Epistemologia do Ensino Religioso

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Epistemologia do Ensino Religioso
Domenico Costella1
Ednilson Turozi de Oliveira2
Resumo
Este artigo situa o Ensino Religioso nas escolas no contexto da variedade dos saberes
humanos, seguindo a intuição de Edgar Morin. O artigo afirma que a Epistemologia,
junto com a perspectiva fenomenológico-hermenêutica, é sensível ao Sagrado e às
experiências religiosas num clima de respeito, análise aprofundada e observação. O
artigo propõe um processo de autoquestionamento e auto-avaliação dos próprios
princípios teóricos para que os professores e as professoras de ensino religioso apreciem
ainda mais as experiências religiosas de cada aluno (a) e tomem consciência da
relevância de uma perspectiva que apresente as experiências religiosas como parte
constitutiva dos seres humanos.
Palavras-chave: Educação – Ensino Religioso – Epistemologia
As interrogações que orientam este trabalho são as seguintes. Em primeiro lugar, como
refletir sobre a religião no mundo contemporâneo marcado pelo saber da perspectiva
científico-tecnológica? Em segundo lugar, em que consiste o ensino religioso em termos
epistemológicos? Em terceiro lugar, como preparar os estudantes para conviver com os
diferentes saberes reconhecendo que o âmbito religioso também é parte intrínseca do ser
humano, não obstante o fato de que alguns saberes negaram historicamente o saber
religioso e metafísico esquecendo-se de que estes são aspectos fundamentais da
condição e da existência humana? A proposta é a de que a separação advinda da
autonomia não seja oposição, e sim que se conceba a autonomia num espaço comum.
Em quarto lugar, como ensinar religião no contexto brasileiro marcado pelo pluralismo
religioso? Dito de outro modo: como se posicionar diante das camadas da sociedade que
“acreditam em qualquer coisa”, e daqueles grupos de pessoas que “já não acreditam
mais em nada?”
O que é Epistemologia?
A origem etimológica da palavra Epistemologia remete ao saber. Todo saber descreve a
relação entre sujeito e objeto. A questão fundamental para a filosofia é relacionar o
saber do sujeito a um logos, a uma proposição, a uma razão, a uma asserção. Logos é
uma palavra grega que designa asserção, princípio, lei, razão, concordância,
correspondência, e proporção.3 As implicações éticas do problema do conhecimento são
1
Docente da PUCPR. Doutor em Filosofia, [email protected]
Doutor em Ciência da Religião – área de concentração em Filosofia da Religião – pela
Universidade Federal de Juiz de Fora. [email protected]
3
BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia, p. 118-119, 232.
2
igualmente evidenciadas: não seria possível fundar a justiça na utilidade, e o relativismo
gnosiológico é insustentável.4
A pergunta epistemológica visa refletir sobre o fundamento de uma afirmação. Esta
pergunta epistemológica é simples: “Como é mesmo que você sabe isso que está
falando?”.5 Sem uma tentativa de resposta a ela, o empreendimento filosófico arrisca a
ficar solto no ar e vazio de sentido.
O primeiro fundador da Epistemologia foi o filósofo inglês John Locke (1632-1704),
cuja obra principal intitulada An Essay Concerning Human Understanding (1690)
estabelece os princípios da Epistemologia. Leibniz (1646-1716) refutou o ponto de vista
epistemológico de Locke, mas Berkeley (1685-1753) e Hume (1711-1776) filosofaram
a partir dos princípios da Epistemologia lockiana. O segundo fundador foi Immanuel
Kant (1724-1804). Formulando um método denominado “método transcendental”, Kant
não investiga a gênese psicológica do conhecimento, e sim sua validade lógica. O
método psicológico se interroga sobre como surge o conhecimento. O método
transcendental inquire sobre como é possível o conhecimento, sobre seus fundamentos,
e sobre os pressupostos nos quais repousa.
