FILOSOFIA E EXPERIÊNCIA Luís Carlos Valério1 Katiuska Izaguirry Marçal2 Elisete Medianeira Tomazetti3 Resumo: Neste texto, procuramos articular os objetivos e o planejamento propostos para o ensino de Filosofia nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio com a nossa experiência dentro da pesquisa relativa ao projeto “Filosofia, Cultura Juvenil e Ensino Médio”, além de uma observação mais específica a respeito dos papéis do aluno/estudante e do professor. Ao modo de uma caracterização, ainda que sintética, procuramos ver de que maneira esses papéis poderiam se ajustar com o propósito de um novo modo de fazer Filosofia dentro da escola. Para tanto, tomamos do pensador Jorge Larrosa algumas concepções interessantes e bastante oportunas à nossa problemática, tais como a tensão “informação-opinião” e a “experiência”. Esta nos remete a questionar a centralidade dos objetivos e das finalidades pretendidos para o ensino da Filosofia em nossas escolas, e a defender o lugar da atividade filosófica como sendo de travessia, de construção, de percurso; numa palavra, como sendo meio e não fim. Palavras-chave: Filosofia. Ensino Médio. Experiência. As orientações Este trabalho se inicia com a reflexão sobre o texto das Orientações Curriculares para o Ensino Médio4 e a tentativa de relacionar aquelas idéias ao cenário delineado pelas informações provenientes da nossa pesquisa no projeto “Filosofia, Cultura Juvenil e Ensino Médio”. As colocações do referido documento do Ministério da Educação apontam para a 1 Graduando do Curso de Filosofia, UFSM, bolsista PIBIC, e-mail: [email protected] Graduanda do Curso de Filosofia, UFSM, Bolsista PROLICEM, e-mail: [email protected] 3 Professora do Departamento de Metodologia do Ensino, do Centro de Educação da UFSM e coordenadora geral do Projeto “Filosofia, Cultura Julvenil e Ensino Médio”. 4 “Ciências humanas e suas tenologias”. Secretaria de Educação Básica – Brasília: Ministério da Educação, Secretaria da Educação Básica, 2006. (Orientações curriculares para o ensino médio; v. 3) 2 2 prioridade – ainda precariamente alcançada – do aprendizado do pensamento filosófico sobre a mera assimilação de conteúdos. Propomo-nos a analisar as diretrizes para o ensino de Filosofia, sob a ótica da exiquibilidade dos seus objetivos e da eficácia dos seus resultados, e um novo modo de fazer Filosofia, preservando o télos dessa atividade dentro dos seus próprios meios. O trabalho filosófico do conhecimento incessante e duradouro. As Orientações Curriculares elegem a capacidade de apropriar-se do conhecimento e da autonomia do pensamento como pontos-chaves da atividade filosófica e, por conseguinte, do próprio fazer no mundo do trabalho e do exercício da cidadania. Neste sentido, propõem um planejamento de ensino aos professores de Filosofia. Os objetivos deste planejamento, as OC5 denominam competências e habilidades, e dizem respeito a um fazer (e dar destino) à especificidade dos conteúdos próprios da História da Filosofia, a saber, a tradição do pensamento filosófico em seus textos clássicos. Da mesma forma, atividades e características que sugestivamente devem fazer parte de uma espécie de personalidade filosófica a ser desenvolvida durante a escola média, com vistas a um comportamento ideal à sociedade democrática, também estão presentes nas OC. São as seguintes, as competências e habilidades: 1)Representação e comunicação: Ler textos filosóficos de modo significativo. Ler de modo filosófico textos de diferentes estruturas e registros. Elaborar por escrito o que foi apropriado de modo reflexivo. Debater, tomando uma posição, defendendo argumentativamente e mudando de posição em face a argumentos mais consistentes. 2) Investigação e compreensão Articular conhecimentos filosóficos e diferentes conteúdos e modos discursivos nas ciências naturais e humanas, nas artes e em outras produções culturais. 3) Contextualização sociocultural Contextualizar conhecimentos filosóficos tanto no plano de sua origem específica quanto em outros planos: pessoal-biográfico; o entorno sócio-político, histórico e cultural; o horizonte da sociedade cientifico-tecnológica. 5 Orientações Curriculares. 