GEOGRAFIA LITERÁRIA: UM OLHAR GEOGRÁFICO SOBRE A OBRA “O RECADO DO MORRO” DE JOÃO GUIMARÃES ROSA Samuel Alves Maciel [email protected] Geografia-Universidade Federal de Uberlândia Jéssica Soares de Freitas [email protected] Geografia-Universidade Federal de Uberlândia Resumo O caráter da Geografia presente na literatura mantém uma inter-relação entre o objeto real geográfico e o imaginário literário. A literatura representa as relações do homem com a natureza, ou seja, o espaço propriamente dito e justifica-se por ser uma diferente linguagem a ser abordada pela ciência geográfica. Nesse sentido, este trabalho tem como objetivo realizar uma análise geográfica sobre a obra “O recado do morro” de João Guimarães Rosa, a partir de conceitos em diferentes escalas como de tempo e de espaço, de lugar, de região, de paisagem e de território. Como também correlacionar o conteúdo da obra com elementos geográficos abordados em tal. A metodologia aplicada é embasada em levantamento bibliográfico para posteriores análises do conto, buscando denotar a sua indissociabilidade na construção constante do espaço geográfico, sendo possível associar em fatos e fatores históricos pretéritos ou atuais, sempre que forem úteis, as condicionantes socioeconômicas, políticas e culturais que deem regência e estrutura a tais eventos. Como resultados foram encontrados inúmeras relações da obra com diferentes categorias-conceitos, e também com diversas áreas da geografia como a geologia, a hidrografia, a geomorfologia, a pedologia a geografia cultural, a geografia rural e a história do pensamento geográfico. Ambos foram verificados ao decorrer da construção da história por meio de depoimentos tanto dos personagens quanto do próprio narrador de forma descritiva e detalhada. Abstract Geography’s character present in literature maintains an interrelationship between the material geographic object and the literary imaginary. Literature represents the relations of man with nature, or space properly; so it justifies itself for being a different kind of language to be used by the geographic science. In this meaning, this paper has the objective of analyzing in a geographic manner the short story “O recado do morro” by João Guimarães Rosa, using concepts in a wide spectrum of scales as of time, space, place, region, landscape and territory. Also correlating the subjects of the piece of art with geographic elements present in it. Our methodology was based in bibliographic research for the subsequent analysis of the short story, trying to notice its indissociability in the constant construction of the geographical space, it is also possible to associate it to facts and historical factors as long as they are useful to our purpose, likewise the social, cultural and economic structures that relate to materialized events. As a result we found countless relations between the story and our categories/concepts, also with some areas of geography like geology, hydrography, ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 1995 geomorphology, pedology, cultural geography and rural geography. Both were verified in the narration and declarations of the characters in a descriptive and detailed way. Palavras-chave: geografia, literatura, linguagem. Keywords: geography, literature, language. Eixo: A Geografia na educação básica: metodologia, tecnologia e formação docente Introdução Desde o nascimento aprendemos a como nos comportar perante a sociedade, a maneira mais adequada de falar, sentar, escrever e ver o mundo. Mais tardiamente, aprendemos a pensar por nós mesmos, de forma a criar novos pensamentos e transmiti-los de forma correta. Na escola, nos é ensinado a diferenciar algumas disciplinas fundamentais para a nossa formação, muitas vezes não podendo uni-las, por possuírem linguagens distintas e diferentes. Mas, e se houvesse novas formas de aprender a não ser pelo livro didático ou pela fala de nossos professores? E se nossos próprios educadores mudassem um pouco a forma de ensinar? Talvez, sairíamos da escola com muito mais paixão pelo mundo, criando novas ideias, mostrando-as para a sociedade. Já é possível observar algumas mudanças na forma de ensino. Desta maneira, vemos diversos recursos didáticos sendo