A Alta Idade média Felipe de Medeiros Guarnieri Renan Matsuzaka Kenji Trabalho final de História Medieval I, Noturno Prof. Marcelo Cândido da Silva FFLCH, USP, 2011 A Idade Média é temporalmente compreendida entre a queda do Império Ro mano Ocidental e a queda do Império Ro mano Oriental. Embora a historiografia clássica tenha estabelecido a Idade Média entre marcos políticos de 476 (renúncia do impe rador do Ocidente Rô mulo Augusto) e 1453 (to mada turca de Constantinopla) tais datas devem ser relativ izadas e tomaremos um processo que segue de princípios do século V d.C. e pára no século XV. O h istoriador Henri Pirenne (Maomé e Carlos Magno), por exemp lo, argumenta que é a expansão do Islã e o ―fechamento‖ do Mediterrâneo pelos árabes o verdadeiro ―ponto final‖ da Antiguidade, na transformação do mar, outrora unidade, numa fronteira entre duas realidades distintas. Outros historiadores como Peter Brown (O fim do mundo clássico) usam o conceito de Antiguidade Tardia estendendo-se da crise do século III até a crise da autoridade na dissolução do Império Caro língio no século VIII, aí co mpreendendo toda a Alta Idade Média. Foi também a historiografia clássica, co mo vimos no capítulo anterior, que to mou o ano de 476 co mo fim cataclís mico do Império Ro mano, em especial as obras de Edward Gibbon (Declínio e Queda do Império Romano), Fustel de Coulanges (A Cidade Antiga) e Theodor Mommsen (História de Roma). Pesquisas recentes contestaram a tese dos autores oitocentistas. Todos estes historiadores citados até então, de teses díspares e até antagônicas, têm algo em comu m, entretanto: o enfoque no Mediterrâneo como principal articu lador das dinâmicas da Europa: se o foi como presença durante o mundo clássico, é também como ausência na Europa med ieval, ao menos durante a Alta Idade Média. Devemos compreender as dinâmicas em torno do Mediterrâneo, veremos, para compreender os processos históricos na Europa Ocidental durante a Idade Média. Propo mos outro enfoque neste livro: to mar a h istória co mo movimento e focando nossos estudos nas articulações em torno do outrora mare nostrum dos romanos. Diremos, portanto, que a Alta Idade Média é u m processo de rearticulação das províncias romanas em reinos bárbaros e das elites germano militares em aristocracias, processo que ocorre à sombra do Mediterrâneo, e cujo movimento culminante é a ascensão e queda do Império Caro língio sob Carlos Magno. Devemos tomar, também, a Idade Média em suas especificidades e dinamis mo próprio, não como u ma ―transição‖ – med ialidade – entre eras, idéia despontada com o human ismo no Renascimento e postergada pela historiografia oitocentista. A Idade Média foi berço de diversas inovações na tecnologia de produção agrária, na dinâmica sócio-polít ica do ambiente urbano, e em especial no campo do pensamento com a patrística e escolástica. O tema será dividido em três capítulos: Alta, Média e Tardia. Neste primeiro capítulo estudaremos a Alta Idade Média, entre os séculos V e X, das mig rações bárbaras até as mutações políticas no reino Franco, partindo do ano de 476 (renúncia de Rô mulo Augusto) e detendo nossa caminhada em 987 (ascensão de Hugo Capeto), tomando as datas como balizas interpretativas. Co mo nos capítulos anteriores, o questionário e a bibliografia seguem após a discuss ão. 1 AS MIGRAÇÕES BÁRBARAS Entre os fatores que levaram às transformações políticas entre os séculos IV e V no Império Romano Ocidental expostos no último capítulo – a política fragilizada pelos levantes militares nas fronteiras, a sucessão de crises financeiras, o reaparecimento do Império Persa, a questão da supervivência das instituições romanas após a deposição de Rômulo Augusto, a problemática do cristianismo, entre outros – destacamos as migrações bárbaras. Embora a historiografia clássica, a partir de Edward Gibbon (1737-1794), tenha visto este movimento como ―invasões bárbaras‖ fundamentando-se em testemunhos do alto escalão político-intelectual romano da época, tais quais o bispo Sidônio Apolinário (c.430-489) e o historiador Amiano Marcelino (325/330-c.391), tal tese hoje é contestada pela historiografia, baseando-se esta na existência de elites militares bárbaras já nos anos finais do Império Romano. O Império dos séculos IV e V era bastante diferente daquele da dinastia JúlioClaudiana sob Augusto; não havia traços claros de distinção entre romanos e bárbaros nas fronteiras: os segundos já eram latinizados, isto é, absorvidos nas dinâmicas políticas do Império. Dito isso, usaremos aqui antes os termo germânicos e povos germânicos, entendendo por eles os bárbaros já latinizados. Até mesmo os hunos, que são os bárbaros por definição devido à obra de Amiano Marcelino, já eram latinizados e articulavam seu poder em consonância com o Império. Outra questão que nos será importante neste capítulo é a da identidade bárbara. É quase unânime, na historiografia moderna, que o ideal de identidade comunal entre os povos germânicos surge apenas tardiamente, no contexto da formação das aristocracias. Não havia uma identidade bárbara que permitisse a articulação própria dos mesmos em unidades. A denominação de bárbaros e demais categorias foi estabelecida pelos historiadores romanos, como Tácito (54-117), que descreveram os germanos a partir da comparação com o sistema militar romano e não poderiam tê-lo feito de outra maneira. Os bárbaros, em outras palavras, nos aparecem sempre como os não-romanos, os outros. Não se trata de dizer que os bárbaros não existem, mas que sua existência se dá somente mediante aos romanos, e compreender tal relação é central para compreender o processo das migrações bárbaras. Estas migrações confundem-se com a movimentação das fronteiras do Império. Diversos fatores explicam o movimento migratório dos povos germânicos dos quais destacamos as batalhas pelas fronteiras, a pressão populacional, o efeito dominó dos hunos sobre os godos e dos persas sobre as legiões imperiais – movimentação de outros povos que efetuaram a movimentação dos povos germânicos. O marco inicial das movimentações é a Batalha de Adrianópolis em 378, na qual o imperador romano Valêncio foi morto ao tentar expulsar os Visigodos que haviam se instalado no Danúbio, fugindo dos hunos. Em 382, o imperador Teodósio (347-395) editou um tratado de paz permitindo a instalação dos povos germânicos nas fronteiras. Porém, em 395, os Visigodos se rebelaram sob o comando de Alarico (c.370-410), culminando no saque de Roma em 410. Pouco antes, em 406, os Vândalos, os Alamanos e os Suevos cruzaram o Reno, atravessaram a Gália e entraram na 2 Hispânia através dos Pirineus. Os Vândalos conquistaram o norte da África em 439 e saquearam Roma em 455. Finalmente em 476 o imperador Rômulo Augusto renunciava em favor do general dos povos germânicos, Odoacro, transferência realizada com o apoio do Império Oriental (ou Império Bizantino) comandado por Zeno. \ “Por conseguinte, todas as devastações, chacinas, pilh agens, incêndios, tormentos que se cometeram na recente catástrofe de Roma foram produto dos hábitos de guerra. O que porém de insólito ali ocorreu, ou seja, que, mudando o rumo dos acontecimentos de uma forma insuspeitada, a crueldade dos bárbaros se tenha tornado branda até ao ponto de estabelecer que, por escolha, o público enchesse as basílicas mais amplas [...] quem não vê que tudo isso deve ser atribuído ao nome de Cristo, ao cristianismo, é cego *...+” (Santo Agostinho sobre o s levant es do s Visigodos; A Cidade de D eus, livro I, cap.VII; c.426) De fato, o período de migrações viu batalhas violentas, caso dos saques de Roma em 410 e 455, referidos por autores contemporâneos como Santo Agostinho (354-430) e São Jerônimo (347-420). Mas mesmo Alarico era comandante das legiões bárbaras do exército romano. Flávio Estilico, cônsul romano entre 400 até sua morte em 408, era filho de pai vândalo. Devemos nos aproximar deste processo de maneira cuidadosa, tomando-o não como um evento cataclísmico, espécie de blitzkrieg na Antiguidade, e sim processo lento, encontrando encontrando no ano de 476 nada mais que uma baliza interpretativa apontando transformações políticas na Europa, de maneira alguma uma invasão contra o poder central. Na realidade, ocorrem transferências de centros de poder, mutações na administração das províncias, queda poder centralizado, deslocando-se este para elites militares nas fronteiras. As migrações foram um processo lento, compreendido entre o século III e IX, iniciado com o influxo de povos germânicos e terminando com a expansão árabe e as migrações vikings na Bretanha; processo que, em síntese, percorre todo o período da Alta Idade Média. 