de mia couto a dias gomes: um olhar sobre o trágico na

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DE MIA COUTO A DIAS GOMES: UM OLHAR SOBRE O TRÁGICO NA
LITEARATURA CONTEMPORÂNEA
Aline Camara Zampieri*
*Aline Camara Zampieri é Mestre em Estudos Culturais e Literatura
Comparada pela da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e
doutoranda em Estudos Literários pela mesma universidade.
RESUMO: A obra narrativa Um rio chamado tempo, uma casa chamada
terra, de autoria do escritor moçambicano Mia Couto, publicada em 2010,
narra a viagem de Marianinho, um estudante universitário, à enigmática ilha
de Luar-do-Chão para comandar as cerimônias fúnebres de seu avô, Dito
Mariano, de quem recebera o mesmo nome. Chegando à ilha, da qual havia
partido ainda criança, o neto, favorito de Dito Mariano, se vê em meio a uma
série de intrigas e segredos familiares, bem como histórias e/ou
acontecimentos trágicos, os quais perpassam pela narrativa. A peça teatral O
pagador de Promessas, escrita pelo dramaturgo brasileiro Dias Gomes, em
1960, conta a saga e o fim trágico de Zé-do-Burro (um pequeno agricultor
ingênuo e de muita fé), ao tentar pagar uma promessa feita a Santa Bárbara.
O presente artigo pretende discorrer brevemente sobre as acepções sobre o
fenômeno trágico, analisando algumas cenas e alguns personagens, em
especial Zé-do-Burro (de O pagador de promessas) e Fulano Malta (de Um
rio chamado tempo, uma casa chamada terra), a partir dos estudos de
Aristóteles (1993); Raymond Williams (2002); Peter Szondi (2004); Gerd
Bornheim (2007), entre outros.
Palavras-Chave: Literatura Contemporânea; Teatro Brasileiro; Trágico.
ABSTRACT: The novel A River Called Time, written by Mozambican writer
Mia Couto and published in 2010, tells the travel of college student Marianinho
(little Mariano) to enigmatic Island of Luar-do-Chão to conduct the funeral of
his grandfather Dito Mariano, whose received the same name. The favorite
grandson of Dito Mariano sees himself in the midst of a series of intrigues and
family secrets, as well as tragic stories and/or events that permeates the
narrative, since arrived on the Island which had left when he was a child. The
play O pagador de Promessas, written by the Brazilian playwright Dias Gomes
in 1960, tells the saga and the tragic end of Zé-do-Burro (a small farmer,
religious and naive) when trying to pay a promise to Saint Barbara. The
present article intends to discourse about the tragic phenomenon renderings,
analyzing some scenes and some characters, in particular Zé-do-Burro (of O
Pagador de Promessas) and Fulano Malta (of A River Called Time), starting
from the studies of Aristóteles (1993); Raymond Williams (2002); Peter Szondi
(2004); Gerd Bornheim (2007), among others.
Keywords: Contemporary Literature; Brazilian theater; Tragic.
Introdução: breves definições sobre o trágico e a tragédia
De acordo com o dicionário Houaiss (2004), trágico é aquele que
escreve ou representa tragédia. É, ainda, funesto, sinistro, relativo à ou
próprio da tragédia. Quanto à tragédia, essa vem do gênero dramático e trata
das ações e dos problemas humanos de natureza grave. Ela envolve
questões sobre a moralidade, o significado da existência humana, as relações
entre os homens e entre eles e seus deuses. Houaiss (2004) afirma, ainda,
que geralmente, no final das tragédias, o personagem principal morre ou
perde seus entes queridos.
Ainda no que tange à definição do que é tragédia, Raymond Williams
(2002), em Tragédia Moderna, assevera que convencionou-se, em nossa
cultura, a chamar de tragédia acontecimentos como guerras e revoluções,
desastres ambientais, ou mesmo uma violenta colisão na estrada. E, também,
a um nome específico de arte que durante vinte e cinco séculos teve
ininterruptamente uma história intrincada. Segundo o estudioso, tragédia não
é meramente morte, sofrimento ou acidente. “Ela é, antes, um tipo específico
de acontecimento e de reação que são genuinamente trágicos e que a longa
tradição incorpora” (WILLIAMS, 2002, p. 31).
