ESTUDO DE CASO Plaquetopenia grave em paciente etilista com infecção por vírus da imunodeficiência humana Vitorino Modesto dos Santos, Leonardo Rodrigues da Cruz, Guilherme Teixeira Guimarães Paixão, Carolina Alves Mizuno, Ismária Tavares Viana Teza e Diogo Wagner da Silva de Souza RESUMO A infecção por vírus da imunodeficiência humana e síndrome da imunodeficiência adquirida constituem importantes problemas de saúde pública em todo o mundo e a plaquetopenia tem sido um achado frequente nesse grupo populacional. Os mecanismos da citopenia são multifatoriais e ainda não estão completamente esclarecidos. Fatores que agravam a plaquetopenia incluem coinfecção por hepatite C e cirrose hepática. O objetivo desse relato é exemplificar o caso de um paciente com o vírus, cirrose alcoólica e plaquetopenia grave, abaixo de 5.000/mm3, corrigida com a administração de corticosteroide. Vitorino Modesto dos Santos – médico, doutor, professor, Universidade Católica de Brasília e Hospital das Forças Armadas, Brasília-DF, Brasil Palavras-chave. Cirrose hepática; etilismo; HIV/ SIDA; plaquetopenia. Correspondência: Vitorino Modesto dos Santos. Hospital das Forças Armadas, Estrada do Contorno do Bosque s/n, Cruzeiro Novo, CEP 70.658-900, Brasília-DF. Telefone: 61 39662103. Fax: 61 32331599. ABSTRACT Internet: [email protected] Leonardo Rodrigues da Cruz – médico, Hospital das Forças Armadas, Brasília-DF Guilherme Teixeira Guimarães Paixão – médico, Hospital das Forças Armadas, Brasília-DF, Brasil Carolina Alves Mizuno – médica, Hospital das Forças Armadas, BrasíliaDF, Brasil Ismária Tavares Viana Teza – médica, Hospital das Forças Armadas, Brasília-DF, Brasil Diogo Wagner da Silva de Souza – médico-residente, Hospital das Forças Armadas, Brasília-DF, Brasil Severe thrombocytopenia in an alcoholic patient with human immunodeficiency virus infection Recebido em 7-9-2012. Aceito em 20-9-2012. Infection with human immunodeficiency virus infection and acquired immunodeficiency syndrome is a serious public health issue worldwide, and thrombocytopenia has been a frequent finding among this group of patients. The mechanisms of this cytopenia are multifactorial and have not been completely understood. Factors that worsen thrombocytopenia include hepatitis C coinfection and hepatic cirrhosis. The aim of this report is to describe the case of an human immunodeficiency virus infection patient with alcoholic cirrhosis and severe thrombocytopenia, above 5,000/mm3, which was treated with corticosteroid use. Key words. Liver cirrhosis; alcoholism; HIV/AIDS; thrombocytopenia 198 • Brasília Med 2012;49(3):198-201 Os autores declaram não haver potencial conflito de interesses. INTRODUÇÃO As citopenias, isoladas ou combinadas, são comuns em pacientes infectados pelo vírus da imunodeficiência humana – HIV. A plaquetopenia nesses pacientes foi descrita pela primeira vez por Morris e colaboradores em estudo de homossexuais masculinos sexualmente ativos.1 Essa alteração é uma Vitorino Modesto dos Santos e cols. • Plaquetopenia grave e infecção por HIV das manifestações precoces da fase assintomática da síndrome da imunodeficiência adquirida – SIDA e é mais comum em usuários de drogas injetáveis.2-4 admissão. No quinto dia, porém, houve diminuição acentuada do número de plaquetas, com valores abaixo de 20.000/mm3. A etiopatogenia da plaquetopenia não foi totalmente esclarecida. Possíveis causas incluem mecanismos imunitários que reduzem a sobrevida das plaquetas, deficiência da produção medular em virtude de infecção dos megacariócitos pelo HIV, efeitos colaterais de drogas antirretrovirais, além de consequências das infecções oportunistas.4-8 A púrpura trombocitopênica imune também tem sido relacionada com infecção por HIV.2 O papel adverso do etilismo crônico no volume do timo e nos níveis de plaquetas no sangue periférico tem despertado interesse.9 As principais hipóteses de diagnóstico incluíram hiperesplenismo, infecção de megacariócitos pelo vírus da imunodeficiência humana, efeitos adversos de medicamentos antirretrovirais ou púrpura trombocitopênica autoimune. O objetivo do presente relato é exemplificar a ocorrência de plaquetopenia acentuada em etilista com infecção