A Epistemologia estuda a relação entre um sujeito que vê e uma coisa, um objeto, que
está diante deste sujeito. A Epistemologia avalia a possibilidade ou não de conhecer este
objeto que está diante do sujeito ou distante do sujeito. Dentre os estudos
epistemológicos desta relação, o positivismo lógico permanecera “prisioneiro de uma
concepção que reduzia o conhecimento a uma observação da experiência e a ação a um
comportamento observável”.6 Por positivismo lógico se entende a teoria formulada
inicialmente pelo Círculo de Viena – a partir de 1922 atingindo seu auge nos anos 1929
a 1938. O positivismo lógico defendia uma “filosofia antimetafísica, estreitamente
ligada às ciências da natureza, à lógica e à matemática” com a “força do empirismo”.7
Não somente o sujeito limita sua visão, mas também o objeto é reduzido. Com a
religião, a redução do objeto causa sempre mal-entendidos, haja vista que, para muitos,
o objeto da religião é obscuro e misterioso e, portanto, não é passível de conhecimento 8.
A cultura do “pós-moderno” é a busca de um caminho de saída e de superação do
paradigma, de forte racionalidade instrumental, que encontrou sua expressão ideológica
no positivismo e neo-positivismo (Círculo de Viena), que exaltam a primazia do saber
científico: “Sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar”, afirmara o primeiro
Wittgestein (1889-1951), membro do Círculo de Viena. Em contraste com a primazia
relegada ao saber científico, estão as duas viradas epistemológicas. As duas viradas
epistemológicas, verificadas no séc. XX9, preparam o caminho de superação da “razão
forte” da modernidade. A primeira delas, no terreno da física. A segunda acontece com
Edmund Husserl (1859-1938), um matemático alemão.
A primeira amadureceu nos anos 30, em terreno físico-matemático (a teoria da
relatividade de Einstein, a física quântica, o princípio de indeterminação de
Heisenberg), que propiciou os escritos de dois grandes epistemólogos contemporâneos:
4
Cf. HUISMAN, Denis. Dicionário de Obras Filosóficas, p. 518-519.
PORTUGAL, Agnaldo Cuoco. Epistemologia da experiência religiosa: uma comparação
entre Alston e Swinburne, p. 179.
6
LACOSTE, Jean. A filosofia no século XX, p. 128.
7
Ibid., p. 40, 41.
8
Para esta discussão veja-se: WHITTAKER, John H. Religious and epistemological mysteries,
p. 137-156.
9
Cf. MARTELLI, Stefano. A religião na sociedade pós-moderna, p. 415-420.
5
Gaston Bachelard (1884-1962) e Karl Raimund Popper (1902-1994). O sentido geral
dessas descobertas é que também o saber mais puro e rigoroso, como o das ciências
exatas, demonstra-se incapaz de auto-fundação e, portanto, abre-se à admissão da
pluralidade de saberes. É devido a essa abertura que os fundamentos da ciência moderna
passam a não ser considerados tão seguros e sólidos como pareciam. Aos poucos cai o
otimismo cartesiano (“idéias claras e distintas”), o empirismo de Galileu (“a
experimentação”), o Novo Saber de Bacon (“saber é poder”), as leis de Newton (“as leis
da natureza”), a razão-pura de Kant (“a maturidade da razão”). Além disso, implodem
os pressupostos do saber científico: a objetividade (por causa da interferência do
observador); a neutralidade (devido aos interesses do sujeito); a decomposição do real
(por conta da irredutibilidade da complexidade); a irrefutabilidade (por causa da
falsificabilidade e da mudança de paradigma). Desta forma, supera-se o modo linear e
causal de conhecer e se começa a pensar em termos de interdependência e circularidade.
A segunda virada epistemológica delineou-se no terreno filosófico, a partir dos anos 50,
com a publicação da obra póstuma de Edmund Husserl, intitulada A crise das ciências
européias. Husserl é o primeiro pensador europeu, que ainda na década de 30,
vislumbrou o possível perigo da razão puramente instrumental: “A exclusividade com
que, na segunda metade do século XIX, a visão de conjunto do mundo do homem
moderno se deixou deslumbrar pela prosperity que daí derivava significou o
afastamento dos problemas decisivos para uma autêntica humanidade. As meras
ciências de fatos criam meros homens de fato”10, e essa idéia é parte essencial nos
escritos do último período de Heidegger sobre a linguagem, e do segundo Wittgestein.
Tais obras não somente re-propõem a irredutibilidade dos saberes do mundo vital
(Lebenswelt) às linguagens científicas, mas criticam sua pretensa superioridade.
