o homem- cuidado e as práticas de enfermagem

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O HOMEM- CUIDADO E AS PRÁTICAS DE ENFERMAGEM
ALVES∗, Maria Helena L.- PUCPR
[email protected]
MATTAR**, Sandra Maria - PUCPR
[email protected]
***
VOLPI , Neusa Vendramin - PUCPR
[email protected]
Resumo
Para uma melhor compreensão do cuidado enquanto fundamento da prática profissional da
enfermagem, é necessário reconhecê-lo em seu significado, seu surgimento e importância
para a vida humana. Busca-se então conhecimentos que transcendem, os construídos pelas
ciências da saúde, e torna-se necessário olhar na direção das ciências humanas, mais
precisamente na Antropologia, Filosofia e Sociologia, para entender os fundamentos desta
questão. Pretende-se com este trabalho relatar como a questão do cuidado é desenvolvida no
curso de Enfermagem da PUCPR, no
Programa de Aprendizagem denominado
:Determinantes Antropológicos, Culturais, Históricos, Políticos e Sociais da Saúde e da
Enfermagem. Neste Programa, a intenção é formar um profissional Enfermeiro, ciente da sua
responsabilidade social, despertando a consciência da possibilidade da construção de uma
prática profissional, visando alcançar as necessidades de transformação social que hora se
apresentam em nosso país. Com o advento do século XXI muitas mudanças estão ocorrendo
na vida das pessoas, o que nos leva a refletir, a partir de cada profissão, que atitudes devem
ser tomadas diante de tantas transformações. A responsabilidade se acentua quando se
desenvolve um trabalho na Universidade, pois é preciso uma compreensão da realidade
presente, seus significados e valores, tendo em vista um futuro melhor e promissor para os
indivíduos e grupos que estarão atuantes, nesta nova sociedade que emerge. Neste sentido a
formação de enfermeiros conscientes, críticos e reflexivos, responsáveis pela parcela que lhes
cabe na nova construção social. Profissionais Enfermeiros que demonstrem no cotidiano de
trabalho , uma postura que ressalta, que além de serem trabalhadores da área da saúde, esses
profissionais são seres humanos que cuidam de outros seres humanos, com competência,
criatividade e humanidade.
Palavras-chave: Cursos de enfermagem; Formação do enfermeiro crítico; Consciente e
reflexivo; Homem- Cuidado.
Introdução
Fatos confirmados ao longo da história demonstram que desde o aparecimento do
homem na terra, a preocupação do viver mais e melhor, aliada à luta pela sobrevivência e
∗
Enfermeira sanitarista. Professora do Curso de Graduação em Enfermagem da PUCPR - Campus Curitiba, área
da Saúde Coletiva. Mestra em Educação.
**
Professora da PUCPR - Campus Curitiba, Graduada em Ciências Sociais. Mestra em Educação.
***
Professora da PUCPR até 2006 - Campus Curitiba, Graduada em Filosofia. Mestra em Educação.
1228
adaptação, tem sido um desafio constante em seu cotidiano. Desde o início da sua história o
ser humano se reconhece e se retrata como um ser de cuidado. Os avanços e retrocessos das
ciências foram criados e desenvolvidos pelo homem para o alcance desses objetivos.
A enfermagem, enquanto ciência e profissão, existe desde o século XIX, e tem por
intuito ajudar este homem em sua trajetória, como um ser de cuidado. O cuidado tem sido
considerado por muitos autores da enfermagem, como a sua essência, o modo de ser desta
profissão, e é conceituado por Waldow (1998, p.127), como o conjunto de “comportamento e
ações que envolvem conhecimento, valores, habilidades e atitudes, empreendidas no sentido
de favorecer as potencialidades das pessoas para manter ou melhorar a condição humana no
processo de viver e morrer”.
Para uma melhor compreensão do cuidado enquanto fundamento da prática
profissional da enfermagem, é necessário reconhecê-lo em seu significado, seu surgimento e
importância para a vida humana. Busca-se então conhecimentos que transcendem, os
construídos pelas ciências da saúde, e torna-se necessário olhar na direção das Ciências
Humanas, mais precisamente na Antropologia, Filosofia e Sociologia, para se entender os
fundamentos desta questão.
