O HOMEM- CUIDADO E AS PRÁTICAS DE ENFERMAGEM ALVES∗, Maria Helena L.- PUCPR [email protected] MATTAR**, Sandra Maria - PUCPR [email protected] *** VOLPI , Neusa Vendramin - PUCPR [email protected] Resumo Para uma melhor compreensão do cuidado enquanto fundamento da prática profissional da enfermagem, é necessário reconhecê-lo em seu significado, seu surgimento e importância para a vida humana. Busca-se então conhecimentos que transcendem, os construídos pelas ciências da saúde, e torna-se necessário olhar na direção das ciências humanas, mais precisamente na Antropologia, Filosofia e Sociologia, para entender os fundamentos desta questão. Pretende-se com este trabalho relatar como a questão do cuidado é desenvolvida no curso de Enfermagem da PUCPR, no Programa de Aprendizagem denominado :Determinantes Antropológicos, Culturais, Históricos, Políticos e Sociais da Saúde e da Enfermagem. Neste Programa, a intenção é formar um profissional Enfermeiro, ciente da sua responsabilidade social, despertando a consciência da possibilidade da construção de uma prática profissional, visando alcançar as necessidades de transformação social que hora se apresentam em nosso país. Com o advento do século XXI muitas mudanças estão ocorrendo na vida das pessoas, o que nos leva a refletir, a partir de cada profissão, que atitudes devem ser tomadas diante de tantas transformações. A responsabilidade se acentua quando se desenvolve um trabalho na Universidade, pois é preciso uma compreensão da realidade presente, seus significados e valores, tendo em vista um futuro melhor e promissor para os indivíduos e grupos que estarão atuantes, nesta nova sociedade que emerge. Neste sentido a formação de enfermeiros conscientes, críticos e reflexivos, responsáveis pela parcela que lhes cabe na nova construção social. Profissionais Enfermeiros que demonstrem no cotidiano de trabalho , uma postura que ressalta, que além de serem trabalhadores da área da saúde, esses profissionais são seres humanos que cuidam de outros seres humanos, com competência, criatividade e humanidade. Palavras-chave: Cursos de enfermagem; Formação do enfermeiro crítico; Consciente e reflexivo; Homem- Cuidado. Introdução Fatos confirmados ao longo da história demonstram que desde o aparecimento do homem na terra, a preocupação do viver mais e melhor, aliada à luta pela sobrevivência e ∗ Enfermeira sanitarista. Professora do Curso de Graduação em Enfermagem da PUCPR - Campus Curitiba, área da Saúde Coletiva. Mestra em Educação. ** Professora da PUCPR - Campus Curitiba, Graduada em Ciências Sociais. Mestra em Educação. *** Professora da PUCPR até 2006 - Campus Curitiba, Graduada em Filosofia. Mestra em Educação. 1228 adaptação, tem sido um desafio constante em seu cotidiano. Desde o início da sua história o ser humano se reconhece e se retrata como um ser de cuidado. Os avanços e retrocessos das ciências foram criados e desenvolvidos pelo homem para o alcance desses objetivos. A enfermagem, enquanto ciência e profissão, existe desde o século XIX, e tem por intuito ajudar este homem em sua trajetória, como um ser de cuidado. O cuidado tem sido considerado por muitos autores da enfermagem, como a sua essência, o modo de ser desta profissão, e é conceituado por Waldow (1998, p.127), como o conjunto de “comportamento e ações que envolvem conhecimento, valores, habilidades e atitudes, empreendidas no sentido de favorecer as potencialidades das pessoas para manter ou melhorar a condição humana no processo de viver e morrer”. Para uma melhor compreensão do cuidado enquanto fundamento da prática profissional da enfermagem, é necessário reconhecê-lo em seu significado, seu surgimento e importância para a vida humana. Busca-se então conhecimentos que transcendem, os construídos pelas ciências da saúde, e torna-se necessário olhar na direção das Ciências Humanas, mais precisamente na Antropologia, Filosofia e Sociologia, para se entender os fundamentos desta questão. Este trabalho trata-se de um relato sobre o Programa de Aprendizagem: Determinantes Antropológicos, Culturais, Históricos, Políticos e Sociais da Saúde e da Enfermagem no curso de Enfermagem, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. A partir do objeto de estudo das antigas disciplinas:Antropologia, Sociologia e História da Saúde, desenvolve-se uma reflexão em torno do cuidado, no sentido de realçar uma formação por parte dos futuros profissionais enfermeiros, cientes da sua responsabilidade social, despertando a consciência da possibilidade da construção de uma prática profissional, visando alcançar as necessidades de transformação social. A formação do profissional enfermeiro: ciências da saúde e ciências humanas Por muito tempo, mais precisamente desde os gregos, a cultura ocidental define o homem como animal racional. Heidegger inconformado com o empobrecimento da concepção de homem que se dá nesta definição, lança mão de uma antiga fábula latina que descreve o homem como cuidado. Trata-se da fábula 220 de Higino que era diretor da biblioteca palatina de Augusto, em Roma, no ano 47 aC. A descrição da fábula faz parte de seu trabalho de compilação de mitos e histórias da tradição grega e latina, chamado Fábulas e Genealogias1. 