Vários estudiosos teceram definições e análises a respeito da tragédia
ao longo dos séculos. Entre eles, destacaremos aqui Aristóteles (1993),
Raymond Williams (2002) Peter Szondi (2004) e Gerd Bornhein (2007).
Trazendo a nossa análise as marcas trágicas no romance contemporâneo Um
rio chamado tempo, uma casa chamada terra, do escritor moçambicano Mia
Couto e da peça teatral O pagador de promessas, do dramaturgo brasileiro
Dias Gomes.
A tradição poética da tragédia
Quando pensamos em tragédia, nos vem logo à mente as obras gregas
de Sófocles, Eurípedes e Ésquilo e, os dramas vividos pelos personagens
como Édipo, Prometeu e Antígona, o que nos leva a concordar com o
professor de filosofia e crítico teatral Gerd Bornheim (2007), que no artigo
“Breves observações sobre o sentido e a evolução do trágico”, de O sentido e
a máscara, afirma que a tragédia alcançou o seu maior esplendor, e sua forma
mais perfeita, na Grécia Clássica e que parte da dramaturgia ocidental se fez
a sombra dos gregos.
Nessa verve, recorremos a primeira e mais antiga definição sobre a
tragédia, a qual se dá nA Poética, de Aristóteles. O filósofo, fazendo um
apanhado sobre as produções gregas de sua época, formula, critica,
enquadra e caracteriza as obras produzidas na Grécia em três grandes
categorias, ou; como ficaram conhecidos posteriormente, gêneros literários: o
lírico, o épico e o dramático.
No que tange à tragédia, Aristóteles (1993) assegura que ela
aproxima-se da epopeia quanto ao tema, pois ambas imitam as ações
humanas que são representadas de maneira dramática. Enfatiza, ainda, como
característica dessa a catarse, que, provocando piedade e temor, opera (no
homem/expectador) a purgação adequada a tais emoções.
Contudo, conforme Bornheim (2007), o filosofo grego não nos diz o que
ela é, ele apenas delimita o seu o seu objeto, e nos diz como ela se estrutura,
quais são suas partes constituintes e qual é o lugar de cada uma delas. Dessa
forma, as interpretações sobre o que seja tragédia estão entre os filósofos e
críticos modernos e contemporâneos. E dão-se de forma tão vasta quanto
confusa; pois “[...] deparamos na tragédia com uma situação humana limite
que habita regiões impossíveis de serem codificadas (BORNHEIM, 2007, p.
71).”
Pensando ainda nas tragédias gregas, o crítico teatral Anatol Rosenfeld
(1993), em Prismas do Teatro, assevera que essas, em essência, se bastam
na “situação trágica”, trazendo intensamente a angústia, mas admitindo,
também, uma solução satisfatória. O estudioso enfatiza a freqüência do
conflito trágico em si concluso; ou seja, um conflito sem saída. No qual o
herói, esmagado pela fatalidade ou por forças desencadeadas por ele mesmo,
sucumbe. Pois, por certo excesso ou sabedoria “desmedida”, desequilibrou a
“medida”, a lei ou a harmonia da polis e do universo ou, em outras palavras, a
lei natural e a lei moral (também a justiça é a medida certa) que se identificam
na concepção mítica.
Nesse sentido, se dá o afogamento de Mariavilhosa, uma das histórias
trágicas que perpassam pela narrativa Um rio chamado tempo, uma casa
chamada terra, de Mia Couto. Mariavilhosa, mãe do narrador, quando moça
fora violentada e, a fim de não levar até o fim a indesejável gravidez, realizou
um aborto que lhe acarretou, posteriormente, dificuldades de engravidar. Após
várias tentativas e o nascimento de um filho morto, Mariavilhosa, certa tarde:
[...] foi desatar a entrar pelo rio até desaparecer, engolida pela corrente.
Morrera? Duvidava-se. Talvez se tivesse transformado nesses espíritos
da água que, anos depois, reaparecem com poderes sobre os viventes.
Até porque houve quem testemunhasse que, naquela derradeira tarde, à
medida que ia submergindo, Mariavilhosa se ia convertendo em água.