Este trabalho trata-se de um relato sobre o Programa de Aprendizagem: Determinantes
Antropológicos, Culturais, Históricos, Políticos e Sociais da Saúde e da Enfermagem no curso
de Enfermagem, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. A partir do objeto de estudo
das antigas disciplinas:Antropologia, Sociologia e História da Saúde, desenvolve-se uma
reflexão em torno do cuidado, no sentido de realçar uma formação por parte dos futuros
profissionais enfermeiros, cientes da sua responsabilidade social, despertando a consciência
da possibilidade da construção de uma prática profissional, visando alcançar as necessidades
de transformação social.
A formação do profissional enfermeiro: ciências da saúde e ciências humanas
Por muito tempo, mais precisamente desde os gregos, a cultura ocidental define o
homem como animal racional. Heidegger inconformado com o empobrecimento da concepção
de homem que se dá nesta definição, lança mão de uma antiga fábula latina que descreve o
homem como cuidado.
Trata-se da fábula 220 de Higino que era diretor da biblioteca palatina de Augusto, em
Roma, no ano 47 aC. A descrição da fábula faz parte de seu trabalho de compilação de mitos
e histórias da tradição grega e latina, chamado Fábulas e Genealogias1.
1
BOFF, Leonardo. Saber cuidar. Ética do humano, compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999. p.50-52.
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Transcrevemos sua versão para o português :
Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve uma
idéia inspirada. Tomou um pouco de barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto
contemplava o que havia feito apareceu Júpiter.
Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado.
Quando, porém Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter o
proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome.
Enquanto Júpiter e o Cuidado discutiam, surgiu de repente, a Terra. Quis também
ela conferir seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da Terra.
Originou-se então uma discussão generalizada.
De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Este tomou a
seguinte decisão que lhe pareceu justa:
- Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito por ocasião
da morte desta criatura.
- Você, Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo
quando essa criatura morrer.
- Mas como você , Cuidado, foi quem , por primeiro, modelou a criatura, ficará sob
seus cuidados enquanto ela viver.
E uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta
criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil
(BOFF, 1999, p.50).
O que esta fábula nos diz sobre o homem?
Já de início, a fábula nos descreve a origem do homem como uma idéia inspirada.
Nela entram em um primeiro momento, três personagens: Cuidado, Terra e Júpiter. Cuidado
está na origem do homem e o modela com terra, argila. Júpiter então aparece como o doador
do espírito. Os três contribuíram para formar a criatura e cada qual, considerando ser a sua
contribuição a mais importante apresenta-se para nela deixar inscrito o seu nome.
Tem-se já neste momento, uma conjunção interessante que marca a origem do homem
na fábula e que merece ser analisada. O encontro especial de Cuidado, Terra e Júpiter, com a
significação própria de cada um, revelando que Cuidado ao modelar o homem, nele integra
elementos terrestres e celestes, corpo e espírito. Quem é o homem? A dimensão material,
corporal, representada pela terra ou sua nota principal reside no espírito, sopro de Júpiter?
Quem merecerá dar seu nome à Criatura? A questão é polêmica e Saturno é chamado para
arbitrar. Saturno é o deus do tempo e em sua sabedoria decide que Júpiter lhe deu o espírito e
então o receberá por ocasião de sua morte; a Terra que lhe deu o corpo também o receberá por
ocasião de sua morte e o Cuidado que o modelou o terá enquanto viver. E o seu nome? Seu
nome será homem, feito de húmus, terra fértil.
Portanto, Cuidado está na gênese do homem que enquanto viver ficará sob seus
cuidados, ou dito de outra forma, a origem e a existência do homem compreendem-se como
cuidado. Mas do que cuida o cuidado? Cuidado para manter-se, precisará cuidar das diversas
dimensões que compõem o humano. Elas estão integradas de forma que seu empenho realiza-
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se na medida em que é sensibilidade e atenção ao conjunto. A análise que por ora se realiza, e
decompõe este conjunto em suas partes constitutivas representa um afastamento da realidade
humana onde os elementos estão integrados, trata-se porém de uma estratégia necessária para
se descrever o homem na fábula.
