4. Música enquanto manifestação cultural e sua relação

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4.
Música enquanto manifestação cultural e sua relação com o
sagrado
“Por isso uma força me leva a cantar, por isso essa força
estranha no ar. Por isso é que eu canto não posso parar (...)”.
Caetano Veloso
Teatro, música, capoeira, pintura, artesanato, religião... São formas de
manifestação da cultura. Sabemos que a cultura é parte essencial de qualquer processo
de transformação social. E cada vez mais a sociedade tem investido na possibilidade de
fazer com que a cultura seja um instrumento eficaz de promoção da inclusão social de
indivíduos expostos a condições de vulnerabilidade e risco social.
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A riqueza e a diversidade das manifestações culturais brasileiras são
incontestáveis e, dentre elas, a música se sobressai pela vocação inata do nosso povo
para o ritmo e para dança. A música é, ainda, um dos aspectos da cultura nacional mais
divulgado, conhecido e admirado. Por isso daremos destaque neste capítulo para ela, a
música.
4.1 -
Algumas concepções da música
A definição de música não é uma tarefa simples porque apesar de ser
naturalmente reconhecida por qualquer pessoa, seus significados e nuances tornam a
questão complexa e altamente intuitiva, que remete ao sentimento e a percepção
individual de cada interlocutor, ou seja, compositores, interpretes e ouvintes.
Mais do que qualquer outra manifestação humana, a música contém e expressa
os sons, que se inserem num determinado tempo histórico e são influenciados
diretamente pelo meio social de onde emergem. Talvez por essa razão ela esteja sempre
fugindo a qualquer rótulo ou definição, pois ao se tentar definí-la, a música já se
modificou, a própria expressão ou audição musical difere de um indivíduo para outro,
depende necessariamente do estado emocional daquele que a expressa, bem como
daquele ou daqueles que a ouvem.
80
É da natureza da música, diz Hegel, colocar o espírito... em
sons dispostos de determinados modos e em determinadas relações,
elevando a expressão a um elemento unicamente feito pela arte e
para a arte. Esse elemento “elevado” em sons organizados quer dizer,
o conteúdo da música é a experiencia que o compositor quer
transmitir: e a experiencia de um compositor nunca é puramente
musical, mas pessoal e social, isto é, condicionada pelo período
histórico em que ele vive e que o afeta de muitas maneiras (Hegel
apud Fischer) 94.
E esse jogo do tempo é simultaneamente físico e emocional. Como uma
expressão artística efêmera, a música não pode ser completamente conhecida e por isso
é tão difícil enquadrá-la em um conceito definitivo. A música representa o cotidiano, o
modo de viver e o comportamento dos indivíduos, reproduz também a natureza e como
manifestação humana busca aproximação com o divino e com o sagrado.
O que é possível estabelecer como consenso, é que ela se manifesta como uma
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combinação de sons e de silêncios, que se harmonizam e se desenvolvem ao longo do
tempo. Neste sentido, compreende uma rica combinação de elementos sonoros
destinados a serem percebidos pela audição. Isso inclui variações nas características do
som (altura, duração, intensidade e timbre) que podem ocorrer sequencialmente (ritmo e
melodia) ou simultaneamente (harmonia).
Reverenciada como uma das mais belas manifetações do homem, a música
suscita os mais elevados sentimentos, pode alegrar ou entristecer, fazer rir ou chorar,
não está presa a manuais estéticos linguísticos ou melódicos, simplesmente expressa
sentimentos, percepções e experiências, vividas e compartilhadas.
Para muitos, a música, tem até mesmo efeito terapeutico95, principalmente para o
tratamento de disturbios comportamentais, como stress e depressão. Compondo,
cantando, ouvindo ou dançando, não importa, os efeitos da exposição à música, são
altamente benéficos, sem nunca ter sido considarada nocível a quem quer que seja, pelo
contrário tem sido amplamente utilizada como instrumento transformador, para
restauração e renovação do corpo e da mente, tão afetados pelo modo de vida moderno.
Segundo Fischer (1983), “A música cuja significação é, em si mesma, a expressão de
94
HEGEL apud FISCHER, E. In A necessidade da arte: Uma interpretação marxista. Tradução de
Leandro Konder. Rio de Janeiro: Zahar Editores,1989.
95
De acordo com a World Federation of Music Therapy, entidade internacional em apoio à
musicoterapia. A prática da musicoterapia busca desenvolver potenciais e/ou restaurar funções do
indivíduo para que ele ou ela alcance uma melhor qualidade de vida, através de prevenção, reabilitação ou
tratamento. Obtido em www.wfmt.info/WFMT/Home.html. Acesso em 03/12/2008.
81
sentimentos, idéias, sensações e experiências possibilita uma nova atitude e um novo
sentido de vida” (1983, 215;222).
O que nos afeta mais diretamente é o potencial transformador que apresenta, não
há como se manter imune aos seus efeitos. Uma vez que ao ouvirmos um som ou
reconhecermos uma melodia, somos irremediavelmente marcados pelo impacto deste
som e passamos a meditar, entender, interpretar, criticar, ou simplesmente ouvir, pelo
simples prazer de ouvir. “(...) O efeito da música é muito mais poderoso e penetrante
que o das outras artes, pois estas falam das aparencias, ao passo que a música fala da
essência”(Fischer, 211-212).
As práticas musicais não podem ser dissociadas do contexto cultural. Cada
cultura possui seus próprios tipos de música totalmente diferentes em seus estilos,
abordagens e concepções do que é a música e do papel que ela deve exercer na
sociedade. Entre as diferenças estão: a maior propensão ao humano ou ao sagrado; a
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música funcional em oposição à música como arte; a concepção teatral, a música
clássica contra a participação espontânea ou festiva da música folclórica e muitas
outras.
Falar da música de um ou outro grupo social, de uma região do planeta ou de
uma dada época histórica, faz alusão a um tipo específico de música que pode conter
elementos totalmente distintos (música tradicional, erudita, popular ou experimental).
Esta diversidade estabelece uma relação de troca entre o músico (compositor ou
intérprete) e o público que deve adaptar sua audição a uma cultura que ele descobre ao
mesmo tempo que percebe a obra artística e musical (Fischer, 1989).
A música passa tanto pelos símbolos de sua escritura (partitura musical), como
pelos sentidos que são atribuídos a seu valor sentimental ou emocional96. Revela-se
como documento histórico, uma vez que retrata o seu tempo, mas ao mesmo tempo
transcende ao tempo e remete ao passado e ao futuro, sem compromisso com datas,
marcos ou a frieza dos calendários.
