Como são formadas as barreiras ecológicas no ambiente marinho?

Propaganda
13 Como são formadas as barreiras ecológicas no ambiente marinho?
Felipe Theocharides Oricchio
Em ambientes marinhos, a distribuição de uma determinada espécie está
associada à estrutura espacial das populações conectadas, principalmente pela troca de
larvas entre essas populações, uma vez que a grande maioria dos organismos marinhos
tem desenvolvimento indireto. Assim, a conectividade entre essas populações se torna
um parâmetro central da estruturação dessas comunidades. A formação de barreiras
físicas é um dos meios mais claros de se reduzir essa conexão, mas em ambientes
marinhos, nos quais os ecossistemas são espacialmente muito dinâmicos, outras
barreiras devem ter um papel fundamental na estruturação de comunidades e
populações. Barreiras não físicas que alteram a conectividade entre populações são
chamadas de barreiras ecológicas. No mar, elas são muito frequentes e são de difícil
detecção (Marshall et al. 2010). Mas quais serão os processos associados à formação de
barreiras ecológicas no ambiente marinho?
Os processos biológicos e ecológicos que podem diminuir a conectividade entre
populações no ambiente marinho são diversos. Sobrevivência da prole em ambientes
novos, diferenças comportamentais entre populações, diferenças físicas entre ambientes,
dinâmicas de correntes e salinidade são apenas alguns exemplos associados à formação
de barreiras ecológicas. Como a maioria das espécies marinhas tem desenvolvimento
indireto, a fase larval é a mais afetada por essas barreiras e as diferenças entre
população adulta e larval tendem a ser bastante acentuadas. Ao contrário dos ambientes
terrestres, as populações marinhas, embora consideradas discretas, aparentemente não
apresentam barreiras físicas entre elas, o que levou os pesquisadores a pensar que não
há qualquer restrição para troca de material genético entre as populações. No entanto,
14 no processo de dispersão larval algumas etapas devem ser cumpridas: inicialmente as
larvas devem migrar, o que representa um alto custo energético e uma vez atingido o
local do desenvolvimento para a fase adulta, tanto a metamorfose quanto a competição
com organismos nativos já estabelecidos tendem a aumentar muito a taxa de
mortalidade (Corwen&Sponaugle, 2009).
Até o século passado, acreditava-se que a maioria das populações marinhas se
encontrava em alto grau de conexão e que o fluxo gênico entre elas era intenso, uma vez
que barreiras físicas são raras nesses ecossistemas. De fato, muitas dessas populações se
encontram nessa situação. A maioria dos peixes pelágicos oceânicos, grandes
mamíferos aquáticos como baleias e mesmo algumas espécies neríticas, que vivem
associadas a águas costeiras, tem altíssimo grau de conectividade entre populações. Um
dos exemplos mais extremos dessa condição talvez seja o das enguias norte americanas
do atlântico. Um estudo realizado com esses organismos revelou que a população é
praticamente panmítica e que o número efetivo populacional é virtualmente igual ao
tamanho da população (Côté et al. 2013). Nesse caso, não há barreiras físicas e
provavelmente poucas barreiras ecológicas reduzindo a conectividade entre populações,
que trocam informação genética livremente no tempo e no espaço. Como consequência,
a taxa de polimorfismo dessas populações é bem baixa e os efeitos da seleção natural
tendem a ser amortecidos pelo intenso fluxo gênico.