Cuidado originou e cuida da existência do homem enquanto corpo. O que significa ser
corpóreo? Significa interagir com os mesmos elementos do planeta, descobrir-se formado de
2/3 de água, incapaz de viver sem ar, formado da mesma matéria que compõem as estrelas, o
mar e as árvores. Enquanto corpo o homem participa da festa de ser e viver, mas também é
um ser exposto e vulnerável que necessita de alimento e abrigo, adoece, envelhece e morre. A
sensibilidade do corpo é também passividade e o homem enquanto carne é um ser passível de
sofrimento e dor que lhe lembram constantemente sua condição mortal e sua necessidade de
cuidados. Mas cuidar do corpo é também cuidar do planeta que o origina e está em
intercâmbio constante com ele, é cuidar da natureza e da distribuição de seus bens que
garantem condições de vida. Porém, nessa ânsia de transformar o planeta e assim torná-lo
condizente com suas necessidades de sobrevivência, o homem, acaba por transformar a si
mesmo e o seu modo de vida, levando, muitas vezes a atitudes que criam ameaças à sua
integridade física e mental.
Cuidado solicita também o sopro do espírito. A dimensão do espírito representa no
homem a consciência, a liberdade e a capacidade de amar; sem contar que para os que crêem
ela incorpora a divindade na humanidade. Assim sendo, se o homem enquanto corpo é
exposição e vulnerabilidade, o espírito lhe permite tomar consciência da situação e tomar
decisões que articulem as condições do corpo com as condições de seu mundo de maneira que
a fome e a doença sejam evitadas, tratadas e a morte retardada. A consciência e a liberdade
permitem recorrer ao veredicto de aniquilamento que pesa sobre o homem e adiá-lo, enquanto
o amor se desdobra em proteção e compromisso inteligente para com a vida plena deste ser.
Vale questionar a forma como a cultura trata da dimensão corpórea e espiritual do
homem. Sabe-se que a dicotomia entre corpo e alma perpassa a história do Ocidente e está
presente na própria definição do homem como animal racional. Só recentemente, com autores
como Merleau Ponty é que se começa a perceber que o corpo humano embora biologicamente
semelhante ao do animal, expressa sua humanidade, sua dimensão psíquica, espiritual em
cada um de seus processos. Trata-se de uma unidade entre organismo e psiquismo presentes
nas percepções, nos movimentos, na sexualidade, na fala, em tudo que caracteriza o homem.
Desta forma as dimensões de corpo e espírito presentes na fábula através da Terra e de
Júpiter, se dão na unidade de seu ser. Em todas as suas ações o homem integra seu corpo
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inteligente e sensível, que aberto ao mundo e aos outros vai construindo sua história pessoal,
no seio da natureza e da história social.
Tendo por base o cuidado pode-se refletir sua importância e relação à Enfermagem e a
postura profissional adotada por seus representantes. Tradicionalmente, as áreas das ciências,
em especial as ciências que envolvem a saúde e, por conseqüência, o exercício profissional da
Enfermagem, vem obedecendo a uma visão mecanicista e reducionista da natureza humana.
Neste olhar o corpo humano, visto como uma máquina, nos é apresentado de forma
fragmentada,
dividido em partes. Neste processo reducionista, evidencia-se a separação
muito forte do corpo e da alma, representados por Terra e Júpiter.
Neste pensar, o trabalho da Enfermagem é fortemente valorizado, quando o centro de
sua atuação profissional volta-se para a assistência hospitalar e medicalizadora, ignorando, de
maneira significativa, a enorme rede de fenômenos que influenciam a saúde. A visão
fragmentada tem impedido de acrescer aos aspectos biológicos das doenças, as condições
físicas e psicológicas próprias dos seres humanos em seu ambiente natural e social. A
preocupação em somente tratar da doença, assistindo o ser humano, considera-o neste
contexto como “uma peça a mais da engrenagem”, e tem desconsiderado a capacidade do
homem em influenciar positiva ou negativamente nos processos que buscam saúde ou
levam`a doença e principalmente no seu potencial de contribuir ou não para a sua
recuperação e cura.
Esta visão fragmentada da realidade é criticada por Capra (1996), em seu livro A teia
da vida: Uma nova Compreensão científica dos sistemas vivos. O autor em uma análise que
integra conhecimento científicos e sócio-culturais, descreve como globais os problemas que
estão danificando a biosfera e a vida humana. Segundo ele, por serem problemas sistêmicos,
isto é, interligados e interdependentes, não podem, ser entendidos isoladamente. A solução
estaria numa sociedade sustentável, cujas necessidades seriam satisfeitas sem comprometer e
diminuir as chances das gerações futuras. Este seria então o grande desafio do nosso tempo,
“criar comunidades sustentáveis, isto é, ambientes sociais e culturais onde podemos satisfazer
as nossas necessidades e aspirações sem diminuir as chances das gerações futuras”
(CAPRA,1996, p.24).