Se tomarmos como exemplo a música africana, o imaginário religioso e cultural
é o tema mais recorrente, o mito, a magia, os deuses, as crenças e os rituais, fazem a
ligação entre a potencialidade espiritual e a expressão corporal. O ouvinte desta música,
bem como o da música folclórica ou popular participa ativamente ao expressar aquilo
que ouve, através da dança ou do canto grupal, enquanto que um ouvinte de um
96
Fonte www.wikipedia.com.br/música. Acesso em 03/10/08.
82
concerto na tradição clássica ou erudita assume uma atitude contemplativa que quase
inviabiliza sua participação corporal, como se só a sua mente estivesse presente .
Existem vários entendimentos para música, no entanto outro relevante aspecto
do tratamento dado às composições é o que diz respeito ás divisões e agrupamentos
possíveis da música em gêneros, estilos e formas. A divisão da música em gêneros é
uma tentativa de classificar cada composição de acordo com critérios objetivos que nem
sempre são de fácil definição.
Em geral é possível estabelecer um certo grau de classificação para cada
composição musical, mas como a música não é um fenômeno cuja interpretação possa
ser objetiva e direta, cada músico é constantemente influenciado por outros gêneros,
tornando a análise interpretativa subjetiva e complexa. Isso faz com que subgêneros e
fusões sejam criados e assimilados a cada dia. Por isso é preciso considerar a
classificação musical como um método útil para o estudo e comercialização, mas
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sempre insuficiente para conter cada forma específica de produção, muito menos
determinar como será recebida e apropriada pelo público ouvinte (Bacchiocchi, 2000)97.
A divisão em gêneros também é contestada assim como as definições de música
porque cada composição ou execução pode se enquadrar em mais de um gênero ou
estilo e muitos consideram que esta é uma forma artificial de classificação que não
respeita a diversidade e a pluralidade musical.
Outra forma de encarar os gêneros é considerá-los como parte de um conjunto
mais amplo de manifestações culturais. Os gêneros são comumente determinados pela
tradição e por suas apresentações e não só pela música de fato. O Rock and roll, por
exemplo, possui vários subgêneros, cada um com características musicais diferentes que
também incluem caracterização adicional: vestuário, cabelos, utensílios, enfeites e
danças, além de variações de comportamento do artista e dos espectadores. Assim, uma
canção de Elvis Presley, um rock metaleiro ou uma canção pop, embora sejam todas
consideradas formas de rock, representam diversas culturas musicais, símbolos e modos
de vida diferentes (Bacchiocchi, 2000).
97
Bacchiocchi, Samuele. O Cristão e a Música Rock: um estudo dos princípios bíblicos da música.
Tradução Mauro Brandão e Levi de Paula Tavares. EUA: Editor Samuele Bacchiocchi, Biblical
Perspectives 15, 2000.
83
Também a música erudita, folclórica ou religiosa possue comportamentos e
rituais associados, que podem ser interpretados e reinterpretados de modo a produzirem
outras versões, outros significados e outros sentidos.
Antes de qualquer outra noção quanto aos elementos de representação da
música, observamos que ela se caracteriza como expressão artística, esteja ela inserida
em qualquer espaço geográfico, em qualquer tempo histórico, fruto de um determinado
contexto socio-cultural. Consensualmente acredita-se que música é arte, que se
apresenta como uma manifestação estética, mas com especial enfoque no aspecto
emocional. Uma frase que sintetiza esta afirmação é a de Paschoal Bona98, músico
italiano do século XIX: " a música é a arte de manifestar os afetos da alma, através do
som".
Outra caracterização que precisa ser feita, é quanto ao caráter comunicativo da
música, neste sentido talvéz tenhamos um dos maiores potenciais revolucionários que se
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sobrepõe a qualquer outro tipo de manifestação cultural e artística, pois a música é um
poderoso instrumento de transmissão de idéias e opiniões. A música é capaz de
intensificar ou diminuir objetos, sensações e circunstâncias, ela cria e modifica, revela
ou obscurece o que está visível (Fischer, 1983).
Se destacarmos as expressões musicais das civilizações mais antigas, sobretudo
as orientais, vemos que a aproximação com o que é intangível ou imaterial, nubla a
mente e nos afasta do que é racional. De igual modo, este potencial da música, foi
amplamente explorado pela igreja medieval, com o propósito de “levar os crentes a um
estado de contrição e drástica humildade, apagando qualquer traço de individualidade
neles e diluindo-os numa coletividade submissa”(Fischer:1983, p.213). Com outra
motivação mas valendo-se do mesmo método, instituições militares antigas e modernas
também utilizaram-se deste artifício para “produzir emoções coletivas, e igualar
emocionalmente as pessoas por algum tempo”(Fischer:1983, p.212 -213).
No que se refere ao aspecto artístico e cultural, é possível observar que as
manifestações musicais se distinguem pelo estilo, abordagem e concepção, que servem
para determinar qual o papel que a música deve exercer na sociedade. Sendo assim, terá
maior ou menor grau de proximidade com o que é natural ou com o que é sobrenatural
ou sagrado.
98
Pasquale Bona é lembrado especialmente nos métodos de ensino de leitura musical . Seu método global
de divisão ,ainda em uso hoje na preparação para a leitura da música, educou gerações de estudantes para
a correta leitura da música e para os conceitos que formam a base da teoria musical. Obtido em
http://marciorosa.com/erudito/2008/02/. Acesso em 12/01/08.
84
4.2 - Breve resgate histórico da música e sua inserção nas sociedades
Nenhum estudo diz com exatidão o momento em que os primitivos começaram a
fazer arte com os sons. Suspeita-se que já as pessoas das cavernas brincavam com os
sons e davam à sua música um sentido religioso. Consideravam um presente dos deuses,
davam a ela um caráter ritualístico, com ela reverenciavam o sagrado, agradecendo-lhe
a abundância da caça, a fertilidade da terra e das pessoas humanas, as vitórias na guerra
e as novas descobertas (Lieven, 2008)99.
Possivelmente assim nasceu a música, a partir da organização de muitos sons.
Chama a atenção, no entanto, o fato de que a origem da música esteve relacionada com
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a experiência humana com o Sagrado. A palavra música nasceu na Grécia, onde
"Mousikê"100 significava "A Arte das Musas", abrangendo também a poesia e a dança.