3 A FORMAÇÃO DOS REINOS GERMÂNICOS As migrações germânicas transformaram as relações de poder da Europa, dando término ao poder central do império romano-ocidental e eclodindo numa série sucessiva de órgãos políticos menores chamados de reinos bárbaros. Usaremos o termo ―reinos germânicos‖ seguindo a discussão no tópico anterior. Estes poderes nasceram e se fixaram nas antigas províncias do Império Romano, da Gália à Bretanha. Tendo entendido as migrações como lento processo de transformações no seio do Império, destacamos o ano de 476, data na qual o imperador Rômulo Augusto renunciou ao poder em favor de Odoacro, general romano líder das tropas germânicas, evento que se deu com o apoio do Império Bizantino. Odoacro reinou sobre a Itália de 476 a 493 como cliente de Júlio Nepos, imperador de jure do Ocidente e, após a morte deste, sob Zeno, imperador do Oriente. O germano foi assassinado em 493 por Teodorico, sendo a Itália posteriormente incorporada ao reino Visigótico. O mapa abaixo ilustra as fronteiras dos ditos reinos germânicos em circa 525. Os Visigodos haviam estabelecido seu reino a partir da Aquitânia , na Gália, já no ano de 418, e daí expandiram para a Hispânia, a Ibéria e a Itália. Parte considerável da Gália estava sob poder dos Burgúndios. Os Vândalos partem da Gália para conquistar as províncias da África do Norte em 439. Os Anglo-Saxões saem da Dinamarca para a Bretanha entre os séculos IV e V, onde se estabelecem e imergem entre as legiões romanas. 4 Os Suevos dominam parte do norte da Hispânia. Os Ostrogodos dominaram toda a costa da Dalmácia até as fronteiras do Império Bizantino, incorporando a Itália no ano de 476. Coube aos Francos a conquista das regiões de Viennensis e da Gália ao longo do século V, vencendo os Visigodos em 507 e estendendo suas fronteiras até os Pirineus, sob o comando de Clóvis (481-511). Moedas com as efígies de, respectivamente, Rômulo Augusto, Odoacro, Teodorico e Alarico II. As moedas eram cunhadas aos montes no auge do Império durante o século II e continuaram a ser produzidas, mesmo se em menor quantidade, durante a Idade Média. Constituem elas vestígios arqueológicos importantes para estudarmos o influxo comercial de determinado território, relações de poder aí presentes e, no caso, o soberano reinante no período. A formação dos reinos germânicos não passou despercebida pelo Império Bizantino. Após a morte de Odoacro, e entre os anos de 533 e 554, o imperador oriental Justiniano lança campanha na Europa a fim de reunificar o Império e reaver as províncias; tal campanha ficou conhecida, a partir da obra do historiador bizantino Procópio de Cesaréia (500-565), como Guerra Gótica. Justiniano reconquistou a África do Norte (533), obliterou os Vândalos e Ostrogodos, retomou parte da costa da Itália, mas vacilou no âmago do antigo Império ocidental, sendo a Itália central tomada pelos Lombardos em 568. No Norte da África, o domínio bizantino continuaria por mais duzentos anos, até a tomada árabe destes territórios no século VIII. Na Alta Idade Média o poder romano continuou a existir no Império Oriental, no entanto Bizâncio era apenas um de diversos Estados na batalha pelo controle da Europa ocidental e do Mediterrâneo. Malograda a campanha de Justiniano, não houve outras tentativas de re-estabelecer a unidade do Império por parte do Império Bizantino. O processo de formação dos reinos germânicos também é lento, e articula-se com o processo de migrações bárbaras. De maneira alguma as fronteiras são, neste momento, fixas; elas estão em constante disputa entre os povos germânicos, o Império Bizantino e, posteriormente, os Árabes e os Eslavos. A expansão árabe deu novo fôlego à formação dos reinos germânicos, fortalecendo um deles – o Franco – em detrimento de outros, nomeadamente o Visigótico. Após a morte de Maomé (570-632) e já unificados sob califados islâmicos, os árabes saem do Oriente Médio, conquistam o Norte da África entre 640-710, e são finalmente barrados em Poirtiers, 732, pelo rei franco Carlos Martel. Ao cabo de um século os árabes conquistaram grande parte das posses do Império Bizantino e também o reino dos Visigodos na Ibéria (711), tornando-se assim outro poder no jogo pelo controle do Mediterrâneo. Seu domínio na Ibéria foi duradouro, permanecendo os árabes em algumas cidades como Toledo e Granada até o século XV. A expansão ocorreu entre os anos de 632 e 732, e o ínterim 674-78, tomada de Cartago, é o ponto central deste processo. Retomando a campanha de Justiniano a fim de 5 reunificar o Império, alguns historiadores colocam que foram estas duas correntes, e não os povos germânicos, as maiores responsáveis pela destruição física do mundo Antigo. As afirmações são corretas quanto a campanha de Justiniano; o papel da expansão islâmica, todavia, reunificar deve ser relativizado. O conhecimento Greco-romano foi o Império, alguns historiadores colocam que absorvido por intelectuais árabes e o intercâmbio cultural foiestas considerável ao pontoe dos Sina (980foram duas correntes, nãofilósofos os povosIbn germânicos, 1037), ou Avicena, e Ibn Rushd (1126-1198), ou Averróis, basearem suas obras Aristóteles e Galeno –a as maiores responsáveis pela em destruição física do mundo obra de Avicena também influiu nos círculos intelectuais da As Europa medieval, Tomás de Antigo. afirmações são nomeadamente corretas quantoem a campanha Aquino (1225-1274). Podemos concordar com Henri citado na Introdução, queislâmica, o fechamento do dePirenne, Justiniano; o papel da expansão todavia, Mediterrâneo significou uma ruptura nas dinâmicasdeve político-culturais daOEuropa no mundo antigo, mas ser relativizado. conhecimento Greco-romano foia questão da supervivência da cultura romana é uma questão maispor delicada. Quanto aos ereinos germânicos, estes absorvido intelectuais árabes o intercâmbio cultural absorveram as estruturas romanas e se consideravam herdeiros do poderao imperial. foi considerável ponto dos filósofos Ibn Sina (9801037), ou Avicena, e Ibn Rushd (1126-1198), ou Averróis, basearem suas obras em Aristóteles e Galeno – a obra de Avicena também influiu nos círculos intelectuais da Europa medieval, nomeadamente em A expansão do Islã, c.632-732, mudou de vez as dinâmicas em torno do Mediterrâneo, condicionando mudanças políticas na Europa Ocidental e possibilitando, do Oriente Médio ao Califado de Córdoba na Península Ibérica, as maiores produções culturais e intelectuais da Idade Média, tendo os árabes absorvido o conhecimento clássico e copiado zelosamente manuscritos antigos. Os cinco séculos imediatos após as conquistas árabes, c.750-1250, ficaram conhecidos como Era de Ouro do Islã e viram progressos sem precedentes em todos os campos do saber. A equação de Bhaskara, que usamos para resolver funções de segundo grau em matemática, foi elaborada por um matemático indiano neste período. Aqui, vemos astrônomos trabalhando em códice produzido entre os séculos VIII e XIII. Tomás de Aquino (1225-1274). Podemos concordar com Henri Pirenne, citado na Introdução, que o fechamento do Mediterrâneo significou uma ruptura nas dinâmicas político-culturais da Europa no mundo antigo, mas a questão da supervivência da cultura romana é uma questão mais delicada. Quanto aos reinos germânicos, estes absorveram as estruturas romanas e se consideravam herdeiros do poder imperial. A fragmentação do poderio central romano, redistribuído em elites locais e despontando em novos reinos, constituiu dinâmica política fragilizada. Dos reinos germânicos surgidos ao longo dos séculos IV e V, apenas o Franco constituiria posteriormente um Estado forte, baseado numa burocracia sob autoridade pública. A formação do Império Carolíngio sob Carlos Magno será analisada em capítulo posterior. Em síntese, as dinâmicas políticas da Europa entre os séculos V e X acompanharam as migrações e formação dos reinos germânicos, dois movimentos que constituem um mesmo processo. Encontramos, concomitante ao mesmo, as transformações nas dinâmicas políticas do Império Romano ao tempo de seu declínio e aquelas ao redor do Mediterrâneo, com a expansão árabe e o Império Bizantino. Resta-nos investigar as transformações na outra grande instituição política do Império Romano, a Igreja. 