Isto na verdade significa uma mudança de paradigma. Uma mudança de nossas
percepções, nosso pensamento e dos nossos valores; seria a superação de uma visão de mundo
mecanicista de Descartes e de Newton, para uma visão holística, ecológica, que concebe o
mundo como um todo integrado, e não como uma coleção de partes dissociadas.
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Nesta nova visão que ele denomina de Ecologia Profunda, o mundo não é uma coleção
de objetos isolados, mas uma rede de fenômenos que estão fundamentalmente interconectados
e são interdependentes. Ele reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe os
seres humanos apenas como um fio particular na teia da vida
Essa sensação de pertinência é que faz com que indivíduos e grupos sintam-se
responsáveis pela construção histórica e pelo outro. Esta concepção é fruto de um
amadurecimento histórico-social
Refletindo a partir do texto: Avaliação, Sociedade e Escola da Secretaria de Estado e
Educação, de Curitiba (1985), podemos analisar, como a concepção de homem, trabalho e
sociedade foi sendo modificada com o tempo.
Na Antigüidade o homem é um animal racional e o raciocínio pode ser aprimorado
por meio de treinamentos intelectuais, já o trabalho é considerado como algo “não racional”,
serviço para a classe inferior, onde cada indivíduo nascia com a predestinação de ser escravo,
artesão ou cidadão. A ordem era estabelecida pela desigualdade, alguns nasceram para pensar
e outros para trabalhar.
Na Idade Média o homem é um animal racional porque Deus lhe deu alma. Nela
valorizam-se os conhecimentos teológicos. Quanto ao trabalho, a situação pouco se alterou,
produzia-se para o consumo imediato. Cada homem ao nascer tinha seu lugar definido, cuja
explicação era dada pelo desejo ou desígnio estabelecido por Deus. As diferenças preservadas
pela Glória de Deus, geram argumentos que vão além da responsabilidade do próprio homem.
Observando pelo prisma da saúde, o homem primitivo busca explicações para suas
condições de vida em um sistema de idéias de cunho mágico, religioso, sobrenatural. No
período Feudal, sendo a instância ideológica dominante monopolizada pela Igreja Católica, a
regulação da vida dos indivíduos e a concepção sobre saúde e doença será por ela pautada. As
práticas de tratamento e cura das doenças, se dão através de ritos pagãos e cristãos, pois as
doenças são atribuídas à possessão do diabo, conseqüências da feitiçaria, podendo ser vistas
como formas de purificação e expiação dos pecados.
Na sociedade Moderna, o homem é um animal racional que trabalha para melhorar o
mundo dos homens e ter sucesso. O trabalho neste período assume grande importância como
fonte de riqueza para melhorar a condição de vida de todos os homens; o trabalho é fonte de
abundância. Todos podem participar da organização e das decisões do Estado; a escravidão e
o poder absoluto dos papas e reis não mais se justificam. O regime político do absolutismo
cede lugar às monarquias, ao parlamentarismo e à representação dos cidadãos, na democracia.
Criaturas da mesma espécie são iguais e tem liberdade para trabalhar ou não. Começa-se a
1233
pensar que o trabalho do corpo e das mãos das pessoas é propriedade de quem o realizou. No
domínio das ciências naturais, física e química são imprescindíveis para as mudanças sociais
relacionadas ao trabalho. As transformações econômicas, políticas e culturais colocam
problemas inéditos para o homem, é o triunfo da indústria capitalista. Surge então a
Sociologia, como resultado da contribuição de vários pensadores que tinham como intenção
compreender as novas situações de existência desta nova sociedade.
O que se observa no período capitalista moderno, é uma acelerada mudança no que diz
respeito à vida das pessoas. O processo científico colabora com o acúmulo de conhecimentos
de toda ordem. No campo da medicina cada vez mais o conhecimento do organismo humano,
se faz presente em termos de suas partes, suas funções, suas interdependências, seu
funcionamento.
O corpo assume um significado novo, segundo a posição dos homens no processo
produtivo e de acordo com o sistema capitalista, passa a ter um valor de mercado.