1 BOFF, Leonardo. Saber cuidar. Ética do humano, compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999. p.50-52. 1229 Transcrevemos sua versão para o português : Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve uma idéia inspirada. Tomou um pouco de barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava o que havia feito apareceu Júpiter. Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado. Quando, porém Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e o Cuidado discutiam, surgiu de repente, a Terra. Quis também ela conferir seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da Terra. Originou-se então uma discussão generalizada. De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que lhe pareceu justa: - Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito por ocasião da morte desta criatura. - Você, Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer. - Mas como você , Cuidado, foi quem , por primeiro, modelou a criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver. E uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil (BOFF, 1999, p.50). O que esta fábula nos diz sobre o homem? Já de início, a fábula nos descreve a origem do homem como uma idéia inspirada. Nela entram em um primeiro momento, três personagens: Cuidado, Terra e Júpiter. Cuidado está na origem do homem e o modela com terra, argila. Júpiter então aparece como o doador do espírito. Os três contribuíram para formar a criatura e cada qual, considerando ser a sua contribuição a mais importante apresenta-se para nela deixar inscrito o seu nome. Tem-se já neste momento, uma conjunção interessante que marca a origem do homem na fábula e que merece ser analisada. O encontro especial de Cuidado, Terra e Júpiter, com a significação própria de cada um, revelando que Cuidado ao modelar o homem, nele integra elementos terrestres e celestes, corpo e espírito. Quem é o homem? A dimensão material, corporal, representada pela terra ou sua nota principal reside no espírito, sopro de Júpiter? Quem merecerá dar seu nome à Criatura? A questão é polêmica e Saturno é chamado para arbitrar. Saturno é o deus do tempo e em sua sabedoria decide que Júpiter lhe deu o espírito e então o receberá por ocasião de sua morte; a Terra que lhe deu o corpo também o receberá por ocasião de sua morte e o Cuidado que o modelou o terá enquanto viver. E o seu nome? Seu nome será homem, feito de húmus, terra fértil. Portanto, Cuidado está na gênese do homem que enquanto viver ficará sob seus cuidados, ou dito de outra forma, a origem e a existência do homem compreendem-se como cuidado. Mas do que cuida o cuidado? Cuidado para manter-se, precisará cuidar das diversas dimensões que compõem o humano. Elas estão integradas de forma que seu empenho realiza- 1230 se na medida em que é sensibilidade e atenção ao conjunto. A análise que por ora se realiza, e decompõe este conjunto em suas partes constitutivas representa um afastamento da realidade humana onde os elementos estão integrados, trata-se porém de uma estratégia necessária para se descrever o homem na fábula. Cuidado originou e cuida da existência do homem enquanto corpo. O que significa ser corpóreo? Significa interagir com os mesmos elementos do planeta, descobrir-se formado de 2/3 de água, incapaz de viver sem ar, formado da mesma matéria que compõem as estrelas, o mar e as árvores. Enquanto corpo o homem participa da festa de ser e viver, mas também é um ser exposto e vulnerável que necessita de alimento e abrigo, adoece, envelhece e morre. A sensibilidade do corpo é também passividade e o homem enquanto carne é um ser passível de sofrimento e dor que lhe lembram constantemente sua condição mortal e sua necessidade de cuidados. Mas cuidar do corpo é também cuidar do planeta que o origina e está em intercâmbio constante com ele, é cuidar da natureza e da distribuição de seus bens que garantem condições de vida. Porém, nessa ânsia de