Julio Cesar dos Santos A Imagem de Deus no Ser Humano

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Julio Cesar dos Santos
A Imagem de Deus no Ser Humano, Segundo
a Teologia de Emil Brunner:
Um ser relacional e responsável diante de Deus
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
DEPARTAMENTO DE TEOLOGIA
Programa de Pós-Graduação
em Teologia
Rio de Janeiro
agosto de 2009
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Julio Cesar dos Santos
A Imagem de Deus no Ser
Humano, Segundo a Teologia de Emil Brunner:
Um ser relacional e responsável diante de Deus
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pósgraduação em Teologia do Departamento de Teologia do
Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
Orientador: Prof. Abimar Oliveira de Moraes
Rio de Janeiro
Agosto de 2009
Julio Cesar dos Santos
A Imagem de Deus no Ser Humano, Segundo a Teologia de
Emil Brunner:
Um ser relacional e responsável diante de Deus
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de PósGraduação em Teologia do Departamento de Teologia do
Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
Aprovada pela comissão examinadora abaixo assinada.
Prof. Abimar Oliveira de Moraes
Orientador
Departamento de Teologia – PUC – Rio
Prof. Mário de França Miranda
Departamento de Teologia – PUC – Rio
Prof. Nelson Célio de Mesquita Rocha
Faculdade Evangélica de Tecnologia, Ciência e Biotecnologia da CGADB
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do Centro de
Teologia e Ciências Humanas
Rio de Janeiro, 14 de agosto de 2009
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor
e do orientador.
Julio Cesar dos Santos
Graduou-se em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Sul do
Brasil em 2005. Participou de vários congressos de Teologia ao
redor do Brasil. É pastor da Igreja Batista.
Ficha Cartográfica
Santos, Julio Cesar dos
A imagem de Deus no ser humano, segundo a teologia de Emil
Brunner : um ser relacional e responsável diante de Deus / Julio
Cesar dos Santos ; orientadora: Abimar Oliveira de Moraes –
2009.
126 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Teologia)–Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
Inclui bibliografia
Teologia. III1. Teologia – Teses. 2. Imagem de Deus. 3.
Revelação. 4. Responsabilidade. 5. Restauração. 6. Amor de
Deus. 7. Pecado. 8. Existência humana. I. Moraes, Abimar
Oliveira de. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de. Título.
CDD:200
Para Marisol, verdadeira companheira. Pela
paciência e ajuda ao longo da caminhada.
Agradecimentos
Ao meu orientador Professor Abimar Oliveira de Moraes pelas orientações na
realização deste trabalho.
Ao CNPq e à PUC-Rio pelos auxílios concedidos para a realização desta pesquisa.
Ao meu Professor Mario de França Miranda, que com sua paixão no ensino me
levou ao tema teológico ora tratado.
A todos os meus demais professores no curso de Pós-garduação pelos constantes
estímulos para a pesquisa.
Ao meu sogro e sogra, pois foram verdadeiros pais de meus filhos nos momentos
de minha ausência.
Resumo
Santos, Julio Cesar dos; Moraes, Abimar oliveira de. A Imagem de Deus
no Ser Humano, Segundo a Teologia de Emil Brunner: Um ser
relacional e responsável diante de Deus. Rio de Janeiro, 2009. 126p.
Dissertação de Mestrado – Departamento de Teologia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
O ser humano é incontestavelmente um ser que se destaca dos demais tipos
de vida existentes na terra. O teólogo suíço Emil Brunner entende este diferencial
da dignidade humana a partir da compreensão teológica de que o ser humano foi
criado segundo a Imagem de Deus. Mesmo diante da maldade humana, ainda
assim, o ser humano é reconhecido pela teologia cristã como alguém que está em
relação com Deus, por isso é responsável. São nestas duas características humanas
que Brunner enxerga os traços da Imagem de Deus na existência humana. Pois
somente um ser que é relacional (portanto livre e sujeito) e responsável pode ser
um interlocutor de Deus, e assim ser capaz de receber e transmitir o amor que
procede de Deus. Mas o ser humano pecador vive mal a sua relação e
responsabilidade, pois encontra-se em um estado de pecado, que é rebelião e
inimizade contra Deus. Em Jesus Cristo o ser humano tem restaurada a sua
relação e responsabilidade com Deus, a Imagem de Deus é restaurada à situação
que Deus quer que ela esteja. Sendo assim, nesta dissertação tratamos da teologia
brunneriana em sua compreensão sobre a Imagem de Deus no ser humano antes
do pecado, no estado de pecado, e à luz da revelação de Jesus Cristo.
Palavras-chave
Imagem de Deus; relação; responsabilidade; restauração; Amor de Deus;
pecado; existência humana; Revelação.
Abstract
Santos, Julio Cesar dos; Moraes, Abimar oliveira de (Advisor). The God`s
Image in the Human Being, According to Emil Brunner`s Theology:
The human being as a relational and responsible in the face of God.
Rio de Janeiro 2009. 126p. MSc. Dissertation – Departamento de
Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
The human being is clearly a being that stands out from other types of life
existing on earth. The Swiss theologian Emil Brunner understands this human
dignity differential from the theological comprehension that the human being was
created according to God`s Image. Even in the face of human evil, the human
being is recognized by the Christian theology as someone who is in relation with
God, for this reason he is responsible. These are two human characteristics that
Brunner sees traces of the God`s image in human existence. Because only a being
that is relational (i.e. subject and free) and responsible can be God`s interlocutor
and thus be able to receive and transmit the love that comes from God, But the
sinful human being lives badly its relationship and responsibility because it is in a
state of sin, which is rebellion and enmity against God. In Jesus Christ the human
being has restored its relationship and responsibility to God, the God`s Image is
restored to the situation that God wants. Thus, this dissertation deals of the
brunneriana`s theology in his understanding on God`s image in man before the
sin, the state of sin and over the light of Jesus Christ`s revelation.
Keywords
God`s Image; relation; responsibility; restoration; God`s love; sin; human
existence; Revelation.
SUMÁRIO
1. Introdução
10
2. O ser humano como Imagem de Deus antes do pecado
13
2.1. A questão da origem do ser humano
13
2.1.1. A doutrina do estado primitivo.
14
2.1.2. O entendimento da criação do ser humano a
partir do Novo Testamento
17
2.1.3. O ser humano criado antes do pecado
20
2.2. Criado para responder ao amor de Deus livremente
27
2.2.1. Entendendo a liberdade do ser humano na criação
28
2.2.2. A vontade de Deus para o ser humano
30
2.2.3. O ser humano como uma criatura frágil
33
3. A Imagem de Deus no ser humano pecador
37
3.1. Caminho para uma “doutrina bíblica” do pecado
38
3.2. O ser humano em estado de pecado
43
3.2.1. A integralidade do estado de pecado do ser humano
47
3.2.2. O pecado como rebelião à dependência de Deus
48
3.2.3. O pecado como um elemento universal
52
3.2.3.1. A solidariedade do pecado entre os seres humanos
52
3.2.3.2. A solidariedade do pecado no tempo
55
3.3. A Imagem de Deus como algo inerente ao ser humano
57
3.3.1. A Imagem de Deus no ser humano em seu aspecto formal
58
3.3.2. O ser humano como sujeito
61
3.3.3. O ser humano como ser relacional
64
3.3.4 - O ser humano como ser de responsabilidade
66
3.3.5. A importância da analogia entis na compreensão antropológica 68
4. A Imagem de Deus no ser humano no evento Jesus Cristo
74
4.1. A Imagem de Deus no ser humano em seu aspecto material
74
4.2. A Importância histórica do evento Jesus Cristo
80
4.2.1. A salvação como um momento específico da história
81
4.2.2. O ser humano chamado para uma Aliança com Deus
88
4.2.2.1. Sentido negativo da Lei
90
4.2.2.2. Sentido positivo da Lei e sua conexão com Jesus Cristo
93
4.2.3. A “plenitude dos tempos”
98
4.3. A obra salvífica de Deus em Jesus Cristo
102
4.3.1. O ofício profético de Jesus Cristo
103
4.3.2. A obra sacerdotal de Jesus Cristo
108
4.3.3. A obra real de Jesus Cristo
115
4.4. O ser humano restaurado por Jesus Cristo
118
5.
Conclusão
121
6.
Referências bibliográficas
123
1.
Introdução
No presente trabalho nós analisaremos a antropologia do teólogo suíço da
neo-ortodoxia Emil Brunner (1889-1966), com a intenção de mostrar que o ser
humano foi criado como Imagem de Deus, e que esta imagem permanece mesmo
no estado de pecado e é “restaurada” na era da graça. O tema da Imago Dei no ser
humano é o assunto que analisaremos tendo como base a teologia madura de
Brunner. Por isso vamos centralizar a análise do tema no volume II da Dogmática
do Autor - Doutrina Cristã da Criação e Redenção - na sua tradução do alemão
para o inglês. Esta tradução teve a sua primeira edição em 1952 na Grã Bretanha
(o original alemão em 1949), e a grande riqueza deste trabalho realizado por Olive
Wyon está no fato de que ele recebeu diretamente de Brunner algumas correções
que seriam realizadas na segunda edição da Dogmática em alemão.
Também faremos uso de outros livros do autor (Man in Revolt; seu
comentário a carta aos romanos, sucintamente intitulado: Romanos e a obra
Teologia da Crise), mas a utilização destas obras se reduz a pouquíssimas
citações. O motivo desta delimitação no volume II da Dogmática está no fato de
que nesta obra do Autor encontra-se o conteúdo necessário para o preenchimento
da estrutura que pretendemos para a pesquisa: Analisar a Imago Dei no ser
humano antes do pecado; no estado de pecado e no evento Jesus Cristo. Esta obra
também foi escolhida por conter o pensamento maduro do Autor analisado. Outro
fator também relevante diz respeito à nossa pretensão com a presente pesquisa,
pois trata-se de uma dissertação de mestrado, considerando-se o tempo destinado
a este tipo de trabalho nós achamos por bem não abrir muito o raio de pesquisa
literária temendo a impossibilidade de posteriormente efetuá-la. Gostaríamos
também de ressaltar que a pesquisa contém a contribuição secundária do
pensamento de outros autores (teólogos e especialistas de outros saberes) que
terão suas obras devidamente citadas.
Dita estas coisas, pensamos ser importante enfatizar que a presente
pesquisa tem por objetivo expor a doutrina da Imago Dei no ser humano nas “três
grandes eras” antropológicas que, segundo Brunner, a revelação bíblica afirma
como algo que faz parte da história humana. Como entender a Imagem de Deus
antes do pecado?
11
Como entendê-la depois do pecado? O que muda na condição do ser humano
como Imagem de Deus no evento Jesus Cristo?
Nós tentaremos responder a estas questões tomando como conteúdo a
sistematização do pensamento de Brunner em cada fase antropológica acima
elencada. Ficará evidente que a consideração do tema da Imago Dei (nas três fases
históricas) permeia todas as considerações antropológicas, e mesmo de outros
temas teológicos tratados pelo Autor. Pontuaremos que Brunner é um teólogo que
tem a intenção de dialogar com o mundo moderno e suas descobertas. Mas
também ficará evidente que este teólogo não abre mão dos elementos
fundamentais da teologia a fim de se enquadrar em uma suposta modernização
inevitável (a todo custo).
Sendo assim, mostraremos um teólogo que procura ter uma postura muito
equilibrada na sua construção teológica. Ele consegue dialogar com descobertas
importantíssimas da ciência sem abandonar as peculiaridades de um teólogo
cristã. Dois exemplos que podem ser citados são: a sua crítica à doutrina
tradicional do Pecado Original, propondo uma compreensão mais existencial para
a realidade do pecado; como também a sua idéia de salvação como um encontro
(do “Eu”, Tu”), em contraste com uma salvação determinista e intelectual
(baseada nos dogmas). Desta forma, o pensamento brunneriano se desenvolve
tendo grande interação com as considerações do processo histórico, com a
Psicologia, com a Filosofia, etc.
A forma com que se dividiremos o conteúdo da pesquisa tem a sua razão
de ser na consideração das três fases antropológicas citadas a cima, e que são
consideradas por Brunner. Daí o trabalho conter três capítulos: I) O SER
HUMANO COMO IMAGEM DE DEUS ANTES DO PECADO; 2) A IMAGEM
DE DEUS NO SER HUMANO PECADOR e 3) A IMAGEM DE DEUS NO SER
HUMANO NO EVENTO JESUS CRISTO. Em cada um destes capítulos,
conforme as suas peculiaridades, serão apresentadas idéias que fazem parte
fundamental da história da teologia, como a doutrina da Criação, a doutrina da
Queda, doutrina da Salvação, e outras. Todos estes assuntos teológicos serão
tratados com o intuito de se entender como o teólogo, ora analisado, entendia a
Imagem de Deus no ser humano.
12
É importante dizermos que nem sempre Brunner explicita a presença da
idéia da Imago Dei em sua teologia (isto acontece principalmente no assunto do
último capítulo), mas esta doutrina é incontestavelmente encontrada de maneira
implícita em todas as suas considerações teológicas onde está incluída a presença
humana. Por isso, em muitos momentos será necessário sinalizarmos a presença
da doutrinas da Imagem de Deus na teologia de Brunner em lugares em que ela
parece ausente.
13
2.