Neste contexto, a prática médica adquire uma importância e um significado
econômico; de um lado tem como função à conservação e a reprodução da força de trabalho e
de outro compõem o mercado na condição de consumidor sob a forma de medicamentos,
atendimentos, tecnologia, etc. Conforme a posição do indivíduo nas classes sociais pode-se
observar as práticas médicas em diferentes propósitos: a manutenção e reposição das forças
físicas para a produção dos trabalhadores, ou a otimização das condições físicas e a estética
para as classes de melhor prestígio.
Neste aspecto também é necessário pensar sobre a contribuição da Enfermagem
enquanto prática profissional e social. Ao refletirmos sobre a prática do cuidado com o ser
humano, vemos que muito pouco se conseguiu avançar. Hoje, apenas substituem-se os modos
de adoecer e morrer; se antes morria-se de doenças que provocavam grandes epidemias, de
parto e
de fome, hoje, o homem, além de adoecer e morrer dessas mesmas doenças,
acrescentou a estas, processos sociais que o levam a morrer de solidão, especialmente em
conseqüência da violência humana. Alia-se, a estes processos, alimentação incorreta tanto
qualitativa como quantitativamente, as doenças ditas do desenvolvimento, advindas das
características das sociedades modernas, enfim, da relação capitalista do homem com o seu
meio. O cuidado na Enfermagem tem sido desenvolvido, como uma ação centrada, em
especial, no cuidar apenas de uma parte doente do ser humano.
O atendimento focado no cuidar da doença, leva o profissional a descartar determinada
parte da história do paciente, não considerando o antes nem o depois da instalação do agravo
ou da doença. Cuidando, portanto, de forma fragmentada, com forte tendência a enfocar a
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técnica pela técnica. Acredita-se que esta atuação fragmentada advém de um ensino que tem
se apresentado de maneira conservadora, tradicional, calcando a sua prática pedagógica na
reprodução e na memorização. Esse ensino tem se limitado a enfocar, ao longo da história, o
assistir e o cuidar da doença.
É hora de parar para refletir e também de agir. Não é mais possível a preocupação
somente com o dano já instalado; é hora de buscar formas inovadoras de cuidar em conjunto
com outros profissionais interessados em uma nova forma de ser, estar e fazer.
Não se trata puramente de abandonar o valor dos aspectos biológicos presentes na
“teia da vida”, aos processos de saúde/ doença dos indivíduos e sim acrescer a estes, uma
concepção emergente aos nossos conhecimentos que possibilitem à Enfermagem muito mais
do que o cuidar e o assistir à doença. Essa nova concepção visa em conjunto com outros
profissionais e a coletividade, enfocar o transformar, os modos de vida, para que se possa Ter
mais qualidade no viver, mais sabedoria na relação com o mundo e, principalmente, que se
tenha a consciência da responsabilidade do ser humano com a sua própria história.
A arte de viver, adoecer e morrer não é determinada só pelo acaso ou forças
sobrenaturais, mas principalmente, pelo modo com que os homens escolhem ou podem
escolher para viver as suas vidas.
Portanto, se não dá para se cuidar do homem senão na unidade de seu corpo-psíquico
que remete a sua individualidade de pessoa e às suas relações com o planeta, uma vez que
ambos participam de uma mesma natureza; também não se pode cuidar do homem sem se
cuidar dos homens. Enquanto ser de relações, o projeto humano só se constrói na coletividade,
nas relações inter-humanas, que constituem a sociedade e a cultura. Cuidar do indivíduo e
descuidar da sociedade faz parte de uma compreensão reducionista que não percebe que
sozinho o homem sequer seria homem, pois, não haveria conquistado as dimensões de
racionalidade, linguagem, ética e a afetividade amorosa que o caracterizam. Assim cuidar do
homem envolve o zelo social, político, educacional e cidadão capaz de repartir a produção
econômica de forma justa, garantindo assim o acesso de todos à vida digna. É
responsabilidade primeira de todas as pessoas que assumem posturas de cuidado, para a sua
vida, e entre estas podemos citar os enfermeiros e também os educadores, a apropriação e a
construção conjunta de conhecimentos e posturas, que busquem transformar o viver em
sociedade, transformando a história do homem, imprimindo maior qualidade à sua vida e de
toda a coletividade.