transformar o planeta e assim torná-lo condizente com suas necessidades de sobrevivência, o homem, acaba por transformar a si mesmo e o seu modo de vida, levando, muitas vezes a atitudes que criam ameaças à sua integridade física e mental. Cuidado solicita também o sopro do espírito. A dimensão do espírito representa no homem a consciência, a liberdade e a capacidade de amar; sem contar que para os que crêem ela incorpora a divindade na humanidade. Assim sendo, se o homem enquanto corpo é exposição e vulnerabilidade, o espírito lhe permite tomar consciência da situação e tomar decisões que articulem as condições do corpo com as condições de seu mundo de maneira que a fome e a doença sejam evitadas, tratadas e a morte retardada. A consciência e a liberdade permitem recorrer ao veredicto de aniquilamento que pesa sobre o homem e adiá-lo, enquanto o amor se desdobra em proteção e compromisso inteligente para com a vida plena deste ser. Vale questionar a forma como a cultura trata da dimensão corpórea e espiritual do homem. Sabe-se que a dicotomia entre corpo e alma perpassa a história do Ocidente e está presente na própria definição do homem como animal racional. Só recentemente, com autores como Merleau Ponty é que se começa a perceber que o corpo humano embora biologicamente semelhante ao do animal, expressa sua humanidade, sua dimensão psíquica, espiritual em cada um de seus processos. Trata-se de uma unidade entre organismo e psiquismo presentes nas percepções, nos movimentos, na sexualidade, na fala, em tudo que caracteriza o homem. Desta forma as dimensões de corpo e espírito presentes na fábula através da Terra e de Júpiter, se dão na unidade de seu ser. Em todas as suas ações o homem integra seu corpo 1231 inteligente e sensível, que aberto ao mundo e aos outros vai construindo sua história pessoal, no seio da natureza e da história social. Tendo por base o cuidado pode-se refletir sua importância e relação à Enfermagem e a postura profissional adotada por seus representantes. Tradicionalmente, as áreas das ciências, em especial as ciências que envolvem a saúde e, por conseqüência, o exercício profissional da Enfermagem, vem obedecendo a uma visão mecanicista e reducionista da natureza humana. Neste olhar o corpo humano, visto como uma máquina, nos é apresentado de forma fragmentada, dividido em partes. Neste processo reducionista, evidencia-se a separação muito forte do corpo e da alma, representados por Terra e Júpiter. Neste pensar, o trabalho da Enfermagem é fortemente valorizado, quando o centro de sua atuação profissional volta-se para a assistência hospitalar e medicalizadora, ignorando, de maneira significativa, a enorme rede de fenômenos que influenciam a saúde. A visão fragmentada tem impedido de acrescer aos aspectos biológicos das doenças, as condições físicas e psicológicas próprias dos seres humanos em seu ambiente natural e social. A preocupação em somente tratar da doença, assistindo o ser humano, considera-o neste contexto como “uma peça a mais da engrenagem”, e tem desconsiderado a capacidade do homem em influenciar positiva ou negativamente nos processos que buscam saúde ou levam`a doença e principalmente no seu potencial de contribuir ou não para a sua recuperação e cura. Esta visão fragmentada da realidade é criticada por Capra (1996), em seu livro A teia da vida: Uma nova Compreensão científica dos sistemas vivos. O autor em uma análise que integra conhecimento científicos e sócio-culturais, descreve como globais os problemas que estão danificando a biosfera e a vida humana. Segundo ele, por serem problemas sistêmicos, isto é, interligados e interdependentes, não podem, ser entendidos isoladamente. A solução estaria numa sociedade sustentável, cujas necessidades seriam satisfeitas sem comprometer e diminuir as chances das gerações futuras. Este seria então o grande desafio do nosso tempo, “criar comunidades sustentáveis, isto é, ambientes sociais e culturais onde podemos satisfazer as nossas necessidades e aspirações sem diminuir as chances das gerações futuras” (CAPRA,1996, p.24). Isto na verdade significa uma mudança de paradigma. Uma mudança de nossas percepções, nosso pensamento e dos nossos valores; seria a superação de uma visão de mundo mecanicista de Descartes e de Newton, para uma visão holística, ecológica, que concebe o mundo como um todo integrado, e não como uma coleção de partes dissociadas. 