6 A CONVERSÃO DOS POVOS GERMÂNICOS Se os reinos germânicos formados entre os séculos V e IX constituíram realidade política fragmentária e descentralizada, o cristianismo foi o responsável pela coesão cultural, espiritual e também política dos povos germânicos durante este período para além do mesmo. A Igreja de Roma, ou Cristã Romana, não restou incólume do processo da queda do Império Romano Ocidental: teve sua unidade fragilizada, redistribuindo-se em bispados locais. Todavia, o cristianismo serviu como cimento de idéias unificadoras entre os povos germânicos e as instituições eclesiásticas representadas pela Igreja. Nesta realocados, alguns historiadores argumentam que as elites senatoriais romanas continuaram a governar após a renúncia de Rômulo Augusto. Pensamos em dois bispos, Sidônio Apolinário e Gregório de Tours (c.538-594), historiadores que constituem fontes importantes para o estudo deste período – ambos eram de origem senatorial e figuras políticas importantes em seu tempo. Para compreendermos a formação dos reinos germânicos também é importante compreendermos, portanto, a conversão dos povos germânicos ao cristianismo, liderada pela Igreja de Roma. Tomaremos aqui, para fins didáticos, a associação dos bárbaros ao paganismo (isto é, toda atividade religiosa que não advém dos rituais cristãos), embora notemos que as práticas religiosas entre diferentes tribos eram bastante distintas, especialmente se lembrarmos que os bárbaros eram latinizados: extratos dos povos germânicos já adotavam o paganismo romano em idos do século IV, por exemplo. A Igreja Romana Cristã era tão forte nos últimos anos do Império a ponto de Santo Ambrósio (c.339-397), bispo de Milão, exigir penitência pública do imperador Teodósio após o massacre de Tessalônica em 390. A conversão de pagãos não-romanos já havia iniciado durante o Império, sob Santo Agostinho e São Jerônimo no Norte da África e na Gália , mas foi sobretudo entre os séculos V e X que os povos germânicos adotaram por fim a religião. A dependência germânica da Igreja não provém apenas da necessidade de legitimação do poder por uma instituição central – o Papado – mas Santo Ambrósio em mosaico do século V, na Basílica de Sant’Ambrogio, Milão. As representações artísticas no Império Romano tardio tornam-se mais sóbrias e icônicas, próximas à posterior iconografia bizantina e às representações figurativas medievais. pela própria gerência política dos reinos, posto que os germanos eram em sua maioria analfabetos, sendo as habilidades de ler e escrever privilégio dos clérigos e monges. A manutenção da justiça também dependia da inferência dos bispados. A dinâmica política na Alta Idade Média encontra-se entre dois pólos, os reinos germânicos e a instituições eclesiásticas, entre elites provinciais e as antigas elites senatoriais absorvidas, mas ambos muitas vezes se confundem. 7 “Outro dos homens mais caros ao rei concordou com suas palavras e conselhos, e adicionou: ‘É assim que me parece, ó Rei, o tempo de vida do homem na terra em comparação àquele tempo que nos é desconhecido: como se estivéssemos sentados numa sala com n obres e guerreiros durante o invern o, estando uma fogueira a queimar no meio do salão e dentro tudo é aquecido, enquanto lá fora as tempestades de neve e chuvas invernais rugem [...] Assim se apresenta a vida do homem, apenas um instante – sobre o que veio antes, ou s obre o que virá em seguida, de nada sabemos. Se esta nova doutrina contém maiores certezas, parece -me correto que devamos segui-la’. Os outros anciãos e conselheiros falaram da mesma maneira, guiados pela inspiração divin a.” (Beda sobr e a conv er são de Edwin, rei dos Ang los; História Eclesiástica dos Po vos Ing leses, livro II, cap.XII; c.725) Os Francos adotaram o cristianismo em meados de 500, os Visigodos abandonaram por vez o Arianismo em 589 e os Lombardos se converteram em meados de 650. Na Inglaterra foi necessário o envio de missões evangelizadoras, como a Santo Agostinho de Canterbury em 597. A cristianização também é um processo de alguns séculos. Os Visigodos continuaram durante muitos anos a realizar seus rituais pagãos, e estes mesmos rituais, por parte dos germânicos tomados em conjunto, transformaram a própria doutrina cristã e tornou-a bastante diferente da Igreja Bizantina ou Ortodoxa. Nas concepções religiosas dos povos germânicos Nas entre concepções os séculos religiosas V e X, vemos dos povos um misto germânicos de noçõesentre pagãsos e e X, vemos umocorreu misto de noções pagãs na cristãs na tomada do Cristo como um deus doséculos panteãoVnórdico, conforme inicialmente entre eoscristãs romanos. do Cristo como um deus doprivilegiadas panteão nórdico, conforme A arte e a literatura produzidas na Alta Idadetomada Média nos oferecem representações deste composto que o historiador francês Jean-Claude Schmitt ocorreu chamou inicialmente de ―culturaentre intermediária‖. os romanos. Outros A arte princípios e a literatura da arte romana tardia, em especial da pintura iconográfica produzidas em murais na Alta e mosaicos, Idade Média sobrevivem nos oferecem e se transformam representações na arte privilegiadas composto que o historiador francês Jean-Claude dos povos germânicos, em especial dos celtas e visigodos.deste Malgrado o abandono das medidas helenísticas de sobriedade e realismo, estas que geralmente associamos Schmitt chamou a ―grande de ―cultura arte‖ Greco-romana, intermediária‖. a arte Outras do Império tendências tardio da já era bastante diferente da dos tempos de Augusto, arte romana e bastante tardia,próxima em especial da artedamedieval. pintura iconográfica Na literatura,em o poema murais Ang e mosaicos, sobrevivem e se transformam na arte dos povos germânicos, em especial dos celtas e visigodos. Malgrado o abandono das medidas helenísticas de sobriedade e realismo, estas que geralmente associamos à arte Greco-romana, a arte do Império tardio já era bastante diferente da austeridade dos tempos de Augusto, e bastante próxima da arte medieval, mais icônica e Esta representação tanto quanto mística do imperador Teodósio num missorium, provavelmente esculpido em 388, é carregado de símbolos cristãos e dista bastante da austeridade e realismo da arte romana dos tempos de Augusto. simbólica. Na literatura, o poema anglo-saxão O sonho da cruz (The dream of the rood), c.VIII, retrata Cristo como um guerreiro; e o épico oral Beowulf também se encontra entre a cruz e a espada. Dentro da ―cultura intermediária‖ encontramos não apenas representações caras à Idade Média: na supervivência e transformação da Igreja Romana Cristã como mediadora da cultura clássica, aqui está o nascimento das tradições – política, literária, filosófica, artística – européias por excelência. Os valores propagados pela Igreja Romana Cristã são os mesmos valores civis do Império Romano tardio. 8 Palco de disputas políticas entre reinos germânicos e dois poderes centralizados, o Islã e o Império Bizantino – vimos no capítulo anterior que este último sobreviveu como autoridade imperial após a queda do Império Ocidental – a Europa Ocidental torna-se também palco de disputas religiosas neste e para além da Alta Idade Média. Todavia, o cristianismo garante a coesão entre os reinos e aristocracias germânicas e polariza a disputa política inter-Européia em três núcleos – o cristão-romano, o Islã, e a Igreja Bizantina. Em suma, o processo de conversão dos povos germânicos também ocorre mediante disputas políticas internas, porém só estudaremos estas em capítulos posteriores. O Cristo entronado do Livro de Kells é bom exemplo da “cultura intermediária” entre cristianismo e paganismo. Nesta iluminura de códice produzido por monges ingleses no século VIII, o Cristo é acompanhado por animais mitológicos e intrincada disposição de figuras geométricas típicas da arte celta. 9 AS ARISTOCRACIAS GUERREIRAS O estabelecimento dos reinos germânicos a partir das migrações estudadas nos últimos tópicos viu também o levante de aristocracias no governo desses órgãos políticos. Estas aristocracias surgiram de uma lenta mistura entre as províncias romanas (a Gália, as Germânias) e os bárbaros lá instalados, no nível institucional e também individual; são elas provenientes das mesmas elites militares e provinciais de germanos discutidas no tópico sobre as Migrações Bárbaras. Aqui discutiremos também a gerência da justiça, a questão da guerra e a problemática da autoridade pública, o rei. A questão da identidade bárbara volta com toda força quando abordamos a formação das aristocracias: desta vez, não em torno de um ponto de vista romano, mas da construção de identidade por parte dos próprios povos germânicos. Vimos que a idéia de uma identidade comunal ao tempo das grandes migrações era um mito e que não havia unidade de articulação entre esses povos. A idéia de uma identidade – seja esta franca, visigótica, ostrogótica – surge agora, quando estes povos já articularam seus reinos; isto é, a realidade de uma identidade germânica – preferiremos este termo a bárbaro – surge juntamente com a instituição das aristocracias. Num duplo movimento, as aristocracias buscam sua origem tanto em figuras heróicas dos povos germânicos, como Alarico e o rei Arthur na Bretanha, como nos heróis da mitologia, reconstruindo sua genealogia aos moldes dos antigos senadores romanos. O exemplo mais famoso é o de Carlos Magno, que conta sua ascendência em Aquiles, herói da Guerra de Tróia. O historiador Marc Bloch chamou este processo construtivo de identidades de ―obsessão das origens‖, articulado e também articulador das aristocracias. As aristocracias vinculam-se a uma dupla origem na formação de sua identidade germânica, a partir das heranças bárbara e romana, que, longe de distintas, não possuíam fronteiras desde há muito, seja na ausência de articulação interna ou na já mencionada latinização a partir do século III. De fato, encontramos aqui as sementes do que viria a se transformar posteriormente na nobreza, esta fundamental aos trames políticos no contexto da Europa Ocidental após a dissolução do Império Carolíngio. Porém, ainda é cedo para dizermos que as aristocracias constituem uma espécie de nobreza, por duas razões. As aristocracias nada mais eram que um grupo administrador da burocracia real. Sua função é governar o território através da administração da justiça. Seus cargos não eram hereditários e sua função e status social não surgiam de nascença, tampouco no vínculo com a terra. Em relação às aristocracias feudais que surgiram no contexto da Média Idade Média, as aristocracias germânicas admitiam maior mobilidade social e a possibilidade de ocupar cargos diferentes independente de distinção familiar. A distinção social entre elas dava-se a partir da posse de bens materiais relacionados à atividade guerreira: a espada e o cavalo. 