Quando entrou no rio seu corpo já era água. E nada mais se não água.
Meu pai ainda se lançou no Madzimi a procurar a sua amada. Mergulhava
e nadava para trás e para frente como um golfinho enlouquecido. Mas
sucedia algo extraordinário: assim que ele entrava na água perdia o
sentido da visão. Nadava ao acaso, embatendo nos troncos e encalhando
nas margens. Até que o fizeram desistir e aceitar a triste irrealidade
(COUTO, 2003, p.105).
É importante observar aqui que entre as etnias africanas a mulher que
perde uma criança é contaminada pela impureza da morte. Segundo Junod
(1974), além de um ritual que consiste em enterrar sozinha a criança morta e
escorrer seu leite até que esse seque, uma série de proibições é imposta as
mães de nato-mortos, como a de pegar em comida ou a de falar em um tom
que não fosse muito baixo. Punições que são aplicadas a personagem de Mia
Couto e que, no decorrer da narrativa a preenchem de uma profunda tristeza
que a leva a lançar-se no rio Madzimi e transforma-se em água. “Morreu no rio
que é um modo de não morrer.” (COUTO, 2003, p.196)
O rio Madzimi, que geograficamente cerca e separa a ilha de
Luar-do-Chão da capital do país e, também, o curso que purifica homens e
mulheres em seus rituais sagrados, é personificado, no episódio acima, em
uma entidade capaz de converter Mariavilhosa em água e impedir Fulano
Malta de resgatar sua esposa. Nesse sentido, conforme postula Rosenfeld
(1993), vemos duas situações trágicas nesse trecho, na qual uma interfere na
outra. A primeira é a metamorfose da mãe do narrador em água, que ao
mesmo tempo em que soluciona a profunda tristeza da personagem, atribui ao
destino de Fulano Malta, um caráter trágico, por meio de um acontecimento
que ele não consegue impedir, pois está além das suas forças e habilidades
físicas.
Fulano Malta é forçado a aceitar sua viuvez, ou nas palavras de Couto
(2003, p. 105) a sua “triste irrealidade”. O que nos leva a pensá-lo como um
personagem trágico na medida em que ele sucumbe ao seu destino de
provações. Acrescente-se que, ao longo da narrativa, o personagem é
apresentando como um homem triste, cujos ideais, projetos e alegrias lhe
foram quase sempre frustrados.
O personagem apaixona-se e casa-se com Mariavilhosa que não
consegue dar a luz a um filho vivo; afinal, no decorrer da narrativa, é revelado
que o narrador Marianinho é filho bastardo do avô Dito Mariano com
Admirança (suposta tia do narrador). E, nem a paixão adolescente de Fulano
por Mariavilhosa foi capaz de lhe trazer contentamento e “nem o casamento
lhe foi suficiente. Pois seu viver se foi amargando e ele, mal escutou que havia
guerrilheiros lutando por acabar o regime colonial, se lançou rio afora para se
juntar aos independentistas” (COUTO, 2003, p. 72).
Já infeliz no casamento, o personagem tem também seus ideias
políticos frustrados. Pois, mesmo após a vitória na Guerra da Independência,
na qual foi um “combatente”, o suposto pai do narrador torna-se indiferente às
glórias. E, aos poucos, vai se amargando e se fechando em sua “despertença”
(COUTO, 2003, p. 74).
Bornheim (2007) ressalta que para que ocorra o trágico é necessário
que ele seja vivido por alguém. E que, para que esse homem seja trágico são
necessários certos valores pautados no real. Valores que nem sempre são
igualmente trágicos em culturas distintas. O professor, pensando ainda nas
tragédias gregas, assevera, ademais, que para que a tragédia aconteça, o
herói deve estar inserido dentro do sentido da ordem, que é àquela realidade
que permite o próprio advento desse herói. Essa natureza da ordem pode ser
o cosmo, os deuses, a justiça, os valores morais, o amor e até mesmo o
sentido último da realidade; desde que se estabeleça uma relação de conflito.