por vírus da imunodeficiência humana, enfatizando-se as principais causas dessa citopenia. RELATO DO CASO Homem pardo de 38 anos, etilista crônico e portador do HIV havia dez anos, foi admitido no hospital com plaquetopenia acentuada. Negou uso de drogas injetáveis. Fazia uso irregular de lamivudina 150 mg, atazanavir 300 mg, fumarato de tenofovir 300 mg e ritonavir 100 mg. Nos últimos cinco anos, apresentou contagem plaquetária entre 50.000 e 75.000/mm3. Há cinco meses, seus exames revelaram 272 linfócitos CD4 por mm3 e carga viral de 136 cópias/mm3. A tomografia computadorizada de abdome mostrou ectasias venosas e sinais sugestivos de hipertensão portal. Três semanas antes da admissão teve sangramentos espontâneos, incluindo-se epistaxe, otorragia e hematêmese, associadas com acentuada plaquetopenia – 5.000/mm3. O exame físico mostrou icterícia, tremor de repouso por provável abstinência alcoólica e hepatoesplenomegalia. O fígado foi palpado a 9 cm abaixo da reborda costal direita e o baço a 1,5 cm da reborda costal esquerda. Após transfusão de plaquetas, cursou com aumento da contagem plaquetária que chegou a 50.000/mm3 no quarto dia após sua Os exames laboratoriais revelaram anemia microcítica hipocrômica moderada, elevação de enzimas hepáticas, diminuição da atividade protrombínica e hipoalbuminemia. Em conjunto, esses achados foram consistentes com o diagnóstico de cirrose hepática. Realizada pesquisa para hepatites virais, leishmaniose, esquistossomose, histoplasmose, citomegalovirose e outras infecções oportunistas, com resultados negativos. Iniciado uso de prednisona 60 mg por dia, que resultou em melhora dos níveis plaquetários após dois dias de tratamento, mantendo-se a contagem acima de 100.000/mm3 durante todo o período de sua permanência hospitalar. Recebeu alta com melhora, para seguimento ambulatorial na infectologia e na onco-hematologia. Permanece sem plaquetopenia e desempenha normalmente suas atividades cotidianas. DISCUSSÃO Alterações sanguíneas são comuns em estádios avançados da infecção pelo HIV.4-6 Estudos sobre plaquetopenia e HIV conceituam essa condição como a contagem de plaquetas abaixo de 100.000,2,3,5 125.000,4 ou 150.0006,10,11 por mm3. A plaquetopenia tem sido descrita em 5% a 50% dos pacientes e pode ser o primeiro sinal da doença.3,5,6,8 Está associada com maior morbidade e mortalidade, deterioração acelerada de linfócitos CD4+ e progressão para a síndrome da imunodeficiência adquirida.7 No estudo de coorte CHORUS (1997–2006), contagens plaquetárias abaixo de 30.000/mm3 ocorreram em 1,7% dos pacientes com HIV.11 O estudo ocorreu já na era da terapia antirretroviral muito ativa e, mesmo sendo baixa a prevalência de plaquetopenia Brasília Med 2012;49(3):198-201 • 199 ESTUDO DE CASO acentuada, a citopenia mais acentuada persistiu e causou sangramentos.11 Recentemente, Ambler e colegas analisaram dados de 5.290 pacientes em um centro de referência em HIV/AIDS e encontraram 1.357 (26%) com plaquetas abaixo de 100.000/ mm,3 151 (3%) abaixo de 20.000/mm3 e 31 (0,6%) com púrpura trombocitopênica imune.2 Nesses casos, a causa da plaquetopenia é multifatorial.5,7 A origem periférica, na circulação sanguínea, relaciona-se com a destruição mediada por imunocomplexos, ou sequestro de plaquetas – semelhante à púrpura trombocitopênica idiopática –, ao hiperesplenismo, às microangiopatias trombóticas ou à coagulação intravascular disseminada.6-8,10 De origem central, na medula óssea, são os casos decorrentes de defeito na produção por ação direta do vírus da imunodeficiência humana nos megacariócitos e nas plaquetas, infiltração neoplásica, invasão da medula óssea por agentes infecciosos ou pelo efeito mielossupressor de drogas.5-8,10 A plaquetopenia primária causada pela infecção viral em estudo envolveria a ação direta na medula óssea e autoanticorpos.4,5,8,10 A avaliação de plaquetopenia baseia-se no hemograma completo, na contagem e nos índices plaquetários, acrescentando-se a biópsia de medula óssea quando a causa deste distúrbio permanece obscura.5,8 Outras determinações úteis incluem níveis de complemento, anticorpos antiplaquetários e anti-HVC pelo método Elisa, além da pesquisa de coinfecções. Com o