O ser humano como Imagem de Deus antes do pecado
Neste primeiro capítulo nós vamos analisar como Brunner entende a
Imagem de Deus no ser humano antes do pecado. Por isso será tratada a questão
das origens do ser humano. O Autor ora analisado entende que é fundamental a
construção de uma doutrina do estado primitivo que dialogue com o pensamento
moderno. A proposta do autor analisado é criar uma doutrina do estado primitivo
tendo como chave hermenêutica as informações (idéias teológicas) contidas no
Novo Testamento. Sendo assim, a teologia brunneriana procura compreender o
estado original do ser humano não a partir no livro de Gênesis, como comumente
fazem os teólogos, mas através das novidades apresentadas na revelação de Jesus
Cristo.
Este capítulo se dividirá em duas grandes partes: análise das origens do ser
humano, quando será mostrado a importância desta reflexão para a construção
teológica e a necessidade dela ser flexível e adequada aos dias atuais; e a partir da
idéia de que o ser humano foi criador para responder ao amor de Deus, a segunda
parte tratará também da vontade de Deus para o ser humano e a fragilidade como
elemento fundamental deste que é conclamado a viver a vontade de seu Criador
(viver-no-Amor-de-Deus).
Claro que em cada tópico e sub-tópico nós apontaremos a presença da
doutrina da Imago Dei do teólogo analisado neste trabalho acadêmico. É com esta
metodologia que procuraremos ser fiel ao propósito descrito na introdução geral.
2.1.
A questão da origem do ser humano
Nesta parte a pesquisa trataremos da questão da origem do ser humano.
Com o intuito de construir uma doutrina do estado primitivo atual, Brunner
apresenta elementos que devem compor esta doutrina. Será mostrado como o
pensamento brunneriano usa a chave de leitura cristológica para entender o ser
humano criado por Deus antes do estado de pecado. É justamente nesta
14
consideração cristológica que ficará mais evidente a doutrina da Imago Dei no ser
humano criado por Deus segundo o pensamento brunneriano.
Primeiramente nós vamos analisar as considerações do autor sobre a
doutrina do estado primitivo, mostrando a complexidade deste tema,
complexidade esta oriunda tanto da narrativa bíblica como do desenvolvimento
desta doutrina no seio da Igreja. Depois será considerada a importância de tratar o
assunto
das
origens
a
partir
das
novidades
trazidas
pela
revelação
neotestamentária. Por fim, mostraremos como Brunner vê o ser humano criado
por Deus originalmente.
2.1.1.
A doutrina do estado primitivo
A fim de compreender como Brunner vê a Imagem de Deus no ser humano
antes do pecado, nós apresentaremos o seu pensamento sobre a doutrina do estado
primitivo. Esta doutrina do estado primitivo sempre foi importante para “todas as
teologias” desde o início do cristianismo, pois trata-se de um assunto de suma
importância para a construção teológica .
Para Brunner, no entanto, é necessário desenvolver o pensamento sobre
um estado primitivo antes do pecado, sem incorrer no erro de tomar formulações
teológicas que já estão obsoletas, pois ele se preocupa em construir um discurso
que seja compatível com a visão de mundo “pós-copernicana”1.
Pois a maneira de ver o mundo mudou completamente desde a Idade da
Revolução Científica, – nos séculos XVI e XVII – começando com Nicolau
Copérnico, que propusera teorias astronômicas que se chocavam diretamente com
a concepção geocêntrica de Ptolomeu e da Bíblia. A Revolução Científica teve a
sua mais elevada definição com as descobertas científicas de Galileu Galilei
(considerado o pai da ciência moderna), e ainda sucedeu a este as conclusões de
Descarte, Newton e Darwin. Sendo assim a Revolução Científica passou a
proporcionar uma visão do cosmos diferente do Período Medieval, que tinha
como pilares: Aristóteles e a Igreja. E as consequências para se entender a
realidade foram imensas, mas o que nos interessa é o fato de que o ser humano
1
BRUNNER, Emil. Dogmatics (vol. II), The Christian Doctrine of Creation and Redemption.
London: Lutterworth, 1952, pp. 48-49.
15
deixou de ser o centro do Universo, como era concebido pela filosofia clássica e
pela Igreja, e passou a ser considerado como mais uma parte do grande quebracabeças que era o mundo2. É diante desta completa mudança de perspectivas que
Brunner insiste na necessidade de abandonar a antiga visão do cosmos para que se
possa construir uma teologia coerente com as inevitáveis mudanças trazidas sobre
as origens do planeta e do ser humano desde os descobrimentos científicos de
Copérnico.
O pensamento brunneriano demonstra que há sérias implicações pensar a
Doutrina do Estado Original tomando o relato de Adão no Paraíso de maneira
literal, porque se for assim, seria necessário reconhecer que Adão foi um ser
humano contemporâneo aos dias da criação, e que ele estaria diretamente ligado a
descendência de Abraão. Todavia, a ciência já havia demonstrado que isto é
impossível, pois o homem tem as suas origens no fim da Era Terciária, ou
Quaternária – que é mais do que cem mil anos atrás – em uma forma ainda bem
primitiva, bem diferente das qualidades apresentadas para Adão no Paraíso. O
mundo teria a sua origem há milhões de anos antes do surgimento do primeiro
vestígio humano3.
Brunner tem a intenção de falar ao mundo moderno, que trouxe mudanças
drásticas na maneira de ver a realidade4. São a essas mudanças que ele se refere ao
aconselhar os “teólogos modernos” a não seguirem uma apologética preguiçosa,
mas a aceitarem que precisam considerar as mudanças5. No entanto a teologia
resultante da consciência das inevitáveis mudanças trazidas pela ciência moderna,
não poderia ser também uma adequação irresponsável do conteúdo teológico com
as atuais descobertas da ciência.
2
CAPRA, F. O Ponto de Mutação. A Ciência, a Sociedade e a Cultura Emergente. São Paulo:
Cultrix, 2006, pp. 49-69.
3
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 50.
4
García Rubio aponta como uma das principais razões do surgimento do mundo moderno – com
sua cosmo-visão - o uso da ciência experimental. A ciência experimental usou métodos
matemáticos e mecanicistas que até então a “antiga ciência” baseada na Metafísica, sobretudo,
não havia experimentado. Isso trousse ao homem moderno uma compreensão completamente
diferente da Natureza e outras realidades que cercam o ser humano. Como diz o próprio García
Rubio: “O método e o conhecimento experimental medeiam o aparecimento de uma nova visão de
mundo e de homem” (Cf. RUBIO, A.G. Unidade na Pluralidade. O Ser Humano à Luz da Fé e da
Reflexão Cristã. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2001, pp. 24-25).
5
BRUNNER, Dogmatics (vol.II), p.33.
16
Os esforços feitos por alguns teólogos para tentar adequar as descobertas
científicas da origem do ser humano com a figura de Adão no Paraíso parece para
Brunner uma tentativa de fundamentação histórica perigosa e insustentável6.
Com isso, Brunner quer mostrar que tanto aqueles que tomam o texto de
maneira literal – querendo fazer uso de uma visão de mundo ultrapassada – como
os que tentam fazer uma adequação da figura de Adão no Paraíso com o Homem
de Neandertal seguem caminhos errados. Para ele apenas um terceiro caminho era
aconselhável: o abandono da visão de mundo antiga “pré-copernicana”, bem como
o descarte da tentativa de identificar o ser humano descoberto pela ciência com
Adão no paraíso. Mas Brunner teve a preocupação de considerar que este terceiro
caminho não poderia renunciar a existência de uma real Doutrina da Queda. Pois
sem esta, a idéia bíblica da distinção da criação segundo Deus e do estado de
pecado do ser humano hoje, bem como toda a doutrina bíblica da redenção e
salvação estariam totalmente comprometidas, o que seria um desastre 7.
Brunner também classificou como desastrosa a tentativa de alguns
teólogos que para salvarem uma suposta doutrina da queda, criaram a idéia de
uma queda transcendental ou meta-histórica; assim, é formulada a idéia de um
Adão pré-existente que teria sofrido uma queda metafísica. Este pensamento
integra idéias platônicas e kantianas com a verdade bíblica de que de alguma
forma o ser humano se afastou do Deus que o criara. Sobre as conseqüência desta
postura, expressa Bruner:
“Em assim fazendo eliminam a diferença entre tal visão transcendental de Adão e a visão
Agostiniana, histórica, pela descrição da história de Gênesis como uma “lenda”, ou coisa
parecida. O ganho é evidente: todas as possibilidades associadas a uma visão de “Adão”
como uma figura histórica foram eliminadas, e esta visão não discorda da visão moderna
do tempo e do espaço. Mas, o preço que pagamos por esta solução também é alto: levanos a uma visão platônica da Criação como um todo, que deve ter um efeito desastroso na
doutrina do Pecado e da Queda8.”
6
Ibid.
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 51.
8
“In so doing they wipe out the difference between such a transcendental view of Adam and the
Augustinian historical, view by describing the Genesis story as a “legend”, or something of that
kind. The gain is evident: all the impossibilities connected with a view of “Adam” as an historical
figure have been eliminated, and this view does not clash with the modern view of time and space.
But the price which we pay for this solution is too high: it leads us into a “platonizing” view of
Creation as a whole, which must have a disastrous effect on the doctrine of Sin and the Fall”
(Ibid.)
7
17
Brunner entende ser um grande desafio e vital necessidade a formulação
de uma nova visão da Doutrina do Estado Primitivo. Trata-se de um grande
desafio, porque uma doutrina do Estado Primitivo atual deve abrir mão do uso
histórico de Adão, bem como rejeitar biblicamente a infundada idéia de uma
queda e estado primitivo transcendentais. A formulação do Estado Primitivo é
necessária, porque somente ela explica a natureza do ser humano segundo a
criação, e como a Queda o tornou um ser em pecado9. Sendo assim, a Teologia
não pode se dá ao luxo de negligenciar a necessária formulação de uma Doutrina
do Estado Original que se sustente frente às novas descobertas científicas. A saída
desta aporia, segundo o pensar brunneriano, não está em outro lugar senão na
revelação bíblica: na máxima revelação de Deus, Cristo, o ser humano passa a
melhor se conhecer. É justamente isto que será tratado logo a seguir.
2.1.2.
O entendimento da criação do ser humano a partir do Novo
Testamento
Brunner entende que para compreender o ser humano de maneira adequada
é necessário ter como base as declarações do Novo Testamento, ou seja, é no
corpus neotestamentário que se encontra grande possibilidade de construir uma
Doutrina do Estado Primitivo atual, e não como a exemplo de muitos teólogos, a
partir do Antigo Testamento. Na verdade, Brunner considera que todos os artigos
de uma verdadeira teologia cristã devem buscar a sua fundamentação em Jesus
Cristo10. É com esta hermenêutica cristológica que ele via as respostas para as
origens do ser humano no âmbito teológico11.
9
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 52.
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 6.
11
Karl Rahner também percebeu a importância que havia na atualização hermenêutica do discurso
teológico, se ele pretende ser ouvido pelo ser humano moderno. Este teólogo em suas reflexões
entendeu que a antropologia deveria ter um lugar de destaque, pois o ser humano é o sujeito do
conhecimento e a possível alteridade de Deus. Através da consideração do que ele chamou de
antropologia-transcendental – reconhecimento de que o homem está voltado para Deus – Rahner
entendia que há várias portas de entradas, dentro da própria experiência humana, onde o conteúdo
teológico pode ser exposto ao homem moderno. E estes nexos existem porque o ser humano tem
em sua natureza uma estrutura espiritual-pessoal e transcendental. Mas o que mais importa do
pensamento deste teólogo como contribuição para a presente pesquisa é a consideração que ele dá
a Cristo como o desvendamento do mistério de intimidade e amor existente entre o homem e Deus.
Para Rahner, grande parte das afirmações antropológicas (ressurreição, graça divinizante) seriam
inimagináveis sem que houvesse uma Cristologia. Ele entendeu que o meio pelo qual a teologia
10
18
Mas também é importante deixar claro que Brunner não ignorava as
referências do Antigo Testamento, pois a Cristologia como chave de leitura
proporciona o aproveitamento de muitos princípios teológicos presentes no relato
da origem do ser humano nos primeiros capítulos de Gêneses12.
Na verdade, a teologia brunneriana compreende que como na doutrina da
criação do mundo, na criação do ser humano também é importante começar a
refletir a partir do Prólogo do Evangelho de João e das Epístolas Paulinas, e não
do relato de Adão no Paraíso. Com isso, fica muito mais fácil lidar com todas as
dificuldades oriundas das visões de mundo Antiga e Moderna, como também o
problema da historicidade dos primeiros capítulos de Gêneses, e sem ser infiel ao
princípio bíblico13. Sendo assim, Brunner entende que a doutrina da criação
deveria ser flexível, pronta a se adequar a cosmovisão de cada época14.
Fica evidente que Brunner cria que seria fiel ao conteúdo teológico ao
insistir na necessidade de construir uma doutrina do estado primitivo baseada na
Cristologia, pois só assim a doutrina de um estado antes do pecado poderá ter voz
e acolhimento na visão de mundo moderna.
pode ter um discurso sobre a origem do ser humano, sem cair em pura mitologia, está no conteúdo
que o Novo Testamento traz da protologia, e particularmente do ser humano: o ser humano (com
toda a criação) desde sua origem está destinado à salvação, o homem é um “ser escatológico”.