A Bíblia, importante documento histórico e livro considerado manual de fé dos
cristãos em todo mundo, descreve que, centenas de anos antes de Cristo, o povo tinha a
música como hábito.
A formação das primeiras comunidades cristãs rompeu com algumas tradições
do Templo. Agora, a música cantada pelos grupos que formaram a chamada igreja
primitiva, recebeu a influência da música de origem grega101. Dessa maneira, a liturgia
cristã passou a misturar as culturas musicais vigentes com os elementos do judaísmo
antigo. Os cristãos começaram a cantar os salmos de Davi ao "modo" das melodias
gregas em língua latina. A música das comunidades cristãs passou a mesclar as diversas
culturas daquela época, passou pelo que se convencionou chamar de processo de
contextualização.
Com a associação da Igreja com o Estado, a partir do Concílio de Nicéia em 325
d.c, vemos a música cristã, ainda mais influenciada pelas músicas e rituais pagãos. Os
99
Guilherme Lieven desde agosto de 1982 é pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil
- IECLB. Atualmente é Pastor Sinodal do Sínodo Sudeste e reside em São Paulo - SP. Obtido em
www.lieven.com.br. Acesso em 15/01/09.
100
em
101
Do Latim musica e do Grego. mousiké, das Musas, das belas-artes, especialmente dos sons. Obtido
www.priberam.pt/dlpo.
Acesso
em
10/02/2009.
Ainda se referindo a antiguidade clássica, vemos os gregos estabelecerem as bases para a cultura
musical do Ocidente. Como os demais povos antigos, os gregos atribuíam aos deuses sua música, como
um meio de alcançar a perfeição.
85
grandes centros da Igreja, Bizâncio, Roma, Antioquia e Jerusalém, eram também os
grandes centros da música, cada qual com sua liturgia musical particular (Lieven, 2008).
Em Roma, por exemplo, temos a criação de um dos maiores símbolos musicais
da Igreja Romana, com rígidos padrões estéticos o canto litúrgico da igreja se
caracterizou pela forma fixa e linear como era entoado. Quem os organizou foi o Papa
Gregório Magno, o que explica o nome de canto gregoriano com o qual se tomou
conhecido esse gênero musical (Lieven, 2008).
A partir da Reforma Protestante do século XVI surge em algumas comunidades
cristãs uma musicalidade nova. Com uma nova teologia e uma nova proposta
comunitária de fé, nasceram também novas formas de cânticos e músicas de adoração e
louvor a Deus. A música passou a ser uma importante ferramenta de divulgação dos
ideais reformadores. Lutero (2000)102, principal líder da Reforma Protestante, percebeu
que poderia usar a música como canal para a proclamação do Evangelho e de sua nova
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proposta teológica, comunitária e eclesiástica.
As origens musicais de Lutero remontam a sua época de infância. Ao ingressar
na vida monástica, teve a oportunidade de conhecer a música dos mestres
contemporâneos e de aprender o canto gregoriano. O ex-monge católico substituiu
vários coros em latim e assim como se esforçou no trabalho de tradução da Bíblia em
linguagem local, também compôs vários hinos em alemão para serem cantados por toda
a comunidade. Um dos mais celebres cânticos da tradição protestante, sem dúvida
nenhuma é “Castelo Forte é o Nosso Deus”
103
, em alemão: “Ein feste Burg ist unser
Gott”, composto por Lutero em 1529, que depois passou a fazer parte da maioria dos
hinários
das
denominações
evangélicas
históricas.
Coube também a Martinho Lutero a incorporação de músicas novas e melodias
populares, ajudando na popularização dos conteúdos e propostas da Reforma. Uma nova
revolução acontecia na prática musical religiosa, tendo nascido aí o canto
congregacional, onde toda congregação participa ativamente dos cultos, cantando os
louvores em sua própria língua. Este momento histórico visa resgatar o comportamento
102
Castelo forte é nosso Deus. Espada e bom escudo, com seu poder defende os seus, em todo transe
agudo (...).A nossa força nada faz, Estamos, sim perdidos; Mas nosso Deus socorro traz, e somos
protegidos (...).Se temos de perder os filhos, bens, mulher, embora a vida vá. Por nós Jesus está e dar-nosá seu Reino. In LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. v. 7. São Leopoldo/Porto Alegre:
Sinodal/Concórdia, 2000.
103
Hinário Cantor Cristão. Sociedade Bíblica do Brasil – SBB, Rio de Janeiro, 2001. A canção “Castelo
Forte é o nosso Deus” é inspirada no texto de Salmos, capítulo 46 da Bíblia Sagrada.
86
dos primeiros cristãos, reunidos em pequenos grupos, que tinham, como agora, um
compromisso com a propagação de sua fé. E para isso, a música produzida, mais do que
sentida, era um instrumento útil para esse fim, qual seja, o de anunciar seus princípios
doutrinários e suas crenças. É o que se lê em Fischer (1989), quando destaca a música
com as características citadas:
A música atua sobre a sensibilidade dos ouvintes congregados,
não no sentido de produzir um sentimento subjetivo indefinido, mas
no sentido de produzir uma emoção coletiva uniforme. O propósito
de semelhante música deve ser o de criar um estado de espírito
definido, a fim de que a comunidade trabalhe em consonância com tal
estado de espírito; sua função deve ser menos a de expressar um
sentimento que a de produzi-lo (1983: p. 214).
Nos séculos XVI e XVII surgiram novas tendências e estilos musicais. Os
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maiores representantes desta época foram J. S. Bach pela igreja luterana e G. F. Haendel
pela anglicana. Até hoje a música sacra tradicional segue critérios dos séculos passados,
marcada pelas tradições e parâmetros herdados do tempo da Reforma (Lieven, 2008).
Ao longo dos séculos seguintes à Reforma, sobretudo a partir dos séculos XIX e
XX, com os movimentos de avivamento na Inglaterra (séc. XIX) e nos Estados Unidos
(início do séc. XX), verificava-se ainda predominantemente a tradição dos hinos
históricos como parte importante dos cultos. No entanto, a partir do final do século XIX
e início do século XX, este quadro se altera em função da crescente onda avivalista e
pentecostal (Campos, 2005; Lieven, 2008)
104
, onde a música esteve associada aos
eventos místicos que acompanhavam esta fase do movimento pentecostal.
Charles Manson105, fundador da Igreja de Deus em Cristo, em 1885, uma das
maiores denominações pentecostais dos Estados Unidos, encorajava a música ritmada
na igreja.