A partir da década de 70, em decorrência destas viradas, a Epistemologia tende a
superar toda forma de dicotomia, típica da modernidade: ciências naturais/ciências
humanas, o dualismo cartesiano (modelo de exclusão homem/natureza: res cogitans/res
extensa). O modelo agora é de integração homem-natureza, o paradigma ecológico: o
homem faz parte da natureza; superação das radicais distinções: natureza/cultura,
natural/artificial, mente/matéria, subjetivo/objetivo, animal/ser humano.
Novos desdobramentos da Epistemologia
Diante dos desafios atuais, autores contemporâneos elaboram teorias que ajudam a
interpretar o pluriuniverso contemporâneo. Dentre os autores, este trabalho destaca
Edgar Morin.
Morin (1921-), epistemólogo e sociólogo francês, desenvolveu uma análise da realidade
fazendo uso de um método interdisciplinar. A complexidade é definida por ele como
unitas multiplex (“unidade múltipla”). Este epistemólogo propõe a reforma do
pensamento e a reconstrução dos saberes como via prioritária para compreender e gerir
a complexidade.11 Ele demonstra como é possível operar uma autêntica revolução
copernicana.12 Para tanto, reestrutura-se a “ecologia das idéias” sobre o universo, na
mente dos seres humanos: o cósmico, o humano, o histórico fazem parte da mesma
realidade, que pode ser estudada e observada a partir de diferentes ângulos
10
REALE, G. História da filosofia. vol. III, p. 565.
Cf. a obra: MORIN, Edgar. A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2001.
12
MORIN, E. A religação dos saberes: o desafio do século XXI, p. 559-567.
11
complementares e interdependentes. Mas isto não basta, pois é indispensável uma
“ecologia da política”, no sentido de superar a obsessão de um projeto conclusivo da
forma da sociedade a ser edificada, e propor novas possibilidades de liberdade e
solidariedade proporcionadas pela ação política. O mundo estava preparado para a
guerra fria, porém, uma vez superado o antagonismo dos dois blocos, não estava
preparado para um mundo de paz.
É necessário, portanto, uma nova consciência planetária de solidariedade que saiba criar
laços entre os homens e a natureza terrestre. Para “civilizar” a terra, diz Morin, há que
se abrir mão de caminhos diferentes e convergentes: da cidadania planetária, de
instituições mundiais até a reforma do pensamento e ao sentimento da Terra-Pátria.
O novo horizonte epistemológico, que requer e admite a pluralidade de saberes, abre a
possibilidade e a necessidade do estudo da experiência religiosa, tendo em vista que ela
entrou com força na aldeia global e constitui-se como um dos componentes
sociologicamente mais relevantes. Enquanto a Idade Moderna havia acostumado às
sociedades, pelo menos as ocidentais, a jogar tendencialmente a religião na esfera
privada das escolhas pessoais, a Idade Pós-Moderna relança o peso das religiões e da
dimensão religiosa dos seres humanos na esfera pública, lá onde as estruturas políticas
da sociedade civil são chamadas a renegociar e gerir os princípios e os valores da
convivência humana.
O Ensino Religioso nas escolas pode e deve tornar-se uma disciplina para a formação
integral do aluno e da sua cidadania. Para reforçar a concepção, que está contida no
novo dispositivo da LDB, é interessante reproduzir algumas observações, elaboradas
por Debray, a pedido do ministro da Educação da França, país que sempre se
caracterizou pela laicidade do Estado. Por um lado, Debray assevera que “a laicidade
não é uma escolha espiritual entre outras, mas é aquilo que torna possível a coexistência
[das religiões], pois aquilo que é comum de direito a todos os homens deve prevalecer
sobre aquilo que os separa de fato. A faculdade de aceder à globalidade da experiência
humana [...] implica [...] no estudo dos sistemas das crenças existentes. Portanto, não se
pode separar o princípio de laicidade e o estudo do fenômeno religioso”.13
Por outro lado, o autor faz algumas considerações bem ponderadas a respeito do ensino
religioso nas escolas: a) ninguém pode confundir catequese e informação, proposta de fé
e oferta de saber, testemunhos e narrativas. Assim como ninguém confunde a
Epistemologia da revelação com a da razão. O poder civil não é chamado a arbitrar
entre crenças, a igualdade de princípio entre crentes, ateus e agnósticos, e isso vale a
fortiori para as religiões; b) a “busca de sentido” é uma realidade social que a educação
não pode desconhecer. As religiões, mas também a filosofia e a literatura tentam
responder as interrogações mais profundas do ser humano: a origem e a finalidade do
universo, e a morte, por exemplo. Evidentemente, não se pode reconstruir a aventura
humana no tempo sem levar em conta as tradições religiosas; c) relegar o fato religioso
fora do ambiente da transmissão racional e publicamente controlada dos conhecimentos
favorece a patologia do terreno, ao invés de purificá-lo.