Assim expressou o próprio Rahner: “Isto permite compreender que uma doutrina do estado
original com a elevação do homem à ordem sobrenatural e a doutrina do pecado original somente
são possíveis no Novo Testamento e de fato só então surgiram” (Cf. RAHNER, Karl. Reflexões
Fundamentais sobre a Antropologia e a Protologia no conjunto da Teologia, in: FEINER, J.;
LÖEHRER, M. (Orgs.). Mysterium Satlutis II/2, (seção 1ª). Petrópolis: Vozes, 1971, pp. 6-12).
12
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 53.
13
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 52.
14
Seguindo esta mesma linha de pensamento de La Peña expõe o seu alerta sobre o perigo do
fixismo teológico a respeito da doutrina da criação: “...estamos diante de uma asserção de fé, é
preciso resistir à tentação de comprometê-la com determinada cosmo-visão; a fé não pode estar
ligada a esta ou aquela imagem do mundo, mas tem de conservar sempre sua liberdade diante de
qualquer tipo de cós-movisão. O conteúdo da Palavra revelada ultrapassa sempre toda e qualquer
teoria científica e, em geral, toda e qualquer formulação humana” (Cf. RUIZ DE LA PEÑA, Juan
Luiz. Criação, Graça, Salvação. São Paulo: Loyola, 1998, p. 21) . A origem da criação, e a
própria revelação, não podem ter o seu entendimento fixado a uma forma de ver o mundo, presa ao
tempo e ao espaço de uma época específica. Pois como artigo de fé, a criação transcende a
qualquer tipo de objetivação humana. Ruiz de la Peña também vê a saída para esta exigência do
discurso teológico, apenas quando o teólogo aceita que na inaudita novidade de Cristo se encontra
o sentido para todas as coisas criadas. Em Jesus de Nazaré, o Deus criador de tudo se identifica
com a natureza humana dignificando-a e dando-lhe o real sentido de existência. Por isso, Ruiz de
la Peña vê no texto de Gênesis – ao qual ele confere um substrato judaico - uma submissão
inevitável ao Prólogo de João. Pois é em João 1 que está a concretização do que é sinalizado em
Gênesis, por isso João 1 é um texto normativo para Gênesis, e fonte de flexibilização frente as
várias cosmos-visões de mundo que a Revelação precisa ser vista. Como ele mesmo vai dizer:
“...pois só em Cristo é que se esclarece o porquê e o para quê das criaturas” (Cf. RUIZ DE LA
PEÑA, Criação, Graça, Salvação, p. 22).
19
O Autor por nós analisado explica que a grande razão para se fazer uso do
Novo Testamento na busca do entendimento da origem do ser humano está no fato
de que em Jesus de Nazaré é mostrado o propósito de toda a criação. Deus criou
todas as coisas por meio de sua vontade onipotente, mas esta vontade manifesta a
liberdade com que Deus criou todas as coisas. Porque Deus é santo, Ele quis ser
glorificado por meio de uma criação, mas este querer de Deus tem base em seu
Santo Amor. Com isso, a liberdade com que Deus cria é semelhante a sua vontade
de doar o seu Santo Amor e ter uma resposta livre de alguém que se sente amado e
também O ame livremente. Chega-se a conclusão de que o amor é o propósito da
Criação, como exprime Brunner: o amor é a causa finalis da Criação. Jesus Cristo,
portanto, é a máxima concretização desse querer de Deus no que diz respeito à
manifestação do seu Santo Amor na Criação, pois Cristo é a própria Palavra
Amorosa de Deus encarnada. Por isso, conclui Brunner: “É precisamente porque a
história do Antigo Testamento não contém este elemento que não pode ser o ponto
de partida para a doutrina cristã da criação15”.
Neste aspecto, o pensamento teológico atual também concorda com esta
chave de leitura, pois é aceito que a doutrina da criação é muito mais do que
buscar a origem, isto porque o que realmente é importante está no fundamento e
no sentido último de toda a realidade mundana. Para Ruiz de la Penha, por
exemplo, o importante é responder o porquê e o para quê da realidade criada; este
teólogo vai dizer que o porquê é o amor divino enquanto comunicador do ser; “o
para quê é esse mesmo amor enquanto salvador e doador de plenitude a tudo
criado”. Pois Ruiz de la Peña pensa que a criação já pressupõe em si mesma a
salvação, pois isto está evidente em vários textos de Paulo, nos quais encontra-se
o entendimento que a totalidade do real foi feita por e para Cristo; ele está no fim
da história como salvador porque está em seu início como criador (1Cor 8,5-6; Cl
1,15-20; Ef 1,15-20), sendo assim o amor de Deus demonstrado em Cristo é a
origem e o fim do ser humano16.
Mas o pensamento brunneriano está atento para o grande perigo de se
confundir o estudo do ser humano à luz de Jesus Cristo, com a busca de se
entender a natureza de Cristo. Dessa forma, pode-se cair no erro de tentar entender
15
“It is precisely because the Old Testament story of Creation does not contain this element that it
cannot be the starting-point for the Creation doctrine of Creation” (Cf. BRUNNER, Dogmatics
(vol. II), pp. 13-14).
16
RUIZ DE LA PEÑA, Criação, Graça, Salvação, pp. 9-13.
20
a origem do ser humano através de um estudo da humanidade de Cristo. Brunner
observa que se assim for feito, a Cristologia tornar-se-ia o assunto principal, e o
alvo de se entender o ser humano (análise antropológica) por meio de uma chave
de leitura cristológica perder-se-ia17.
Com o que até aqui foi considerado (a real necessidade de se criar uma
doutrina do estado primitivo, como também uma chave de leitura capaz de
empreender tal feito) nós apresentaremos a seguir a proposta brunneriana de como
seria o ser humano criado por Deus.
2.1.3.
O ser humano criado antes do pecado
A partir de Jesus Cristo, como a chave para entender a existência humana
criado segundo Deus, Brunner chega a algumas características que ele entende ser
concernentes ao ser humano antes de uma situação de pecado. Mas é importante
dizer que Brunner não dá uma “definição fechada” de como era o ser humano no
seu estado original, antes ele apresentou princípios – que parece bem seguros para
ele – que formariam a existência desse ser humano criado por Deus segundo a Sua
imagem e semelhança.
Uma das características que podemos identificar no homem criado
segundo Deus é a sua consciência de criaturidade18”. Brunner mostra que
enquanto o ser humano não entende a sua origem como criatura de Deus, ele tem
a tendência de ignorar a sua corporeidade, vendo-a de maneira negativa e profana,
como uma prisão da alma. Esse ser sem consciência de sua criaturidade tem
também uma acentuada obstinação em deificar o seu espírito identificando-o com
a Divindade. Eis o problema do dualismo antropológico19. Inevitavelmente, este
17
BRUNNER, Dogmatics (vol II), p. 53.
Como também afirmou Ladaria: “...uma determinação fundamental do ser humano, que nunca o
abandona, é sua criaturidade (Cf. LADARIA, Luiz F. Introdução à Antropologia Teológica. São
Paulo: Loyola, p. 37).
19
Merval Rosa na sua obra Antropologia Filosófica, acentua que o dualismo antropológico
moderno no Ocidente tem sua raiz na filosofia grega. E sobretudo Descartes com o seu dualismo
interacionista, segundo o qual a res extensa e a res cogitans, substâncias autônomas das quais o
ser humano é formado, misteriosamente interagem tendo como conseqüência as ações humanas, e
pelo paralelismo psicofísico de Leibniz, segundo o qual os dois elementos, físico e químico,
desenvolvem-se paralelamente e são regidos pelo princípio da harmonia preestabelecida. Essa
matriz de pensamento teve grande influxo na sociedade ocidental, de maneira que é muito difícil o
18
21
dualismo é constatado nos movimentos teológicos situados no Ocidente, e
principalmente na religiosidade cristã contemporânea.
Para Brunner, esse dualismo só pode ser superado quando o ser humano é
confrontado pela revelação de Deus, pois em Jesus Cristo, Deus se revela ao ser
humano como o seu Criador, mostrando que ele é uma criatura que foi feita pelo
grandioso amor de Deus, e que Deus quer ter uma relação com ele de maneira
integral, incluindo o seu todo, corpo e espírito. Com isso, é somente no encontro
com Deus que o ser humano se conhece como criatura, sendo inteiramente
pertencente a Ele – sendo o corpo sinal claro de sua criaturidade – não cabendo
qualquer tipo de mutilação. Sendo assim, por meio de sua consciência como
criatura o ser humano se vê identificado com toda a natureza, a criação é
dignificada20.
Brunner é um teólogo que dá grande importância à corporeidade como
condição para se relacionar com Deus, como também com o próximo. Pois é na
sua consciência corpórea e na integração desta com o espírito, que o ser humano
se reconhece como criatura de Deus, e consequentemente reconhece o seu lugar
junto a toda a criação21.
Mas isso não é uma negação de que o ser humano
também seja diferente do mundo, pois a doutrina da criação aponta o ser humano
como tendo sido feito à Imagem de Deus22. Como Imagem de Deus o ser humano
vive uma relação com o seu Criador, e é justamente isto que o distingue das outras
criaturas: a liberdade de dizer sim ou não para Deus23.
homem moderno livrar-se dela (Cf. ROSA, Merval. Antropologia Filosófica, Uma Perspectiva
Cristã. Rio de Janeiro: JUERP, 1996, pp. 175-176).
20
García Rubio trabalha bem esta questão ao afirmar que o ser humano deve ser entendido na
unidade existente entre corpo e alma/espírito. Tanto o idealismo materialista, como o
espiritualismo são norteados por uma postura de relação de oposição-exclusão em relação à
corporeidade e a alma, sempre eliminando uma das dimensões criadas por Deus no ser humano
(Cf. RUBIO, Unidade na Pluralidade, pp. 95-103). Mas o verdadeiro ser humano encontra-se
tanto em sua dimensão corpórea como na espiritual, é na unidade destas duas realidades humanas
que se encontra a totalidade do humano: a pessoalidade. García Rubio alerta, no entanto, que as
dimensões corpórea e espiritual do ser humano não são unidas de maneira monística, antes
apontam para aspectos diversos da realidade unitária que é o ser humano concreto (Cf. RUBIO,
Unidade na Pluralidade, pp. 348-1350). Quanto ao perigo do dualismo, eis o que diz García
Rubio:“Diante das tendências unilateralmente espiritualistas e materialistas, redutivas e
empobrecedoras do ser humano, importa sublinhar que a rica complexidade deste só é assegurada
quando, fundamentados na fé do Deus criador-salvador e na realidade básica da pessoa, se
valorizam positivamente tanto a dimensão espiritual com a corporeidade, articuladas fecundamente
numa relação de integração-inclusão20” (Cf. RUBIO, Unidade na Pluralidade, pp. 358-359).
21
BRUNNER, Emil. Man in Revolt, A Christian Anthropology. Cambridge: The Lutterworth
Press, 1957, pp. 107-108.
22
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 54.
23
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 56.
22
Brunner identifica um ser humano que foi criado à Imagem de Deus como
tendo sua existência na forma de um espírito encarnado em uma realidade
concreta. Daí ser expurgado todo tipo de dualismo que tende a separar o corpo do
espírito humano. Como ele assim mesmo expõe:
“Do ponto de vista da fé no Criador, o corpo material, e a matéria como tal, são as marcas
distintivas do criado, como oposta à existência não criada do Criador. A natureza física do
homem é, portanto, o sinal, a expressão concreta da natureza do homem como criatura, do
fato de que não é Deus. Mas o fato de que o homem não é Deus não significa que esteja
sem Deus. O homem como alma e corpo, portanto, foi criado para glorificar a Deus, por
isso, ao contrário, a mais elevada autocomunicação de Deus é a Encarnação da Palavra
em um homem de carne e sangue 24”.
Com isso, Brunner apresenta a essência do homem criado por Deus como
identificada com a necessidade de um reconhecimento de que o Deus que é
criador do mundo e, portanto, do corpo, reclama o ser humano como um todo.
Pois é na corporeidade que Deus se revela ao ser humano levando-o a produzir
ações concretas que expressam a existência do homem como Imagem de Deus. O
espírito seria a parte do homem onde Deus fala de maneira íntima; é no espírito
que o ser humano sente o seu destino eterno – que o diferencia das outras criaturas
como Imagem de Deus. Mas o espírito comunica a sua relação com Deus ao
corpo, como o instrumento por meio do qual está completo. E Brunner chega a
dizer que a parte onde Deus se revela ao homem não é o espírito separado do
corpo, mas no lugar onde espírito e corpo são um: no coração 25. De fato para o
pensamento semítico o coração (leb) é o centro e sede da razão, juntamente com a
capacidade de intelecção, conhecimento e discernimento, mas também estado de
espírito como alegria ou tristeza26.
O homem ter a sua origem como espírito encarnado é mais preponderante
ainda para a teologia brunneriana, pelo fato de a Palavra Criadora ter se tornado
carne e osso. Isto realmente espanta qualquer possibilidade de descaracterizar a
existência corpórea como algo estranho ao ser humano criado segundo Deus.
24
“From the point of view of faith in the Creator, the material body, and matter as such, are the
distinctive marks of the created, as opposed to the uncreated existence of the Creator. The physical
nature of man is therefore the sign, the concrete expression of the creaturely nature of man, of the
fact that he is not God. But the fact that man is not God does not mean that he is without God. Man
as soul-and-body has therefore been created to glorify God, hence, conversely, the highest selfcommunication of God is the Incarnation of the Word in a man of flesh and blood” (Cf.