Somente a partir da década de 20 do século passado, percebe-se a influência de
um novo tipo de música tocada nas estações de rádio e posteriormente na televisão, era
o início do chamado gospel song. Esse tipo especial de canção, não congregacional,
pois era composta principalmente para solos, duetos, trios, quartetos e pequenos
104
CAMPOS, Leonildo S. As origens norte-americanas do pentecostalismo brasileiro: observações sobre
uma relação ainda pouco avaliada. REVISTA USP, São Paulo, n.67, p. 100-115, setembro/novembro
2005.
105
MANSON, C. Apud BAGGIO, S. In Revolução na Música Gospel. São Paulo: Exodus, 1997.
87
conjuntos, foi transplantada para os países evangelizados pelos americanos, tal como o
Brasil. Na década de 40, este tipo de música passou a fazer parte das programações
evangelísticas, dos cultos nas igrejas e dos encontros de avivamento (Vasconcelos,
2008)106.
Em meados do século passado, a era do evangelista Billy Graham107 também
ficou marcada pelas canções do tradicional gospel americano. Milhares de pessoas se
convertiam ao evangelho após seus sermões, embalados por músicas que emocionavam
os ouvintes. Nas décadas de 50 e 60, sob a influência do Rock, despontaram
compositores e grupos do chamado gospel folk (regionalistas), ou gospel rock na
Inglaterra. Muitos hinários desta época continham músicas com estas características,
que acabou por revolucionar a música vigente nas igrejas evangélicas, contextualizando
uma linguagem que estava sendo disseminada rapidamente nos círculos não-religiosos,
em decorrência das novas técnicas de comunicação (Vasconcelos, 2008; Lieven, 2008).
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Em alguns segmentos evangélicos, caracterizados por teologias e propostas de
missão distintas, é possível perceber variantes na função da música e, também, na sua
identidade cultural e rítmica.
Nas igrejas pentecostais o destaque maior são as improvisações individuais
durante seus cultos. Nessas igrejas e em outras evangélicas sem um rígido padrão
litúrgico, a forma de apresentação da música sacra contemporânea mais usual é a que
imita os grupos musicais denominados seculares, os quais se colocam no palco à frente
do público com um líder de louvor, que dirige o momento destinado à música e
intercala a execução das canções com pequenos sermões motivacionais. Mas a música
continua a seguir padrões novos e modernos que se modificam constantemente, desta
forma está a serviço do bom andamento do culto, propiciando um ambiente agradável.
Busca envolver a todos os presentes, emociona, mas também faz dançar108.
Os pregadores se beneficiam do momento, criado pela música, e perseguem seus
objetivos pastorais e missionários ancorados a ela. O conteúdo das músicas cantadas
106
Rev. Fábio Vasconcelos é pastor anglicano em Recife - coadjutor da Paróquia do Bom Samaritano,
arquiteto, pós-graduado em História das Artes e das Religiões (UFRPE), Capelão e professor do SAET –
Recife. In Da Sacra à Religiosa: Um breve olhar na história da música protestante. obtidos em
www.musicaeadoracao.com.br. Acesso em 19/12/2008.
107
Billy Graham é pregador evangélico norte-americano membro da Convenção Batista Sulista dos EUA
e reconhecido pelas grandes lideranças evangélicas como o maior pregador do século XX.
108
Informações obtidas através da técnica de observação participante para esta pesquisa, realizada nos
cultos dominicais da Igreja Batista Nova Filadélfia em Praia de Mauá, no período de agosto a setembro de
2008, apesar da nomenclatura batista, a igreja é de orientação pentecostal.
88
está afinado com a teologia e com as propostas missionárias desenvolvidas nessas
igrejas. A música tem a função de criar um ambiente espiritual e emocional para os
pregadores. Nestas igrejas, com grande participação popular que aglutina as diversas
culturas musicais do Brasil, há uma tendência clara de abraçar os ritmos mais populares:
samba, baião, sertanejo e bossa nova109.
Nas Igrejas Neopentecostais a música é um show, está associada à alegria e ao
êxtase, a participação dos presentes se dá de forma efusiva, com aplausos, brados de
louvor e danças, o culto não é uma mera reunião e sim uma grande festa, uma
celebração de júbilo e satisfação. O público canta, dança e em dado momento do culto é
estimulado a adoração110 contemplativa e emotiva, onde são exaltados os atributos, a
justiça e a santidade de Deus. O altar tem a forma de um grande palco, equipado com as
novas tecnologias de luz, som e outros meios de comunicação. A música tem as
características de um produto exposto para ser consumido e comprado, freqüentemente
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estas comunidades lançam Cd’s e Dvd’s, que reproduzem as músicas cantadas nas
reuniões de louvor111.
A estrutura física, a disposição do altar, os instrumentos musicais e a música em
si, estão diretamente associadas às propostas destas igrejas. A igreja precisa estar à
altura de seus membros, com espaço físico atraente e belo, pois ao pregar sobre
realização pessoal, sucesso profissional e bem estar social, atraem cada vez mais
pessoas das classes média e alta acostumadas a ambientes confortáveis e luxuosos. Um
exemplo deste tipo de igreja é a Comunidade Shammah112 de Icaraí, localizada em
bairro de classe média alta, ocupando imóvel de excelente localização em uma das
principais avenidas do bairro, possui estrutura de som e imagem, ar condicionado
central e estacionamento privativo113.
109
Idem a nota anterior (73).
110
Adorar é tipicamente oferecer culto, prostrar-se, venerar e reverenciar a Deus e somente a ele. Nos
últimos tempos temos visto o uso da expressão para representar um tipo de manifestação musical com
músicas com forte apelo emocional e grande potencial de envolver os sentimentos do ouvinte.
111
Informações obtidas em visita realizada na Comunidade Evangélica Shammáh nos dias 04 e 11 de
janeiro de 2009 no culto dominical das 19:30h, através da técnica de observação participante. Em função
da grande quantidade de membros, aos domingos, a igreja oferece três opções de horários de cultos.
112
O nome da igreja representa um dos atributos de Deus (YAVE). Yave Shammáh significa: O Senhor
está ali. Ver Bíblia Sagrada, Livro de Ezequiel, capítulo 48, versículo 35.
113
Idem a nota (92).