10 “§5. Se três ossos do crânio que protegem o cérebro são fraturados , que seja condenado a pagar 1200 denários, que perfazem 30 soldos . §6. Se a ferida foi feita entre as costelas ou no ventre de maneira que ela atinja os órgãos internos, que seja condenado a pagar 1200 denários. §7. Se a ferida permanec e aberta e se a vítima não recupera a saúde, ele será julgado meio-culpado e pagará 2500 denários, que perfazem 62 soldos. Para o custo dos cuidados médicos, ele pagará 36: denários, que perfazem 8 soldos.” (cláusula s do Pact us Legis Sa lica e, c.511) A dupla herança mencionada acima está intrinsecamente ligada a outro fator de extrema importância na constituição das aristocracias, a saber, a relação entre violência e justiça. Tomando as aristocracias em relação ao governo dos reinos, sua função estava vinculada primordialmente à manutenção da justiça no âmbito da administração territorial. Neste período, não há distinção entre articulação da justiça e administração da violência: o governante é o guerreiro, e vice-versa – afinal, as aristocracias descendiam das elites militares germânicas das fronteiras. Em meados do século VII boa parte das aristocracias já havia editado códigos escritos de normas, dos quais destacamos o pioneiro Pactus Legis Salicae (―Pacto da Lei Sálica‖) dos francos em 511. Entretanto, não devemos concluir a existência de uma autoridade pública forte a partir destes códigos: eles não constituem um conjunto fixo de leis, foram escritos por clérigos e baseados em códigos romanos, e não sabemos até que ponto eram obedecidos. Em conjunto com a edição do Pactus e da Lex Salica (c.500) sob os francos de Clóvis, os Visigodos já tinham fixado seu código de normas no Código de Eurico (c.480) e os Burgúndios, na Lex Burgundionum (c.500). O período de formação das aristocracias acompanha o surgimento destes códigos conhecidos como leges barbarorum (―leis dos bárbaros‖), eles mesmos peças fundamentais na articulação da identidade germânica dos grupos. As leges barbarorum apresentam detalhismo e rigorosidade espantosa para povos comumente vistos como rústicos e sanguinolentos, esforçando-se aquelas para estabelecer penalidades e fianças a determinadas ofensas, muito além de normas consuetudinárias. O Pactus Legis Salicae é um dos poucos códigos de normas germânicas que chegaram até nós. Versão da Lex Salica originalmente editada sob Clóvis entre 506-511, conserva-se neste manuscrito de 793 – nenhum atestado da época sobrevive. A Lex Salica foi a base para códigos posteriores, tal qual o Capitularia regum francorum (“Capitulários dos Reis dos Francos”) e a promulgação destes capitulários (séries de atos legislativos e administrativos do reino) e polípticos (registro administrativo dos bens do reino) na formação da legislação carolíngia sob Carlos Magno, entre 806-811. A figura ao lado representa o próprio rei Clóvis. 11 A administração da justiça confunde-se com o controle da violência, seja no nível individual (a vingança pessoal) ou no inter-reinol (as guerras). A mentalidade moderna toma a violência como oposta à paz, mas tal não é verdadeiro nesse período: para um franco no século VIII, por exemplo, a guerra e a vingança são medidas legítimas para a conquista e manutenção da paz no reino. Na Alta Idade Média a violência, longe de desmedida e sem sentido, é medida legítima para a resolução de conflitos, fator agregador e construtor de identidades. Neste sentido, podemos falar de aristocracias guerreiras, posto que, administrando a justiça, invariavelmente deveriam administrar a violência em todos os níveis , sendo o maior desses a guerra. Igualmente, as aristocracias não governam sozinhas, mas o fazem em consonância com os bispados. O cimento responsável pela articulação da justiça é o próprio cristianismo – as aristocracias, além de guerreiras, são aristocracias cristãs, posto que seguiam rápido processo de conversão ou, em sua maioria, já estavam convertidas. Em síntese, as aristocracias acompanham a formação dos reinos germânicos e sua constituição também é lenta, estendendo-se do século VI até o XII. Sua responsabilidade é a administração dos reinos, sendo esta inseparável da administração da justiça, isto é, da violência desde o âmbito individual até o inter-territorial. Estas aristocracias formam-se em conjunto com a construção de uma identidade germânica, indissociável das articulações políticas dentro e fora dos reinos, pois a identidade permite que estes povos se unifiquem em unidades fortes. Os quatro movimentos estudados até então – as migrações bárbaras, a formação dos reinos germânicos, a conversão dos povos, as aristocracias – estão todos relacionados num grande processo de rearticulação do poder romano após a queda do Império Ocidental. A construção das identidades germânicas é atestada pela arte e literatura produzidas no período. O Codex Aureus, documento encomendado pelo rei Carlos, o Calvo, no século IX, é recheado de representações laudatórias aos francos e possui uma iluminura do próprio rei assistido pela mão de Deus. No caso anglo-saxão, The Battle of Maldon (―A Batalha de Maldon‖), de 991, poema no qual as tropas inglesas batalham o inimigo viking até a própria morte, constitui verdadeira demonstração de identidade ânglica por parte do poeta que o escreveu. Os textos mais conhecidos são as Sagas islandesas, literatura complexa e profundamente autoconsciente, conjunto de textos escritos na Idade Média Tardia refletindo sobre as migrações nórdicas e a realidade pagã na Alta Idade Média. E sobre a autoridade pública? O rei não constituía uma autoridade pública forte como foram os imperadores romanos. Lembremos que os Ostrogodos e Vândalos foram facilmente conquistados pelos Bizantinos e o mesmo se deu com os Visigodos na Ibéria, derrotados pelos árabes na década de 710. O rei neste momento nada mais é que uma peça na administração dos reinos, sendo A arte produzida pelas aristocracias já solidificadas nos séculos VIII-IX atesta a representação de cenas e figuras bíblicas com conotação guerreira. Aqui, a Virgem como a Igreja porta armadura. Placa de marfim esculpida c.800-875 em terras Francas. 12 ele mesmo proveniente das aristocracias discutidas acima. ele Após mesmo a queda proveniente do Império dasRomano aristocracias não houve, discutidas até a acima. Após queda doa Império Romano houve, ascensão de Carlos Magno, autoridade pública forte o suficiente paraa legitimar justiça em âmbitonão reinol ou “Em combate, os bravos partiram brancos escudos; a borda quebrou a cota de malha,da justiça internacional. A Igreja tomae cantou, a função de gerência até inter-Européia, a ascensão de mas Carlos demorou Magno, ao autoridade Papado acertar pública sua a canção de terror. Offa atingira, em guerra, autoridade – será somente após aque Reforma forte que opoderemos suficiente falar para delegitimar autoridade a justiça eclesiástica. em âmbito Das algum marinheiro, veio em Gregoriana terra, o companheiro de Gadde ganhava o solo.VIII conseguirão reinol ou internacional. A Igreja toma funçãopara de aristocracias, somente os merovíngios no século constituir gradualmente realezaa sólida rápido, repartido em combate, o corpo de Offa: sustentar e expandir as terras francas através de conquistas gerência militares da na justiça Aquitânia, inter-Européia, Germânia mas e Itália. demorou Antes ao de porém cumpria a promessa ao lorde, como amantinham diante do anel um pouco discutir formação do Império Carolíngio, vejamos Papadomais acertar sobresua a administração autoridade – será da justiça somente em relação após a deveriam os dois regressar à cidade, Gregoriana que isto poderemos falar de autoridade a uma figura ímpar para as dinâmicas sócio-políticas das Reforma aristocracias e da Igreja, é, o pobre. sãos e salvos, ou perecer em combate, no campo de guerra, foi, ao lado do lorde, estilhaçados escudos! enfurecidos soldados, a casa da vida. contra as tropas, três deles matou antes de morto Foi sangrenta disputa; combatentes de guerra.” morrer sangrando; levado ao chão, e deixado; Espreitavam, os navegantes, eclesiástica. Das aristocracias, somente os merovíngios trespassavam lanças, Avançava Vístan, o filho de Túrstan; naquele tumulto, o descendente de Vígelin. Suportavam firmes realeza sólida para sustentar e expandir as terras francas no século VIII conseguirão constituir gradualmente através de conquistas militares na Aquitânia, Germânia e Itália. Antes de discutir a formação do Império Carolíngio, vejamos um pouco mais sobre a administração da justiça em relação a uma figura ímpar (da Batalha de Maldon; c.991) para as dinâmicas sócio-políticas das aristocracias e da Igreja, isto é, o pobre. 