utilizados na atualidade como, por exemplo, vários filmes, músicas e inúmeros livros literários, embora seja ainda de forma restrita à determinadas disciplinas. A Geografia, como ciência fundamental para a compreensão do espaço, tem papel coadjuvante neste processo. Fica claro que alguns alunos não entendem muito bem o porquê aprende-la, ou para que servirá no futuro. O desafio dos discentes é justamente modificar este pensamento, mostrando uma nova forma de aprendizagem. Além disso, o fato de algumas escolas não possuírem tal disciplina no currículo de algumas séries dificulta ainda mais o desenvolvimento da Geografia no ensino público. Sendo assim, como mencionado, algumas escolas já utilizam de alguns recursos alternativos para “acalentar” o aluno e assim, deixá-lo, de certa forma mais interessado em relação ao processo de aprendizagem. No entanto, deve-se salientar que a faixa etária do estudante influencia diretamente na forma como este irá compreender a tais ideias. Deve-se, portanto, analisar qual a melhor fonte de ensino para determinadas idades. A literatura, que utilizaremos como exemplo neste trabalho, dá suporte a uma infinidade de conhecimentos, dentre eles especificamente para a Geografia. A ligação profunda entre a literatura e a ciência geográfica fica clara em diversas obras, seja ela ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 1996 clássica ou não, brasileira ou estrangeira, ficção científica ou romance. Entretanto, ao trabalhar com essa vertente, o professor, muitas vezes, pode encontrar uma barreira em seu processo de transmitir o ensino desejado, já que a vinculação entre a Literatura e a Geografia pode não ser tão difundida em âmbito acadêmico. Verifica-se que são poucos os trabalhados realizados sobre o tema, muitas vezes optam-se apenas por autores clássicos, de grande estima, renome e poder literário, pois a "facilidade" em encontrar vínculos com temáticas geográficas é um pouco maior. No entanto, segundo Lima (2000), estudar obras literárias sob uma abordagem geográfica teve-se início na década de 1940, com alguns geógrafos franceses que almejavam recuperar a riqueza da ciência geográfica em romances, contos, dentre outros. Dessa forma, propõe-se uma nova visão disciplinar, dialogando então com o livro de literatura que poderá tornar-se prazeroso a diversos alunos, especialmente em relação à linguagem culta e muitas vezes acadêmica, geralmente abordada nestas obras. Fazendo por fim com que se torne de certa forma, algo tão fundamental para uma adequada formação acadêmica e escolar. A partir destes pressupostos, neste trabalho, analisaremos a obra “O Recado do Morro” do autor mineiro João Guimarães Rosa, estimado não só no Brasil, mas internacionalmente. Com escritos de valor literário inegável e linguagem própria, apaixonado por sua terra e pelo povo que nela vive. Nascido em 27 de junho de 1908, em uma pequena cidade de Minas Gerais, tornou-se um dos principais escritores brasileiros, apesar de sua formação inicial em medicina. Guimarães Rosa começou sua vida literária escrevendo e publicando poemas, com os quais ganhou o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras em 1936 com a seleção de seus versos da obra Magma. No ano de 1937, Sagarana, sua grande obra, é lançada, e só depois de alguns anos, em 1956, reaparece em O Corpo de Baile e lança Grande Sertão: Veredas. Em 1962, lança Primeiras Estórias. Em suas obras fica nítida sua paixão pela geografia, possuindo, ao longo de sua vida, cargos no Itamaraty, sendo diretor de Divisão de Fronteiras e representante do Ministério das Relações Exteriores juntamente ao Conselho Nacional de Geografia, no IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Ajudou a inovar a literatura brasileira, impulsionada por seus experimentos lingüísticos, seu modo fictício e a técnica própria empregada em suas obras. O "O Recado do Morro", obra a ser analisada, está inserido na obra "No Urubuquaquá, No Pinhém". Este conto ou até mesmo novela, compunha juntamente com outros a obra “Corpo de Baile” de 1956, mas a partir da terceira edição deste último esta obra começou a ser editada em três volumes, sendo umas dessas, “No ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 1997 Urubuquaquá, No