1232 Nesta nova visão que ele denomina de Ecologia Profunda, o mundo não é uma coleção de objetos isolados, mas uma rede de fenômenos que estão fundamentalmente interconectados e são interdependentes. Ele reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe os seres humanos apenas como um fio particular na teia da vida Essa sensação de pertinência é que faz com que indivíduos e grupos sintam-se responsáveis pela construção histórica e pelo outro. Esta concepção é fruto de um amadurecimento histórico-social Refletindo a partir do texto: Avaliação, Sociedade e Escola da Secretaria de Estado e Educação, de Curitiba (1985), podemos analisar, como a concepção de homem, trabalho e sociedade foi sendo modificada com o tempo. Na Antigüidade o homem é um animal racional e o raciocínio pode ser aprimorado por meio de treinamentos intelectuais, já o trabalho é considerado como algo “não racional”, serviço para a classe inferior, onde cada indivíduo nascia com a predestinação de ser escravo, artesão ou cidadão. A ordem era estabelecida pela desigualdade, alguns nasceram para pensar e outros para trabalhar. Na Idade Média o homem é um animal racional porque Deus lhe deu alma. Nela valorizam-se os conhecimentos teológicos. Quanto ao trabalho, a situação pouco se alterou, produzia-se para o consumo imediato. Cada homem ao nascer tinha seu lugar definido, cuja explicação era dada pelo desejo ou desígnio estabelecido por Deus. As diferenças preservadas pela Glória de Deus, geram argumentos que vão além da responsabilidade do próprio homem. Observando pelo prisma da saúde, o homem primitivo busca explicações para suas condições de vida em um sistema de idéias de cunho mágico, religioso, sobrenatural. No período Feudal, sendo a instância ideológica dominante monopolizada pela Igreja Católica, a regulação da vida dos indivíduos e a concepção sobre saúde e doença será por ela pautada. As práticas de tratamento e cura das doenças, se dão através de ritos pagãos e cristãos, pois as doenças são atribuídas à possessão do diabo, conseqüências da feitiçaria, podendo ser vistas como formas de purificação e expiação dos pecados. Na sociedade Moderna, o homem é um animal racional que trabalha para melhorar o mundo dos homens e ter sucesso. O trabalho neste período assume grande importância como fonte de riqueza para melhorar a condição de vida de todos os homens; o trabalho é fonte de abundância. Todos podem participar da organização e das decisões do Estado; a escravidão e o poder absoluto dos papas e reis não mais se justificam. O regime político do absolutismo cede lugar às monarquias, ao parlamentarismo e à representação dos cidadãos, na democracia. Criaturas da mesma espécie são iguais e tem liberdade para trabalhar ou não. Começa-se a 1233 pensar que o trabalho do corpo e das mãos das pessoas é propriedade de quem o realizou. No domínio das ciências naturais, física e química são imprescindíveis para as mudanças sociais relacionadas ao trabalho. As transformações econômicas, políticas e culturais colocam problemas inéditos para o homem, é o triunfo da indústria capitalista. Surge então a Sociologia, como resultado da contribuição de vários pensadores que tinham como intenção compreender as novas situações de existência desta nova sociedade. O que se observa no período capitalista moderno, é uma acelerada mudança no que diz respeito à vida das pessoas. O processo científico colabora com o acúmulo de conhecimentos de toda ordem. No campo da medicina cada vez mais o conhecimento do organismo humano, se faz presente em termos de suas partes, suas funções, suas interdependências, seu funcionamento. O corpo assume um significado novo, segundo a posição dos homens no processo produtivo e de acordo com o sistema capitalista, passa a ter um valor de mercado. Neste contexto, a prática médica adquire uma importância e um significado econômico; de um lado tem como função à conservação e a reprodução da força de trabalho e de outro compõem o mercado na condição de consumidor sob a forma de medicamentos, atendimentos, tecnologia, etc. Conforme a posição do indivíduo nas classes sociais pode-se observar as práticas médicas em diferentes propósitos: a manutenção e reposição das forças físicas para a produção dos trabalhadores, ou a otimização das condições físicas e a estética para as classes de melhor prestígio. Neste aspecto também é necessário pensar sobre a contribuição da Enfermagem enquanto prática profissional e social. Ao refletirmos sobre a prática do cuidado com o ser humano, vemos que muito pouco se conseguiu avançar. Hoje, apenas substituem-se os modos de adoecer e morrer; se antes morria-se de doenças que provocavam grandes epidemias, de parto e de fome, hoje, o homem, além de adoecer e