Hoje em dia o mercado da credulidade presente em inúmeras publicações está aí para
engrossar a fileira das pessoas que apóiam a cultura epistemológica, ou para engrossar a
onda do irracional? Então, se é verdade que não se pode submeter o saber religioso à
razão e às ciências empíricas, é também verdade que não é injusto esperar que o saber
13
DEBRAY, R. L’enseignement du fait religieux dans l’École laique: Rapport au ministre de l’
Éducation nationale, Odile Jacob, Paris 2002.
religioso se aproxime tanto dos parâmetros humanos da explicação racional, e que o
saber religioso contribua para formar cidadãos que saibam distinguir entre o que é
monstruoso e o que é digno de um ser humano.
A diferença suscita a oposição conflituosa?
É melhor deixar de lado as noções de fato ou fenômeno religioso, próprias ao método
das ciências empíricas, e tomar aquela de experiência religiosa, que, como tal, subtrai-se
a toda determinação em termos de objeto e nos permite entender melhor as noções de
“horizonte unificante e raiz comum”.14 A experiência religiosa, a filosofia e a religião
são consideradas como intrínsecas “à natureza finita do ser humano e de sua capacidade
cognitiva. A perspectiva hermenêutica, respeitosa do limite e da finitude da razão mas
ao mesmo tempo aberta à transcendência, é capaz de preservar a relação de filosofia e
religião como diferença que não é oposição, e autonomia que não é separação”.15
Aqui não se trata de defender a idéia de que a religião é um objeto e de que Deus seja
um objeto, um item a mais da “descrição” epistemológica ou como uma “descoberta
factual”.16 Muito menos ainda se argumenta a favor do “Deus dos filósofos” ou um
contraste entre razão e religião. Na tradição ocidental, Deus sempre esteve ligado à
filosofia. Apesar da história da filosofia revelar que houve períodos em que se tentou a
absorção da religião na filosofia e vice-versa, um passo para se criar uma nova “cultura
epistemológica”17 é não reduzir a experiência religiosa a um objeto. Alguns estudiosos
da epistemologia da religião afirmam que não se trata de “conhecer Deus”; antes, amase Deus, e ao amar Deus se aprende a amar todas as coisas. 18 Conhece-se esse amor e o
conhecimento humano desse amor divino é epistemologicamente relevante, com base
no conhecimento que se tem do amor19.
Diante deste modo diferente de conhecer Deus, a cultura epistemológica deve se
interrogar pelo “em quê”: em que se acredita? O que constitui a experiência religiosa?
Existem critérios para estabelecer a coerência e a incoerência de uma experiência
religiosa, a racionalidade ou a irracionalidade da mesma? 20 Nesse contexto de
fortalecimento de uma “cultura epistemológica”, considerando o Ensino Religioso como
um lócus entre outros em que se vivencia um espaço rumo a tal “cultura
epistemológica”, não caberia o proselitismo e muito menos a catequização. Ao
apresentar a experiência religiosa em sala de aula, há que se ater ao âmbito da
abordagem que Lacoste faz de Habermas e de Otto Apel. Para Lacoste, à sociedade
atual é necessária “uma nova concepção baseada na comunicação, na relação
intersubjetiva instaurada por sujeitos que se entendem entre si a respeito” de algo.21
14
ARAÚJO, Paulo Afonso de. Introdução à Filosofia da Religião, p. 65.
Ibid., p. 62.
16
WHITTAKER, John H. Religious and epistemological mysteries, p. 139-140.
17
Verifique-se este artigo que traz por título a “cultura epistemológica”: PONDÉ, Luiz Felipe.
Em busca de uma cultura epistemológica. In: TEIXEIRA, Faustino (org.) A(s) Ciência(as)
da Religião no Brasil: Afirmação de uma área acadêmica. São Paulo: Paulinas, 2001. p. 1166.