E retomando Aristóteles diz: “A tragédia não é a imitação de homens, mas de
uma ação e de uma vida (...), pois os homens são tais ou quais segundo o seu
caráter, mas são felizes ou infelizes segundo suas ações e suas experiências”
(ARISTÓTELES, 1450, p. 15 apud BORNHEIM, 2007, p.74).
Como vimos acima, o personagem Fulano Malta não é o homem feliz,
pois os acontecimentos de sua vida: ora por vontade do Rio Madzime (Deus
ou Cosmos) que compactuou com a metamorfose de sua esposa
Mariavilhosa, ora por conta do desmoronamento dos seus valores morais em
relação à Guerra da Independência, o levam a conflitos que os torna um herói
trágico. Destaque-se aqui que, embora, a narrativa de Couto (2003) beba da
fonte das clássicas obras gregas, o romance contemporâneo Um rio chamado
tempo, uma casa chamada terra reflete, também, as questões sobre a
tragédia moderna, conforme discorreremos a seguir.
Da filosofia do trágico às tragédias modernas
Peter Szondi (2004), em Ensaio sobre o trágico, afirma que, desde o
período helenista até o final do século XVIII, os estudos baseados em
Aristóteles, o qual ele denomina de tradição da “poética da tragédia”, serviram
de modelo para as poéticas escritas. Contudo, no final do século XVIII,
começa a haver uma reflexão filosófica acerca das formas artísticas que
definiriam os rumos das teorias estéticas a partir do século XIX, a qual irá se
concretizar com a filosofia da arte do Idealismo alemão, que passa a pensar
seus conceitos estéticos a partir de uma dialética histórica e filosófica (que
agrega forma e conteúdo) e, introduz uma maior preocupação com os
acontecimentos históricos.
A obra de Walter Benjamim, Origem do drama barroco alemão , serviu
de sustentação para que, na virada do século XIX para o XX, considerado um
período de “Transição”, verificasse-se uma busca de um conceito universal
sobre o trágico, que estava mais ligado a ideia (alcançada pela consideração
histórica da obra) do que a lei formal da poesia da tragédia. Assim, a estética
liberta-se de seu caráter normativo e visa a um “conhecimento que se basta a
si mesmo”, pensado em seu sentido filosófico sempre a partir de uma
estrutura dialética. Entendemos, dessa forma, que a tragédia se dá a partir de
um modo de oposição que parte de um desejo e é seguido por uma
frustração.
Nesse caso, uma poética filosófica investiga as tragédias como
exemplos, a partir dos quais se pode extrair a concepção do trágico que, em
vez de apenas determinar um gênero poético, diz respeito à relação dialética
entre o absoluto e o individual, entre o divino e suas manifestações, entre o
universal e o particular. (SUSSEKIND, 2004 apud SZONDI, 2004, p. 17)
Podemos pensar, nesse sentido, em Zé-do-Burro, protagonista da peça
teatral O pagador de promessas, de Dias Gomes. O heroi é um ingênuo
sitiante que tinha como amigo e fiel companheiro um burro chamado Nicolau.
Em certa noite de forte chuva, um raio caiu sobre uma árvore, cujo galho
atingiu a cabeça de Nicolau, ferindo-o gravemente. Não havendo melhoras do
bicho, nem com a ajuda do veterinário, nem com as rezas do preto Zeferino,
Zé-do-Burro é aconselhado pela comadre Miúda a procurar o Candomblé de
Maria Iansan, cuja Mãe-de-Santo o aconselha a “fazer uma obrigação”, ou
como Zé interpretou uma promessa.
Mas tinha que ser uma promessa bem grande, porque Iansan, que tinha ferido
Nicolau com um raio, não ia voltar atrás por qualquer bobagem. E eu me
lembrei então que Iansan é Santa Bárbara e prometi que se Nicolau ficasse
bom eu carregava uma cruz de madeira de minha roça até a Igreja dela, no
dia de sua festa, uma cruz tão pesada como a de Cristo. (GOMES, 1986, p.
47).