No entanto, a idéia de que o ambiente marinho favorece a alta conexão entre
populações vem sendo contestada cada vez mais. Uma das principais evidências de que
o ambiente marinho não é totalmente conectado é que várias espécies dispersam muito
menos do que as capacidades de dispersão de seus respectivos propágulos. Diferentes
processos podem estar associados a esse padrão, sendo que pesquisadores dessas áreas
tendem a dividi-los em dois tipos: pré e pós colonização (Marshall et al. 2010). A
15 principal barreira pré-colonização é a altíssima taxa de mortalidade que as larvas
experimentam na fase planctônica, ocasionada tanto por predação quanto por
competição e estima-se que mais de 90% das larvas não atinja a fase adulta. Quanto às
barreiras pós colonização, há dois processos que valem destaque: os altos custos
fisiológicos associados à dispersão e um fenômeno chamado desencontro entre fenótipo
e ambiente (do inglês, phenotype and envirolmental mismatch). Em organismos com
larvas lecitotróficas, que se alimentam de suas reservas e não do plâncton, o
recrutamento é fortemente afetado pelo tempo que a larva passa no plâncton. Assim,
larvas que demoram a assentar tem menor probabilidade de sobrevivência durante a fase
de metamorfose devido ao dispêndio energético da fase dispersora, o que reduz a
conexão entre populações, que em alguns casos se encontram bem próximas
espacialmente. Quanto ao fenômeno do desencontro entre fenótipo e ambiente, trata-se
de um processo bastante subestimado no ambiente marinho, mas que atualmente tem
recebido mais atenção e tem se mostrado fundamental na estruturação de comunidades.
Organismos nativos de um determinado ambiente tem melhor desempenho nesse
mesmo ambiente do que os imigrantes. Tanto a seleção natural quanto a plasticidade
fenotípica atuam melhorando a performance dos organismos sob determinadas
condições ambientais e biológicas, assim quando larvas adaptadas, por seleção ou
plasticidade fenotípica, migram e tentam colonizar outros ambientes a taxa de sucesso é
bastante reduzida (Marshall et al. 2010).
Outra causa para o desencontro entre fenótipo e ambiente ocasionado por
plasticidade fenotípica é um fenômeno bastante interessante chamado efeito materno. É
bastante frequente em organismos bentônicos de larvas lecitotróficas. Nesse processo, o
sucesso da prole está associado à semelhança entre o ambiente do assentamento com o
ambiente no qual a mãe estava exposta no momento da produção da larva (Marshall et
16 al. 2008). Alguns estudos mostram que determinados organismos são capazes de alterar
o investimento larval, produzindo larvas melhor adaptadas a condições específicas e que
são capazes de sobreviver a alguma condição estressante (Dias & Marshall, 2010). Esse
tipo de herança altera o sucesso da prole de acordo com variações abióticas. Em 2008,
Marshall e colaboradores demonstraram em um elegante experimento que larvas
originadas por organismos de ambientes ricos em cobre, que é um poluente frequente no
ambiente marinho e está presente em tintas anti-incrustante de cascos de navios,
assentam muito mal em ambientes sem o poluente, o que desconecta populações muito
próximas. Dessa forma, o desencontro entre fenótipo e ambiente, seja causado por
adaptação local ou por plasticidade fenotípica, tanto na mesma geração como entre
gerações, atua reduzindo a conectividade entre populações no ambiente marinho e
representa uma forte barreira ecológica a esses organismos.
Mudanças nas taxas de mortalidade ou de sucesso de colonização não são os
únicos processos envolvidos na formação de barreiras ecológicas no mar. Assim como
no ambiente terrestre, diferenças comportamentais são capazes de reduzir fortemente a
conectividade entre populações próximas. Comportamento reprodutivo, hábitos
alimentares e atividade diária são alguns exemplos de traços capazes de separar
populações e oferecer uma barreira ao fluxo gênico delas. Um exemplo notável no
ambiente marinho e o caso das populações de orcas (Orcinus orca). Muitas dessas
populações apresentam traços culturais como técnicas de caça e vocalização. São
características comportamentais típicas de uma determinada população e que são
ensinadas entre gerações. Deecke e colaboradores publicaram um trabalho em 2000
avaliando diferenças na vocalização das populações de orcas. Cada grupo tem sons
próprios e estima-se que estes sejam aprendidos pelos indivíduos ao longo do
desenvolvimento. Como consequência, muitas dessas populações se encontram
17 desconectadas geneticamente e há poucos registros de cruzamentos entre indivíduos de
populações diferentes. Assim, o comportamento diferenciado de cada população atua
como uma barreira ecológica, mesmo em situações de simpatria. Os autores desse
estudo não avaliaram as diferenças populacionais quantos às estratégias de caças desses
grupos. Mas sabe-se que, por exemplo, orcas dos mares antárticos são especializadas em
caçar focas isoladas e afastadas da linha de costa, já as da costa sul da América
aperfeiçoaram a caça de leões marinhos nas praias da Patagônia. Essas diferenças
comportamentais intensificam a separação dessas populações que compartilham os
mesmos mares.