18
WHITTAKER, John H. Religious and epistemological mysteries, p. 145, 148, 151.
19
Ibid., p. 152, 154.
20
Para uma descrição mais aprofundada dessas interrogações epistemológicas, veja-se esta obra:
FABRIS, Adriano. Introduzione alla filosofia della religione, p. 41.
21
LACOSTE, Jean. A filosofia no século XX, p. 144.
15
Para Hessen, não se justifica o fato de desconfiar das religiões. A desconfiança com
relação às religiões tem suas razões mais profundas na confusão entre objetividade e
validade universal (...). O que se pretende é que um juízo que não seja universalmente
válido, isto é, logicamente obrigatório, demonstrado, não possa ter qualquer pretensão à
objetividade. Daí passa-se a encarar a admissão de um conhecimento e de uma certeza
religiosa especial como mero subjetivismo, ao passo que na realidade, como há pouco
se mostrou, um juízo pode possuir objetividade completa sem ser, apenas por isso,
universalmente válido.22
Não se trata de objetificar Deus ou a religião substituindo o “trono de Deus” pela razão
ou pelo status quo.23 Antes, é uma questão de não abandonar totalmente a indagação
epistemológica que convida a tomar distância do “objeto do conhecimento” – da
religião, nesse caso. Esse distanciamento não é para reduzi-la a um objeto científico, e
sim para deixar falar. Ao invés de seguir uma metodologia não-filosófica na
Epistemologia da religião no contexto do ensino religioso, o pressuposto é a
metodologia filosófica – e, é claro, a epistemológica inserida no âmbito maior da
filosofia da religião e da fenomenologia da religião –, que se encarrega de clarificar e de
se interrogar sobre como a experiência religiosa fala de si mesma.24
É óbvio que a inquietude filosófica da cultura epistemológica difere das respostas
oferecidas pela teologia confessional. A filosofia não é intrinsecamente “atéia” no
sentido de duvidar do ou de negar o transcendente. O que ela faz é utilizar uma
linguagem que se interroga sobre as condições de possibilidade de colocar em questão
não só o objeto, mas também o sujeito que analisa o objeto. Ela é questionamento
maduro e equilibrado. A religião, pensada a partir da Epistemologia, não deve ser objeto
de julgamento, mas de questionamento: do questionamento e da transformação do
próprio sujeito que faz a experiência religiosa. Não se pode esquecer do fato de que se
faz uma experiência religiosa de uma alteridade que não é um objeto de consumo, haja
vista que a relação com o divino contempla uma análise das múltiplas formas de
manifestações da esfera religiosa.25
Do positivismo lógico à fenomenologia de Husserl
O positivismo lógico tenta explicar a realidade nos parâmetros do fisicalismo. Para
Lacoste, o fisicalismo de Neurath “visa descrever a vida psíquica em termos físicos, por
comportamentos ou estados do cérebro, resolve a contradição, mas à custa da
intencionalidade. É realmente possível descrever o comportamento, em particular o
comportamento verbal sem a intencionalidade e sem a hipótese de uma vida da
consciência?”26 Por outro lado, segundo Lacoste, a fenomenologia de Husserl
redescobre na Krisis “o mundo da vida”, que “caracteriza a consciência, e a existência
do espírito (Geist) com as decisões éticas que ela implica, como a noção de
responsabilidade”.27 A “linha divisória é exatamente a seguinte: o Círculo de Viena
reduz a racionalidade à racionalidade existente da ciência, em particular da física,
22
HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento, p. 165.
FABRIS, A. Introduzione alla filosofia della religione, p. 36.
24
Ibid., p. 40-41.
25
Para esta reflexão a respeito da linguagem filosófica, do questionamento, e da experiência
religiosa sob o prisma da Epistemologia, veja-se: FABRIS, A. Introduzione alla filosofia
della religione, p. 32, 44.
26
LACOSTE, J. A filosofia no século XX, p. 54.
27
Ibid.