Quando o animal se restabeleceu, Zé-do-Burro manda fazer uma
pesada cruz de madeira e caminha sete léguas, com ela nas costas, até a
igreja de Santa Bárbara mais próxima, em Salvador. Contudo, ao chegar à
casa de Deus foi impedido pelo Padre, pois:
Em primeiro lugar, mesmo admitindo a intervenção de Santa Bárbara, não se
trataria de um milagre, mas apenas de uma graça. O burro podia ter-se
curado sem intervenção divina [...] E além disso, Santa Bárbara, se tivesse de
lhe conceder uma graça, não iria fazê-lo num terreiro de candomblé!
(GOMES, 1986, p. 48-49).
Para o fanático padre, Zé-do-Burro não poderia pagar a promessa na
igreja, pois a havia feito a Iansã, num terreiro de Candomblé, portanto: “Não é
Santa Bárbara! Santa Bárbara é uma santa católica! O senhor foi a um ritual
fetichista. Invocou uma falsa divindade e foi a ela que prometeu esse
sacrifício!” (GOMES, 1986, 49). E, além disso, o heroi havia repetido a Via
Crucis, sofrendo o martírio de Jesus. O que para o sacerdote significa que Zé
está tentado a “igualar-se ao Filho de Deus.” (GOMES, 1986, 49).
Além de carregar uma cruz até a igreja de Santa Bárbara, fazia parte da
promessa de Zé dividir o seu sítio com alguns trabalhadores que não tinham
terra. Fato que leva o sitiante a ser mal interpretado pela imprensa, cuja
manchete considera-o como um novo messias que prega a revolução: “Sete
léguas carregando uma cruz, pela reforma agrária e contra a exploração do
homem pelo homem” (GOMES, 1986, p. 91).
A promessa de Zé-do-Burro passa a incomodar não só o Padre, mas
repercute em vários estratos sociais como a Imprensa, a Polícia, o Comércio e
a Igreja. O heroi sofre o martírio de Cristo em sua via crusis e sofre, ainda
mais, por não ser compreendido pela sociedade na tentativa de honrar o que
prometeu. Conforme rubrica, Zé: “Cai num terrível conflito de consciência”
(GOMES, 1986, p. 101). Afinal, a Igreja quer que ele renegue a sua promessa,
o jornal quer transformá-lo num messias e promover-se com a matéria. A
polícia pretende encarcerá-lo, pois teme tratar-se de um revolucionário. E
Zé-do-Burro, cada vez mais angustiado, só pretende cumprir seu juramento,
da maneira como combinou com a Santa.
Contudo, o conflito trágico de Zé não se dá apenas no interior da
personagem, ele também termina na trágica morte do protagonista, que
insistindo em não fugir da polícia e levar a sua promessa até o fim, acaba por
ser baleado. Quando as demais personagens percebem o falecimento do
protagonista:
Mestre Coca consulta os companheiros com o olhar. Todos compreendem a
sua intenção e respondem afirmativamente com a cabeça. Mestre Coca
inclina-se diante de Zé-do-Burro, segura-o pelos braços, os outros capoeiras
se aproximam também e ajudam a carregar o corpo. Colocam-no sobre a
cruz, de costas, com os braços estendidos, como um crucificado.
Carregam-no assim, como numa padiola e avançam para a igreja. Bonitão
segura Rosa por um braço, tentando levá-la dali. Mas Rosa o repele com um
safanão e segue os capoeiras. Bonitão dá de ombros e sobe a ladeira.
Intimidados, o Padre e o Sacristão recuam, a Beata foge e os capoeiras
entram na igreja com a cruz, sobre ela o corpo de Zé-do-Burro. O Galego,
Dedé e Rosa fecham o cortejo. Só Minha Tia permanece em cena. Quando
uma trovoada tremenda desaba sobre a praça (GOMES, 1986, p. 139-140).
Mesmo descrita de modo marcado e frio, diferentemente da leveza
poética do texto de Mia Couto, a cena final de O pagador de promessas nos
remete ao episódio bíblico da Crucificação de Cristo. Contudo, a tragédia do
ingênuo heroi de Dias Gomes (1986) não se dá pela relação de oposição
entre as vontades dos Deuses e os quereres dos homens, como acontecia
nas tragédias gregas. Nem, tão pouco, como ocorre no episódio do
afogamento de Mariavilhosa, em Um rio chamado tempo, uma casa chamada
terra. A relação dialética apresenta-se ao modo das tragédias modernas.
