: nada há de biológico na escrita. Por essa razão, não é possível ler ou escrever sem instrução formal.
Resta, então, a tarefa de responder à questão (iii), e esta toca mais
diretamente ao tema deste artigo. Considerando que defendo que gramática é um saber humano, um contraditor poderia me dizer que não
há, pois, o que fazer nesse sentido na escola. O fato que lhe escapa supostamente, contudo, é o de que uma língua, em qualquer modalidade,
está sujeita a atividade normativa. Essa atividade normativa é construída a partir da língua escrita e se espraia para língua falada, parametrizando os usos que uma língua pode ter em diferentes situações de comunicação. Como esse parâmetro provém da escrita (de uma norma
"cultuada", nos termos de Faraco, 2001), é preciso que a escola o apresente ao indivíduo. Aí vão surgir conflitos entre a gramática internalizada e a escolar, e é nesse ponto que a prática pedagógica pode adquirir
um papel importante.
De forma mais ou menos prática, retomando o exemplo que dei na
seção sobre morfologia: a criança que diz "o lápi" ou o analfabeto que diz
"o pir" precisam saber, primeiro, que sua intuição estava absolutamente
correta; segundo, que, apesar disso, nesses casos, a língua tem comportamento excepcional.
Ensinar gramática é, assim, ensinar como uma língua se estrutura
do ponto de vista fonológico, morfológico, sintático e semântico.
Duas subquestões surgem naturalmente agora:
(iiia) que tipo de gramática ensinar?
(iiib) que objeto é passível de uma análise gramatical?
Quanto à primeira subquestão, podemos afirmar que a gramática
a ser ensinada é aquela que apresentar a melhor abordagem à norma
culta escrita (que é o alvo do ensino sistemático de língua materna). Nesse sentido, muito mais problemático do que o ensino da gramática normativa é a postura normativa ao ensinar gramática. Essa postura compromete o ensino de língua materna porque associa o professor a um
legislador.
Ainda nesse quesito, é preciso dizer que, já que toda a língua em
uso está sujeita a atividade normativa, a escola, ainda que a priorize, não
deve se restringir à norma culta. É tarefa da escola mostrar os diversos
usos que uma língua pode ter, discutindo os fatores linguísticos e sociais
que contribuem para essas diferenças. Casos como os de (7), então, precisam receber sua atenção.
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(7)
a. Tu trouxe o texto pra mim lê?
b. Esse aqui é o material [ ] que tu precisa?
Esses exemplos trazem situações típicas da língua coloquial, mas
não podem escapar ao ensino de língua materna. Entendo que é preciso
mostrar que, do ponto de vista da língua culta, sobretudo em sua modalidade escrita, há inadequações, em (7a), quanto à concordância verbal e
ao emprego do pronome com função de sujeito e que, em (7b), há uma
omissão de preposição. O que não se pode fazer é tentar mistificar o ensino, sob o argumento de que essas formas estão erradas e, por isso, não
permitem veicular as ideias que pretendem; ao contrário, é preciso mostrar que elas "respeitam" a gramática internalizada, ainda que possam
sofrer ajustes para se encaixar noutra modalidade gramatical – a da língua escrita culta.
No que respeita à segunda subquestão, podemos dizer que o ensino de gramática deve ter como alvo todas as unidades do saber linguístico que possuem contraparte na comunicação. Nesse sentido, todas as
entidades que constituem a comunicação ou parte dela são objetos passíveis de uma análise gramatical: as sílabas, as palavras, as sentenças, os
enunciados etc. Não há, contudo, como se alcançar eficácia num ensino
que aborde apenas frases ou palavras – ou que as aborde sem que seu
sentido último seja o de entender o mecanismo da comunicação.
5 Considerações finais
Quando falo em saber e em disciplina, estou propondo uma visão
conciliadora entre o objeto da Linguística – este saber – e um conjunto de
teorias que procuram explicar este saber – a disciplina. No caso deste
artigo, explorei a disciplina escolar: o ensino sistemático de português
mais especificamente.
O ensino, por um longo tempo, esteve distante da preocupação
com o saber linguístico, enfocando tão-somente uma disciplina de base
normativa. Isso fazia dele não-científico.
A reflexão que propus aqui sugere que a atividade pedagógica seja
conduzida cientificamente, isto é, que busque o saber que quer discutir
em sala de aula, em forma de uma disciplina. Isso permitirá a reintrodução da gramática (tão custosamente desintroduzida!) nos bancos escolares. Neste momento, estaremos colocando a gramática a serviço do conhecimento linguístico e não assumindo a equivocada direção contrária.
Recebido em maio de 2009.
Aprovado em junho de 2009.
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Grammar: Between Knowledge and the Discipline
Abstract
In this paper, we focuses on the concept of grammar in two perspectives: as knowledge,
which corresponds to personal knowledge of the human species that does not depend on
formal education, and as discipline, which deals with the systematization of this knowledge. Regarding the first approach, example derived from phonology, morphology and
syntax are discussed in order to illustrate the key task of the formal language: explain what
an individual knows when knowing a determine language. In relation to the second perspective, briefly recovering the course of evolution of research on grammar, some considerations about the role of the systematic education in school are made. The belief that
guides this discussion is that the mastery, by teachers, of how this intuitive linguistic
knowledge is organized is an indispensable condition for the effectiveness of pedagogical
work.
Keywords: Grammar. Competence. Linguistic knowledge. Norms. Language teaching.
Referências
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gramatical. Campinas: Mercado de Letras. 1997. (Col. Leituras no Brasil.)
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