Os mistérios da água

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Edézio Teixeira de Carvalho. Telfax (31) 3375 0414; 3221 0325; [email protected]
OS MISTÉRIOS DA ÁGUA1
Geocentelha n. 146
O jornalista Washington Novaes (JC E-MAIL 1.951 de 11/01/02, transcrito de O Estado de São Paulo,
mesma data) termina artigo com o título acima com a seguinte pergunta: “que fazer para não
comprometer a água de que dependemos para sobreviver?” Como geólogo e há mais de 25 anos
dedicado à geologia de meios urbanos, e aplicada às questões ambientais e à gestão, atrevo-me não
propriamente a dar respostas definitivas à oportuna pergunta, mas a apresentar alternativas de enfoque
conceitual da questão e as possibilidades de ação, que vejo com muita clareza. Faço-o da ótica
geológica, como sabemos muitíssimo pouco explorada até o presente na quadra atual da civilização.
Inicialmente permito-me dizer que inexistem mistérios relacionados à distribuição da água sobre a
terra, sua abundância e conteúdo de substâncias dissolvidas.
A água não dispõe de qualquer autonomia geoambiental, sendo inteiramente dependente de fatores
geológicos na sua agregação ao sistema geológico global. Os mistérios da água simplesmente deixam
de existir quando essa agregação é considerada do ponto de vista geológico. Um deles foi comentado
com hipótese correta de explicação: o fluxo térmico do interior da terra mantendo água líquida sob
espessa cobertura de gelo na Antártica. Esse fluxo térmico está razoavelmente bem mapeado e
distribui-se em geral de acordo com os padrões de evolução crustal da terra estudados no âmbito da
tectônica global, nas áreas centrais dos grandes oceanos, chamadas cadeias meso-oceânicas, onde
emergem as lavas responsáveis pela promoção da expansão do assoalho oceânico (uma das mais
fascinantes sagas científicas do século XX a elucidação dos mecanismos da tectônica global, da qual é
conseqüência a configuração dos continentes e seus deslocamentos). A maior parte desse fluxo térmico
está associada às correntes de convecção do manto; outra parte está associada ao calor liberado pelo
atrito entre placas nos fenômenos de subducção, onde se consomem placas, como na costa ocidental da
América do Sul, ou nos fenômenos de transcorrência, como na costa da Califórnia, responsáveis pela
mundialmente conhecida falha de Santo André.
A água é componente móvel do sistema geológico. Pode ter tempos de residência muito grandes,
contados em dezenas de milhões de anos, talvez centenas, nas partes nucleares das calotas polares e nos
mais profundos aqüíferos, onde sua movimentação é muito lenta; de alguns milhares de anos nos
oceanos, cuja água salgada é o grande reservatório da água doce que cai sobre os continentes com
absoluta regularidade, e de meses ou anos nos sistemas continentais naturais e antrópicos (represas).
A medida que cabe tomar para responder positivamente à pergunta do ilustre jornalista é resolver bem
o espaço-tempo da relação água-terra. Para tal são necessárias duas providências: remover o bloqueio,
promovido pela civilização (?), do acesso da água à terra (por exemplo, para compensar o efeito do
telhado e do asfalto que bloqueiam esse acesso, ou se coleta a água pluvial incidente ou se promove sua
infiltração e decidir o que fazer requer um mínimo de aplicação do conhecimento geológico mais
rudimentar); a segunda medida é recuperar as superfícies molháveis. Esta merece explicação mais
pormenorizada: as superfícies geológicas naturais são altamente rugosas e muito molháveis, retendo
muita água da chuva por preciosos minutos ou horas, permitindo elevada taxa de infiltração. As
maiores são as de florestas naturais com vários estratos; as superfícies geológicas artificiais, como as
dos eucaliptais, são também muito molháveis, de modo que o eucaliptal, plantado em altas vertentes,
constitui um grande abastecedor do sistema geológico profundo. O posicionamento da floresta
comercial nas meias e altas vertentes amplia a eficiência do processo de infiltração e coloca a maior
parte da água infiltrada ao abrigo da sucção promovida pelas raízes na estação mais seca. Outras
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JC E-Mail 1955 de 17/01/02.
ECO.21 NO 63 – FEV 2002
Edézio Teixeira de Carvalho. Telfax (31) 3375 0414; 3221 0325; [email protected]
superfícies geológicas antrópicas, como a maioria dos tipos de superfícies urbanas, são muito pouco
molháveis. Cidades situadas em terrenos ondulados como Belo Horizonte secam em poucos minutos
depois de uma chuvada de verão.
A exploração comercial de água subterrânea, para irrigação ou para suprimento urbano, é feita no
mundo sem preocupação de recarga forçada. Evidentemente, se o aqüífero está sendo drenado por
baixo pelo poço tubular em bombeamento contínuo, e se a plantação sem critério ou a cidade
desavisada estão, por cima, desviando eficazmente as águas pluviais, o que queremos, senão a seca
global, não por falta de chuvas, mas por expulsão precoce da água? (Neste exato momento, entre
trovões e rajadas de chuva muito forte, vejo passarem rápidas na pracinha as águas desviadas da terra
pelo estacionamento asfaltado da PUC Minas, que em 5 minutos estarão no Arrudas e em poucos dias
em Sobradinho; essas águas acabam de perder precocemente o melhor de sua jornada.)
Reservatórios superficiais: são os reservatórios criados por barragens. Não são sempre dispensáveis,
mas é preciso estarmos atentos para o fato de que tais reservatórios são tardios, porque estão
recolhendo as águas que perderam a oportunidade de infiltrar-se no local geograficamente mais
desejável, que é onde a chuva caiu. Grande parte do esforço brasileiro de armazenamento de água
concentra-se nesse modelo, que dispensa o recurso de armazenamento no próprio sistema geológico, o
melhor reservatório, onde a água cumprirá função ambiental e econômica indispensável. Por outro
lado, grande parte do esforço brasileiro de combate a inundações urbanas concentra-se na drenagem
através de canalizações, que é uma forma de gastar (muito) dinheiro para jogar fora a água de que tanto
precisamos.
Pode parecer um truísmo, mas acho necessário dizer que certos recursos de prevenção da seca são os
mesmos da prevenção de inundações (plantio de maciços arbóreos, de preferência heterogêneos,
infiltração forçada, na cidade e no campo, armazenamento subterrâneo reproduzido aos milhares de
exemplares nas áreas semi-áridas. O método geologicamente recomendado de resolver o espaço-tempo
da relação água-terra promete prevenir a um tempo os males da seca, os prejuízos da erosão e do
assoreamento e as conseqüências terríveis das inundações, como as que ocorrem atualmente no Rio de
Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, como vemos totalmente despreparados para enfrentar chuvas de
intensidade pouco acima da média, assim como estarão mal preparados para enfrentar a seca.
Belo Horizonte, 15/01/02
Edézio Teixeira de Carvalho
Consultor em geologia de engenharia e ambiental
Senhor Editor: Considerei que o jornalista Washington Novaes aguarda respostas concretas, pois não
acho que tenha feito perguntas pro forma. Agradeceria, portanto que lhe transferisse estes comentários,
ou a sua publicação. Agradeço-lhe previamente e ao ilustre jornalista a oportunidade de iniciarmos
discussão tão decisiva para a humanidade. Atenciosamente. Edézio. [email protected]
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