89
Com as mesmas características da Comunidade Shammah de Icaraí, o Ministério
Apascentar de Nova Iguaçu, apresenta uma peculiaridade que precisa ser destacada, é o
fato de estar localizado em um município com elevado índice de vulnerabilidade social,
onde a maioria da população é pobre, porém a igreja é conhecida por ter entre seus
membros empresários locais e profissionais liberais bem sucedidos e com bom nível
econômico. A igreja ficou conhecida em todo país graças ao sucesso musical alcançado
pelo “Ministério de Louvor Toque no Altar” formado por membros da própria igreja. O
grupo gravou hits da música gospel, o principal exemplo é o da canção Restitui, cujo cd
com o mesmo título vendeu milhares de cópias e bateu recordes de vendas em todo
país114.
Nestas igrejas a música tem uma roupagem comercial explícita, seguindo
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padrões internacionais. Segundo o teólogo Miguel Ângelo Darino (1992)115:
Tem-se caído no extremo de considerar que um culto em que
não há êxtase emocional é um culto morto, que não tem valor. De
certa forma tem-se perdido o rumo deixando de lado o aspecto
racional e adotando o outro extremo, o subjetivo, emocionalista, e
com um toque especial de mistério (Darino: 1992, p. 87).
A presença da música popular na igreja é trazida pelo próprio movimento
pentecostal com seu enfoque na emotividade. Mas também é resultado de uma
persistente campanha de rejeição do estilo tradicional de música, desencadeada por
líderes, compositores e músicos. Esse movimento de rejeição da música tradicional,
como herança européia e americana, ocorre ao mesmo tempo em que há um resgate das
raízes culturais da própria musica religiosa e cristã, encorajada pelo desenvolvimento da
técnica artística musical e pela possibilidade de fácil acesso á novas tendências típicas
da modernidade. Temos então a fusão do passado com o presente e a construção de
novos ritmos e estilos musicais.
Em outras denominações históricas em que há uma maior atenção à liturgia, o
lugar da música nos cultos e reuniões está melhor definido e por essa razão mais
limitado. Nestas igrejas, a palavra e a racionalidade dos sermões ocupam um espaço de
maior destaque. As músicas cantadas possuem uma característica mais tradicional,
porém a preocupação com o conteúdo teológico é a mesma.
114
Informações obtidas em visita através da técnica de observação participante realizada no Ministério
Apascentar de Nova Iguaçu, no dia 24 de janeiro de 2009 no culto jovem que acontece todos os sábados
às 20h e 00min.
115
Miguel Angelo Darino, La Adoración: analisis e orientación .California: Dime, 1992.
90
A velha música de igreja era indissociavelmente vinculada à
igreja: recebia seu “conteúdo” da liturgia e servia, com magnificência
severa e impessoal, não ao prazer do ouvinte, mas à sua subjugação,
forçando-o a se identificar, de joelhos, com a cauda divina (Fischer:
1989, p. 215).
Nas igrejas históricas, a música não é um show e nem um produto, não está a
serviço do prazer e entretenimento do ouvinte, mas visa provocar sentimentos de
contrição e contentamento espiritual levando-o à oração e reflexão. No entanto seu
tradicionalismo e sua roupagem clássica desagradam os mais jovens e não estimulam a
inserção de novos membros. Mesmo sendo uma peça secundária no contexto de culto, a
música recebe atenção especial e as novas composições são constantemente censuradas
no que se refere ao conteúdo, ritmo e melodia, pois precisam estar vinculadas e
comprometidas com a proposta teológica e litúrgica da igreja. O “conteúdo” da música
de igreja dessa espécie é, pois, determinado pelo texto litúrgico e pelas associações
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produzidas por esse texto: sofrimento divino, pecado humano, e assim por diante”
(Fischer: 1989, p. 214).
Os hinários das igrejas tradicionais são compostos e marcados por canções
históricas e centenárias. A contextualização musical é lenta e cuidadosa. Neste caso é
importante observar que a contextualização da teologia, das declarações de fé e dos
projetos de missão acontecem com maior rapidez do que a atualização e
contextualização da música. A dinâmica da contextualização musical nestas Igrejas tem
um ritmo mais lento, na mesma proporção em que ocorre a revisão do seu espaço e
função nos cultos e encontros116.
Nas últimas décadas, a influência externa produzida pelas músicas tocadas nas
rádios evangélicas, aliada ao ritmo acelerado das descobertas de novos sons, acordes e
melodias, propiciado pela velocidade da informação em nossa era digital, tem levado as
igrejas mais conservadoras e tradicionais a um processo em que se confronta o passado
e o presente.
Como alcançar novos membros sem a contextualização da música que se canta?
Expressões antigas que já não representam a fala do povo, não alcançam mais as
mentes, como poderão alcançar os corações? São questões postas e que precisam ser
respondidas pelos líderes destas igrejas, de forma a dar mais eficiência a sua tarefa de
116
Informações obtidas em visita realizada em dois cultos dominicais (07 e 14 de dezembro de 2008) na
Igreja Batista Central de Praia de Mauá, através da técnica de observação participante para esta pesquisa.
A fim de constatar as características de uma igreja de orientação tradicional histórica.
91
ganhar novos adeptos, assim precisam atualizar suas músicas, pois as mentalidades
estão em um processo constante de transformação e mudança.
A contextualização e a atualização das letras das canções e hinos de uma igreja
acompanham o conteúdo das teologias pregadas, dos projetos evangelísticos a que se
propõe. Nas décadas de 70 e 80, nas denominações e nos movimentos católicos que
tiveram sua base na Teologia da Libertação117, os cantos e os hinos, falavam de luta em
favor dos pobres e oprimidos e convocava os cristãos a se engajarem nesta luta contra a
injustiça, a desigualdade e a opressão dos mais fortes. Os textos dos hinos tinham um
conteúdo marcado pelos parâmetros do ecumenismo porque vários movimentos e
denominações atuavam na mesma proposta e a maioria das causas era comum. Neste
caso a adoração proposta pelas canções passava por uma contextualização exigida pela
teologia e pelo projeto missionário específico (Lieven, 2008).
Outro exemplo é a preocupação das lideranças musicais e dos dirigentes de
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louvor das Igrejas Evangélicas com a educação espiritual dos jovens. Ao buscarem a
conversão espiritual e a evangelização dos jovens apóiam e investem nas músicas
evangélicas com as características da música "pop". Defendem o canto como um
veículo poderoso para a conversão, o discipulado e o crescimento espiritual da
juventude. Para atingir os seus objetivos adotam o mesmo conteúdo e a mesma
linguagem que circula nas rádios, televisões e internet, sem priorizar a coerência com
princípios doutrinários e o conteúdo teológico (Baggio, 1997)118.