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 62).
25
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p.63.
26
SATTLER, Dorothea; SCHNEIDER, Theodor. Doutrina da Criação. SCHNEIDER, Theodor
(Org.). Manual de Dogmática (vol. II). Petrópolis: Vozes, 2000, p. 151.
23
Sendo o corpo humano parte integrante do ser humano criado por Deus,
Brunner levanta outra questão que está diretamente ligada ao ser humano criado
segundo Deus: a polaridade sexual. Não é simplesmente a distinção sexual entre
macho e fêmea que diferencia o ser humano das demais criaturas como Imagem
de Deus, mas sim por serem marido e mulher. Pois a polaridade sexual está
estritamente ligada a Imagem de Deus no ser humano porque ela deve ser vista
pelo ângulo da relação. É muito importante aqui, o que o teólogo alemão
Moltmann pensa a respeito da sexualidade e a Imagem de Deus no ser humano.
Contra a idéia da alma assexuada de Agostinho e Tomás27, Moltmann expôs “que
se Deus criou a sua imagem na terra como homem e mulher, então essa diferença
original não é uma diferença subordinada, corporal, mas sim, uma diferença
central28”. Brunner entendeu este ponto como sendo uma amostra de que o
homem foi criado para responder ao convite de Deus a uma relação de amor.
27
Agostinho entendeu o plural divino, “façamos o homem conforme a nossa imagem...”, como um
singular, ao qual, também nas pessoas (criadas) só pode corresponder a um singular. Na criação o
ser humano não foi criado conforme a cada pessoa divina, ou conforme a uma pessoa
especificamente, para Agostinho a pessoa é a imagem do Uno, do verdadeiro Deus. A própria
Trindade é o Deus uno e verdadeiro. Com isso, indo contra a teologia Oriental de Gregório de
Nissa, que fez uso da primitiva família nuclear Adão-Eva-Set para entender a Trindade por meio
de uma chave de leitura que priorizava a relação, Agostinho vai dizer que a pessoa corresponde a
um caráter do Deus uno e trino, mas não a sua trindade interna. Isso levou Agostinho a ter
inevitavelmente uma visão dualista no que diz respeito à polaridade sexual na criação do ser
humano. Ele resolve a questão da diferença sexual de Gn 1,27, ao usar São Paulo (1Cor 11, 7)
dizendo que o homem é a cabeça da mulher... Agostinho, na sua noção da relação entre sociedade
e Imagem de Deus, deduziu que a mulher é imagem de Deus na medida em que ela se submete a
posição de Auxiliadora do homem, pois ela sozinha não pode chegar a ser imagem de Deus, é
essencialmente dependente do homem para chegar a este fim (Cf. AGOSTINHO. A Trindade. 2.
ed. São Paulo: Paulus, 1994, pp. 374-375). Santo Tomás segue as mesmas pegadas de Agostinho
conferindo a imagem de Deus ao intelecto humano. No que diz respeito à diferença de sexo Tomás
afirmou que isto não é considerado na natureza do espírito da pessoa. Moltmann resume o que
dizem Agostinho e Santo Tomás: 1) A alma assexuada que domina o corpo é imagem de Deus; 2)
Ela (a imagem de Deus) não corresponde a uma pessoa da trindade, mas a essência divina, uma e
ao domínio divino, uno (Cf. MOLTMANN, Jürgen. Deus na Criação, Doutrina Ecológica da
Criação. Petrópolis: Vozes, 1993, pp. 336-342). Fica claro, assim, que a “antiga teologia
ocidental” representada por Agostinho e Tomás, por influência helenística, não vê a polaridade
sexual como uma dimensão que aponta o aspecto relacional do ser humano que o prepara, porque é
imagem de Deus, a viver o amor comunitário (como a Trindade vive).
28
Este teólogo vai dar ênfase ao princípio de semelhança social de Deus no ser humano. No
entanto, Moltmann rejeita uma possível idealização de padrão familiar desenvolvida por Gregório
de Nissa baseada na família-nuclear Adão-Eva-Set. Pois a situação familiar não pode ser
normativa para a Imagem e semelhança de Deus nas pessoas, sejam homens ou mulheres, e nem
mesmo a doutrina da trindade pode ideologizar um padrão familiar. Antes o triângulo
antropológico (Adão-Eva-Set) determina a existência de cada pessoa, e a relação homem-mulher
caracteriza a sociabilidade insolúvel das pessoas (Cf. MOLTMANN, Deus na Criação, Doutrina
Ecológica da Criação, pp. 343). Com isso, vai dizer Moltmann: “A primeira (homem-mulher) é a
comunhão recíproca dos sexos no espaço, a segunda (Adão-Eva-Set) é a comunhão das gerações
no tempo” (Cf. MOLTMANN, Deus na Criação, Doutrina Ecológica da Criação, p. 344). Sendo
assim, se a pessoa toda é determinada como imagem de Deus, então a polaridade sexual e a
24
A teologia bruneriana diz que o homem se diferencia das demais criaturas
como Imagem de Deus na medida em que ele foi criado para uma existência-parao-amor. Somente um ser que vive em comunidade pode responder ao amor de um
Deus que em Si é também comunidade. Com isso, fica evidente que a vivência em
comunidade é um traço distintivo da natureza humana criada segundo Deus. E a
polaridade sexual demonstra que o ser humano não foi criado para existir
separadamente como uma existência apenas para si, mas é este estado de
alteridade que dignifica-o como Imagem de Deus29.
No entanto, Brunner acentua que é fundamental entender que a
individualidade é também um elemento característico da verdadeira humanidade.
A própria polaridade sexual pressupõe uma individualidade entre os gêneros que
se relacionam, pois Deus quer se revelar como Santo Amor a cada um de maneira
própria, e é significativo Deus ter criado Adão como homem e Eva como mulher.
E isso está em conexão com a vida em comunidade expressa pelas diferenças de
sexo, porque só existe uma comunidade onde se encontram individualidades se
relacionando. Como expressa o próprio Brunner:
“Como criados à Imagem de Deus todos os homens são iguais; criados como indivíduos,
são diferentes. A necessidade de complementação, devido à disparidade, é a forma natural
desta comunidade verdadeira, do agápe que pertence à verdade que o homem foi feito à
Imagem de Deus”30.
Nesta questão a polaridade sexual e a individualidade humana devem ser
consideradas à luz da existência do ser humano como um Eu. Mas este Eu para se
constituir precisa se firmar em um Tu. Como já foi dito, em Jesus Cristo, Deus se
encontra com os indivíduos – constituição do Eu – a fim de viver uma relação de
amor
de
maneira
responsável
–
dimensão
comunitária,
representada
germinalmente na polaridade sexual.
Outro aspecto que Brunner considera seguro expor como constitutivo do
ser humano criado por Deus é a sua posição como uma criatura que domina sobre
o resto da criação. Brunner diz que não é vaidade o homem se ver como coroa da
comunhão de gerações, também representam à tendência a comunhão como algo constituinte do
ser humano criado por Deus.
29
BRUNNER, Dogmatics (Vol. II), pp. 63-65.
30
“As created in Image of God all men are equal; created as individuals, they are unequal. The
need for completion, due to inequality, is the natural form of that true community, of ágape which
belongs to the truth that man has been made in the Image of God” (Cf. BRUNNER, Dogmatics
(Vol. II), p. 66).
25
criação, pois no Antigo Testamento a criação do ser humano aparece depois de
uma série crescente de atos de criação, e sendo o ser humano a conclusão da
criação de Deus.
Em sua obra de Antropologia Cristã Man in Revolt31, Brunner, sem deixar de
considerar a verdade da miséria humana, no entanto vai dizer: “Todos nós
percebemos o existir algo distintivo no homem que pertence a uma esfera mais
elevada do que o restante da criação32”. O redator de Gênesis expõe um relato
onde o ser humano encontra-se na função de dar nomes a toda criatura criada por
Deus, mas Brunner explica que a razão do homem ter recebido de Deus certa
autoridade – e domínio – sobre a criação tem a ver com a maneira diferente com
que foi criado. Pois, a todas as criaturas, Deus chama à existência por meio de
uma palavra de determinação, mas na criação do ser humano a Escritura
acrescenta o Criador expressando: “Façamos o homem à nossa Imagem, conforme
a nossa semelhança”. O relato de Gn 2 inevitavelmente diferencia o ser humano
frente às outras criaturas, mas aqui Brunner alerta para o perigo de se enxergar a
Imagem de Deus como identificada com o domínio do ser humano sobre a
criação. O homem não é Imagem de Deus porque tem domínio sobre a Natureza,
mas o ser humano só é chamado para ter domínio sobre a criação pelo fato de ter
sido criado à imagem de Deus33. Isto abre possibilidades para uma contundente
ética ecológica.
Brunner tratou o tema do domínio do ser humano sobre a natureza
demonstrando os possíveis erros que poderiam decorrer deste pensamento. Ele
disse que o verdadeiro entendimento do ser humano como um dominador da
criação está no fato de que ele pode olhar a natureza “de longe”, sem colocar-se
em uma postura de adoração do cosmos criado. Assim, Brunner considera a
tendência pagã de divinizar a natureza como conseqüência de um estado humano
afastado da verdadeira humanidade criada por Deus34.
No entanto Brunner também ressalta o fato de que o ser humano criado por
Deus é um mordomo da natureza, sabendo que não cabe a exploração desordenada
e a coisificação daquilo que foi criado por Deus. Pois, a verdadeira humanidade
31
Esta obra foi escrita em 1937, anterior a Dogmatics que teve o seu último volume escrito em
1960.
32
BRUNNER, Man in Revolt, p. 82.
33
BRUNNER, Dogmatics, p. 66-67.
34
Ibid.
26
entende que foi criada para viver o amor de Deus – por isso Cristo é o seu destino
– e esse é o seu propósito de existir. Sendo assim, para o nosso teólogo de Zürich,
não é a natureza em si, e muito menos a capacidade do ser humano de construir
civilização que caracterizam a Imagem de Deus no homem, mas é antes o homem
que vive como Imagem de Deus que domina com responsabilidade a criação de
Deus e cria civilização humanizadora.35 Caso contrário, a antítese se estabelece, e
o ser humano passa a agir de maneira destruidora em relação à natureza e cria
civilizações desumanas. É como o próprio Brunner afirma: “O homem não é
chamado para um domínio absoluto, arbitrário, da natureza, mas para um domínio
que permaneça sob a ordem do Criador, e, portanto, honra e ama o universo criado
como criação de Deus36”.
Com isso pode-se dizer, segundo a teologia brunneriana insinua, que o ser
humano criado pelas mãos de Deus originariamente, era um ser que tinha a
potencialidade de dominar responsavelmente a natureza, como também de formar
relacionamentos – civilizações – ideais, pois fora criado à Imagem de Deus.
Com isso pode-se concluir que o ser humano criado segundo Deus deve
ser entendido através do conhecimento que o encontro com Jesus Cristo
proporciona. Isto porque, o encontro com Jesus pela fé, leva o homem pecador a
se encontrar em uma relação com o Deus Criador, que é também o seu salvador.
Deus, por meio de Jesus Cristo, revela ao ser humano quem ele realmente é.
Através de uma leitura cristológica, pode-se assim dizer que o ser humano
criado segundo Deus seria constituído de “corpo e alma”, onde Deus manifestaria
o seu convite ao ser humano para viver uma relação com Ele em responsabilidade,
e baseada no seu “Santo Amor”, tendo este convite uma ação integradora na
existência humana: Corpo e Alma. Esse homem criado originariamente por Deus
deveria responder livremente37ao amor de Deus. Pode-se entender mais
detalhadamente o teor desta resposta ao convite feito por Deus ao ser humano, à
luz da revelação de Jesus Cristo. Por meio de Cristo, Deus Pai revela todo o seu
propósito ao homem que se questiona sobre a sua origem e destino. Assim, pode35
Como acrescenta Ruiz de la Pena: “O mundo não é um fato consumado; é um devir cuja
iniciativa pertence a Deus, mas cuja gestão concerne ao homem, Imagem de Deus” (Cf. RUIZ DE
LA PEÑA, Criação, Graça, Salvação, p. 26).
36
“Man is not called to an absolute, arbitrary mastery of Nature, but to a mastery of Nature which
remains under the order of the Creator, and therefore honors and loves the created universe as
God‟s creation” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 68).
37
Sobre este tema da liberdade, a pesquisa o aprofunda no tópico seguinte.
27
se dizer que o ser humano foi criado para responder a Deus, seja positiva ou
negativamente, porém a vontade de Deus desde o início da criação era que o
homem respondesse afirmativamente ao seu convite para uma relação de Amor.
Do ponto de vista ideal da criação do ser humano, no entanto, não há a
possibilidade de haver uma rejeição ao convite de Deus, por isso esta negação
leva o homem a um estado de pecado, explica Brunner. Daqui desponta um tema
que será aprofundado posteriormente: a verdadeira liberdade do ser humano é
liberdade no amor de Deus38, como veremos a seguir.
2.2.