morrer dessas mesmas doenças, acrescentou a estas, processos sociais que o levam a morrer de solidão, especialmente em conseqüência da violência humana. Alia-se, a estes processos, alimentação incorreta tanto qualitativa como quantitativamente, as doenças ditas do desenvolvimento, advindas das características das sociedades modernas, enfim, da relação capitalista do homem com o seu meio. O cuidado na Enfermagem tem sido desenvolvido, como uma ação centrada, em especial, no cuidar apenas de uma parte doente do ser humano. O atendimento focado no cuidar da doença, leva o profissional a descartar determinada parte da história do paciente, não considerando o antes nem o depois da instalação do agravo ou da doença. Cuidando, portanto, de forma fragmentada, com forte tendência a enfocar a 1234 técnica pela técnica. Acredita-se que esta atuação fragmentada advém de um ensino que tem se apresentado de maneira conservadora, tradicional, calcando a sua prática pedagógica na reprodução e na memorização. Esse ensino tem se limitado a enfocar, ao longo da história, o assistir e o cuidar da doença. É hora de parar para refletir e também de agir. Não é mais possível a preocupação somente com o dano já instalado; é hora de buscar formas inovadoras de cuidar em conjunto com outros profissionais interessados em uma nova forma de ser, estar e fazer. Não se trata puramente de abandonar o valor dos aspectos biológicos presentes na “teia da vida”, aos processos de saúde/ doença dos indivíduos e sim acrescer a estes, uma concepção emergente aos nossos conhecimentos que possibilitem à Enfermagem muito mais do que o cuidar e o assistir à doença. Essa nova concepção visa em conjunto com outros profissionais e a coletividade, enfocar o transformar, os modos de vida, para que se possa Ter mais qualidade no viver, mais sabedoria na relação com o mundo e, principalmente, que se tenha a consciência da responsabilidade do ser humano com a sua própria história. A arte de viver, adoecer e morrer não é determinada só pelo acaso ou forças sobrenaturais, mas principalmente, pelo modo com que os homens escolhem ou podem escolher para viver as suas vidas. Portanto, se não dá para se cuidar do homem senão na unidade de seu corpo-psíquico que remete a sua individualidade de pessoa e às suas relações com o planeta, uma vez que ambos participam de uma mesma natureza; também não se pode cuidar do homem sem se cuidar dos homens. Enquanto ser de relações, o projeto humano só se constrói na coletividade, nas relações inter-humanas, que constituem a sociedade e a cultura. Cuidar do indivíduo e descuidar da sociedade faz parte de uma compreensão reducionista que não percebe que sozinho o homem sequer seria homem, pois, não haveria conquistado as dimensões de racionalidade, linguagem, ética e a afetividade amorosa que o caracterizam. Assim cuidar do homem envolve o zelo social, político, educacional e cidadão capaz de repartir a produção econômica de forma justa, garantindo assim o acesso de todos à vida digna. É responsabilidade primeira de todas as pessoas que assumem posturas de cuidado, para a sua vida, e entre estas podemos citar os enfermeiros e também os educadores, a apropriação e a construção conjunta de conhecimentos e posturas, que busquem transformar o viver em sociedade, transformando a história do homem, imprimindo maior qualidade à sua vida e de toda a coletividade. Retomando a análise da fábula, não se pode deixar passar desapercebida a figura de Saturno, deus do tempo, aquele que é chamado a se pronunciar sobre o nome, sobre a 1235 identidade da criatura modelada por Cuidado. A fábula em sua linguagem insinuante e metafórica diz que é o tempo quem decide quem somos. Enquanto humanos, somos húmus, terra fértil, terreno de possibilidades, receptivo a sementes e germinações diversas. Tem-se então que o que caracteriza o ser do homem é o seu poder- ser, sua abertura à possibilidades, a liberdade de ser o construtor de si mesmo. Mas a liberdade de se construir é também responsabilidade e cuidado para com a construção, pois trata-se de uma obra delicada que vai engendrando o homem em sua dimensão individual e social. O nome verdadeiro que expressa a identidade que cada um construiu, gera-se no tempo e só ao final da caminhada pode ser dito. Quando Heidegger (1979, p.158) denomina o homem de “pastor do ser”, ele está propondo o cuidado como sua constituição ontológica, característica que marca seu ser em todas as suas manifestações. O próprio corpo do homem é perpassado por esta característica que o faz abertura e sensibilidade ao mundo