Bornheim (2007), analisando a dramaturgia de Kafka, afirma que a
experiência trágica do século XX retrata, entre outras questões, a injustiça de
certa estrutura social, como o capitalismo, o comunismo, o racismo, ou ainda
o fanatismo religioso ou inquisitorial. Para o professor nas tragédias modernas
há uma inversão da ação dramática, pois; diferentemente das tragédias
gregas, o heroi moderno “encarna a justiça, destituído de hybris (ou com a
hybris relativa, que decorre simplesmente das exigências da intriga), enquanto
o mundo ou a situação objetiva é injusta” (BORNHEIM, 2007, p. 90-91). Em
outras palavras, enquanto nas tragédias gregas o heroi era culpado por
desafiar o Cosmos ou os Deuses (hybris), nas tragédias modernas ele é
vítima de uma injustiça em decorrência da estrutura social.
Nessa verve, encontra-se o heroi de Dias Gomes, cuja tentativa de
cumprir com o que prometeu é frustrada em decorrência do fanatismo
religioso da Igreja e, cuja morte – ressalte-se, aqui, elemento comum, porém
não essencial nas tragédias – se dá em conseqüência das armadilhas sociais,
representadas na peça pela Imprensa e pela Polícia.
Destaca-se, ademais, na obra de Gomes (1986) o sincretismo religioso
apresentado na figura de Iansã (entidade africana) que foi transformada em
Santa Barbara (santa católica) pelas religiosidades originárias da África
(Umbanda e Candomblé), no Brasil. Embora, não de forma sincrética como
ocorre em O outro pé da Sereia , a obra de Mia Couto (2003) é, também,
marcada pela diversidade e pelo conflito religioso, apresentados
principalmente pelas personagens do Padre Nunes (doutrina católica) e do
feiticeiro Muana wa Nweti (religiosidade africana). Afinal, assim como o
Brasil, Moçambique também passou por um processo de colonização .
Considerações finais: os personagens trágicos modernos
Além das obras de Couto (2003) e de Dias (1986) retratarem as
diversidades religiosas presentes em seu país (Brasil e Moçambique,
respectivamente) advindas dos seus processos de colonização, outro aspecto
semelhante nos textos se destaca. Trata-se do trágico heroi contemporâneo,
representados por Zé-do-Burro em O pagador de promessas e por Fulano
Malta em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra.
No capítulo “De heroi a vítima”, de Tragédia moderna, o crítico e
escritor inglês Raymond Williams (2002), analisando a obra de Miller e Ibsen,
afirma que desde as revoluções burguesas, a tragédia (que ele chama de
tragédia liberal) tem caminhado para uma ênfase maior no indivíduo. Para o
crítico temos que pensar na transformação do trágico em vítima trágica. Pois o
heroi, agora, se debate em uma luta trágica entre o eu e a realidade do mundo
e dos relacionamentos que se definham, se perdem e se despedaçam.
Nesse sentido, o trágico heroi (embora não seja o protagonista) de Um
rio chamado tempo, uma casa chamada terra é Fulano Malta com sua tristeza
e a sua sensação de “despertença” (COUTO, 2003, p. 74), cujos objetivos e
ideais sempre frustrados enfatizam seu sofrimento. Nesse viés, é trágico,
também, o conflito que se fixa e corrói Zé-do-Burro pela incompreensão social
ante a sua promessa. Herois cujos mundos se desintegram, numa constante
luta contra o eu.
Vimos, portanto, que as obras contemporâneas aqui analisadas,
mesmo pertencentes a gêneros diferentes (drama e narrativa), produzidas e
espacializadas em países diferentes (Brasil e Moçambique), bebem da
tradição poética da tragédia na medida em que retomam situações trágicas.
Ao mesmo tempo em que comungam com o pensamento trágico moderno na
medida em que seus herois, sempre em profundos conflitos do eu, são
impulsionados ao seu fim trágico em decorrência de um juízo de valor político
e/ou social.
Referências
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SUSSEKIND, Pedro. Prefácio. In: SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico.
Trad. Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
WILLIAMS, Raymond. Tragédia Moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
Recebido: 10/11/16
Aprovado: 16/11/16
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