13 OS POBRES e A POBREZA O tema da pobreza na Idade Média é fundamental para compreendermos como se articulavam politicamente (isto é, quais relações de poder estão em jogo, no momento) os diferentes grupos que compõem a rica e complexa sociedade do Ocidente medieval. Na Alta Idade Média, mais do que nos informar a respeito da situação econômica de um determinado indivíduo, o termo pobre (pauper, em latim) era utilizado para designar todo aquele que não fosse capaz de prover sua própria subsistência — categoria à qual pertenciam os velhos, os doentes, os órfãos, as viúvas e os peregrinos, bem como todos aqueles que houvessem sido vítimas das crises periódicas ou das catástrofes naturais. Ou seja, alguém poderia ser considerado pobre mesmo sendo possuidor de muitos bens materiais. O pobre é, acima de tudo, uma categoria jurídica de nuanças claramente políticas, articuladas pelas aristocracias e pela Igreja em relações de poder e interdependência. Os pobres, naturalmente, eram um — dentre outros tantos — motivo de constante preocupação dos governantes e das demais autoridades do período. A Igreja, por exemplo, exigia de seus fiéis, tanto como dos próprios clérigos — sobretudo dos mais abastados —, que tomassem sob sua proteção, sempre que possível, as vítimas da fome, fazendo-os (isto é, aos fiéis e aos clérigos) assegurar-lhes o sustento até o início da próxima colheita. Era também considerado dever dos fiéis repartir seus mantimentos com os mendigos que circulassem em sua região, além de prevenir que estes continuassem a praticar a mendicância em outras áreas. Tais medidas tinham como objetivo imediato mitigar o sofrimento dos pobres e eram comuns na Alta Idade Média sobretudo porque estavam inscritas no ideal de justiça que predominava então. “Em outro pagus de Tours existe um túmulo localizado entre arbustos e espinhos. Dizem que um bispo foi sepultado neste túmulo, mas não sabemos o nome dele. O filh o de um homem pobre morreu. Em seguida, o rapaz foi enterrado, o pobre homem não pôde encontrar uma cobertura para o seu sarcófago, por isso ele foi lá e tirou a cobertura do túmulo do bispo. A tampa era tão gran de que foi necessário a força de três bois para puxá-la. Através do roubo da sepultura de outro homem, o pobre homem cobriu o corpo do seu filho. Mas ao fazer isso, ele se tornou surdo, mudo, cego e paralizado. Durante quase um ano, o homem sofreu com essa angústia. Em seguida, o bispo apareceu em sonho e disse a ele: "Qual o mal que eu fiz a você e à sua família para você me descobrir removendo a cobertura de meu túmulo? Vai agora se quiser ser curado e ordene que a tampa seja rapidamente restabelecida. Se não o fizer, você morrerá imediatamente. Pois eu sou o Bispo Benignus, que veio como estrangeiro a esta cidade". Em seu retorno, a cobertura de pedra era tão leve que dois bois puderam transportar o que a força de três bois havia removido.” (Gregório de Tour s, Da glória dos conf essores; c.575-582) É forçoso relativizar o alcance da justiça sustentada pelas aristocracias no período. Há diversas fontes, algumas em franca contradição e que nos revelam outra faceta, bastante distinta, das sociedades medievais. A anedota de Gregório de Tours aponta esta diferença de concepção de justiça entre as autoridades encarregadas e 14 a Igreja. Aqui também encontramos disputas internas nas sociedades, nas aristocracias entre si e em relação aos bispados. Todavia, as sociedades da Europa na Alta Idade Média não apresentavam uma divisão clara entre os diversos grupos que a compunham, divisão essa que pudesse ser norteada por critérios tão-somente econômicos — mas é possível inferir que a distinção social esteve de fato presente nessas sociedades, e que certos grupos — como aquele constituído pelos membros do alto clero – e como as aristocracias — detinham certos privilégios que a outros não eram concedidos. Na Vida do Imperador Ludovico, texto do século IX, encontramos a história do bispo Ebbon de Reims, ―liberto de uma família de servos‖, e cujos ―pais foram pastores de cabras, e não conselheiros do rei‖. Ebbon atenta contra o imperador numa rebelião. Aqui, vemos claramente que de fato há uma relação de hierarquia política estabelecida entre diferentes grupos, sendo um mais importante do que outro. O episódio da visita dos reis magos ao menino Jesus pode ser usado para ilustrar a questão do estatuto do pobre neste período. Se toda a subsistência humana e divina provém do Cristo, que homem, mesmo possuidor de inúmeros bens materiais, não seria pobre diante Ele? De fato, a denominação mais comum do Cristo durante a Idade Média é “Rei dos reis”. Detalhe de iluminura do Codex Egberti, c.98:. O estudo dos pobres é importante para compreender como se consolidaram as relações de poder entre as aristocracias e os bispados no seio da disputa pela administração da justiça; e em relação a indivíduos que, tendo à sua disposição pouca ou nenhuma maneira de assegurar sua própria alimentação e indumentária, bem como sua própria segurança, firmam com os proprietários de terras acordos que lhes garantam tudo isso, em troca de seu trabalho e obediência. Após esta breve reflexão, voltemos a nossa caminhada e vejamos qual a situação das aristocracias naquele que se tornará o grande reino germânico. Falamos do reino Franco. 15 O REINO FRANCO DE CARLOS MAGNO A HUGO CAPETO Vimos, durante a Formação dos reinos germânicos, que a fragmentação do poder romano-ocidental em elites germanas nas províncias eclodiu numa série de reinos menores, politicamente frágeis e carentes de autoridade pública forte. A administração destes reinos, isto é, a manutenção da justiça, cabia às aristocracias, cristãs e guerreiras, em conjunto com os bispados. Houve, no entanto e conforme citamos anteriormente, um reino que conseguiu articular liderança político-militar forte, o reino Franco, na antiga Gália. A primeira casa real franca foi a dinastia Merovíngia, responsável pela derrota árabe na Batalha de Poirtiers, liderada por Carlos Martel em 732; mas diversas eram as disputas internas no seio desta realeza – no entanto, os merovíngios conseguiram articular um poder territorial suficientemente forte para, quando Pepino III (714-768) ascendeu ao trono no ano de 741 e teve início a dinastia Carolíngia, aquele poder expandir-se e solidificar-se num poder público centralizado na figura do rei. Como resultado das campanhas militares de Pepino, o reino Franco anexou novas terras com o apoio do Papado. Pepino morreu em 768, dividindo o reino entre seus dois filhos, Carlomano e Carlos Magno. O último sobreviveu o primeiro, morto em 771. Sob Carlos Magno (c.742-814) o reino Franco consolidou-se como autoridade pública, o maior e mais forte Estado na Europa Ocidental após a quebra do Império romano-ocidental – forma-se o Império Carolíngio. Entre 771 até sua morte, Carlos Magno anexou parte do território árabe da antiga Hispânia, a Saxônia, o reino Lombardo da Itália, e parte das terras eslavas. As relações aristocráticas transformam-se sob seu reinado: não mais laços burocráticos cuja única função é a manutenção da justiça, os primeiros se transformarão numa hierarquização de cargos sob uma autoridade central, o rei. Lentamente configuram-se no que posteriormente serão as relações feudo-vassálicas, no aparecimento de uma nobreza – os cargos mais altos no Império Carolíngio tornam-se hereditários e vinculados à posse de terras –, no ideal de cavalaria – na elaboração de uma complexa ritualística guerreira – e na re-articulação da sociedade segundo uma lógica fixa de ordens; todas estas mutações centrais para compreendermos os séculos posteriores na Europa. Com o objetivo de resgatar o esplendor dos romanos, Carlos Magno iniciou um movimento de renovação cultural conhecido como Renascimento Carolíngio. A arte dos povos germânicos, argumentamos anteriormente ser já bastante próxima da arte produzida no Império Romano tardio, adquire novo fôlego latino. O relicário de Carlos Magno foi adicionado à Catedral de Aachen, onde está o túmulo do rei, no século XIV, tempo de sua canonização. Carlos foi a figura central para as posteriores transformações políticas na Europa Ocidental, tanto as da Igreja quanto dos reinos. 