que o cerca, e que ao mesmo tempo lhe revela as coisas como objetos de sua ocupação e os homens como objetos de sua preocupação, ambos necessitando de seu zelo e cuidado. Novamente neste sentido, nos reportando à prática do cuidado desenvolvido pelos profissionais da Enfermagem, que enquanto prática de trabalho se reconhece na ação básica da profissão que se mostra no cuidar, como também se identifica sua designação conceitual, que se entende como ciência e arte, e é descrita por Lima, citado por Tavares como uma profissão que “em princípio assume a responsabilidade de se solidarizar com pessoas, grupos, famílias e comunidades com o objetivo de mobilizar a cooperação de cada ser humano para conseguir, conservar e se manter em estado de saúde” (MEYER; WALDOW; LOPES, 1998, p. 225). Em que pese este olhar progressista sobre a prática profissional da Enfermagem esta ainda é vista e vivenciada por muitos como simplesmente o cumprimento de atividades realizadas com uma abordagem que enfatiza a técnica, a atuação mecânica, reducionista e linear. Neste contexto cabe a contribuição de Waldow (1998, p.14), quando aponta que: Na maioria das instituições, tanto no ensino de enfermagem como na sua prática, o cuidado é desenvolvido de forma mecânica, orientado por tarefas, seguindo normas e prescrições. As relações nesses ambientes são frágeis, encobrem hostilidades, tensões, indiferença. O contato com a clientela é cada vez menos freqüente, por vezes frio, e mesmo grosseiro. Assim, quando se pensa nos cuidados de saúde e enfermagem, restritos à dimensão do corpo, que por sua vez, na concepção cartesiana, tão presente em nossa cultura, é igualado a uma máquina, está se promovendo um reducionismo que apequena e desencanta esta 1236 atividade. O ser humano entrelaça em si tantas dimensões, é dono de tamanha complexidade que exige uma formação que tenha presente a riqueza de seu ser. Considerações finais Cabe portanto, refletir a necessidade da Enfermagem avançar, tanto pelas trilhas do técnico/instrumental quanto nos outros aspectos relevantes que vêm se apresentando à sociedade neste momento histórico. Essa reflexão passa a ser imprescindível para o desenvolvimento da prática profissional com qualidade. Esses aspectos são mencionados e delineados por Gomes (2001, p.32), como a utilização do “pensamento crítico, que visa a uma prática de enfermagem autônoma e eficiente. Conseqüentemente, transformadora do modelo assistencial vigente, revertendo-se em efetivas melhorias do quadro sanitário do país”. Este pensar leva à proposição de que o profissional deve ultrapassar o saber fazer, alcançando o saber saber, concretizando-se no saber ser. À medida que a formação do enfermeiro estiver atenta ao universo que se reúne no homem e que de alguma forma a fábula de Higino tenta captar, seu leque de compreensão e atuação se expandirá, contemplando áreas, significados e valores inimagináveis em uma concepção mecanicista. A profissão será reencantada e seu compromisso se traduzirá em cuidados capazes de ter em conta as diversas dimensões do humano, onde a luz do espírito reluz através do barro que o conforma, em uma exposição constante de majestade e pobreza. A Enfermagem compreenderá então que o homem merece uma prática profissional onde “O cuidado necessita ser uma instância de conscientização e transformação individual e coletiva para a liberdade, para o avanço emancipador” (SILVA, 1998, p. 78). Hoje tem-se a compreensão de que é necessário mudar a nossa prática profissional, bem como existe a convicção que muito desta mudança acontecerá em decorrência da forma como “ensinamos “ o ser e o fazer Enfermagem. Esta só terá a qualidade necessária e esperada quando mudar a postura e o enfoque da caminhada do homem em seu viver social, incluída aí, sua prática cotidiana de trabalho. A Sociologia é uma das áreas que colabora com esta formação, pois a sociedade apresenta características que o profissional Enfermeiro precisa conhecer para poder organizar o seu dia-a-dia, as suas relações sociais, a sua participação nas instituições sociais, a partir dos valores que sejam representativos e compartilhados por todos. É possível pelo conhecimento da Sociologia por parte dos profissionais da enfermagem, observar e apreender a regularidade que existe nos acontecimentos sociais, as leis da vida social. Analisar a enfermagem do ponto de vista sociológico, é tentar entender os processos de vida, de doença, de saúde e de morte 1237 dos indivíduos e grupos. É verificar como os grupos se organizam, como se dá à interação social, como são os padrões sociais e a conseqüente socialização. E ainda, é tentar entender como os indivíduos e grupos percebem estas situações sociais e quais as práticas de saúde utilizadas. É importante tal conhecimento para que se possa prever de certa forma, os possíveis acontecimentos futuros de uma determinada sociedade. Segundo Costa.