Criado para responder ao amor de Deus livremente
Nesta parte da pesquisa nós temos a intenção de aprofundar alguns temas
vitais na compreensão do pensamento brunneriano em relação a uma possível
formulação de uma doutrina do estado original que se mantenha frente às
novidades trazidas pela modernidade. O tema da liberdade será tratado com a
intenção de se entender a dimensão e a limitação da liberdade que o ser humano
recebeu quando foi criado por Deus. O tema do propósito de Deus para a criação
também será abordado com o intuito de demonstrar que o ser humano foi
chamado à existência, para ser um receptor do amor de Deus em sua plenitude em
Jesus Cristo. O tema da fragilidade do ser humano tocará em um ponto
importante para o diálogo com a compreensão do ser humano nos dias de hoje,
quando ficará evidente que há grande dificuldade de se manter a figura de
“homem perfeito” na origem humana criada por Deus.
Claro que a pesquisa dos temas desenvolvidos nesta parte não tem a
intenção de apresentar uma síntese completa de cada assunto no todo da história
da teologia, nem mesmo no todo do pensamento de Brunner – em relação a cada
tema. Mas os temas expostos tem o seu sentido na medida em que ajudam na
compreensão do pensamento de Brunner sobre a Imagem de Deus no ser humano
antes do pecado.
38
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 73.
28
2.2.1.
Entendendo a liberdade do ser humano na criação
Depois de ter exposto a visão brunneriana sobre a importância da
construção de uma teologia amadurecida sobre a Doutrina do Estado Primitivo,
nós vamos aprofundar num ponto que é crucial para entender o pensamento de
Brunner acerca da Imagem de Deus antes do pecado. Para ele: o homem foi criado
em liberdade para responder ao amor de Deus.
Deus criou o homem com o objetivo de partilhar com ele o seu Santo
Amor, por isso o ser humano tem em sua constituição originária uma existência
em liberdade. Em Jesus Cristo, mais uma vez a revelação de quem o ser humano é
vem à luz, pois a fé em Jesus Cristo leva o ser humano a conhecer mais de si
mesmo. Aqui, neste ponto, nosso teólogo de Zürich novamente demonstra a
importância de se entender o ser humano tomando como base a Revelação do
Novo Testamento. Pois em Jesus Cristo Deus mostra-se como alguém que
livremente quer partilhar a si mesmo, e que, para isto, exige uma resposta livre do
ser humano.39. Isso conduz a inevitável compreensão de que o ser humano foi
criado por Deus, e que o cerne da constituição humana é a sua capacidade de
livremente responder ao amor de Deus40.
Para entender como Brunner via a liberdade humana, também é importante
ressaltar sua preocupação em mostrar que Deus criou um ser que pudesse refletir
39
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 55.
No que diz respeito a esta liberdade inerente a constituição do ser humano, Karl Rahner pode
ajudar muito com a sua idéia de liberdade transcendental. Esta liberdade que Rahner aludiu não é
uma liberdade que possa ter a sua compreensão objetivada, que pudesse ser alcançada por análises
empíricas. Esta liberdade existe no ser humano de maneira ontológica – tanto que muitas vezes
nem mesmo a consciência a descobre diretamente - pois em todas as situações o ser humano se
percebe como um “eu”, percebe-se como um sujeito entregue a si mesmo (Cf. RAHNER, Karl.
Curso Fundamental da Fé. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2004, pp. 50-51). Esta liberdade é
direcionada a transcendência, na medida em que o ser humano tem em si este horizonte, e é
inevitavelmente levado a dialogar com Deus. Sendo assim, esta liberdade vai constituir uma
pessoalidade e uma responsabilidade que dá ao ser humano a condição de se posicionar frente ao
transcendente que lhe é apresentado. Falando sobre a liberdade como pressuposto para uma
salvação que é inerente a existência do ser humano, e negando uma salvação intervencionista e
estranha a estrutura “livre-pessoal-responsável” do homem, Rahner explica:“Pelo contrário, referese à definitividade da verdadeira auto-compreensão e da verdadeira auto-realização da pessoa em
liberdade diante de Deus, mediante o seu próprio ser autêntico, tal como se lhe manifesta e se lhe
oferece na escolha da transcendência interpretada livremente. A eternidade da pessoa humana
somente se pode entender como a liberdade autêntica e definitiva que se maturou para além do
tempo” (Cf. RAHNER, Karl. Curso Fundamental da Fé, p. 55). Com isso, fica a contribuição de
Rahner, que como Brunner, entendeu a liberdade como algo fundamental e constituinte da
natureza humana. A liberdade é que dá condições do ser humano dialogar com Aquele que se
mostra a origem e o fim de sua existência.
40
29
algo que Ele mesmo possui: a pessoalidade. Deus “precisava”, para ser
glorificado, de uma criatura que pudesse efetuar um ato espiritual livre, que fosse
capaz de responder a sua interpelação como um Deus que deseja compartilhar a si
mesmo. Esta seria, para Brunner, a única condição para Deus chegar ao propósito
de sua criação: somente assim poderia o Seu amor realmente se comunicar como
amor. Pois o Amor só pode comunicar-se onde é recebido em amor.
Nesse caso, fica evidente que a existência de um “Eu” sempre foi plano de
Deus – e isto está diretamente ligado com a “Imago Dei”- pois somente um “Eu”
poderia responder a um “Tu41”. Dessa forma expressa o próprio Brunner: Por isso
o âmago da existência do homem como criatura é a liberdade, a individualidade,
ser um “Eu”, uma pessoa42.
A teologia brunneriana também entende a liberdade humana não como
uma existência autônoma em si, pois a liberdade dada ao ser humano tinha um
propósito definido: ser usada como fonte de uma resposta autêntica (diálogo livre
e responsável) ao amor de Deus. Nesse particular, nosso teólogo de Zürich
entende a liberdade dada ao ser humano como uma liberdade responsável, isto é,
uma liberdade limitada a responder eficazmente a interpelação de Deus. O fato do
ser humano ter usado mal esta liberdade, e com isso entrado em uma situação de
pecado, mostra como esta liberdade só pode ser entendida como liberdade
responsável; sobre isso nós trataremos com mais profundidade em um capítulo
posterior.
41
Nesta questão sobre a pessoalidade como algo constituinte do ser humano criado por Deus, Ruiz
de la Peña traz uma visão muito interessante ao dizer que na medida que Deus criou o homem para
uma auto-comunicação gratuita e amorosa, esta vontade criativa é também vontade de encontro e
diálogo, que traz à existência um ser que ao mesmo tempo é completamente dependente e
inteiramente livre. Este paradoxo só pode ser entendido no âmbito das relações interpessoal. Ruiz
de la Peña ilustra magistralmente ao usar o exemplo da mãe com o seu filho, para mostra a
compreensão do paradoxo lilerdade-dependência. Este teólogo mostra que a criança ao tomar
consciência da presença e do amor da mãe, tem em si também gerado o amor que foi possibilitado
e provocado pelo amor materno, este interpela uma resposta do ser gerado. Sendo assim, de la
Peña vai dizer que na relação mãe e filho se estabelece uma forma de dependência que confere
também autonomia, pois toda relação amorosa não é escravizante, mas libertadora e
personalizadora. Eis como de la Peña pensa a inevitável relação liberdade-dependênciapessoalidade: “É, com efeito, a presença interpelante do tu que gera a consciência do eu e o
exercício de sua liberdade. Sem esse tu, eu não teria por que (ou a quem) dar resposta, não seria
responsável (= não seria livre) (Cf. RUIZ DE LA PEÑA, O Dom de Deus, Antropologia
Teológica, p. 332). Dessa forma, de la Peña mostra que Deus é o Tu que através de seu sedutor
amor gera no ser humano o Eu dialogal. Por isso há uma existência autônoma (livre), mas ao
mesmo tempo uma necessidade de dialogar com o Tu (responsabilidade).
42
Hence the heart of the creaturely existence of man is freedom, selfhood, to be an “I”, a person
(Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 56).
30
2.2.2.
A vontade de Deus para o ser humano
O ser humano consegue se distinguir do resto da criação, pois se vê como
contendo algo que o joga para além do meramente biológico e físico 43. Brunner
desenvolve, em várias partes de seus escritos, a compreensão do propósito de
Deus para sua criação: Deus criou todas as coisas para que tivesse o seu fim na
glorificação de seu Nome. Com isso, é fundamental citarmos que esta glorificação
tem o seu clímax na relação de amor que o Criador deseja ter com o ser humano.
Assim, a criação é obra da Onipotência de Deus, mas é também obra de seu Santo
Amor. O autor por nós analisado diz que o amor é a causa finalis da criação, e em
Jesus Cristo esta razão ideal para a criação é revelada44. Com isso, o pensamento
brunneriano parece ir ao encontro de uma antropologia cristológica parecida com
a de Ireneu45, onde a encarnação não foi apenas resultado do pecado humano,
pois, desde o princípio, Deus tinha o propósito de se unir à humanidade como fez
em Jesus Cristo46.
Isso mostra a grande relação existente entre a origem do ser humano e o
Verbo de Deus que se fez carne, e que trouxe ao ser humano a compreensão de
seu destino como um ser criado para o amor de Deus.
Na sua Dogmática, na parte que explica a origem da criação, Brunner
ressalta que a doutrina cristã, diferente da filosofia grega, postula que se a criação
tem o seu fim no desejo de Deus se manifestar a Si mesmo47, o ser humano é
certamente o principal alvo deste desejo de Deus – não que Deus não seja, e não
queira ser glorificado pelas demais criaturas. Dessa forma, a teologia brunneriana
43
BRUNNER, Man in Revolt, p. 82.
BRUNNER, Dogmatics (Vol. II), p 13.
45
Para Irineu o Verbo encarnado foi o modelo que Deus utilizou para criar o ser humano segundo
sua “imagem e semelhança (Cf. GONZÁLEZ, J. Uma História Ilustrada do Cristianismo, A Era
dos Mártires (vol. I). São Paulo: Vida nova, 1995, p. 113). Ireneu dá um sentido crístico à criação
ao dizer: “...o Verbo existia, desde o princípio junto de Deus, que por sua obra foram feitas todas
as coisas, que sempre esteve presente no gênero humano e que justamente ele, nestes últimos
tempos, segundo a hora estabelecida pelo Pai, se uniu à obra de suas mãos...” (Cf. IRENEU.
Contra as Heresias, Coleção Patrística (vol.IV). 2. ed. São Paulo: Paulus, 1995, p. 328).
46
GONZÁLEZ, Uma História Ilustrada do Cristianismo, A Era dos Mártires (vol. I), p. 113.
47
Eis um interessante comentário de Brunner acerca do diferencial da atitude de Deus (na visão
cristã) em relação ao ser humano: “Isto constitui, como dissemos, a mensagem absolutamente
incomparável do Evangelho, a saber, que Deus veio ao homem e que o homem não foi a Deus; que
Deus resolve a contradição e não o homem; que Deus faz reconciliação e não o homem;
exatamente isto constitui a diferença entre o Evangelho e todas as outras religiões e filosofias” (Cf.
BRUNNER, Emil. Teologia da Crise. São Paulo: Fonte Editorial, 2000, p. 67.
44
31
entende que em Deus havia um “existir-por-nós” mesmo antes do ser humano ter
sido criado, seria a “Vontade Eterna” de Deus, ou mais especificamente o que
Brunner chamou de “decreto da criação”. Neste ponto, Brunner traz á luz a
importância da doutrina da revelação, pois esta discursa sobre um Criador que
anuncia ao ser humano os seus propósitos para a humanidade; dessa forma explica
Brunner:
“Mas, também não é acidental que o mesmo registro acidental da revelação o qual fala do
plano divino da salvação, também lida com o plano ou decreto da criação; pois como
poderia o propósito de Deus para o mundo não ser Seu plano, que o precede 48?”
Sobre esta vontade eterna de Deus, e o propósito perene em relação à
criação, pode servir como ajuda de compreensão a formulação da teologia atual
sobre a idéia de um Cristocentrismo da Criação. A teologia “mais atual” entende
que o universo tem como destino uma culminância salvífica, isto está em direta
relação com a estada do ser humano no universo. O ser humano desde a sua
criação está destinado a receber de Cristo a plenitude de sua existência. O ser
humano tem maior significância no cristocentrismo da criação porque este
apresenta ao ser humano a razão última do seu existir e a sua identidade como ser
livre e dotado de capacidade de diálogo com Aquele que lhe convida a fazer parte
de seu Reino na pessoa de Jesus Cristo. O ser humano foi criado para ser o
receptor do amor de Deus, este é o seu diferencial frente às outras coisas criadas.
No entanto, é importante entender que a vontade de Deus na criação não pode ter
uma causa externa a não ser a própria vontade gratuita de Deus em manifestar o
seu amor infinito. Sendo assim, chega-se à inevitável compreensão de que nada
(pecado, o ser humano, etc.) poderia ser a causa primária da sua máxima
manifestação de amor, que foi o seu filho Jesus Cristo, senão a sua livre vontade.
Aqui está a base da compreensão do cristocentrismo da criação: o Verbo de Deus
é a origem e o fim do ser humano e de toda a criação49. França Miranda, por
exemplo, assim comenta: “…criação e encarnação não são duas realidades que se
justapõem, mas duas fases de um único desígnio de sair de si, de se comunicar ao
48
“But it is also no accident that the same original record of revelation which speaks of the divine
plan of Salvation, also deals with the plan or decree of Creation; for how could God‟s purpose for
the world not be His plan which precedes it?” (Cf. BRUNNER, Dogmatcs (Vol. II), p. 4).