16 O Renascimento retomardoasperíodo medidas O Renascimento Carolíngio procurará retomar as medidas Carolíngio helenísticasprocurará da arte clássica de helenísticas Augusto, e arteos clássica do período Augusto, e códices torna-se importantes latinizada num outro torna-se ―latinizada‖ num outro sentido.daSob carolíngios foramdeproduzidos como o sentido. Sob os carolíngios foram eproduzidos códices importantes Saltério de Utrecht e o Codex Aureus, contendo os Evangelhos da Vulgata; diversas obras arquitetônicas – como odoSaltério Utrecht e o Codex Aureus, contendo os Evangelhos citamos o Palácio Real em Aachen, c.792-805, qual nosderesto a Capela – foram baseadas nos antigos templos da Vulgata; e diversas obras arquitetônicas – citamos o Palácio Real romanos. Ainda mais notável foi a reforma educacional, no que Carlos Magno ordenou a revitalização de Aachen, c.792-805, Este do qual nossistema resto a foi Catedral – foram baseadas escolas antigas e a criação de um novoemcorpus instrucional. novo dividido no trivium e antigos templos romanos. Ainda emais notável lecionadas foi a reforma quadrivium e ministrado em escolas nos monásticas, sob comando da Igreja, palatinas, por educacional, que as Carlos Magno ordenou a revitalização de futuras escolas funcionários do rei. Alguns historiadores encontramnoaqui origens da escolástica e também das antigas e a criação um novo corpus Carolíngio instrucional.logrou Este hegemonia novo sistema universidades medievais. Geograficamente hegemônico nestedeperíodo, o Império foi dividido no trivium (lógica, gramática e retórica) e quadrivium Moeda cunhada entre 812-814 representando o Imperador Carlos Magno – KAROLVS IMP. AVG. (“Carlos, Imperador Augusto”). As reformas dos Carolíngios possibilitaram grande expansão política, econômica e cultural da Europa Ocidental. (aritmética, geometria, música e astronomia) e ministrado em escolas monásticas, sob comando da Igreja, e palatinas, lecionadas por funcionários do rei. Alguns historiadores encontram aqui as origens da escolástica e também das futuras universidades medievais. Geograficamente hegemônico neste período, o Império Carolíngio logrou hegemonia também política e cultural. Fotografemos um momento deste período, o ano de 814, morte de Carlos Magno, e vejamos como se encontra a Europa Ocidental no mapa abaixo. 17 Coroado em 800 pelo papa Estevão III, o rei dos Carolíngios foi apontado como Imperador do Ocidente e preencheu um trono vazio desde 476. O Renascimento Carolíngio, as transformações no seio das aristocracias Francas e as relações com o Papado desembocam na fundação do que ficou conhecido como Sacro Império Romano. Aos anos finais de Carlos Magno, o Império Carolíngio, aos olhos de seus contemporâneos, havia se tornado uma espécie de Novo Império Romano. Entender os trâmites entre Carlos Magno e a Igreja são fundamentais neste momento: as reformas e mutaçõs realizadas no Império Carolíngio permitirão que a Igreja também se fortaleça e articule-se num corpo politicamente uno, tornando-se o órgão político mais poderoso da Média Idade Média e Idade Média Tardia. Ademais, o evento eclesiástico mais importante em fins da Alta Idade Média, encontra-se certamente no ano de 910, data na qual Guilherme I, duque da Aquitânia, funda a Ordem de Cluny. Nos próximos cinqüenta anos, o Papa Nicolau o Grande será protagonista de disputas com os herdeiros de Lotário I, neto de Carlos Magno e ajudará a centralizar ainda mais a autoridade papal. Saltando para além do ano mil, figuras como o papa Urbano II (1035-1099), Bernardo de Claraval (1090-1153), Hugo de São-Victor (1096-1141) e Anselmo de Canterbury (1033-1109) serão fundamentais para as articulações políticas, sociais e culturais da Europa. A Igreja entra no novo milênio portando um conjunto de idéias fomentadoras de uma reforma eclesiástica em seus fundamentos doutrinais e políticos. Retrocedendo ao ano imediato da morte de Carlos Magno, no ano de 814 o poder é herdado por seu filho Luís, o P io (778-840), que continuou as reformas do pai em vista de submeter as províncias ao poder real centralizado. 840, data sua morte, centralizado. Em 840, data de sua morte, três filhos seus herdaram o reinoEm – Carlos II, ode Calvo; Lotáriotrês I; efilhos Luís o Germano –, e este foi formalmente dividido em 843, comseus a assinatura herdaramdo o reino Tratado – Carlos de Verdun. II, o Calvo; Até o Lotário fim do século IX, estas três unidades políticas acabaram se fragmentando I; e Luísainda o Germano mais. Em–,888, e este o outrora foi formalmente uno Sacro Império Romano havia se transformado em cinco reinos menores: dividido em o Reino 843, com Franco-Ocidental, a assinatura do a Provença, Tratado dea Burgúndia, o Reino da Itália e o Reino Franco-Oriental. Verdun. Até o fim do século IX, estas três unidades Entre os fatores que explicam esta fragmentação, destacamos políticas aacabaram problemática se fragmentando do poder personalizado ainda mais. sob Em 888, o outrora unoosSacro Império Romano havia se Carlos Magno; novos movimentos migratórios de outros bárbaros, a saber, Vikings, os Magiares (futuros Húngaros) e os Eslavos. Tão crítica se tornou a fragilidade transformado dos reinosemque cinco suasreinos unidades menores: políticas o Reino eram meramente formais, estando a administração na mão de novas Franco-Ocidental, aristocracias, vinculadas a Provença, a terra a eBurgúndia, submetidas oa Reino da Itália Reino Magno Franco-Oriental. relações de vassalismo, transformadas pelas reformas empreendidas pore oCarlos e seu sucessores, cristalizadas com a ascensão de Hugo Capeto ao trono em 987,Entre inícioosdo fatores controle que Capetíngio explicam esta do fragmentação, Reino Franco Ocidental. Os sucessores de Luís o Germano no Reino Franco-Oriental destacamos ativeram problemática sucessodoem poder re-anexar personalizado parte do território dividido em 888 e, em 962, o rei Oto I e funda osob SacroCarlos ImpérioMagno; Romano-Germânico, as disputas dividido internas entre nas novos movimentos migratórios de Reino da Germânia e Reino da Itália, tomando a herançaaristocracias; da unidade esustentada dois séculos antes pelos Carolíngios. Estas duas unidades francas, o Reino Ocidentaloutros e o Oriental, bárbaros,oua moderno saber, osReino Vikings, Franco os Magiares e a parte germânica do Sacro Império Romano-Germânico, perdurarão (futuros até 1328 Húngaros) e 1815,erespectivamente, os Eslavos. Tãocom crítica poucas se Carlos, o Calvo entronado, iluminura no Codex Aureus de São Emmeram, em c.IX.seu O Renascimento mudanças território. Carolíngio viu uma produção sem precedentes de códices iluminados, laudatórios dos Francos. Códices são livros grandes e luxuosos, encadernados de folhas (fólios) feitas de pele animal, típicos de edições medievais mas mesmo assim raros, dado seu custo exorbitante de produção; em geral, eram escritos por monges e continham obras religiosas, mas também obras copiadas dos autores clássicos e sermões, homilias e demais textos para o uso no dia-a-dia da Igreja. tornou a fragilidade dos reinos que suas unidades políticas eram meramente formais, estando a administração na mão de novas aristocracias, vinculadas a terra e submetidas a relações de administr 18 administração na mão de novas aristocracias, vinculadas a terra e submetidas a relações de vassalismo, transformadas pelas reformas empreendidas por Carlos Magno e seu sucessores, cristalizadas com a ascensão de Hugo Capeto em 987, início do controle Capetíngio do Reino Franco Ocidental. Os sucessores de Luís o Germano no Reino Franco-Oriental tiveram sucesso em re-anexar parte do território dividido em 888 e, em 962, o rei Oto I funda o Sacro Império Romano-Germânico, dividido entre Reino da Germânia e Reino da Itália, tomando a herança da unidade sustentada dois séculos antes pelos Carolíngios. Estas duas unidades francas, o Reino Ocidental e o Oriental, ou moderno Reino Franco e a parte germânica do Sacro Império RomanoGermânico, perdurarão até 1328 e 1815, respectivamente, com poucas mudanças em seu território. A ascensão e queda do Império Carolíngio é o movimento culminante do longo processo estudado até então – a Alta Idade Média. As aristocracias cristalizam-se e transformam-se; solidificam seu poder em conjunto com a Igreja e o poder real baseado em relações hierárquicas futuramente configuradas nas dinâmicas políticas do feudo-vassalismo. A Igreja Romana Cristã também saiu fortalecida da aliança