Pinhém”. O objetivo deste trabalho é analisar outra possibilidade de linguagem para o ensino de Geografia, segundo a sua abordagem em obras literárias, e como pode ser repassado o processo de ensino das mesmas ao aluno de forma dinâmica, objetiva e de fácil compreensão, por meio das temáticas geográficas correlacionadas a estas literaturas. A combinação e a compreensão dos aspectos objetivos e subjetivos concernentes à paisagem/mundo vivido apresentam-se no contexto de algumas obras literárias de forma que revelem justamente esta visão holística da experiência com o espaço, mais próxima da realidade do significado da essência da humanização das paisagens geográficas, naturais ou construídas. (LIMA, 2000). Primeiramente como recurso metodológico foi realizado um referencial teórico acerca do tema a ser trabalhado, para entender e sistematizar a ligação profunda existente entre a Geografia e a Literatura, encontrando diversas obras neste processo. Posteriormente foi analisado no livro abordado nesta pesquisa a presença das categorias geográficas (lugar, território, paisagem, região e espaço), assim como a relevância e a ligação com determinados aspectos da ciência geográfica. A proposta é demonstrar como uma obra de literatura pode ser utilizada como forma de aprendizagem por diversos alunos de forma mais dinâmica e abrangente. Ao escolher uma obra brasileira, a proximidade com a temática fica mais próxima, e, consequentemente mais fácil de assimilar o proposto em questão. Destarte, a "Geografia Literária" pode ajudar o aluno a compreender melhor o estudo geográfico, assim como espaço em que está inserido, e o professor, que ao realizar o processo de inovação em sua forma de ensino, cativa os alunos e consegue então fazer com que sua aula se torne mais dinâmica e interessante aos mesmos. Desta maneira, a obra “O Recado do Morro” de João Guimarães Rosas torna-se ideal a está prática. Lócus Geográfico do Enredo da Obra No conto “O Recado do Morro” de João Guimarães Rosa o enredo se desenvolve no sertão de Minas Gerais, composto por seus elementos naturais, como as veredas e as diversas paisagens da seca, o sertão juntamente com os humanos vão compondo um cenário rico de experiências para o leitor. Os viajantes, personagens da obra, percorrem uma expedição traçada provavelmente do Centro ao Norte de Minas Gerais. No decorrer do caminho, estes avistam o Morro da Garça, um morro testamento, o qual se encontra em um município homônimo, localizado no centro geodésico do Estado de Minas Gerais, na região ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 1998 centro-norte do estado. A figura 1 ilustra o local do enredo da obra analisada neste trabalho. Figura 1 – Lócus geográfico do enredo do conto “O Recado do Morro” de João Guimarães Rosa. 1999 Fonte: (RIBEIRO, C. M. 2007). Categorias - conceitos da análise geográfica na obra “O Recado do Morro” de João Guimarães Rosa As categorias de análise da Geografia como a região, a paisagem, o território e o lugar estão presentes no texto na obra analisada neste trabalho e vão construindo ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 a história por meio de depoimentos dos personagens e do narrador de forma descritiva e detalhada. Segundo Corrêa (2001, p. 191) entende-se por região “a diferenciação de áreas, resultante tanto de processos da natureza como sociais e razão de ser da própria geografia com um saber dotado de uma relativa autonomia”, ou seja, o conceito de região refere-se a uma porção do espaço que se diferencia devido à suas características comuns predominantes, podendo estas ser de cunho natural (topografia, clima, vegetação, hidrografia, etc.) ou social (cultura, política, economia, etnia, etc.), determinadas de acordo com a necessidade do estudo. Em O Recado do Morro, o autor descreve a região central mineira de maneira extremamente contemplativa e levando em consideração seus aspectos físicos, sendo bastante explorada a sua topografia. De feito, diversa é a região, com belezas, maravilhal. Terra longa e jugosa, de montes pós montes: morros e corovocas. Serras e serras, por prolongação. Sempre um apique bruto de pedreiras, enormes pedras violáceas, com matagal ou lavadas. Tudo calcáreo. E elas se