49
MIRANDA, Mario de França. A Salvação de Jesus Cristo, A Doutrina da Graça. São Paulo:
Loyola, 2004, pp. 41-43.
32
não-divino, ao ser humano, fazendo-o assim participar de sua vida e da sua
felicidade50”.
Brunner também diz que a vontade de Deus para o ser humano e para toda
a criação de forma geral, ou seja, o Seu decreto para a criação é apenas conhecido
pelo ser humano por meio de uma revelação que tem o seu desenvolvimento no
seio da história. Mas esta revelação que leva o ser humano ao conhecimento do
decreto divino para a criação, não é um conhecimento natural existente no ser
humano51, antes é a atuação de Deus demonstrando o seu propósito de ter uma
relação com o ser humano, e isto é manifesto em Jesus Cristo. Nosso teólogo de
Zürich explica que a revelação histórica de Deus na pessoa de Jesus Cristo tem o
seu diferencial, em razão de se distinguir das teorias sobre as gêneses de todas as
coisas, como também dos mitos das religiões. Pois em Jesus Cristo, Deus
apresenta-se ao ser humano como o Senhor de todas as coisas. Em primeiro lugar
aquele que crer na Revelação é levado a reconhecer o senhorio de Deus, e é a fé
neste Governo de Deus que o leva a crer que todas as coisas foram criadas pelo
Verbo de Deus. Mais uma vez fica ressaltado por que para Brunner é fundamental
compreender a criação a partir do Prólogo do Evangelho de João e das Epístolas 52.
A sua insistência nesta hermenêutica parece ter a sua razão em seu objetivo
teológico – que é o tema do presente capítulo da pesquisa: construir uma Doutrina
do Estado Primitivo que possa falar à sociedade moderna53.
O pensamento brunneriano ainda afirma que é propósito de Deus, desde o
início da criação, a constituição de um “outro” que possa responder ao seu amor.
A teologia de Brunner expõe a compreensão de que Deus levou tão a sério esse
seu propósito de dar existência a um ser humano que teria condições de ser o
interlocutor de Deus, de orar e conversar, de ser alguém em plenas condições de
estar em “oposição” ao Criador, esse propósito foi tão sério para Deus que
Brunner chegou à conclusão de que na criação – com o seu objetivo intrínseco:
partilhar seu Santo Amor – Deus se auto-limita a fim de dar liberdade ao ser
humano e assim o constituir verdadeiramente como um “outro”, que possa
50
MIRANDA, A Salvação de Jesus Cristo, p. 43.
Brunner reconhece que em várias religiões – as seitas do Hinduísmo, no Zoroastrismo e
Islamismo - há traços de um testemunho de Deus como o criador de toda a realidade, no entanto,
para ele este testemunho é maculado pela incapacidade intrínseca do ser humano em compreender
os testemunhos da criação sem distorcê-los (Cf. BRUNNER, Dogmativcs (vol. II), p. 5).
52
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 7-9.
53
Uso aqui o termo moderno referindo-o a “tempos atuais”, o que confunde o termo com a idéia
de contemporaneidade.
51
33
responder ao seu Amor livremente54. E a encarnação do Cristo é grande prova da
alteridade desse Deus que se esvazia a si mesmo, para que o ser humano possa
compartilhar de seu amor.
2.2.3.
O ser humano como uma criatura frágil
Nós trataremos também de um tema que está implícito em toda a
antropologia de Brunner, pois na teologia brunneriana toda antropologia que tem a
pretensão de ser relevante deve considerar a seguinte verdade: o ser humano não
era “perfeito”, pois apesar de ter sido criado em plenas condições de responder ao
Santo Amor de Deus – Deus sim, é perfeito – ele fora criado sob uma fragilidade
que o arremetia a uma dependência de Deus, como também de toda obra criada.
Por tudo o que já foi mostrado sobre o pensamento de Brunner, nós
chegamos à inevitável conclusão de que a compreensão do ser humano antes do
pecado, deve também considerar que ele foi criado destituído de uma “autonomiaradical”. Deus fez o ser humano com um propósito que o orientava a desenvolver
uma existência sempre aberta para o “outro”, para que pudesse se constituir como
um ser possuidor de verdadeira humanidade. Com isso, fica claro que o Criador
fez o ser humano com a intenção de construir uma realidade que pudesse viver os
valores existentes em seu Santo Amor, por isso Brunner pôde concluir que o alvo
da criação é o Reino de Deus55.
Para nosso teólogo de Zürich fica evidente que a figura de um casal com
poderes supra-humanos – construção da tradição teológica desde Agostinho – não
é mais aceitável nos dias de hoje. Isto porque, tanto a ciência como a exegese
avançaram de tal maneira que ficou evidente toda a carga mitológica dos relatos
dos primeiros capítulos do livro de Gênesis. E particularmente a exegese
histórico-crítica, demonstrou a influência pagã na compreensão do início de todas
as coisas que a Igreja herdara56. A teologia Oriental já cunhara desde o século II a
idéia de um ser humano frágil em sua origem, bem diferente do homem perfeito
que a tradição posterior pintou. Sendo assim, para Ireneu (bispo de Lião no
54
BRUNNER. Dogmatics (vol. II), p. 20.
BRUNNER. Dogmatics (vol. II), p. 14.
56
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 9.
55
34
século II) o ser humano foi criado como um ser em devir, Adão e Eva não
passavam de crianças em crescimento. Ireneu tinha sua antropologia pautada na
pedagogia de Deus (como era comum nos Padres), pois ele entendia que a
intenção de Deus era levar o ser humano a ser um homem espiritual, mas para que
a humanidade chegasse à “perfeição” seria necessária uma caminhada de longo
amadurecimento57. Eis um substrato do pensamento de Ireneu que mostra bem a
sua visão sobre a fragilidade humana na criação:
“Se alguém perguntasse: Ora! Deus não podia fazer o homem perfeito desde o princípio?
Saiba que no que diz respeito a Deus, que é incriado e sempre igual a si mesmo, tudo era
possível, mas as suas criaturas, enquanto receberam depois o início da existência, eram
necessariamente inferiores a quem as fez. Com efeito, era impossível que seres criados há
pouco fossem incriados, e, pelo fato de não serem incriados, estão abaixo da perfeição e
pelo fato de serem subseqüentes são como criancinhas e como tais não estão acostumados
nem treinados para disciplina perfeita 58”.
Muitos teólogos atuais identificam o imaginário original de uma dupla
perfeição do mundo e do homem criados em seus longínquos primórdios, a um
arquétipo clássico, tanto nas culturas humanas como nos indivíduos. Trata-se de
um arquétipo da idade de ouro, que leva a ver tanto a história como o indivíduo
em um passado ideal onde tudo era maravilhoso e perfeito, este arquétipo é mais
acentuado quanto mais hostil é o presente. Por isso existe a postura de voltar a
esta arquetípica idade de ouro. Esta visão arquetípica, que influenciou a tradição
cristã, vê a realidade constituída de uma Idade de ouro original, degradação
progressiva ao longo de toda a história, depois restauração da perfeição
primitiva por um salvador providencial. Esta visão arquetípica entende a história
da salvação de maneira cíclica, enquanto o Novo Testamento pensa a história de
Adão a Cristo em uma perspectiva linear e ascendente, rejeitando assim a visão
cíclica do esquema arquetípico. François Varone é um exemplo de teólogo que
rejeita esta perspectiva cíclica, que vê o ser humano no seu estado original como
uma criatura frágil e em desenvolvimento:
“Em lugar de aumentar ao infinito o personagem de Adão, considere-o como o humilde
início de uma humanidade que mais tarde chega, em Cristo, à plenitude de seu
desenvolvimento. Esta perspectiva continuará ainda entre os Padres, num Santo Ireneu e
57
58
LIÉBAERT, Jacques. Os Padres da Igreja (vol. I). São Paulo: Loyola, 2000, pp. 66; 69.
IRENEU. Contra as Heresias, p. 505.
35
num Santo Ambrósio, antes de desaparecer definitivamente pela obra de Santo
Agostinho59”.
A consciência de criaturidade que o ser humano criado por Deus antes do
pecado possuía – como já foi visto – corrobora o fato de que o homem tinha a sua
dignidade não em uma suposta perfeição, mas em assumir que era criatura de
Deus. O ser humano, portanto, tinha o seu estado ideal60em uma vivência que o
possibilitava compreender-se como um sujeito, sim um “eu”, mas que a sua
personalidade e individualidade eram dependentes da aceitação da existência e
diálogo com um “tu” – Deus, primariamente, como também o resto da criação. O
ser humano foi criado com uma estrutura (o “eu”) para ter o seu desenvolvimento
por meio de um relacionamento com um “Tu”. Esta constatação - que Brunner
entendeu que possui vasto apoio bíblico - traz à luz um ser humano criado em uma
condição de necessidade (do “tu” neste caso), bem diferente do ser perfeito da
tradição. Para Brunner, como para uma grande parte do pensamento teológico de
hoje e de ontem, o ser humano criado por Deus era essencialmente frágil, ainda
que pudesse não ser pecador.
A polaridade sexual também demonstra isso, o teólogo de Zürich via o ser
humano como uma criação de Deus que essencialmente foi criado para uma vida
comunitária. O ser humano é considerado completo e ideal, apenas quando é
considerado em sua completude existencial proporcionada pela polaridade sexual
– seja no Javista ou no relato Sacerdotal.
A própria liberdade do ser humano, para Brunner, é sinal de sua situação
de dependência e fragilidade. Pois ele recebera de Deus a liberdade para dizer sim
à relação de Amor com Deus. Nessa relação, o homem reconhece Deus como o
Senhor e fonte de sua existência, não cabendo ao ser humano criado por Deus a
opção de dizer não para seu Criador, sem que isto lhe acarrete danos em sua
existência – um estado de pecado.
CONCLUSÃO
59
VARONE, François. Esse Deus que dizem amar o sofrimento (Coleção Teológica: 5). São
Paulo: Editora Santuário, 2001, pp. 217-218.
60
Usa-se a palavra ideal aqui, com a intenção de diferenciá-la de perfeição. Ideal seria um estado
de máxima perfeição possível, não a perfeição em si. No presente caso, trata-se ideal o homem
sem pecado.
36
Pelo que foi visto, podemos concluir que a Imagem de Deus no ser
humano em sua constituição original (antes do pecado) se caracterizava como uma
existência acertada diante do amor de Deus. O ser humano vivia
responsavelmente, e de maneira positiva a sua relação com Deus. E esta forma de
viver era semelhante a viver-no-Amor-de-Deus. Por isso o ser humano antes do
pecado podia se aceitar como uma criatura e via o seu Criador como uma extensão
de sua existência, e com Ele estabelecia uma relação comunitária (a dimensão
“Eu”-“Tu”, que é também esboçada na polaridade sexual). O ser humano criado
por Deus também era capaz de ver nas outras coisas criadas os sinais da bondade
de seu Criador para com ele, pois sendo Imagem de Deus o ser humano estava
apto para administrar responsavelmente a criação divina. Por isso, tinha como
conseqüência a criação de relações humanizadoras com o seu próximo. Sem a
presença do pecado o ser humano tinha a sua liberdade direcionada para responder
positivamente a sua vocação de ser Imagem de seu Criador.
Estas conclusões acima listadas por nós estão ligadas e submetidas à
importância da encarnação de Jesus Cristo como evento revelador de quem o ser
humano realmente é. Somente a partir do propósito divino revelado em Jesus
Cristo que é possível se entender, e consequentemente se formular uma doutrina
do estado primitivo. E só assim também é sensato entender que o que caracteriza o
ser humano como Imagem de Deus é a sua vocação relacional com o Deus
criador, e que ele não foi criado como um “super-ser”, perfeito e infalível. Antes,
o pensamento brunneriano compreende (como muitos teólogos) que o ser humano
tem a sua dignidade como Imagem de Deus na medida em que espera em Deus a
razão e a maturidade para viver a jornada da vida, o que acontece em sua
plenitude na revelação de Jesus Cristo – origem e fim da existência humana.
37
3.
A Imagem de Deus no ser humano pecador
Neste presente capítulo, nós analisaremos a doutrina da Imago Dei no ser
humano em estado de pecado. Este capítulo terá como objetivo entender, por meio
do pensamento brunneriano, como se caracteriza no pecador este elemento
humano que a Bíblia diz ser fundamental na constituição do homem criado por
Deus. É possível afirmar, segundo a Bíblia, que o ser humano pecador é Imagem
de Deus? Se a resposta é sim, como entender o pecado na vida desse ser que é
Imagem de Deus? E mais, como entender a Imagem de Deus em um ser que é em
sua natureza (atual) ruim e rebelde contra Deus?
Brunner responde as questões acima consideradas tentando construir uma
doutrina do pecado atual e relevante. Atual, na medida em que procura ser uma
formulação doutrinária sobre o pecado que a civilização pós-revolução-científica
tenha condições de entendê-la. Relevante, porque quer mostrar ao ser humano
moderno como o pecado é um elemento humano que não pode ser desprezado.