com os Carolíngios, a ponto de enfrentar a autoridade do Sacro Império durante o papado de Nicolau o Grande , ocasionando o cerco de Roma por Lotário II em 863. As reformas de Carlos Magno concluíram na centralização de dois poderes, o imperial e o eclesiástico. Esta relação, conflituosa e ao mesmo tempo de interdependência, explicará as dinâmicas entre o Sacro Império, a Igreja e os reinos cristãos nos próximos séculos. Chegamos a nosso destino: viemos longe de 476, retrocedendo alguns cinqüenta anos, período no qual Oto III entronado, do Evangelho de Oto III. Neto de Oto I e imperador entre 980-1002. Nesta iluminura é acompanhado de clérigos e soldados, reinando sobre ambos. A dinastia Saxônica herdou dos Carolíngios a parte Oriental do Império, a Germânia, mais tarde anexando a Itália e formando o Sacro Império Romano-Germânico. encontramos as instituições políticas, outrora centralizadas no Império Ocidental, em frangalhos. Então atravessamos quinhentos anos até pararmos momentaneamente em 987, ponto no qual encontramos uma Europa Ocidental sofrendo outras mutações, fortalecendo territórios e em franca expansão política, econômica, cultural e urbanística. Agora, saltemos treze anos e vejamos como se encontrava o continente no ano mil. 19 EPÍLOGO. O ANO MIL O Bispo. Lembra-te da grande glória com a qual te incumbiu o Rei dos reis; Ele em sua clemência te ofereceu um dom mais precioso que todos os outros; Ele te deu a inteligência da verdadeira sabedoria, graças a qual tu podes compreender a natureza das coisas celestes e eternas. Tu és destinado a conhecer a Jerusalém celeste, suas pedras, muros, portões, toda sua arquitetura e os cidadãos que ela comporta e a intenção com a qual ela foi edificada. Seus numerosos habitantes são separados, para serem melhor governados, em classes distintas; o divino todo-poderoso lá impôs tal hierarquia. Poupo-te, contudo, dos detalhes que seriam longos e fastidiosos. O Rei. A ciência não é meu ofício; deixemos esta com a divina Providência. M as o espírito humano está próximo à divindade, e aquele que quer ignorar o que está acima de si não pode se conhecer. Esta poderosa Jerusalém não é outra, penso, que a visão da divina s erenidade; o Rei dos reis lá governa, o Senhor a governa, e é afim deste objetivo que Ele a dividiu em classes. Nenhum de seus portões é ornado com metais inferiores; lá os muros não são feitos de pedras, e as pedras não constroem muros; são pedras vivas, vivo é o ouro que pavimenta as ruas, do qual o brilho passa por mais esplendoroso que o brilho do ouro mais fino. Edificada para ser a morada dos anjos, ela assim se abre às multidões de mortais; uma parte de seus habitantes a governa, a outra lá vive e respira. E isso é tudo que sei, mas eu adoraria que me dissessem mais. O Bispo. O leitor assíduo deseja conhecer o máximo possível de coisas; ao passo que um espírito sonolento e sem ardor tem costume de esquecer até o que aprendeu há muito. Caríssimo rei, consulta os livros de Santo Agostinho; é de bom feitio para compreender o que é a sublime cidade de Deus. O Rei. Diz-me, bispo, eu te peço, quem são aqueles que habitam nesta cidade; os príncipes, se lá existem, são eles iguais entre si, qual é a hierarquia? [...] O Rei. Assim a casa de Deus é uma, e regida por uma única lei? O Bispo. A sociedade de fiéis conforma senão um único corpo; mas lá [na Jerusalém celeste] o Estado comporta três. Pois a outra lei, a lei humana, distingue outras duas classes: nobres e servos não são, de fato, regidos pelo mesmo estatuto. Duas personagens ocupam a primeira ordem: um é o rei, o outro o imperador; é em decorrência do governo de ambos que vemos assegurada a solidez do Estado. O resto dos nobres tem o privilégio de escapar da punição de qualquer poder, conquanto se mantenham distantes dos crimes reprimidos pela justiça real. São eles os guerreiros, protetores das igrejas; são eles zelosos do povo, dos grandes e dos pequenos, enfim de todos, e também de sua própria segurança. A outra classe é aquela dos servos: esta raça infeliz não possui nada senão o que compra com o próprio esforço. Qu em poderia, usando as bolas do ábaco, calcular a rigidez que absorvem os servos, de suas longas caminhadas, de seus duros trabalhos? Dinheiro, vestes, comida, os servos fornecem tudo a todo mundo; nenhum homem livre poderia sobreviver sem os servos. A casa de Deus, que dizemos uma, é, portanto, dividida em três: uns oram, outros combatem, e mais enfim trabalham. Estas três part es coexistem e não são disjuntas; os serviços realizados por uma são a condição das obras das outras duas; cada uma por sua vez se encarrega de aliviar a carga total. Assim, este conjunto triplo não é menos que um; e é assim que a lei pode triunfar, e o mundo alegrar-se na paz. (excertos do Poema de Roberto II, Adalberão de Laon, c.1000) 20 QUESTIONÁRIO 1. Em que medida podemos afirmar que as migrações bárbaras contribuíram às transformações nas dinâmicas polít icas do Império Ro mano? Dica. As migrações estão vinculadas à rearticulação dos governos provinciais após a queda do Império Romano -Ocidental. 2. Baseado na questão anterior, você concorda com a afirmação do h istoriador Patrick Geary de que ―o mundo germân ico foi talvez a criação mais importante e duradoura do gênio político e militar ro mano‖? Justifique. Dica. Os bárbaros foram assim nomeados por historiadores romanos, e nos aparecem sempre como os outros, os não-romanos. 3. Co mente, baseado no processo de migrações e formação dos reinos germân icos, o excerto abaixo : ―Espíritos mal resignados ao destino devem ter imaginado que o governo de Odoacro e mesmo as realezas bárbaras da Gália, da Espanha, da África, ainda recentes e mal consolidadas, durariam pouco tempo. Em parte eles tinham razão, pois Justiniano quase realizou essas esperanças no século seguinte. Mas para nós que conhecemos o que os contemporâneos não podiam prever, ou seja, o futuro, é possível estabelecer retrospectivamente o atestado de óbito do Império Romano no Ocidente e nós podemos estabelecer por verdadeira data o dia quatro de setembro de 476.‖ ( F. Lot, Ch . Pf ister, F. L. G anshof In Les destinées de l’Empire en Occident, p.99) Dica. Os reinos germânicos de fato eram órgãos políticos frágeis e insustentáveis aos olhos dos contemporâneos, mas isso não implica que o ano de 476 foi o “atestado de óbito” do Império Romano no Ocidente, devido a, de um lado, a sobrevivência do Império Bizantino e, posteriormente a fundação do Sacro Império Romano. Os reinos germânicos também se consideravam herdeiros legítimos do poder romano. 4. Co mo podemos compreender a expansão árabe e as campanhas pela re -unificação do Império Ro mano sob Justiniano na formação dos reinos germânicos? Dica. As campanhas de Justiniano e a expansão árabe têm em vista principalmente o controle do Mediterrâneo. A expansão do Islã na Europa Ocidental, igualmente, está intimamente ligada à queda dos Visigodos e à formação do reino Franco. 5. Podemos afirmar que a cristianização dos povos germânicos é tamb ém u m traço de sua latinização? Dica. O cristianismo na Europa Ocidental é o da Igreja Romana Cristã, mesmo estando esta fragmentada em bispados locais. O s valores da Igreja são os mesmos valores civis do Império Romano tardio. 6. Em que medida as aristocracias descendem dos povos germânico s responsáveis pelas migrações? Dica. Retomar a questão 1; os reinos germânicos e a formação das aristocracias são diferentes faces de um mesmo processo que se articula com as migrações bárbaras. 7. Em que medida podemos dizer que a violência é o princíp io social de formação e art iculação das aristocracias? Dica. A função das aristocracias é a administração da justiça, que se confunde com a administração da violência em foros territoriais e privados. A violência também está vinculada à construção das identidades germânicas. 8. O que é ser pobre na Alta Idade Média? Discuta. Dica. O pobre na Idade Média é uma categoria jurídica e não necessariamente implica aquele que não tem dinheiro. 9. É correto afirmar que o Império Carolíngio, ou Sacro Império Ro mano, era realmente herdeiro do Império Ro mano? Justifique. Dica. Retomar a questão 3; Carlos Magno pretendeu reviver o poderio romano através de reformas políticas, sociais e culturais. Deve-se articular também o legado do Império na formação dos reinos germânicos. 10. As dinâmicas políticas e reformas do Império Caro língio estão intrinsecamente ligadas ao fortalecimento da Igre ja Ro mana Cristã. Discuta esta relação. Dica. As reformas empreendidas por Carlos Magno possibilitaram o fortalecimento de dois núcleos, a Igreja Romana Cristã e o Sacro Império Romano, na rearticulação interna das aristocracias entre si e em relação aos bispados e o Papado. 