Atualmente, com a pluralidade e a diversidade religiosa e cristã, a música,
combinada a este fenômeno, assume formas múltiplas com estilos e ritmos modernos,
novas linguagens e formas de conteúdo. Segundo Fischer (1983):
O conteúdo da música é muito diversificado, característica que
distingue a música das demais artes. É um conteúdo esquivo,
notavelmente escorregadio. Mas justamente porque é assim, o
desenvolvimento vindouro da música será determinado pelo grau em
que ela expressar uma nova atitude, um novo sentido de vida, uma
nova inteligência de uma nova comunidade (1983, p. 222).
É preciso considerarmos também, o avanço tecnológico dos instrumentos
musicais, com maior amplitude de sons e efeitos, capazes não só de reproduzir notas e
acordes, como também de amplificá-los e modificá-los.
117
Ver em BOFF, L. Como fazer Teologia da Libertação. 8a edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2005.
Ver em BOFF, L. Jesus Cristo Libertador. 18a edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2003.
118
Sandro Baggio. A Revolução na Música Gospel. São Paulo: Êxodos, 1997.
92
Geralmente nas igrejas a música não é o elemento norteador de sua trajetória. A
música se define a partir dos propósitos da igreja. Como arte e serviço ela é
conseqüência e não causa. Segundo Lieven (2008) a música;
Tem o poder de ensinar, congregar, sintonizar, acalmar, animar;
também de facilitar o diálogo para além da razão, para além do
objetivo e do óbvio. Ela é simples e matemática, mas,
simultaneamente, complexa, múltipla; transcende aos horizontes
possíveis das melodias, ritmos, culturas e regras fixas. A música é
amiga da pluralidade e da beleza, do amor e do poder de Deus.
Certamente, por isso ela é serviço, instrumento, motivação e conteúdo
de evangelização... os hinos119 que surgiram a partir da Reforma
sustentaram a fé de famílias migrantes isoladas em povoados e
colônias; as melodias e os conteúdos acalmaram a saudade e tomaram
forma de culto a Deus na ausência da igreja.
Nas denominações evangélicas brasileiras observa-se a preocupação com a
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diversidade regional, com aspectos sociais que não podem ser ignorados, por estarmos
falando de um país com dimensões continentais e múltiplas manifestações culturais.
Para dar conta deste diferencial é fundamental que exista uma pluralidade musical.
Somam-se a isso outras questões que diferenciam o público alvo da mensagem musical
como idade, sexo, atividade profissional... Há pessoas interessadas em alívio para os
problemas sentimentais, outras buscando alcançar a solução para os problemas
financeiros. Há ainda as divergências culturais, que nem mesmo a divisão etária dá
conta, por exemplo: temos os jovens com a influência americana e os jovens com a
influência da cultura rural ou sertaneja.
Os povos com culturas e tradições diferentes desenvolveram valores e bens
subjetivos culturais e religiosos também diferentes (Geertz, 1989)). Por exemplo, quem
nasceu ouvindo samba ou se acostumou com os batuques do timbal não entenderá, sem
nenhuma iniciação e convivência, a linguagem do órgão clássico.
O que são ritmos mais leves e suaves melodias para uns, podem ser sons
desconexos e música sem qualidade para outros, ou simplesmente barulho. Esta é a
conseqüência direta da diversidade e da pluralidade. Dificilmente até mesmo em uma
mesma igreja ou comunidade haverá consenso. Uns se identificam e se emocionam com
119
Os hinos evangélicos são expressões musicais que se tornaram símbolos de integração entre os crentes
de diversas denominações, como exemplos podemos citar o Hinário Cantor Cristão, mais utilizado pelos
Batistas e a Harpa Cristã, uma importante expressão de identidade das Assembléias de Deus.
93
o samba, com o rock, com o pop ou com o ritmo e a sonoridade das músicas regionais
(sertaneja). Outros apreciam ouvir e sentem prazer com a música acompanhada pelo
piano clássico. Já outros, não conseguem entender e se recusam a ouvir este instrumento
tão arcaico (Lieven: 2008).
No entanto, é preciso cultivar e valorizar o legado e a herança obtida a partir de
todas as referências musicais, antigas ou modernas, pois estão diretamente envolvidos
com a inigualável sensação prazerosa que só a música pode proporcionar. E isso só é
possível ao desenvolver-se a sensibilidade musical.
Nos últimos anos, temos assistido o surgimento do fenômeno da popularização
da música religiosa, que como reflexo da modernidade, passa a denominar-se,
principalmente pelos mais jovens, de música “gospel”, ou “gospel music”, como
preferem os adeptos da cultura norte-americana (Baggio, 1997). Em função da
especificidade do tema e por estar inserido no tempo presente, sua abordagem se dará
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no próximo tópico onde será detalhado com especial atenção.
4.3 - Música Gospel como expressão do evangelho
O termo Gospel (junção de God e spell) pode ser traduzido como “palavra de
Deus”. É música de origem negra, nascida no final do século dezenove nas igrejas
evangélicas do sul dos Estados Unidos. Em sua forma original era geralmente
interpretada por um solista, acompanhado de um coro e um pequeno conjunto
instrumental. Grandes intérpretes da música norte-americana começaram assim, como
cantores de gospel nas igrejas. É o caso de Mahalia Jackson, Bessie Smith e Aretha
Franklin, além de Ray Charles (Lieven, 2008; Baggio, 1997).
O gospel é a evolução do spirituals120 que eram canções cantadas pelos escravos
negros africanos que viveram principalmente no sul dos USA. Essa música tinha letras
tristes que falavam das lutas diárias que os escravos passavam e tinham como temática
teológica fundamental as histórias registradas no Antigo Testamento. Seus hinos
120
Os spirituals foram cantos originários do movimento de avivamento da América do Norte, ocorrido
entre 1740 e o final do século XIX. O termo faz parte da expressão spiritual songs, que, nas primeiras
publicações americanas, significava os hinos que não pertenciam à categoria dos salmos métricos nem à
dos hinos tradicionais sacros. In Rev. Fábio Vasconcelos. Da Sacra à Religiosa: Um breve olhar na
história da música protestante. Obtido em www.musicaeadoracao.com.br. Acesso em 19/12/2008.
Ver também em Bacchiocchi, Samuele. O Cristão e a Música Rock: um estudo dos princípios bíblicos da
música. Tradução de Mauro Brandão e Levi de Paula Tavares. USA: Editor Samuele bacchiocchi,
Biblical Perspectives 15, 2000.