23
enquanto Husserl tenta pensar um outro racionalismo que não se basearia na repressão
da vida da consciência tal como esta se manifesta na intersubjetividade e em suas
obras”.28
Na interpretação de Lacoste, Husserl defende a objetividade da significação lógica e
matemática contra as pretensões [do psicologismo], antes de se mostrar como ela se
baseia na subjetividade constituinte da consciência pura”. 29 Heidegger, um discípulo de
Husserl, descreve a existência humana “como conjunto de projetos e de possibilidades”
definindo-a “não a partir da consciência”, como o fez seu mestre, e sim “a partir do ser
no mundo (In-der-Welt-sein)”.30 A relevância do “ser-no-mundo” consiste em
apresentar uma forma de pensar e refletir sobre a condição humana como sendo
“anterior a qualquer divisão entre um sujeito e um objeto, entre o Eu e o mundo”.31 É o
ser do Dasein (Ser-aí), desse “ser humano que não é mais definido pela sua consciência,
suas razões ou suas pulsões, mas por uma espécie de presença ativa e „preocupada‟ no
mundo”.32
A perspectiva fenomenológico-hermenêutica
Para Hessen, “contra as tentativas de amalgamar religião e filosofia, fé e saber, deve-se
enfatizar com toda a força que a religião é um domínio de valores completamente
autônomo. Ela não se firma num outro domínio de valores, mas está completamente
firmada sobre seus próprios pés”.33 Com o intuito de argumentar a favor da autonomia,
Hessen aclara que “o reconhecimento da autonomia epistemológica da religião depende
(...) do reconhecimento de um conhecimento religioso especial. Quando, ao tratarmos
do problema da intuição, demos destaque ao conhecimento que caracterizamos como
imediato, intuitivo, assentamos os fundamentos epistemológicos para a autonomia da
religião”.34
Ao refletir sobre alguns aspectos da filosofia de Kant, Coupleston elabora uma questão
de fundo: Qual é a “justificação teórica” de nossa crença se argumentamos com os
empiristas que todo conhecimento humano começa na experiência? 35 Nossa experiência
possui dois elementos: as impressões, por um lado, e, de outro lado, o elemento a priori
que organiza e sintetiza estas impressões, os dados recebidos. Não que Kant tenha
sustentado a noção de “idéias natas”, e sim que sintetizar os dados e as impressões de
uma certa maneira é parte constitutiva do ser humano.36 De um lado, temos o mundo da
física newtoniana, e sobre este mundo não é que sabemos tudo, pois não podemos
afirmar que este seja o único mundo, mas, da outra parte, se acredita e se tem fé, porém
não se pode dar provas da existência de um mudo supra-sensível no qual reina a
imortalidade e Deus, e o espírito humano livre irá sempre se questionar sobre esse outro
mundo37. Com Kant, temos uma descrição da “bifurcação”38 da mente moderna com
28
Ibid., p. 55.
Ibid., p. 54.
30
Ibid., p. 61.
31
Ibid.
32
LACOSTE, J. A filosofia no século XX, p. 62.
33
HESSEN, J. Teoria do Conhecimento, p. 164.
34
Ibid., p. 164-165.
35
COPLESTON, F. A history of philosophy. vol. IV, p. 68.
36
Ibid., p. 68-69.
37
COPLESTON, F. A history of philosophy. vol. IV, p. 72.
38
Ibid.
29
estas duas esferas de reflexão sobre os mundos. Kant confiou as afirmações sobre Deus
e a imortalidade à esfera da fé. Hoje em dia, há pessoas que acreditam que a ciência é o
único meio para compreender a realidade factual, muito embora existam outras pessoas
que sentem que o mundo definido em termos exclusivamente científicos não dá conta de
toda a realidade, já que existe aí algo que aponta para um além. Oscila-se, destarte, entre
um posicionamento similar ao dogmatismo, ou uma abordagem cética do problema. Há
aquelas pessoas que “acreditam em qualquer coisa”, e se consideram corretas, e aquelas
que “já não acreditam mais em nada”. O ser humano caminha entre este “tudo” ou/e
“nada”. Entre este tudo e este nada existe um pólo de atração em que à religião, a
filosofia, e as ciências podem se encontrar.