Por isso será visto que a teologia brunneriana, por exemplo, abandona o
caminho da tradicional “Doutrina do Pecado Original”. Brunner nega esta
doutrina do pecado que predominou na vida da Igreja desde Agostinho, no entanto
respeitosamente reconhece que ela acerta em alguns aspectos da verdade bíblica
sobre o pecado. Mas quando esta doutrina é aceita no seu todo, mostra-se
completamente desprovida de base bíblica e é até mesmo nociva ao verdadeiro
entendimento sobre o pecado, diz Brunner. Isto porque para a teologia
brunneriana o pecado tem a ver com a existência humana enquanto ser relacional
e responsável, e não tem nada a ver com a idéia biológica e hereditária do pecado.
É justamente este aspecto “existencial” do pecado que derruba a tradicional
doutrina acerca do pecado.
É importante dizer que o tema da Imago Dei estará presente em todos os
tópicos deste atual capítulo, e mais explicitamente na parte que trata
exclusivamente sobre a Imagem de Deus como algo inerente ao ser humano.
Sendo assim, o atual capítulo é formado de três partes: primeiramente será
tratada a doutrina do pecado em si; depois será analisado o entendimento
brunneriano do estado de pecado que vive o ser humano, e por último o tópico que
mostra como Brunner entende a Imagem de Deus na realidade do pecador.
38
A estrutura do capítulo tem por objetivo responder as questões que foram
acima expostas, a saber: É possível afirmar, segundo a Bíblia, que o ser humano
pecador é Imagem de Deus? Se a resposta é sim, como entender o pecado na vida
desse ser que é Imagem de Deus? E mais, como entender a Imagem de Deus em
um ser que é em sua natureza (atual) ruim e rebelde contra Deus?
3.1.
Caminho para uma “doutrina bíblica” do pecado
Emil Brunner procura as bases que podem sustentar uma Doutrina do
Pecado que seja coerente com a visão bíblica e com o princípio cristão sobre este
tema. Apesar de desferir muitos golpes na tradicional “Doutrina do Pecado
Original”, a teologia brunneriana reconhece a grandiosidade desta doutrina que
acertou em pontos essenciais na compreensão do pecado. A acusação brunneriana
aponta em direção dos elementos neoplatônicos e na equivocada interpretação
realizada por Agostinho dos textos que dão base para a sua doutrina do Pecado
Original.
Para o pensamento brunneriano a Doutrina do Pecado Original de
Agostinho é completamente estranha ao pensamento bíblico. Nosso teólogo de
Zürich, no entanto, reconhece que esta doutrina tem o grande feito de combinar
dois elementos da compreensão bíblica do pecado: pecado como forma dominante
e a solidariedade do pecado entre todos os seres humanos61.
Apesar de ter acertado em duas compreensões profundas contidas na visão
bíblica do pecado, Brunner diz que a Doutrina do Pecado Original da “tradição
eclesial” é insuficiente para explicar o estado de pecado humano porque tornou o
pecado um fato biológico, natural. Mas esta visão, segundo o pensamento
brunneriano, jamais é a visão bíblica. Brunner entende que pecado é sempre um
ato responsável do pecador diante de Deus. Ao pecar, o ser humano é visto como
61
O patrólogo Michel Spanneut, assim comenta a doutrina do pecado original de Agostinho: “Aos
olhos do bispo de Hipona, o pecado original de Adão é grave em relação ao seu autor, tendo em
vista o estado privilegiado em que ele se encontrava, e grave também para todo o gênero humano
que é solidário com a decisão e com a responsabilidade desse mesmo pecado. E traz como prova
disso a própria tradição da Igreja que batiza as crianças “para a remissão de pecados”. Toda a
descendência de Adão está, pois, contaminada em seu livre-arbítrio doravante dominado pela
concupiscência. A humanidade é uma “massa de pecado e de perdição”, “uma massa condenada”
(Cf. SPANNEUT, Michel. Os Padres da Igreja (Séculos IV-VIII). São Paulo: Loyola, 2002, p.
217).
39
“a pessoa perante Deus”, o todo da pessoa e a sua solidariedade com outros seres
humanos pecadores, estão presentes no ato pecaminoso, e a solidariedade humana
do pecado não altera seu caráter pessoal. Aqui, a teologia brunneriana entende que
é preciso largar a visão biológica da transmissão do pecado, mas isto não deve
eliminar a verdade da unidade de todos os seres humanos no pecado.
Para o teólogo de Zürich a saída está na consideração do mistério que nos
mostra que todos são responsáveis diante de Deus. É na percepção de que somos
constituídos de um “Eu” que é interpelado por um “Tu” - que é o próprio Deus.
Isto é suficiente para mostrar que cada ser humano é responsável por seu pecado
perante Deus, por isso cada um também compartilha pela culpa da existência do
pecado no mundo, e que Cristo morreu na cruz por causa do pecado cometido por
cada ser humano62. Brunner chega, assim, a conclusão de que o pecado é parte da
constituição humana na atual condição de sua existência, e isto, até Cristo quebrar
estas cadeias63.
O pensamento brunneriano aponta dois acontecimentos cotidianos óbvios
na existência humana que dão base para a Doutrina do Pecado Original (de
Agostinho): a prática sexual e a hereditariedade. Brunner disse que a associação
do sexo com a doutrina do pecado tem um substrato helenístico que Agostinho
62
Leonardo Boff, sem ser muito específico, diz que este drama humano (o pecado) é considerado
pela tradição judaico-cristã à luz da dimensão espiritual e religiosa, mas que trata-se de um dado
antropológico que não pode ser considerado apena como um monopólio das religiões e das
tradições espirituais. Antes, faz parte da profundidade do ser humano, do que ele chama de
subjetividade abissal e “daquela capacidade de colocar questões radicais acerca do sentido da vida,
da origem do Universo, de nosso lugar no conjunto dos seres e de nossa esperança para além da
vida” (Cf. BOFF, Leonardo. Homem: Satã ou Anjo Bom? Record: Rio de Janeiro, 2008, p. 128).
Sendo assim, o pensamento atual de Boff também dá ao pecado, biblicamente falando, uma
dimensão “existencial” e relacional. Eis como Boff interpreta a visão de pecado na Bíblia: “A
tradição bíblica fez dessa dimensão tema de constante reflexão. Ela se inscreve dentro da
atmosfera do sagrado. E é nesse código que lê a história e o drama humano. Deus é uma evidência
existencial. É experimentado como um ser de relações. Cuida de sua criação e do ser humano. (...)
Pecado, neste contexto, é uma relação negativa diante de Deus, ruptura de uma aliança de amor.
Esse Deus quer que nos amemos como irmãos e irmãs, e que vivamos socialmente em justiça e
paz” (Cf. BOFF, Leonardo. Homem: Satã ou Anjo Bom? P. 129). Boff também lê o pecado na
Bíblia com uma ênfase na responsabilidade pessoal do ato pecaminoso, não apegado a questão da
transmissão biológica como viu a doutrina do Pecado Original desde Agostinho. O próprio Boff
assim expõe a sua compreensão da pessoalidade do pecado na Bíblia: “Esse mal humano faz mal a
Deus, magoando-o, rompendo um laço de amizade e de amor com Ele. O ser humano afirma seu
eu de forma absoluta. Decide construir sua própria história sem Deus e sem referência ao propósito
de Deus manifesto no outro, na comunidade e na criação. Na convicção da tradição judaico-cristã,
tal atitude representa a grande errância do ser humano, seu verdadeiro drama, que é uma tragédia.
Ele demanda libertação e redenção” (Cf. BOFF, Leonardo. Homem: Satã ou Anjo Bom? P. 129130).
63
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 104.
40
teria usado para formular a sua Doutrina do Pecado Original64. Esta visão não
confere com o entendimento bíblico que apresenta o ser humano como sendo
homem e mulher. Como diz nosso teólogo de Zürich: “O sexo é uma gloriosa
criação de Deus intimamente associado com o grande mistério de que o homem
foi criado à Imagem de Deus65”. Além desta visão de pecado associado ao sexo
descaracterizar a dignidade da dimensão sexual do ser humano, o que mais
preocupa Brunner é o fato de que uma vez aceito este pressuposto o pecado
passou a ser enquadrado na esfera biológica e sensível, perdendo-se o sentido
fundamental de pecado como rebeldia e arrogância.
No que diz respeito à hereditariedade, a teologia brunneriana explica que
se deve distinguir a verdade de que empiricamente é inevitável que o indivíduo
herde qualidades boas e más de seus antepassados. Mas qualidades, diz Brunner,
podem ser atribuídas para coisas como para seres humanos, “mas “pecado” não é
uma “qualidade”, mas é aquilo que determina uma pessoa66”. Na verdade, a
preocupação da teologia brunneriana é deixar claro que o pecado é um ato que
deve ser entendido como uma experiência radical no ser humano, ele é
responsável pela sua condição e não pode culpar um “descendente primevo”
apenas.
Brunner trata também da perda da liberdade que o ser humano sofreu ao
abrir as portas para o pecado em sua vida. A situação do ser humano caracterizase como uma situação de culpa, pois ao permitir o pecado em sua existência ele
tornou-se seu escravo. Nosso teólogo de Zürich deixa “pistas” aqui, neste ponto,
64
García Rubio pode contribuir no entendimento da influência grega no pensamento da Igreja ao
fazer uma análise de como o “cristianismo primitivo” se comportou face as propostas da filosofia
hedonista e estóica. Ele diz que os primeiros Padres rejeitaram a proposta da ala radical do
estoicismo e gnosticismo que conferiam à corporeidade um valor completamente negativo, estes
Padres entenderam que Deus como criador não poderia criar uma realidade má em si por isso o
sexo e o corpo possuiam alguma dignidade vinda de Deus. Mas ao mesmo tempo ao querer fugir
do extremismo da proposta hedonista a Igreja acabou sendo muito mais influenciada pela corrente
estóica, neopitagorística e gnóstica (GARCÍA, Unidade na Pluralidade, p. 460-465). Como
explica o próprio García Bubio:”Em particular, foi assimilada a doutrina desenvolvida por estas
tendências segundo a qual a sexualidade deveria ser considerada apenas como um elemento
meramente biológico do ser humano. O sexo existe apenas em ordem à conservação da espécie e
não para o prazer. Consequentemente , o ato sexual só se justifica eticamente quando realizado em
ordem à procriação, tal como nos animais. Esta doutrina vai influenciar poderosamente muitos
Padres e será mantida como orientação da Igreja durante longos séculos” (GARCÍA, Unidade na
Pluralidade, p. 462). Certamente Agostinho recebeu toda esta herança de tendências ao formular
sua doutrina do Pecado Original com o neoplatonismo de seu tempo.
65
“Sex is a glorious creation of God closely connected with the great mystery that man has been
created in the Image of God” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 105).
66
“But “Sin” is not “quality”, it is that which determines a person” (Cf. Ibid.).
41
de sua recôndita compreensão a respeito da doutrina da queda. O ser humano, diz
ele, tinha condições de se fechar ao pecado, mas porque não o fez ele afastou-se
da capacidade de ser agradável a Deus. O homem perdeu a liberdade de viver o
“amor de Deus”. Fica evidente no pensamento de Brunner sua compreensão de
que esta culpa, apesar de ter uma história que retrocede, também diz respeito a
cada ser humano, todos pecaram e por isso estão longe de Deus. Seguindo esta
máxima paulina Ele entende que cada ser humano é responsável por seu estado de
pecado e afastamento da vontade de Deus. Como ele mesmo disse: “Agora este é
o paradoxo do pecado, que o homem pode, é verdade, “fazer algo a respeito” e
assim ele é culpado, mas não pode alterar o fato de ser pecador. O homem está
aprisionado em seu próprio pecado67”. Por isso somente um ato de Deus pode
reconduzir o ser humano à comunhão com Sigo mesmo.
A teologia brunneriana também rejeita a saída meta-histórica para se
entender a realidade do pecado na existência humana. Esta postura teológica,
explica Brunner, elimina a necessidade de tratar o assunto do pecado
considerando o tempo e o espaço. Mas ao mesmo tempo em que se liberta das
amarras da tradicional Doutrina do Pecado Original, esta postura teológica fica
presa a uma matriz de pensamento gnóstica que é completamente estranha ao
pensamento bíblico.
Brunner é incisivo em afirmar que a doutrina da Queda, apesar do caráter
misterioso de seu Como e Quando (concretamente não se pode indicar como seria
a existência sem a culpa68), não pode ser rejeitada. Ele acusa os que formularam a
doutrina da Queda transcendental de abandonarem um elemento fundamental de
toda a teologia. Ele diz que a atitude de livrar-se da questão do lugar e do tempo
na história do pecado humano é simplória, e não resolve em nada a dificuldade de
se entender o mal na realidade humana. A doutrina de uma Queda meta-histórica
entende o mundo presente como um “mundo caído”, situação consequente de um
mal - pecado - praticado em outra esfera de realidade. O pensamento brunneriano
mostra a incoerência desta doutrina porque a queda, meta-histórica inteligível,
corresponderia ao conceito inteligível da pessoa; ela cria um contraste entre o
Deus Criador e o Deus Redentor e dá status de igualdade entre o estado original
67
“Now this is the paradox of sin, that man can, it is true, “do soothing about it” the thus he is
guilty, but he cannot alter the fact that he is a sinner. Man is imprisoned in his own sin” (Cf.
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 106).
68
RAHNER, Curso Fundamental da Fé, p. 144.
42
do ser humano e a sua Redenção. A Bíblia aponta para um Fim da Criação que é
também uma restauração69 que tem a ver com algo novo e diferente do início,
apesar de estar ligado a ele por ser o Fim do Início70.