94
expressavam o anseio pela vida após a morte, onde deixariam todos os pesares da vida
terrena para morarem eternamente com Cristo no céu. É o tema do hino de número 2121
da Harpa Cristã, tradicional hinário das Assembléias de Deus no Brasil, composto em
1918, por Thoro Harris(1874-1955) e traduzido por Adriano Nobre.
A música gospel moderna, ou melhor, o gospel music, começou a surgir mais ou
menos por volta do século XX. Esta tem como tema principal a “alegria de estar com
Cristo e agradece a Deus pelo perdão dos pecados” (Vasconcelos, 2008). Com o passar
dos anos passou a falar mais sobre os temas da atualidade, tratando do comportamento
dos cristãos evangélicos e das questões do seu cotidiano, sem se afastar de seus
principais objetivos, ou seja, louvar a Deus e evangelizar os não convertidos.
Muito influenciada pela música negra americana, a música gospel extrapolou os
limites dos templos e igrejas, e foi o gênero responsável pelo surgimento de diversos
artistas e grupos musicais. É o caso dos quartetos gospel, surgidos após a segunda
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Guerra Mundial, com sua música gritada, sua dança cheia de sacolejos e roupas
coloridas, bem ao gosto da época. Nesta fonte foi beber o rock dos anos 50, desde Bill
Halley e seus cometas, até Elvis Presley. Só para destacar o rei do rock, temos o
“Elvis”, elétrico e dançante e o “Elvis”, introspectivo e religioso, sua mãe era batista e
sua infância foi toda influenciada pela música cristã dos coros das igrejas.
(...) Um aspecto paradoxal da carreira musical de Presley era
sua obsessão pelo fetichismo religioso. Ele passava horas lendo a
Bíblia em voz alta e forçava os visitantes a irem a uma casa
convertida em igreja na sua propriedade de Graceland, para se
sentarem e escutarem suas leituras. Ao longo de sua carreira Presley
teve quartetos gospel fazendo o vocal de sua música. Nos anos da sua
juventude Presley freqüentou uma igreja Batista negra em Memphis
(East Trigg), Tennessee, onde estudou as respostas das pessoas à
música rítmica. Presley impregnou-se com o estilo gospel de cantar
122
(Bacchiocchi: 2008, p. 78) .
Como exemplo deste Elvis religioso, temos a canção “My Way” inicialmente
gravada por Frank Sinatra, que foi magistralmente interpretada por Presley, pouco antes
de sua morte.
121
Oh! Que saudosa lembrança tenho de ti, ó Sião. Terra que eu tanto amo, pois és do meu coração.
Eu para ti voarei, quando o Senhor meu voltar. Pois Ele foi para o céu e breve vem me buscar. Sim, eu
porfiarei por essa terra de além; E lá terminarei as muitas lutas de aquém; Lá está meu bom Senhor, ao
qual eu desejo ver; Ele é tudo p’ra mim, e sem Ele não posso viver.
122
BACCHIOCCHI, Samuele. O Cristão e a Música Rock: um estudo dos princípios bíblicos da música.
Tradução de Mauro Brandão e Levi de Paula Tavares. EUA: Editor Samuele bacchiocchi,Biblical
Perspectives 15, 2000.
95
Comercialmente e na forma que tem atualmente, o gospel estourou nos Estados
Unidos a partir dos anos 70. O rock passa a ser o carro chefe da música gospel. Mas
outros ritmos como o funk e o reggae também são por ela adotados (Bacchiocchi,
2000). Aos poucos, além do rock, a música gospel assimilou outros ritmos como samba,
pagode, frevo e baião.
No Brasil, quando as primeiras igrejas evangélicas aqui se instalaram, elas
trouxeram os seus hinos que foram traduzidos para o português e cada igreja então
produzia um livro com uma seleção de hinos traduzidos (Lieven, 2008).
A igreja Batista usa até hoje o “Cantor Cristão”, a Assembléia de Deus utiliza a
“Harpa Cristã”, outras igrejas instituíram seus hinários, porém os mais conhecidos são
sem dúvida o Cantor e a Harpa, muitos dos hinos históricos estão presentes em ambos
os hinários.
Em meados dos anos 80 houve por parte dos músicos e pastores uma
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preocupação maior com a qualidade das músicas cantadas e tocadas nas igrejas e com a
falta de canções compostas pelos próprios brasileiros, foi quando então começaram a
incentivar a composição de músicas surgindo os “corinhos” que eram cânticos menores,
com linguagem simples e direta e compostos em sua maioria por músicos e cristãos
brasileiros (Baggio, 1997). Dentre estes um dos principais nomes foi sem dúvida o
cantor e compositor Asaph Borba123. O músico compôs dezenas de corinhos entoados
em diversas igrejas, de variadas denominações históricas e pentecostais. Uma de suas
canções mais famosas é “Jesus em tua presença124”.
Essa música, é um típico exemplo de corinho congregacional, com uma
linguagem de fácil assimilação, com rimas livres e poucas estrofes que passaram a
substituir nos cultos os hinos históricos, longos demais e com muitas palavras em
desuso.
Esta mudança acabou por representar uma revolução nas igrejas, no aspecto da
própria ordem de culto, saem de cena os órgãos e pianos clássicos e entram no cenário
123
Músico de reconhecimento no meio evangélico tendo iniciado seu ministério há mais de 25 anos. É
visto como precursor da revolução causada pela introdução no cenário musical gospel dos chamados
“corinhos”, canções de adoração e celebração, cantados nas congregações evangélicas de todo o país.
124
Jesus em Tua presença, reunimo-nos aqui. Contemplamos tua face e rendemo-nos a ti. Pois um dia tua
morte. Trouxe vida a todos nós. E nos deu completo acesso ao coração do Pai.
E o véu que separava já não separa mais; A luz, outrora apagara agora brilha e cada dia brilha mais.
Só prá te adorar e fazer Teu nome grande. E te dar o louvor que é devido. Estamos nós aqui.
96
musical a guitarra, o contra-baixo, a bateria etc. Porém, as mudanças não agradavam a
todos, principalmente aos mais velhos.
Neste contexto, ainda em plena década de 80 do século passado, especialmente
um grupo musical, despertava sentimentos de repulsa nos cristãos mais ortodoxos e
conservadores, tudo isso só pela divulgação de seu nome “Rebanhão”125. Formado por
jovens músicos, revolucionou a música evangélica com suas letras e acordes avançados
demais para os padrões da época. Uma das músicas de maior destaque e que causou um
intenso debate sobre a presença de ritmos populares nas igrejas foi à canção “Baião”126
composta por um dos integrantes da banda.