(1977, p. 9) Abre-se assim, então, a possibilidade de se poder intervir conscientemente nos processos, tanto para reforçá-los como para negá-los, dependendo dos interesses do jogo. O conhecimento da Sociologia não é mais restrito aos cientistas sociais. Eles fazem parte de um modo de perceber e interpretar os acontecimentos formados pela disseminação de procedimentos e técnicas da vida social, sendo um modo de conhecer a realidade tão confiável quanto de qualquer ciência. A Sociologia pode colaborar para a formação de um profissional competente tecnicamente, mas, sobretudo com um profissional que ultrapasse a técnica em nome de um comportamento engajado, um profissional enfermeiro consciente de seus deveres e direitos de cidadão na sociedade em que vive. Esta conscientização deve levar a uma vida mais participativa na ordem social, econômica e política. E é pela participação que indivíduos e grupos conquistam direitos, é pela participação consciente que podemos vir a transformar a sociedade de maneira mais justa e igualitária. Tal desafio alicerça-se na procura de novos “modos de ser e de fazer” mais significativos, e se estes não existirem buscar construí-los com outros profissionais preocupados com esta problemática, para que possamos trilhar caminhos que transformem seres humanos em indivíduos com pleno exercício de cidadania. No futuro será possível que os profissionais Enfermeiros compreendam e incorporem, aos significados da Fábula de Higino, a noção de que, segundo o que afirma Boff (2001, p.12) Construímos o mundo a partir de laços afetivos. Estes laços fazem com que as pessoas e as situações sejam portadoras de valor [...] Não habitamos o mundo somente através do trabalho, mas fundamentalmente através do cuidado e da amorosidade. É aqui que aparece o humano do ser humano. Daí se conclui que o dado original não é o logos, a razão e as estruturas da compreensão, mas sim o phatos, o sentimento, a capacidade de simpatia, de empatia, de compaixão, de dedicação e de cuidado com o diferente. O profissional Enfermeiro, poderá reagir ante este desafio, despertando a consciência da possibilidade da construção de uma prática profissional, visando a alcançar as necessidades de transformação social que hora se apresentam em nosso país. Os cursos de enfermagem cientes da sua responsabilidade social, irão projetar e realizar o seu desejo de serem cursos, 1238 onde mais do que técnicos por excelência na profissão, sejam os seus egressos Enfermeiros conscientes, críticos e reflexivos, responsáveis pela parcela que lhes cabe na nova construção social. Será percebido então no cotidiano de trabalho dos enfermeiros, uma postura que ressalta, que além de serem trabalhadores da área da saúde, esses profissionais são seres humanos que cuidam de outros seres humanos, com competência, criatividade e humanidade. REFERÊNCIAS BOFF, L . Saber cuidar. Ética do humano, compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999. BRASIL. Secretaria de Estado e Educação. Avaliação, sociedade e escola: Fundamentos para reflexão. Curitiba, 1985. _____ ; MÜLLER, W (Col.). Princípios de compaixão e cuidado. Petrópolis: Vozes, 2001. CAPRA, F. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 1996. COSTA, C. Sociologia: Introdução à ciência da sociedade. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1997. ESCOREL, Sarah. Exclusão Social e Saúde. Saúde em Debate, n.43, jun. 1994. GOMES, Paulo Cobellis. Projeto político-pedagógico dos cursos de graduação em enfermagem. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE DIRETRIZES PARA A EDUCAÇÃO EM ENFERMAGEM NO BRASIL. 5. 2001, São Paulo. Anais. São Paulo: ABEn/ABEn-Seção São Paulo, 2001. HEIDEGGER. Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1979. MEYER, Dagmar E.; WALDOW, Vera R.; LOPES, Marta Júlia M. Marcas da diversidade: saberes e fazeres da enfermagem contemporânea. Porto Alegre: Artmed, 1998. MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. SILVA, Alcione Leite da. Cuidado como momento de encontro e troca. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ENFERMAGEM. 50. 1998, Salvador. Anais. Salvador, set. 1998. WALDOW, Vera Regina. Cuidado humano o resgate necessário. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1998.