roem, não raro, em formas – que nem pontes, torres, colunas, alpendres, chaminés, guaritas, campanários, parados animais, destroços de estátuas ou vultos de criaturas. (ROSA, 1976, p. 29). Segundo Schier (2003, p.80) a categoria paisagem nada mais é que: “um produto cultural resultado do meio ambiente sob a ação da atividade humana”, sendo ela humanizada não apenas pela ação antrópica, mas também pelo simples fato de ser interpretada, havendo assim uma interação intelectual entre o homem e o ambiente, tornando a paisagem uma maneira específica de olhar. Guimarães Rosa emprega toda sua poética e deslumbre para descrever, por exemplo, uma paisagem composta por grutas onde há formação de estalactites e estalagmites. Desta maneira, fica evidente o envolvimento do autor com a paisagem quando o mesmo relaciona as formações calcárias com elementos de sua vivência fazendo uma interpretação estritamente pessoal e apreciativa. Pelas abas das serras, quantidades de cavernas – do teto de umas poreja, solta do tempo, a agüinha estilando salobra, minando sem-fim num gotejo, que vira pedra no ar, se endurece e dependura, por toda a vida, que nem renda de torrõezinhos de amêndoa ou fios de estadal, de cera-benta, cera santa, e grossas lágrimas de espermacete; enquanto do chão sobem outras, como crescidos dentes, como que aquelas sejam goelas da terra, com boca para morder. (ROSA. et al., 1976. p.29.) O território e o lugar também são duas importantes categorias de análise da Geografia que na maioria das ocasiões estiveram em discussão no âmbito geográfico e até fora dele. Na obra em questão, estas categorias marcam forte presença ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 2000 principalmente pelo enredo se passar em uma viagem de reconhecimento e de negócios para alguns dos personagens como o seu Jujuca do Açude, fazendeiro possuidor de grandes terras, ou seja, territórios. Pereira (2004) escreve: “A categoria território ganha força nos atuais estudos de geografia, visto que ela passa a ser entendida como o resultado das ações humanas e de suas relações de poder no espaço”. Desta forma, o território está diretamente ligado à política e ao poder. Tomemos como exemplo a questão da posse de terra contida no conto. Quanto mais terras se têm, mais poderoso o possuidor destas mesmas se torna. Há também uma delimitação desses territórios e este fato é bem nítido na literatura abordada quando, durante a viagem, os personagens passam de terra em terra, sendo cada uma de um proprietário específico e necessitam de permissão para dormir em suas propriedades. Por último, em relação ao lugar há uma definição um pouco diferente. O lugar não é algo comprável e nem delimitado como o território, ele é algo que está intrínseco a cada sujeito. Para Tuan (1983, p.151): “o espaço transforma-se em lugar à medida que adquire definição e significado”. Há uma relação de pertencimento e identidade com determinado lugar, lugares relacionados às vivências humanas. O conto demonstra este fato com clareza quando Pedro Osório, o personagem principal, sente falta do local onde ele fora criado, Rosa (1976, p.35) relata: “Pedro Orósio achava do mesmo modo lindeza comum nos seus campos-gerais, por saudade de lá, onde tinha nascido e sido criado”. Apesar de estar em um local diferente, ele não se sente totalmente inserido nesse meio geográfico e sim daquele onde tem vínculos afetivos. Relação entre a obra o “O Recado do Morro” de João Guimarães Rosa e Geografia A obra de João Guimarães Rosa expressa uma relação estreita entre a ciência geográfica e a literatura. Tal escritor era um minucioso observador da natureza e amante da Geografia. O espaço geográfico da obra de Guimarães Rosa é o sertão mineiro, como pode ser observado no seguinte trecho de sua obra: “o chapadão de chão vermelho, desregral, o frondoso cerrado escuro feito um mar de árvores.” Rosa (1946). Sendo assim, ninguém o relatou tão bem quanto ele. Para isso Rosa ia a campo conhecer de perto a sustentação de sua prosa poética. O conto O Recado do Morro é uma viagem pela região noroeste de Minas Gerais. Os personagens deste enredo são Pedro Orósio (o guia, enxadeiro dos Gerais e namorador), Seo Alquiste (estudioso alemão), frei Sinfrão, Seo Jujuca