Kant (1724-1804) exemplifica seu projeto com uma rica imagem de compreensibilidade
imediata e fecundos desenvolvimentos: a imagem de dois círculos concêntricos. 39 O
primeiro círculo, menor, representado pela religião racional, cujo conceito a filosofia é
capaz de elaborar, e o segundo, maior, representado pela religião revelada, sujeito à
articulação teológica.40 Paulo Afonso explica que, em sua obra Die Religion innerhalb
der Grenzen der Bloβen Vernunft (“A Religião dentro dos limites da simples Razão”),
Kant não pretende definir um conceito de religião deduzido da razão, isto é, não busca
delinear uma religião puramente racional que pretenda resolver em seus esquemas todo
culto historicamente existente.41 Nesse pólo de atração em que se encontram os dois
círculos, pode-se sinalizar o limite entre o caráter “autêntico e inautêntico, o elemento
essencial e acessório” na experiência religiosa42.
Kant também não almeja partir das diversas crenças dadas para poder encontrar
características comuns, que seriam constantes nos vários fenômenos religiosos. Há
limites na razão, mas existe uma abertura à transcendência que é própria da condição e
da natureza humana.Há a possibilidade de uma “transição” [Veränderung e Übergang]
entre a razão prática e o oceano desconhecido da metafísica.43 A busca kantiana de
reconhecer e determinar os limites da razão no nível cognitivo-fenomênico sustenta-se
em sua noção de limite:
Limites [Grenzen] pressupõem sempre um espaço, que é encontrado fora de um lugar
determinado e o compreende; barreiras [Schranken] não necessitam disso, mas são
meras negações que afetam uma grandeza, enquanto ela não possuir inteireza absoluta.
Nossa razão vê, entretanto, da mesma forma, ao redor de si, um espaço para o
conhecimento das coisas em si mesmas, se bem que nunca possa ter delas conceitos
determinados e se limite apenas a fenômenos.44
KANT, Immanuel. Die Religion innerhalb der Grenzen der Bloβen Vernunft, B XXI-XXII.
In: WEISCHEDEL, W. Werkausgabe, vol. VIII, p. 659, tradução para o italiano: La
religione entro i limiti della sola ragione. Roma/Bari: Laterza, 1980. p. 13 apud FABRIS, A.
Introduzione alla Filosofia della Religione, p. 26.
40
A respeito da relação entre filosofia e teologia na Obra de Kant e das divergências de
interpretação de sua Obra, verifique-se este artigo: FIRESTONE, Chris L. Kant and Religion:
Conflict or Compromise?
41
ARAÚJO, P. A. Introdução à Filosofia da Religião, p. 10.
42
Veja-se: FABRIS, A. Introduzione alla filosofia della religione, p. 27.
43
A respeito do conceito kantiano da “transição”, veja-se: FIRESTONE, Chris L. Kant and
Religion: Conflict or Compromise?, p. 165. Ademais, verifique-se a utilização da palavra
“transição” em: KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo
Quintela. Lisboa: Edições 70, 2001. p. 21, 39, 93.
44
KANT, I. Crítica da Razão Pura e outros textos filosóficos: Prolegômenos, § 57, p. 171.
39
Limite é aqui compreendido não como barreira insuperável que fecha hermeticamente
permitindo que se veja apenas no seu interior (o mundo empírico dos fenômenos), mas
como confim que também abre a uma outra e diversa dimensão (o noumeno, o ideal da
razão, a totalidade incondicionada); dimensão que não é passível de conhecimento, mas
que deve ser pensada em razão da constitutiva tendência metafísica da razão humana.45
Para Paulo Afonso,
“trata-se de uma posição de equilíbrio difícil e precário, onde se caminha
sobre uma sutil camada de gelo suspensa entre dois abismos: de um lado, o
abismo da recaída no puro fenomenismo empirista, que representa, para Kant,
a mais amarga abdicação da razão e só pode terminar no ceticismo; de outro,
o abismo do mergulho sem regras no super-racional e no transcendente onde
ela, desconhecendo os seus limites naturais, seria condenada ao xeque-mate e
à impotência”.46
Enquanto diálogo na diversidade, a filosofia da religião – que nasce e se desenvolve a
partir da experiência religiosa do homem ocidental – aborda o fenômeno religioso em
geral – em sua variedade espaço-temporal –, para investigar seu núcleo de verdade, cuja
presença não pode ser vista como uma supressão das diferenças (históricas, dogmáticas,
míticas), mas como traço da unidade na diversidade; que não suprime a diferença mas a
reconhece como perspectiva particular sobre a verdade comum. Isso significa que a
filosofia da religião – exatamente como filosofia, a saber, como reflexão humana sobre
a experiência humana – deve ter como seu objeto a experiência que os homens fazem do
divino, em sua pluralidade histórica e existencial, em busca daquilo que está presente
em todas estas experiências.47
Uma das conquistas do pensamento hermenêutico contemporâneo é exatamente a
distinção entre o relativismo, que vê a verdade dissolver-se na pluralidade de suas
formulações, e o pluralismo, que reconhece a presença da verdade não como objeto,
mas como fonte e origem das múltiplas interpretações. O condicionamento e a
historicidade de cada perspectiva sobre a verdade não se constitui em um obstáculo, mas
em uma dimensão estrutural da interpretação, sendo esta, constitutivamente, não posse
da verdade, e sim movimento de pensamento que brota da verdade.48
A Epistemologia do Ensino Religioso abre a religião à investigação filosófica num
diálogo clarificador, que não pretende dissolvê-la, mas reconhecer seu sentido.