A canção aborda temas sociais, como violência e pobreza, mas também destaca
a necessidade do homem buscar Deus. Caracteriza-se pela pouca preocupação com a
estética e a escrita, chegando a utilizar expressões irônicas e até mesmo gírias e jargões
populares. Preocupava-se mais com o conteúdo crítico e engajado com os problemas
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que envolvem o cotidiano dos ouvintes.
Nos anos 90, o Brasil passava por um processo de redemocratização e nas
igrejas foi crescendo a tolerância a novos estilos de música. Neste período, do seio de
algumas igrejas históricas e pentecostais, surgiram lideranças espirituais que passaram a
estar comprometidas com uma nova interpretação teológica, sobretudo na questão da
aplicação dos dons espirituais, e de forma secundária mas também importante passaram
a rever o papel das músicas nos cultos.
Temos então a consolidação do movimento surgido na década anterior com a
afirmação das igrejas neo-pentecostais que caracterizam-se por seus cultos em galpões e
lojas superlotadas, onde os presentes participam ativamente das reuniões, verdadeiros
shows gospel, onde o papel da música é fundamental. As bandas e grupos musicais,
também chamados de “Ministérios de Louvor”, se expressam através de canções com
125
A banda surgiu na década de 80, com vários estilos de música que incluíam baião, bossa nova e rock.
Obtido em http://br.geocities.com/marcas_musicais/gospel.html . Acesso em 10/01/2009.
126
Minha vida aqui era muito louca. Só faltei correr atrás de avião, mas Jesus entrou no meu deserto e
inundou o meu coração. Eu era magro que dava dó. Meu paletó listrado era de uma listra só. Mas Jesus
entrou no meu deserto e inundou o meu coração. Sem Jesus Cristo é impossível se viver neste mundão
até parece que as pessoas estão morando no sertão. É faca com faca, é bala com bala, metralhadoras e
canhões. Até parece que a faculdade só tá formando lampião. E lampião e lamparina, vela acesa e
candeeiro. Nunca vai salvar ninguém e ainda se vai gastar dinheiro. E o dinheiro anda mais curto do que
perna de cobra filosofia de malandro: "No bolso ele bota mas nunca sobra". E o que tá fartando de amor,
tá sobrando iniquidade, todo mundo se odiando pelas ruas das cidades. Se essas ruas, se essas ruas
fossem minha, eu pregava cartaz, eu comprava um spray escrevinhava nelas todas Jesus is the only way.
Jesus é o único caminho pra quem quer morar no céu quem quiser atalhar vai pro beleléu!
97
forte impacto emocional, conduzindo os participantes, em sua maioria jovens, a
demonstrações de sentimentos de alegria e contentamento. Como exemplo podemos
citar várias comunidades surgidas neste período, tais como: Comunidade da Zona Sul,
Comunidade Evangélica de Nilópolis e Comunidade da Vila da Penha, entre outras.
A Comunidade Evangélica de Nilópolis, liderada pelo jovem Pastor Marcus
Vinicius, no ano de 1998 bateu todos os recordes de vendas de cds e fitas K7 com a
música “Não há Deus Maior”127, de composição do próprio pastor Marcus Vinicius. A
música passou a ser tocada em todas as rádios evangélicas de norte a sul do país e
cantada nas mais diversas igrejas e denominações.
A canção caracteriza-se pela simplicidade dos versos e tem como tema principal
a adoração a Deus por sua grandeza e por seus feitos.
Atualmente observa-se um processo de consolidação da música gospel como um
segmento musical altamente rentável, com um público consumidor exigente e fiel. As
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músicas extrapolaram os limites dos templos e cada vez mais avançam e tornam-se
conhecidas inclusive pelos não evangélicos. Recentemente a música “Faz um milagre
em mim” (Como Zaqueu)128 é uma das canções mais executadas nas rádios evangélicas
como também nas emissoras seculares. Tornou-se um fenômeno de popularidade tendo
sido cantada em coro até mesmo no Terreirão do Samba em pleno Carnaval carioca de
2009129.
Mais uma vez o tema se refere à necessidade de mudança completa de vida,
possível através do milagre que Deus opera no homem, é marcada também pelo
contraste entre a condição limitada do homem e o grande poder de Deus.
Hoje, o Prêmio Grammy na América do Norte, considerado o Oscar da música,
inclui a categoria gospel. A cantora gospel brasileira Aline Barros recentemente recebeu
o Prêmio nesta categoria.
127
Não há Deus maior, Não há Deus melhor Não há Deus tão grande Como nosso Deus Criou os céus,
Criou a terra Criou o sol e as estrelas Tudo ele fez, tudo criou Tudo formou. Para o seu louvor Para o seu
louvor Para o seu, para o seu Para o seu louvor.
128
Como Zaqueu eu quero subir. O mais alto que eu puder, só pra te ver, olhar para Ti; E chamar sua
atenção para mim. Eu preciso de Ti, Senhor, eu preciso de Ti, Oh! Pai. Sou pequeno demais, me dá a Tua
paz, largo tudo pra te seguir. Entra na minha casa, entra na minha vida. Mexe com minha estrutura
sara todas as feridas, me ensina a ter Santidade, quero amar somente a Ti, porque o Senhor é o meu bem
maior, faz um milagre em mim. Esta música é de autoria do cantor e compositor evangélico Regis
Danese, mas também foi gravada com sua participação pelo grupo de pagode Pique Novo, dando à
música uma interpretação nova em ritmo de pagode.
129
Notícia veiculada na 2ª edição do telejornal RJ TV da Rede Globo de televisão, no dia 24 de fevereiro
de 2009.
98
Com o passar do tempo os processos de assimilação e mudança foram sendo
incorporados e inseridos nas igrejas, umas adotando um comportamento mais moderno,
outras mantendo um padrão musical mais conservador. No entanto, é inegável a
popularização e o avanço da qualidade musical do gênero gospel no Brasil e no mundo.
No próximo capítulo estaremos descrevendo a trajetória da Banda Gospel Javé
formada dentro da prisão. A música aliada à fé desempenhou um papel determinante na
vida desses integrantes da banda, pois possibilitou mudança de comportamento,
construção de novas identidades e uma carreira musical profissional. Hoje são todos
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cidadãos egressos.
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