3 O acesso a tais competências se dá pela característica prática dessas determinações. Neste sentido, elas se referem a ações e capacidades de ordem subjetiva que pretendem roubar mais espaço ao formato, ainda vigente, que cuida somente dos conteúdos e conhecimentos objetivos. Isto se deve a novas maneiras de encarar a Filosofia, de entendêla como co-responsável na formação do estudante à assunção de suas responsabilidades e desafios na sociedade. Desta forma, a Filosofia ocupada com a prioridade aos conteúdos cede lugar à nova proposta de um exercício filosófico, que exige um certo labor, no sentido de dar vazão ao envolvimento do aluno com problemas cotidianos que lhe afetam diretamente. Competência(s) para a cidadania De que competência(s) estamos falando, quando provenientes de orientações elaboradas pelo Ministério da Educação, para a disciplina Filosofia no ensino médio? Sem vacilar, podemos crer em orientações que visem, no conjunto, à formação educacional para o bem maior da sociedade brasileira; não necessariamente o melhor para o cidadão, o indivíduo. A questão “qual a contribuição específica da Filosofia em relação ao exercício da cidadania para essa etapa da formação?” (p.26), aponta para a atribuição própria da disciplina neste processo formativo mais amplo, que visa uma atuação para além da escola. Por isso, fazemos questão de localizar o desenvolvimento e mesmo a avaliação das competências e habilidades no âmbito da disciplina. Para tanto, temos indicadas as competências de “análise”, “reconstrução racional e crítica”, “compreensão” de textos de qualquer tipo e “emitir opiniões acerca deles”, como competências que se revelariam através da fala, da leitura e da escrita, e que seriam imprescindíveis ao exercício da cidadania. De forma quase axiomática, fica estabelecido pelas OC, que por estas predicações e aquelas acima mencionadas, e desincumbida a Filosofia de assumir, solitariamente, a responsabilidade pela formação solidária e tolerante do indivíduo, podermos ter, senão um cidadão, ao menos um indivíduo apto ao exercício da cidadania ao final do ensino médio. Preocupam-nos os objetivos centrais (e não o planejamento) das OC presos aos objetivos mais gerais para o ensino médio. São eles, de duas ordens: a prioridade à 4 formação do indivíduo para o exercício da cidadania e o seu preparo para o trabalho. Chamamos atenção à correspondência direta que as OC estabelecem entre estes objetivos e as competências e habilidades a serem desenvolvidas com a Filosofia em sala de aula. A isto podemos perguntar: se cumprida, plenamente, a lista de competências e habilidades a serem desenvolvidas com a Filosofia, podemos esperar a resultante “cidadãos aptos ao exercício da cidadania e preparados ao trabalho?” Por que levantamos essas questões? Pela razão óbvia de que não nos interessa perder nunca de vista aquilo que deve ser o trabalho filosófico, a partir do seu lugar único, natural, que a sua própria história inscreve. O motivo de tais preocupações assenta-se no caráter das finalidades das OC com a Filosofia no ensino médio. Acreditamos que o verdadeiro labor filosófico não se encontra nos fins, mas nos meios. E para estes, reconhecemos que as OC contribuem, como já mencionamos, na forma de um planejamento. Numa palavra: da Filosofia, ou com a Filosofia, não podemos almejar resultados objetivos e específicos ao modo daqueles consentidos pelas OC, mas tantos mais que se vão formando com o próprio lidar filosófico, que em última instância, pertence, primeiramente, ao indivíduo e não ao seu mundo ou ao mundo do trabalho. Filosofia, escola e experiência Nossas preocupações trazem um olhar atento e temeroso a toda fórmula capaz de reduzir o trabalho filosófico a uma resultante programada. Incômoda e necessariamente, temos que nos acostumar aos “choques” ocasionados entre uma “Filosofia estatuída” (leiase, aquela dos programas oficiais de ensino) e uma “Filosofia exuberante” (a do legado da tradição, fonte do pensamento e da vida). Que Filosofia chega hoje na sala de aula? A nosso ver, nenhuma destas duas. Dada a extensão dos problemas, explicar as razões disto transformaria este breve trabalho num livro. Assim, procuraremos abordar, minimamente, algumas posições que possam desenhar um caminho mais saudável à presença da Filosofia na escola, e que a autorize a adentrar a sala de aula na condição de quem é ansiosamente esperado. Existem três personalidades nesse enredo: o estudante, o professor e a própria Filosofia. A presença da Filosofia na escola é a de uma disciplina que funciona como meio necessário dentro de um processo (educação institucional), que pede