Assumindo-se a religião não tanto como um fato objetivo – como faz o cientista que
pretende descrevê-la e explicá-la, mas como uma forma eminente da experiência
humana, pode-se reconhecer nela sua originária congenialidade à filosofia, que assume
a forma de uma relação dialógica – integração na diferença – com mútuo
reconhecimento das respectivas instâncias de verdade. Este caráter dialógico da relação
entre filosofia e religião pode ser caracterizado em dois níveis conexos.49 Um nível mais
geral, como duas dimensões da experiência; outro mais existencial, como duas
modalidades da pessoa ao mesmo tempo crente e pensante.50
A fenomenologia da religião é uma disciplina intermediária entre as Ciências da
Religião e a filosofia. Luís Dreher interroga: Qual a importância da fenomenologia da
45
ARAÚJO, P. A. Introdução à Filosofia da Religião, p. 21.
Ibid.
47
ARAÚJO, P. A. Introdução à Filosofia da Religião, p. 63.
48
Ibid.
49
Ibid., p. 65.
50
Ibid., p. 66.
46
religião para nós, estudiosos brasileiros da religião?51 A perspectiva fenomenológica
conclui que a experiência religiosa é irredutível a outras experiências. Para Agnaldo
Cuoco Portugal, “uma crítica [a determinadas linhas] de reflexão anglo-saxã é de que
[elas] pressupõe[m] uma separação entre sujeito e objeto do conhecimento e que por
causa disso os problemas que ela gera são insolúveis. (...) Acima de tudo, porém, é da
diversidade e riqueza de posições, do debate, que se torna então possível, que a filosofia
pode encontrar a melhor oportunidade de realizar o seu propósito de buscar a
verdade”.52
A Epistemologia do Ensino Religioso leva em conta pelo menos sete reflexões: 1)
Como a religião se coloca no atual contexto da epistemologia contemporânea, sobretudo
na perspectiva do pensamento da complexidade: unitas multiplex (E. Morin) e da
religação dos saberes?; 2) A relevância do fenômeno religioso e do sagrado na pósmodernidade; depois das “grandes narrativas” (Lyotard), pois há uma volta ao Sagrado
e se constata o aparecimento de novas formas de espiritualidade, e isso tem um impacto
também para a esfera pública e política das sociedades; 3) O que é religião e quais suas
funções. Dentre as funções, destacam-se a de atribuir sentido e significação, a
integração, a experiência do Sagrado, a de ser guia moral; 4) Um diálogo entre as
metodologias filosóficas (Epistemologia, Filosofia, Metafísica, Fenomenologia) e nãofilosóficas (Psicologia, Sociologia, História, Antropologia) para o ensino religioso nas
escolas; 5) Religião e religiões: a categoria da alteridade como condição de
compreensão, de diálogo e abertura aos outros credos e crenças (na perspectiva de
Emmanuel Lévinas) para quebrar o círculo do etnocentrismo, da intolerância e do
fanatismo, e para respeitar o outro como outro. A tolerância é o primeiro passo, mas não
é suficiente; 6) O ensino religioso como disciplina escolar, integrada às outras formas
do saber; distinção entre fé-crença-religião; 7) A perspectiva fenomenológicohermenêutica na interpretação da experiência religiosa.
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