Dessa forma, fica clara a importância de barreiras ecológicas para a estruturação
das comunidades marinhas. Há casos que o ambiente marinho favorece o fluxo gênico e
a existência de populações praticamente panmíticas. Nesses exemplos, não há barreiras
nem físicas ou ecológicas reduzindo a conectividade populacional. Mas em um
ambiente tão dinâmico como o mar, eventos de vicariância são mais raros e estima-se
que grande parte da diversidade marinha seja resultado de especiações simpátricas.
Assim, barreiras ecológicas parecem desempenhar um papel central tanto na formação
da altíssima diversidade marinha, como na manutenção da mesma.
Explorei aqui alguns exemplos de formação de barreiras ecológicas, que atuam
reduzindo a conexão entre populações podendo favorecer o processo de especiação. A
alta taxa de mortalidade larval diminui o alcance específico e restringe a distribuição de
uma espécie. O desencontro entre fenótipo e ambiente pode ser gerado por três
processos distintos: adaptação local, plasticidade fenotípica e efeito materno. Eles atuam
reduzindo a conectividade no mar porque a heterogeneidade espacial marinha é
acentuada mesmo em escalas restritas. Assim, ambientes vizinhos podem apresentar
condições bióticas e abióticas muito diferentes, reduzindo a capacidade de colonização
18 dos organismos. Diferenças comportamentais também podem isolar populações, como
no caso das orcas, que tem suas populações relativamente isoladas por apresentarem
tanto vocalizações como estratégias de caça diferentes. Mas os desafios para se avaliar
conectividade e seus efeitos nas populações estabelecidas não são simples. Escalas
temporais e espaciais variam muito de organismo para organismo e os fatores físicos
que definirão esses parâmetros estão longe de serem bem descritos e compreendidos
(Cowen et al. 2007). Há muito estudo a ser realizado ainda nessa área, uma vez que só
recentemente a academia tem dado mais atenção tanto ao processo de especiação
simpátrica como à formação de barreiras não físicas, mas ainda capazes de reduzir
fortemente o fluxo gênico entre populações. O ambiente marinho é um excelente
sistema para esses estudos, mas é ainda sub-amostrado. O crescimento da ecologia
marinha recentemente é bastante promissor e pode resolver relevantes questões teóricas
sobre efeitos de conectividades e, consequentemente, processos de especiação.
Referências Bibliográficas
Côté, C.L., Gagnaire, P.A., Bourret, V., Verreault, G., Castonguay, M., Bernatchez, L.
(2013) Population genetics of the American eel (Anguilla rostrata): FST = 0 and
North Atlantic Oscillation effects on demographic fluctuations of a panmictic
species. Molecular Ecology. 22, 1763-1776.
Cowen, K. R., Gawarkiewicz, G., Pineda, J., Thorrold, S.R., Werner, F.E. (2007).
Connectivity in marine seas. An overview. Oceanographer. 20, 14-21.
Cowen, K. R., Sponaugle, S. (2009). Larval dispersal and marine population
connectivity. Annu. Rev. Mar. Sci.1, 43-66
19 Deecke, V.B., Ford, J.K.B., Spong, P. (2000) Dialect change in resident killer whales:
implications for vocal learning and cultural transmission. Animal Behaviour. 60, 629638
Dias, G.M. and Marshall, D.J. (2010). Does the relationship between offspring size and
performance change across the life-history? Oikos. 119, 154-162
Marshall, D.J. (2008). Transgenerational plasticity in the sea: context-dependent
maternal effects across the life-history. Ecology. 89, 418-427.
Marshall, D.J., Monro, K., Bode, M., Keough, Swearer, S. (2010). Phenotype–
environment mismatches reduce connectivity in the sea. Ecology Letters. 13, 128140.
Download