Retomando a análise da fábula, não se pode deixar passar desapercebida a figura de
Saturno, deus do tempo, aquele que é chamado a se pronunciar sobre o nome, sobre a
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identidade da criatura modelada por Cuidado. A fábula em sua linguagem insinuante e
metafórica diz que é o tempo quem decide quem somos. Enquanto humanos, somos húmus,
terra fértil, terreno de possibilidades, receptivo a sementes e germinações diversas. Tem-se
então que o que caracteriza o ser do homem é o seu poder- ser, sua abertura à possibilidades, a
liberdade de ser o construtor de si mesmo. Mas a liberdade de se construir é também
responsabilidade e cuidado para com a construção, pois trata-se de uma obra delicada que vai
engendrando o homem em sua dimensão individual e social. O nome verdadeiro que expressa
a identidade que cada um construiu, gera-se no tempo e só ao final da caminhada pode ser
dito.
Quando Heidegger (1979, p.158) denomina o homem de “pastor do ser”, ele está
propondo o cuidado como sua constituição ontológica, característica que marca seu ser em
todas as suas manifestações. O próprio corpo do homem é perpassado por esta característica
que o faz abertura e sensibilidade ao mundo que o cerca, e que ao mesmo tempo lhe revela as
coisas como objetos de sua ocupação e os homens como objetos de sua preocupação, ambos
necessitando de seu zelo e cuidado.
Novamente neste sentido, nos reportando à prática do cuidado desenvolvido pelos
profissionais da Enfermagem, que enquanto prática de trabalho se reconhece na ação básica
da profissão que se mostra no cuidar, como também se identifica sua designação conceitual,
que se entende como ciência e arte, e é descrita por Lima, citado por Tavares como uma
profissão que “em princípio assume a responsabilidade de se solidarizar com pessoas, grupos,
famílias e comunidades com o objetivo de mobilizar a cooperação de cada ser humano para
conseguir, conservar e se manter em estado de saúde” (MEYER; WALDOW; LOPES, 1998,
p. 225).
Em que pese este olhar progressista sobre a prática profissional da Enfermagem esta
ainda é vista e vivenciada por muitos como simplesmente o cumprimento de atividades
realizadas com uma abordagem que enfatiza a técnica, a atuação mecânica, reducionista e
linear. Neste contexto cabe a contribuição de Waldow (1998, p.14), quando aponta que:
Na maioria das instituições, tanto no ensino de enfermagem como na sua prática, o
cuidado é desenvolvido de forma mecânica, orientado por tarefas, seguindo normas
e prescrições. As relações nesses ambientes são frágeis, encobrem hostilidades,
tensões, indiferença. O contato com a clientela é cada vez menos freqüente, por
vezes frio, e mesmo grosseiro.
Assim, quando se pensa nos cuidados de saúde e enfermagem, restritos à dimensão do
corpo, que por sua vez, na concepção cartesiana, tão presente em nossa cultura, é igualado a
uma máquina, está se promovendo um reducionismo que apequena e desencanta esta
1236
atividade. O ser humano entrelaça em si tantas dimensões, é dono de tamanha complexidade
que exige uma formação que tenha presente a riqueza de seu ser.
Considerações finais
Cabe portanto, refletir a necessidade da Enfermagem avançar, tanto pelas trilhas do
técnico/instrumental quanto nos outros aspectos relevantes que vêm se apresentando à
sociedade neste momento histórico. Essa reflexão passa a ser imprescindível para o
desenvolvimento da prática profissional com qualidade. Esses aspectos são mencionados e
delineados por Gomes (2001, p.32), como a utilização do “pensamento crítico, que visa a uma
prática de enfermagem autônoma e eficiente. Conseqüentemente, transformadora do modelo
assistencial vigente, revertendo-se em efetivas melhorias do quadro sanitário do país”. Este
pensar leva à proposição de que o profissional deve ultrapassar o saber fazer, alcançando o
saber saber, concretizando-se no saber ser.
À medida que a formação do enfermeiro estiver atenta ao universo que se reúne no
homem e que de alguma forma a fábula de Higino tenta captar, seu leque de compreensão e
atuação se expandirá, contemplando áreas, significados e valores inimagináveis em uma
concepção mecanicista. A profissão será reencantada e seu compromisso se traduzirá em
cuidados capazes de ter em conta as diversas dimensões do humano, onde a luz do espírito
reluz através do barro que o conforma, em uma exposição constante de majestade e pobreza.