por resultados à 5 Educação e à segurança do desenvolvimento do país. Neste coletivismo, devemos perguntar: quem é este jovem que freqüenta o ensino médio, especialmente as aulas de Filosofia? Que tradução do “seu” mundo seria mais esclarecedora, mais rica? Do jovem e do seu mundo, interessa-nos por hora (admitindo que de forma sintética) um dos seus perfis, talvez o mais vertiginoso e mais institucional 6: o de jovem mediato-midiático. Mediato (termo corrente na Filosofia), aquele que é condicionado e dependente de outro. Midiático, porque a sua (a nossa) cultura inexiste sem as mídias. Estas características se sobressaem quando nos deparamos com dados7 que demonstram que a maioria esmagadora dos estudantes assiste à televisão, possui celular, lê jornal e acessa a internet8. Nisto inferimos que eles se suprem de todo o tipo de informação, seja pela velocidade da mídia, ou por sua descartabilidade – o jornal, por exemplo, está, curiosamente, empatado com o celular em segundo lugar. Estes veículos só perdem para a caixinha de pandora. O vórtice de informações que perpassa o nosso jovem mediatomidiático está longe de lhe significar a possibilidade de conhecimentos substantivos. Aquele que Larrosa denomina de “sujeito moderno”9, bem pode ser o nosso jovem em questão. Um sujeito da tensão informação-opinião, que se atualiza sem se atualizar, que permanece, mas nunca está, sujeito de proposições haicai-hifi, da fala e da escrita quasecriptográficas, que empresta sua opinião e nos surpreende, às vezes, com o seu espanto (ninguém é menos predisposto ao espanto do que o jovem). Nosso “sujeito moderno”, jovem/adolescente, estudante do ensino médio, aluno10 em Filosofia, não pode continuar fazendo Filosofia como vem fazendo. Podemos imaginar o aluno como um autodidata? Não. Lógico que não. Fundamentalmente, ele vai à escola para aprender. E se é verdade que o maior aprendizado 6 Referimo-nos à instituição “Adolescência”, “Juventude”. Da pesquisa (questionários e entrevistas) no projeto “Filosofia, Cultura Juvenil e Ensino Médio” (UFSM/RS). 8 A pesquisa mostra que 41% deles já possuem computador em casa. 9 LARROSA, Jorge. Linguagem e educação depois de Babel.Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 159. 10 Historicamente, não é sutil a diferença entre aluno e estudante. Não obstante os dicionários tornarem estes termos como sinônimos, a história de aluno é bastante curiosa. Vejam o que diz Paul Veyne em “História da Vida Privada” (p.89): “os romanos gostavam de ter em casa um menino ou uma menina, jovem escravo ou criança encontrada, que criavam (alumnus, threptus) porque o “mimavam” (deliciae, delicatus) e o achavam engraçadinho; tinham-no consigo durante os jantares, brincavam com ele, suportavam-lhe os caprichos; às vezes davam-lhe uma educação “liberal”, reservada, em princípio, aos homens livres.” Qualquer semelhança é mera coincidência. 7 6 atende, em última análise, à realização de uma auto-aprendizagem, também é verdade que esta é seguida de perto pela figura do professor. Eu acho que, além dos alunos não se interessarem, os professores não fazem a aula ser uma coisa interessante, (...) a aula tá uma bagunça e eles não se impõem, não falam nada assim, vão passando coisa no quadro e falam só pro quadro mesmo. Então, daí, tu não acaba se interessando e os professores acabam deixando por isso mesmo. Ninguém se interessa e acha que a matéria é muito fácil e chega na prova e bota qualquer merda (sic) e eles dão certo ainda. (aluno do 1º ano). Como o professor falou: tratar a filosofia, tu trata a filosofia com dez pessoas, com sete, dez no máximo dentro duma sala, e dentro da sala de aula tem trinta pessoas. Então não são as trinta que gostam da filosofia. Daí fica difícil: ele tá tratando dum assunto legal e às vezes tem gente conversando, daí tu tem um trabalho pra fazer, e muito mais difícil tu passar pro papel o que tu tá pensando do que falar o que tu tá pensando (...) Acho que isso é uma parte difícil na sala de aula (aluno do 2º ano).11 Quando escutamos nossos entrevistados, sem esquecer do que falávamos há pouco sobre a tradução mais esclarecedora ao mundo do jovem estudante, vemos quantos apontamentos, subenunciados, podem ser extraídos dessas falas. O aluno aí está, fazendo uma análise de si, do seu grupo, dos professores e da própria disciplina. O olhar revelado nestas e em outras falas, é de um estudante ora