início da terapia antirretroviral, usualmente ocorre significativa melhora na contagem plaquetária.2,8 Entretanto, algumas drogas antirretrovirais, como indinavir, ritonavir e didanosina, podem causar plaquetopenia.7 Transfusões de plaquetas devem ser administradas apenas aos casos de maior gravidade, em virtude do elevado custo e efeitos benéficos de breve duração.7,8 Os corticosteroides são recomendados como recurso de segunda linha, por curtos períodos, em decorrência de seus efeitos adversos.5,8 Antes da administração, devem-se descartar possíveis infecções virais e por microbactérias.5,8 Os corticosteroides atuam perifericamente diminuindo a atividade de 200 • Brasília Med 2012;49(3):198-201 receptores Fc no macrófago no baço e a produção de anticorpos antiplaquetários, estabilizando as membranas, restaurando a integridade do endotélio vascular e reduzindo a hemorragia.8 Porém, essa medicação contribui para aumentar a carga viral e agravar alterações hepáticas.5 Outras medidas incluem imunoglobulina intravenosa, imunoglobulina anti-Rh, interferon alfa, infusão de fator humano de crescimento megacariocítico e esplenectomia.2,6,8 O uso de imunoglobulina intravenosa reduz a fagocitose de plaquetas e a gênese de imunocomplexos, mas tem alto custo e não está amplamente disponível nos países em desenvolvimento.8 Pelo risco de causar hemólise, deve-se utilizar imunoglobulina anti-Rh (D) apenas em doentes sem anemia.7,8 A esplenectomia pode ser uma opção para casos de plaquetopenia refratária à corticoterapia.5 Entretanto, causa redução da fagocitose e risco de infecção grave por germes capsulados.2,8 No presente relato, o paciente desenvolveu cirrose e hipertensão portal em virtude de etilismo, condição que se associa ao hiperesplenismo secundário, importante causa de plaquetopenia. A avaliação laboratorial permitiu descartar a presença de coinfecção pelo vírus da hepatite C. Mesmo nesse contexto, o papel da infecção por HIV não deve ser subestimado, já que o descontrole da replicação viral associado com a cirrose contribui para a ocorrência de hemorragias graves.3 Além disso, ele apresentou 272 linfócitos CD4+ por mm3 e carga viral de 136 cópias por mL. Nos casos com CD4+ acima de 200, predominaria a destruição plaquetária, nos moldes da púrpura trombocitopênica idiopática e, com CD4+ abaixo de duzentos, o defeito na produção de plaquetas seria o mecanismo predominante.6,7 A plaquetopenia permanece como problema clínico no manuseio de infecções por HIV, em especial nos etilistas,9 usuários de drogas injetáveis e coinfectados por vírus da hepatite C.2 Comprovou-se que o etilismo crônico desempenha significativo papel adverso no volume do timo e na contagem plaquetária, além da capacidade cognitiva e resposta aos antirretrovirais.9 Indivíduos desse grupo que são portadores de púrpura trombocitopênica imune usualmente apresentam episódios recorrentes Vitorino Modesto dos Santos e cols. • Plaquetopenia grave e infecção por HIV de plaquetopenia acentuada e exigem repetidos cursos de tratamento.2 Independentemente do mecanismo envolvido, a plaquetopenia de pacientes infectados pelo vírus da imunodeficiência humana tem relação com a carga viral e a progressão da doença. As plaquetas são integrantes de processos inflamatórios e participantes da resposta imunitária, que podem interagir diretamente com o vírus e contribuir para limitar a disseminação do vírus, além de participar de sua inativação.12 Novos estudos devem enfatizar o esclarecimento de mecanismos etiopatogênicos e a busca de terapêutica eficaz para casos graves de plaquetopenia, que persistem acometendo significativo número indivíduos infectados pelo HIV, a despeito da terapia antirretroviral altamente ativa. REFERÊNCIAS 1. Morris L, Distenfeld A, Amorosi E, Karpatkin S. Autoimmune thrombocytopenic purpura in homosexual men. Ann Intern Med. 1982;96(6 Pt 1):714-7. 2. Ambler KL, Vickars LM, Leger CS, Foltz LM, Montaner JS et al. Clinical features, treatment, and outcome of HIV-associated immune thrombocytopenia in the HAART era. Adv Hematol 2012;2012:910954. Epub 2012 May 28. 3. Marks KM, Clarke RM, Bussel JB, Talal AH, Glesby MJ. 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