A Enfermagem compreenderá então que o homem merece uma prática profissional
onde “O cuidado necessita ser uma instância de conscientização e transformação individual e
coletiva para a liberdade, para o avanço emancipador” (SILVA, 1998, p. 78).
Hoje tem-se a compreensão de que é necessário mudar a nossa prática profissional,
bem como existe a convicção que muito desta mudança acontecerá em decorrência da forma
como “ensinamos “ o ser e o fazer Enfermagem. Esta só terá a qualidade necessária e
esperada quando mudar a postura e o enfoque da caminhada do homem em seu viver social,
incluída aí, sua prática cotidiana de trabalho.
A Sociologia é uma das áreas que colabora com esta formação, pois a sociedade
apresenta características que o profissional Enfermeiro precisa conhecer para poder organizar
o seu dia-a-dia, as suas relações sociais, a sua participação nas instituições sociais, a partir dos
valores que sejam representativos e compartilhados por todos. É possível pelo conhecimento
da Sociologia por parte dos profissionais da enfermagem, observar e apreender a regularidade
que existe nos acontecimentos sociais, as leis da vida social. Analisar a enfermagem do ponto
de vista sociológico, é tentar entender os processos de vida, de doença, de saúde e de morte
1237
dos indivíduos e grupos. É verificar como os grupos se organizam, como se dá à interação
social, como são os padrões sociais e a conseqüente socialização. E ainda, é tentar entender
como os indivíduos e grupos percebem estas situações sociais e quais as práticas de saúde
utilizadas.
É importante tal conhecimento para que se possa prever de certa forma, os possíveis
acontecimentos futuros de uma determinada sociedade. Segundo Costa.(1977, p. 9)
Abre-se assim, então, a possibilidade de se poder intervir conscientemente nos
processos, tanto para reforçá-los como para negá-los, dependendo dos interesses do
jogo. O conhecimento da Sociologia não é mais restrito aos cientistas sociais. Eles
fazem parte de um modo de perceber e interpretar os acontecimentos formados pela
disseminação de procedimentos e técnicas da vida social, sendo um modo de
conhecer a realidade tão confiável quanto de qualquer ciência.
A Sociologia pode colaborar para a formação de um profissional competente
tecnicamente, mas, sobretudo com um profissional que ultrapasse a técnica em nome de um
comportamento engajado, um profissional enfermeiro consciente de seus deveres e direitos
de cidadão na sociedade em que vive. Esta conscientização deve levar a uma vida mais
participativa na ordem social, econômica e política. E é pela participação que indivíduos e
grupos conquistam direitos, é pela participação consciente que podemos vir a transformar a
sociedade de maneira mais justa e igualitária.
Tal desafio alicerça-se na procura de novos “modos de ser e de fazer” mais
significativos, e se estes não existirem buscar construí-los com outros profissionais
preocupados com esta problemática, para que possamos trilhar caminhos que transformem
seres humanos em indivíduos com pleno exercício de cidadania.
No futuro será possível que os profissionais Enfermeiros compreendam e incorporem,
aos significados da Fábula de Higino, a noção de que, segundo o que afirma Boff (2001, p.12)
Construímos o mundo a partir de laços afetivos. Estes laços fazem com que as
pessoas e as situações sejam portadoras de valor [...] Não habitamos o mundo
somente através do trabalho, mas fundamentalmente através do cuidado e da
amorosidade. É aqui que aparece o humano do ser humano. Daí se conclui que o
dado original não é o logos, a razão e as estruturas da compreensão, mas sim o
phatos, o sentimento, a capacidade de simpatia, de empatia, de compaixão, de
dedicação e de cuidado com o diferente.
O profissional Enfermeiro, poderá reagir ante este desafio, despertando a consciência
da possibilidade da construção de uma prática profissional, visando a alcançar as necessidades
de transformação social que hora se apresentam em nosso país. Os cursos de enfermagem
cientes da sua responsabilidade social, irão projetar e realizar o seu desejo de serem cursos,
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onde mais do que técnicos por excelência na profissão, sejam os seus egressos Enfermeiros
conscientes, críticos e reflexivos, responsáveis pela parcela que lhes cabe na nova construção
social. Será percebido então no cotidiano de trabalho dos enfermeiros, uma postura que
ressalta, que além de serem trabalhadores da área da saúde, esses profissionais são seres
humanos que cuidam de outros seres humanos, com competência, criatividade e humanidade.
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