do Açude ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 2001 (fazendeiro de gado e filho de fazendeiro), Malaquias ou Gorgulho (camponês) e o Ivo (amigo invejoso de Pedro Orósio). A obra é uma viagem geográfica e mística que envolve a compreensão do recado/ enigma que o Morro da Garça transmitiu ao personagem Malaquias. Durante a viagem pelo sertão os personagens do conto se deparam com outros personagens tão intrigantes quanto eles durante todo o percurso e pelas sete fazendas que visitaram até a volta ao arraial de onde partiram. Além das categorias de análise geográfica, Guimarães Rosa em “O Recado do Morro” percorre diferentes disciplinas da geografia. Um exemplo seria a Geologia, Rosa (1976, p.29): Pelas abas das serras, quantidades de cavernas, - do teto de umas poreja, solta do tempo, a aguinha estilando salobra, minando sem –fim num gotêjo, que vira pedra no ar, se endurece e dependura, por toda a vida.” E ainda ressalta a Hidrografia presente na obra. Vara, suterrão, travessando para o outro sopé do morro, ora adiante, onde rebrota desengulido, a água já filtrada... e mesmo córregos se afundam, no plão, sem razão a não ser para poderem cruzar, intactos por debaixo de rios, e remanam do túnel, ressurgindo, longe, e depressa se afastam, seguindo por terem escolhido de afluir a um rio outro, (ROSA, 1976. p.30). O autor também faz referências a Geografia Rural, sendo o Gorgulho um dos personagens mais representativos, Rosa (1976, p.43) escreve: “E de que vivia? Plantava a sua roça, colhia”. Tal personagem é um campesino e homem do campo, necessitando então do solo para sua sobrevivência. De acordo com a Pedologia, tendo como o objeto de estudo de tal disciplina corrente, o solo possui vários papéis na natureza, sendo um deles relacionado à alimentação, Rosa (1976, p.43) relata: “Roça em terra geradora, ali perto, sem possessão de ninguém, chão de cal, dava de tudo” A Geomorfologia também aparece no conto nas descrições do relevo e na presença do Morro da Garça, o qual tem papel importante na trama, já que é este morro, que narra a Malaquias a traição a Pedro Orósio, ápice da história. E que foi que o Morro disse, seo Malaquias, que mal pergunto?” – seo Jujuca quis saber. – Pois, hum... Ao que foi que êle vos disse, meu senhor? Ossenhor vossemecê, com perdão, ossenhor não está escutando? Vigia êle-lá: a modo e coisa que tem paucta. (ROSA, et al., 1976. p.40). Outra descrição do relevo presente no conto é a vereda, podendo então relacionar a disciplina de Pedologia com a de Geomorfologia. Rosa (1976, p.53) escreve que em algum momento da viagem os personagens passam por: “veredas de atoleiro terrível, com de lado a lado o enfile dos buritis, que nem plantados drede por ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 2002 maior mão”. Desta maneira, verifica-se que as veredas possuem solos hidromórficos, escuros devido à presença de matéria orgânica e demonstram que naquele local há presença de água, possibilitando a vida da fauna e da flora no cerrado. É importante deixar claro, que é conhecido o interesse de Guimarães Rosa pelos relatos de viagens de Humboldt, o que nos remete a História do Pensamento Geográfico. Neste caso, Humboldt colhia dados para suas pesquisas e desenhava paisagens a mão, assim como o personagem Seo Alquiste, Rosa (1976, p.31): “Tomava nota, escrevia na caderneta... outra mão, ele desenhava, desenhava: de tudo tirava traço e figura leal”. Então, verifica-se neste momento do conto a importância do trabalho de campo na ciência geográfica. O autor ainda relata a vida do sertanejo e seus costumes, Rosa (1976, p.64): “Menos afastado, trafegou um carro-de-bois, cantando muito bonito, grosso – devia de estar com a roda bem apertada, e o eixo seria de madeira de itapirucú.” A Geografia Rural permeia tal trecho. Percebe-se que, o carro-de-boi foi muito utilizado na agricultura durante décadas. Depois do advento do caminhão e do trator juntamente com a mecanização da agricultura, este meio de transporte deixou de ser utilizado. Tal fragmento do conto, também nos remete a disciplina de Geografia Cultural, devido o fato de se poder analisar os costumes intrínsecos aos personagens diante dos fatos apresentados. Mostrando-nos, desta maneira