21 BIBLIOGRAFIA SELETA Autores antigos A quantidade de autores antigos traduzidos ao português ainda é ínfima, portanto, abaixo citaremos obras também em inglês (se for o caso, bilíngues) para o leitor que deseja aventurar-se nas fontes antigas. Santo Agostinho. A Cidade de Deus, 3 vols. (Fundação Calouste Gulbenkian, 1991) _____________. Confissões (Paulus,) _____________. Selected letters (Loeb Classical Library, 1930) Santo Ambrósio. Examerão (Paulus, 2009) Amiano Marcelino. Roman History, 3 vols. (Loeb Classical Library, 1950) Beda. Historical Works, 2 vols. (Loeb Classical Library, 1930) Boécio. A consolação da filosofia (Martins Fontes, 1998) Einhard & Notker o Gago. Two lives of Charlemagne (Penguin, 2008) Eusébio de Cesaréia. História Eclesiástica (Paulus, 2009) Gregório de Tours. A History of the Franks (Penguin, 1974) São Jerônimo. Selected letters (Loeb Classical Library, 1933) Paulo Diácono. History of the Lombards (University of Pensylvannia Press, 1975) Procópio de Cesaréia. Gothic War, vol.5 de History of the Wars (Loeb Classical Library, 1928) _______. The Anecdota or Secret History (Loeb Classical Library, 1935) Tácito. Anais (Clássicos Jackson, 1970) _____. Opera Minora: Agricola, Germania, Dialogus (Loeb Classical Library, 1914) Sidônio Apolinário. Letters, 2 vols. (Loeb Classical Lib rary, 1965) * HISTORIOGRAFIA MODERNA Aqui também to mamos a liberdade de citar obras em inglês e espanhol que não foram tradu zidas para o português. Do min ique Barthélemy. A Cavalaria: Da Germânia Antiga à França do século XII (Unicamp, 2010) Marc Bloch. A sociedade feudal (edições 70, 2009). Guy Bo is. The transformation of the year One Thousand (Manchester University Press, 1992) Peter Brown. O fi m do mundo clássico: De Marco Aurélio a Maomé (edições 70, 1972) Averil Cameron. The later Roman Empire (Fontana, 1993). _____. The Mediterranean World in Late Antiquity (Routledge, 1993) Marcelo Cândido da Silva. A Realeza Cristã na Alta Idade Média (Alameda, 2008) Fustel de Coulanges, A Cidade Antiga (Martins Fontes, 1987) E. R. Dodds. Pagan and Christian in an age of anxiety (Cambridge Un iversity Press, 1991) Georges Duby. O ano mil (ed ições 70, 1986) ______. Guerreiros e camponeses (Estampa, 1993) ______. As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo (Estampa, 1994) F. L. Ganshof. O que é o feudalismo? (Europa-A mérica, 1976) Patrick Geary. O Mito das Nações (Conrad, 2005) Edward Gibbon. Declínio e Queda do Império Romano (Co mpanhia das Letras, 2005) Walter Goffart. The Narrators of Barbarian History (University of Notre-Dame Press, 2005) Alain Guerreau. O feudalismo: Um horizonte teórico (Martins Fontes, 1980) Guy Halsall. Barbarian Migrations and the Roman West (Cambridge Un iversity Press, 2008) George Henderson. Arte Medieval (Cultrix, 1978) Ferdinand Lot. O fi m do Mundo Antigo e o princípio da Idade Média (edições 70, 1985) Joseph Morsel. La Aristocracia Medieval (PUV, 2004) Henri Pirenne. Maomé e Carlos Magno (edições 70, 1985) J-P. Po ly & E. Bourmazel. The Feudal Transformation (Holmes & Meiers, 1991) Susan Reynolds. Fiefs and Vassals: The medieval evidence reinterpreted (Oxford University Press, 1994) Michel Rouche. ―Alta Idade Média Ocidental‖ In História da Vida Privada, vol.1 (Co mpanhia das Letras, 2008) Jean-Claude Sch mitt. O corpo das imagens (Edusc, 2007) Adriaan Verhulst. The Carolingian economy (Cambridge Un iversity Press, 2002) Paulo Vizioli. A literatura inglesa medieval (Nova Alexandria, 1992) J.M. Wallace-Hadrill. The Barbarian West, 400-1000 (Blackwell, 1996) * MANUAIS, ANT OLOGIAS, ATLAS Andrew Jotischky & Caroline Hull. The Penguin Historical Atlas of the Medieval World (Penguin, 2005) Rosamond McKitterick (ed.). Atlas of the Medieval World (Oxford, 2004) ________ (ed.). The Early Middle Ages: Europe, 400-1000 (Oxford, 2001) Ingo F. Walther & Norbert Wolf. Codices Illustres (Taschen, 2005) The Broadview Anthology of British Literature, The Medieval Period (broadview, 2009, 2ª edição) * * * * * CRÉDITOS DAS FONTES Imagens - Figuras destacadas de fólios diversos do Apocalipse de Bamberg (MS A. II. 42). Ilu minuras, c.10001020, hoje na Bamberg Staatsbibliothek, Bamberg; retirado de Codices Illustres (Taschen, 2005). - Detalhe de O milagre dos pães e peixes, c.520. Mosaico, Basílica de Sant’Apollinare Nuovo, Ravenna; retirado de E. H. Go mb rich, The Story of Art (Phaedon, 2006, 1ª edição de 1950). - Detalhe do Sarcófago do ―Grande Ludovis i‖, c.III A.D. Mármo re, hoje disposto no Palazzo Altemps, em Ro ma; ret irado de The Penguin Historical Atlas of the Medieval World (Penguin, 2005). - Mapa das migrações bárbaras em The Penguin Historical Atlas of the Medieval World (Penguin, 2005). - Tábua com cenas em Emaús, ca.850-890. Marfim, hoje no museu The Cloisters, Nova Iorque; retirado de http://www.met museum.org/toah/hi/hi_carolingn.htm - Mapa dos reinos germânicos em The Penguin Historical Atlas of the Medieval World (Penguin, 2005). - Moedas cunhadas sob Rômu lo Augusto, Odoacro, Teodorico e Alarico II, todas do Google Images. - Astrônomos trabalhando, ilu minura de códice árabe produzido durante a Era de Ouro do Islã, c.7501250. Não encontramos a fonte. Retirado do Google Images. - Detalhe de Justiniano e séquito. Mosaico, Basílica de San Vitale, Ravenna, c.548; retirado de The Penguin Historical Atlas of Ancient Rome (Penguin, 1995). - Santo Ambrósio, c.V A.D. Mosaico, Basílica de Sant’Amb rogio, Milão; retirado de The Penguin Historical Atlas of Ancient Rome (Penguin, 1995). - Detalhe do missorium de Teodósio I, c.388. Prata, hoje na Real Academia de Historia, Madrid; ret irado de The Penguin Historical Atlas of Ancient Rome (Penguin, 1995). - O Cristo entronado do Livro de Kells (fo lio 292r). Ilu minura, hoje no Trinity Co llege, Dublin; ret irado de www.tcd.ie - Batalha entre Clóvis e Alarico II. Ilu minura de manuscrito produzido c.1325-1335, hoje na Koninklijke Bibliotheek; retirado de Codices Illustres (Taschen, 2005). - A Virgem como a Igreja. Marfim, c.800-875, hoje no The Cloisters, Nova Iorque; retirado de http://www.met museum.org/toah/hi/hi_carolingn.htm - Frontispície do Pactus Legis Salicae conservado em manuscrito. Fólio, c.793, hoje na Bibliothèque de l’Abbaye de Saint-Gall; ret irado do Wikipedia.co m. - Senhor [Pater familias] e escravos [servi], do Codex Aureus Eptarnecensis (Hs. 156142). Ilu minura, c.XI A.D., hoje no Germanisches Nationalmuseum, Nuremberg; retirado de Codices Illustres (Taschen, 2005). - Detalhe de Os reis magos visitam o menino Jesus, do Codex Egberti (MS. 24). Ilu minura, c.980, hoje na Trier Stadtbibliothek; retirado de Codices Illustres (Taschen, 2005). - Soldados romanos, Salmo 72 do Saltério de Utrecht (MS Bibl. Rhenotraiectinae I Nr 32). Gravura, hoje na Universiteitsbibliotheek, Ut recht; retirado de Codices Illustres (Taschen, 2005). - Mapa do Império Carolíngio em The Penguin Historical Atlas of the Medieval World (Penguin, 2005). - Relicário de Carlos Magno. Ouro, c.1349, na Catedral de Aachen; retirado do Google Images. - Moeda cunhada sob Carlos Magno, c.812-814, do Google Images. - Fólio com Carlos, o Calvo, entronado do Codex Aureus de São Emmeram (Cl. MS. 140). Ilu minura, c.IX A.D., hoje na Bayerische Staatsbibliothek, Munique; retirado de Codices Illustres (Taschen, 2005). - Fólio co m Oto III entronado do Evangelho de Oto III (Cl. M S. 4453). Ilu minura, c.X A.D.; hoje na Bayerische Staatsbibliothek, Munique; retirado de Codices Illustres (Taschen, 2005). - Detalhe dos Profetas louvando o Cristo Triunfante do Apocalipse de Bamberg (MS A. II. 42). Ilu minura, c.1000-1020, hoje na Bamberg Staatsbibliothek, Bamberg; retirado de Codices Illustres (Taschen, 2005). - Mapa da Europa no ano mil em http://www.eurat las.com - Detalhe de São Mateus. Ilu minura de manuscrito em Reims, c.830, hoje na Bib liothèque municipale, Épernay; retirado de E. H. Go mbrich, The Story of Art (Phaedon, 2006, 1ª edição de 1950). - Excerto do Codex Aureus de São Emmeram (Cl. MS. 140). Fó lio, ca.IX A.D., hoje na Bayerische Staatsbibliothek, Munique; retirado de Codices Illustres (Taschen, 2005). * CITAÇÕES - Santo Agostinho, A Cidade de Deus, vol.1 (Fundação Calouste Gulbenkian, 1991), p.115, trad. de J. Dias Pereira. - Beda, Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum, vol.1 (Loeb Classical Library, 1930), p.282-285, trad. nossa a partir do inglês de J. E. King. - Pactus Legis Salicae, XVII, excerto analisado em au la, trad. do prof. Marcelo Cândido da Silva. - Excerto de The Battle of Maldon, In Glauco Micsik Roberti. A Batalha de Maldon: Tradução e aliteração, trad. em tese de mestrado defendida na USP em 2006. - Gregório de Tours, Liber in gloria confessorum, excerto analisado em aula, trad. do prof. Marcelo Cândido da Silva. - Adalberão de Laon, excerto do Poema de Roberto II In Georges Duby, L’an mil (Gallimard, 1980), pp.71-75, t rad. nossa a partir da tradução francesa de Duby.