acomodado, ora desconfortável, ora premiado, ora prejudicado por um estado de coisas que conspira contra seu crescimento. Um projeto, um roteiro, o vislumbre de um caminho a ser implementado, se esconde por trás dessas falas, e revelam a urgência de uma mudança. Apenas pela iniciativa da mudança, professores e (alunos)12 estudantes saltariam do estado de sujeitos da informação/opinião para o de sujeitos da experiência. Como dizíamos, não é possível o estudante continuar aprendendo filosofia (será que estão aprendendo ou apenas recebendo informações sobre filosofia?) como vem fazendo na escola. A despeito de tudo o mais, professor e aluno são convocados a promover o ato da 11 Essas falas são parte integrante das entrevistas realizadas no Projeto. A nota nº 10 nos determina a deixarmos de lado o termo aluno, aqui tachado, e passarmos a adotar o termo estudante. Alguém, inclusive, já poderia ter dito que A escola média matricula estudantes, acolhe jovens e leciona para alunos. 12 7 mudança. Larrosa diz que “a experiência seria precisamente o indeterminado da vida, esse passar do que nos passa quando não sabemos o que nos passa, estas afecções que nos levam a questionar o que já sabemos, o que já queremos, o que se deixa submeter sem dificuldades a medida do que já somos” (p.331). E, nisto, ele nos ajuda a pensar que ordenar coisas prementes de mudanças não é o mesmo que reorganizar os fatos da nossa crítica, porque reorganizá-los significa não tê-los previstos, o que, em última análise, significa corrermos riscos. Se por um lado “é impossível saber o que é a experiência” (p.331), porque ela “não está do lado do ser, mas do lado do devir” (p.331-332), quem sabe não fazer mais Filosofia como a que vem sendo ensinada e aprendida na escola represente suspender objetivos e fins, e fundar todo o trabalho filosófico no curso dos meios. É muito difícil atender às necessidades de mudança nas aulas de Filosofia sem que professor e aluno atentem para o que só a “Filosofia exuberante” oferece. Conclusão Se por um lado é verdade que a sugestão de um planejamento para o ensino de Filosofia, tal como o que aparece nas Orientações Curriculares, é solidária com as dificuldades e descaminhos que ocorrem com essa disciplina no ensino médio, também é certo que a sua estrita aplicação, não só não responde, como não prevê tantos efeitos (tantos mais além dos previstos) que inevitavelmente tendem a modificar o planejamento a todo instante. O “sujeito moderno” – persona que pertence igualmente a aluno e professor – há muito tem sido o sujeito do não-planejamento. Sujeitos que forjam os desafios cotidianos na crença de que suas intuições, se não reorganizam os fatos de suas críticas, ao menos respondem à dura imposição de “grandes objetivos” (p.ex.: o “exercício da cidadania e preparo para o trabalho”). Contudo, os professores e alunos não reconhecem o fazer filosófico em si mesmo, como travessia e construção, como meio, senão associado aos objetivos e ao planejamento curricular da Filosofia no ensino médio. Se não reconhecem a experiência do sujeito de si mesmo, do real conhecimento para si mesmo (como a criança que não tem como crescer senão caindo, machucando-se e sentindo dor), da experiência do expor-se, que nos fala 8 Larrosa, do submeter-se, do ser cativo de si mesmo, como ato que escraviza para libertar (a Filosofia exige sacrifícios), da experiência do diálogo de sujeitos que padecem entre si, mas que não se negam nunca, da experiência da travessia sem a informação de onde vai se chegar (ao contrário do sujeito moderno que sempre possui a informação), do quase desvario de aceitar o indeterminado como parte compulsória do projeto – então continuar ensinando Filosofia como vem sendo ensinada na escola será, simplesmente, fazer Filosofia. E ponto final. O que talvez salve o projeto que está todo por fazer, é que os sujeitos modernos (professor e aluno) estão profundamente insatisfeitos com o “jeito” de se fazer a si mesmo dentro da disciplina Filosofia. Referências bibliográficas ARIÈS, Philippe, DUBY, Georges. História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Ciências humanas e suas tecnologias / Secretaria de Educação Básica. –Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006. 133p. (Orientações curriculares para o ensino médio ; v.3) LARROSA, Jorge. Linguagem e educação depois de Babel. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.