mais uma possível interdisciplinaridade nos pontos analisados. Ainda sobre a Geografia Cultural a religião tem um papel fundamental na formação sociocultural do homem. Se pretendemos, enquanto geógrafos, compreender, explicar e transformar o mundo a partir da Geografia, acreditamos que o espaço das religiões torna-se indispensável nesse processo de conscientização e construção da cidadania, uma vez que a religiosidade e as religiões são elementos integrantes do espaço geográfico. (SANTOS, et al., 2002. p.25). Neste contexto, O Recado do Morro é também uma história religiosa, voltando assim a aspectos geográficos culturais. Representada pela fé e crença de personagens, como Frei Sinfrão, o qual rezava por toda a peregrinação pelo sertão, Rosa (1976, p.67): “Outro personagem que representa o imaginário religioso na história é o fanático Nominedômine ou Jubileu , profeta que anuncia o fim do mundo “Então, me sigam no sinal sagrado! – e traçou em testa e boca e peito o da Cruz!”. O Recado do Morro relata as manifestações culturais da festa do congo em homenagem a Nossa Senhora do Rosário. Neste momento todos os moradores do arraial e no entorno dele se reúnem para dançar, rezar e celebrar. Quando Laudelim começa a tocar sua cantinga que narra a traição do rei, ou seja de Pedro Orósio, ficam ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 2003 todos encantados com seus versos, mas sem entender ainda a grande emboscada que estava para acontecer. Pedro Orósio decide voltar para sua terra natal, os Gerais, e Ivo, o amigo traidor, o acompanha, sabendo que seus comparsas estavam a esperá-los, prontos para colocar em prática a traição. Pedro continua a cantarolar a canção de Ludelim e decifra sua sina a tempo de se salvar, Rosa (1976, p. 94): “Quando o Rei era menino, já tinha espada na mão. Mas Deus marcou seu destino: de passar por traição.” Encerrando então, as possíveis relações com Geografia Cultural. E assim Guimarães Rosa cria a sua Literatura pelos caminhos da Geografia ou pelo processo reverso. Seu olhar geográfico ajuda o leitor, neste caso, docentes e discentes, a conhecerem características geográficas e as feições do estado de Minas Gerais por meio das obras literárias de uma forma inovadora em relação ao processo de ensino-aprendizagem. Considerações finais Analisando de forma geral, o estudo geográfico via obra literária se torna essencial não só para o aluno, mas também, e talvez principalmente, para o professor. Ao inovar, o docente constrói uma maior autonomia e demonstra em sala como o estudo, que alguns discentes acham tão complexo, pode ser simples e eficaz. A literatura brasileira possui um grande acervo para tal, como vimos, a brasilidade de alguns autores deixa seu estudo mais próximo, e, portanto, mais vivo. Guimarães Rosa, que para muitos é um autor de difícil compreensão, nos mostra justamente o contrário. Com seus escritos viajamos por um mundo que já conhecemos, mas com paixão, romance e diversidade. Com estas características, seu estudo se torna prazeroso, mostrando os principais aspectos da Geografia de forma lúdica que, ao ser utilizado pelo professor, aproxima os alunos de um estudo tão fundamental em sua formação. Referências bibliográficas CORRÊA, R. L. Trajetórias Geográficas. 2° ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p. 183-196. LIMA, S. T. de. Geografia e Literatura: alguns pontos sobre a percepção de paisagem. Geosul, Florianópolis, v.15, n. 30, p. 7-33, jul/dez. 2000. ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 2004 PEREIRA, Mirlei Fachini Vicente. Região – Pluralidade e permanência: Desafios e tendências contemporâneas da categoria em geografia, geografia, Rio Claro, v. 29, n. 03, p. 339-353, set./dez. 2004. ROSA, João Guimarães. No Urubuquaquá, No Pinhém. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 2001. SANTOS, Alberto Pereira dos. Introdução à geografia das religiões. Revista Espaço e Tempo, São Paulo: GEOUSP, n. 11, p.21-33, 2002. SCHIER, R. A. Trajetórias do conceito de paisagem na geografia. In: R. RA’E GA, Curitiba, n.7, p. 79-85, 2003. Editora UFPR. TUAN, Yi-Fu. Topofilia. Tradução por Lívia de Oliveira. São Paulo: Difel, 1983. ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014 2005