Sendo assim, Brunner entende que para se pensar uma doutrina do pecado,
e da Queda, aproximadas da Bíblia, é necessário que se desvencilhe dos erros
proporcionados pela tradicional Doutrina do Pecado Original e se rejeite
completamente a solução simplista proporcionada pela idéia de uma Queda e
pecado acontecidos em uma esfera transcendental. Pois o pensamento brunneriano
entende a situação de pecado que o ser humano vive mais na dimensão pessoal (o
ser humano como responsável diante do convite de se relacionar com Deus). Pode
ajudar a entender o ângulo de visão do pensamento de Brunner a sua idéia do ser
humano como um ser em revolta contra seu Criador. O que será tratado logo
abaixo.
A teologia brunneriana descreve o ser humano pecador como alguém em
revolta. Pois o ser humano por meio do pecado vive uma luta contra a sua
natureza enquanto criada por Deus. Trata-se de uma existência em contradição
consigo mesma. Assim, o pecado leva-o a uma existência totalmente equivocada,
isso porque além de ser um estado de rebelião contra Deus é também revolta
contra sua própria existência. Por isso o homem pecador é um ser em revolta
contra tudo aquilo que lhe é fundamental e originário. Este estado de revolta não
poderia gerar outra realidade na vida humana senão uma existência em crise.
Usando as diretrizes de alguns pensadores (Agostinho, Lutero, Hegel e
Kierkegaard), a teologia brunneriana mostra que o ser humano mesmo que tenha
distorcido seu destino voltado para viver o verdadeiro Amor de Deus, ainda assim,
ele continua tendo o seu ser orientado para Deus. Daí que surgem os esforços
humanos a fim de tapar esta lacuna “existencial” que é representada pelos duplos
desejos: de piedade e impiedade, de estar com Deus e longe de Deus, vida
religiosa versos vida secular, etc. Estes dualismos são sinais evidentes da profunda
crise que vive o ser humano pecador. O teólogo ora analisado diz que esta é a
69
Ao tratar da universalidade do propósito de Deus Gerhard Lohfink faz um interessante
comentário sobre a visão linear da Bíblia em relação ao mundo existente: “Tão universal quanto
seu início é também a parte final da Bíblia. Sua primeira imagem descreve a criação do mundo a
partir do caos. Sua última grande imagem é o novo mundo de Deus, sua nova criação, em que toda
a criação encontra seu fim e sua plenitude” (Cf. LOHFINK, Gerhard. Deus Precisa da Igreja?
Teologia do povo de Deus. São Paulo: Edições Loyola, 2008, pp. 50-51).
70
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 100-102.
43
verdadeira dialética do ser humano, pois ele é um ser com uma “grandiosidade”
que o leva a transcender as demais coisas criadas, mas ao mesmo tempo se vê
como um ser em “miséria”. Como ele mesmo diz : “Nada há humano que não traz
alguns traços da glória original derivada de Deus; outra vez, nada há humano que
não traz traços da Queda71”!
O nosso teólogo de Zürich ainda aprofunda mais a questão do conflito
resultante do estado de revolta do ser humano contra Deus e consigo mesmo, ao
tratar das contribuições apresentadas por Kierkegaard na esfera do fenômeno
psicológico subjetivo. A teologia brunneriana entende que este filósofo, seguindo
as pegadas de Pascal, construiu uma interessante “psicologia cristã” ao tratar dos
“sinais” apresentados na vida do ser humano que são resultantes deste conflito
entre a “grandiosidade” e a “miséria” humana72. E os “sinais” desse conflito são: o
autoconhecimento que leva o homem ao desespero (evidência de culpa e
distanciamento do destino humano); a inquietação oriunda de um coração que
anela pelo seu “lugar de direito; a “má consciência”; e a “ansiedade” consequente
da ausência daquilo que lhe é originariamente fundamental73.
Com isso, chegamos à conclusão de que na teologia do teólogo por nós
analisado a doutrina do pecado é tratada muito mais dentro do aspecto
“existencial”, como uma realidade vivida pessoalmente. E ele estava convicto de
que esta é a visão bíblica do pecado. Por isso a situação que envolve o ser
humano, tanto interna como externamente, está maculada pelo pecado. É
justamente sobre este estado de pecado que a pesquisa tratará a seguir.
3.2.
O ser humano em estado de pecado
71
“There is nothing human which does not bear some trace of the original glory derived from the
Creation; again, there is nothing human which does not bear of the he Fall!” (Cf. BRUNNER,
Dogmatics (vol. II), p. 126).
72
Segundo Kierkegaard como espírito o ser humano é superior aos demais animais. Pois enquanto
a espécie animal está a princípio ligada uma determinação, o ser humano ao contrário, porque tem
existência, tem em si uma complexidade que tem a ver com a possibilidade. Trata-se da liberdade
de se construir. “O animal tem uma essência, sendo, portanto, determinado, já que a essência é o
reino do necessário, cujas leis a ciência procura. A existência, ao contrário, é o reino do devir, do
contingente e, portanto, da história. Em suma, a existência é o Reino da liberdade: o homem é o
que ele escolhe ser, é o que se torna. Isso quer dizer que o modo de ser da existência não é a
realidade ou a necessidade, e sua a possibilidade (Cf. ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni.
História da Filosofia (vol. III). 6. ed. São Paulo: Paulus, 2003, pp. 245-248).
73
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 126-128.
44
Brunner procura compreender o estado de pecado que o ser humano se
encontra considerando a doutrina da redenção que surge a partir da revelação
cristã. Pois para ele é fundamental entender que só se pode afirmar a redenção
anunciada pela fé cristã, na medida em que esta mesma fé aceita que o ser humano
encontra-se em um estado de pecado ontologicamente falando. Coisa que a
teologia vê como elemento básico da intencionalidade do paralelismo
neotestamentária: a salvação que Jesus Cristo traz está intimamente ligada à
condição de perdição que se encontram os descendentes de Adão 74. E a pergunta
que Brunner quer responder é: o que é o homem em estado de pecado sem a
justificação de Jesus Cristo?75.
Para responder a pergunta desferida acima, nosso teólogo de Zürich uma
vez mais entende que o caminho coerente a ser seguido como teólogo é aquele
que trata as questões dogmáticas à luz da novidade trazida pelo relato do Novo
Testamento: Jesus Cristo. Apesar da fantástica expressividade do relato de
Gênesis 3, Brunner está convencido de que é necessário desfazer-se deste relato
que não acompanha mais as mudanças proporcionadas pela visão de mundo
adotada depois das descobertas científicas modernas. E somente quando se
entende que Cristo, a Palavra de Deus, é o principium congnoscendi do pecado e
da Queda, o teólogo está livre da escravidão do relato de Adão e todos os mitos
que envolvem esta narrativa veterotestamentária. Ele aponta duas questões
importantes ao considerar o erro de se partir do Antigo Testamento para
compreender a doutrina do pecado: 1) A narrativa contida no terceiro capítulo de
Gênesis pouco influenciou na formação da doutrina do Pecado quer no Antigo
como no Novo Testamento; 2) Muitas dificuldades intelectuais e teológicas foram
causadas pela errônea relação da doutrina do pecado com a narrativa mítica de
Gênesis76.
Brunner vê como um erro teológico crucial a atitude de rejeição da
doutrina da Queda por ela estar tradicionalmente atrelada ao “relado mitológico”
de Gênesis 3. A rejeição de uma doutrina da Queda torna contraditória a
consideração do Novo Testamento de que o ser humano está em um estado de
pecado. Para a teologia brunneriana a doutrina da Queda – a despeito de todo o
74
LADARIA, Luiz F. Teología del Pecado Original y de la Gracia. 3. ed. Madri: Biblioteca de
Autores Cristiano, 2001, pp. 183-186.
75
BURNNER, Dogmatics (vol. II), p. 89.
76
BURNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 89-90.
45
estigma mitológico que a envolve – é um elemento fundamental para que a
Revelação do Novo Testamento, como também para toda a teologia cristão,
possam ter fundamento. A redenção de Jesus Cristo está inevitavelmente ligada ao
estado decaído e de pecado que se encontra o ser humano77.
Para o pensamento brunneriano a gravidade do pecado comporta dois
elementos: o ato do pecado; e o estado de pecado. Brunner explica que a Queda é
o estado de pecado que o ser humano entrou desde quando cometeu o pecado de
possuir sua “autonomia” frente ao Deus Criador. Ele diz que a Queda pode ser
entendida por esta dupla compreensão de “ato” que levou a um “estado”. Com
isso, a Queda seria um “estado” de rebeldia que o ser humano assumiu a partir do
pecado. Pecado seria o desvio da vontade primeira de Deus para o ser humano, e
esta vontade era que o ser humano tivesse a sua existência-em-Deus. Uma vez
pecando, o ser humano tomou um caminho sem volta, por meio de seus pecados
ele assumiu um estado de rebelião contra Deus78.
Para o teólogo de Zürich os pecados particulares não têm necessariamente
sua causa no primeiro pecado cometido pelo primeiro ser humano – como ensina a
Doutrina do Pecado Original de Agostinho. Isto porque os pecados particulares –
ou vícios – podem ser evitados por qualquer ser humano, sendo ele cristão ou não.
Brunner cita a célebre frase de Agostinho: “as virtudes dos pagãos são vícios
brilhantes”, para dizer que a qualidade de ser “bom” ou “mal”, virtuoso ou
pecador, não tem relação com o fato da pessoa ser pagã ou cristã. Pois para a
teologia brunneriana os pecados particulares estão ligados a disposição das
pessoas em evitá-los ou não. Usando a teologia dos Reformadores, Brunner tomou
a idéia de justitia civilis para explicar que os pecados particulares – a questão de
ser virtuoso ou vicioso – podem ser evitados por qualquer ser humano, pois os
pecados particulares estão mais ligados a esfera moral e não tem relação direta
com a questão da fé. Nas palavras de Brunner pode-se ler:
“Mas a relação deste pecado “primeiro” (Ur-Sünder) para os muitos pecados particulares
não é – como freqüentemente é ensinado com base na Doutrina do Pecado Original –
aquela causa e efeito, ou de uma lei e suas manifestações, mas uma relação sui generis,
que absolutamente não tem analogia79”
77
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 90.
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 109.
79
“But the relation of this “primal” sin (Ur-Sünde) to the many particular sins is not-as is so often
taught on the basis of the doctrine of Original sin-that of a cause to its effects, or of a law to its
78
46
É relevante citar a resposta que o teólogo da libertação Pedro Trigo dá a
questão de como entrou o pecado na realidade humana. Ele diz que o pecado
entrou pela primeira vez como entra hoje. O pecado possui duas dimensões
complementares. O pecado seria um salto refratário a qualquer recomposição.
Esse salto não tem luz e por isso não pode ser entendido. Apenas quando a pessoa
assume diante de Deus este ato como sendo uma ação propriamente sua é que
surge alguma compreensão. Essa confissão diante de Deus mostra por si a
existência do pecado, e como ele deve ter entrado na história humana. Mas Pedro
Trigo também diz que esta “intuição” complexa sobre o ato pecaminoso leva a
constatação da pecaminosidade da tentação e existência de uma estrutura e
situação de pecado que torna heróica a fidelidade a Deus.80 Sendo assim, este
teólogo reconhece a complexidade do ato pecaminoso e considera o pecado como
algo ligado à fé, como também à pessoalidade e responsabilidade de cada um em
relação à situação de pecado existente.
Voltando agora ao pensamento de Brunner, compreende-se que a justitia
civilis tem relação com a capacidade de viver corretamente sob as diretrizes de um
determinado código de leis, e o ser humano tem essa capacidade. De igual modo é
a questão dos pecados particulares, todo ser humano pode evitá-los. É muito
importante entender que Brunner faz a distinção entre a bondade ligada a Coisa, e
a bondade ligada ao Bem. A bondade –virtude – que tem a ver com a Coisa é
ligada a área moral e legal, já a bondade ligada ao Bem é aquele modo de viver
que tem a ver com o existir-em-Deus, que é próprio da fé. Assim, o fato do ser
humano poder evitar a prática de pecados particulares, de ser virtuoso, não o livra
do fato de viver em um estado de pecado.
O teólogo por nós analisado explica que é fundamental entender que a
capacidade do ser humano de evitar a prática de pecados particulares, de âmbito
moral e legal, não pode estar separada do que ele chama de uma “disposição mais
íntima”. A “disposição mais íntima” seria justamente a área do coração humano
que detecta a virtude legal e moral como insuficiente, por mais que o homem
consiga evitar a prática de pecados particulares, ainda sim, ele não pode deixar de
manifestations, but a relation sui generis, which has absolutely no analogies at all” (Cf.
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 109).
80
TRIGO, Pedro. Criação e História (Série III, Libertação na História). Petrópolis: Vozes, 1988,
pp. 150-151.
47
ser um pecador. E tudo o que ele faça ou “toque” está contaminado pelo pecado.
Como diz o próprio Brunner:
“Ser um pecador não necessariamente produz os pecados particulares; todo pecado
particular em si pode ser evitado. Se é cometido, isto aumenta a compulsão para pecar. Se
é evitado, aumenta-se a liberdade moral. Mas a tendência pecaminosa nunca se torna não
liberdade absoluta, e liberdade moral nunca se torna a liberdade de não ser um pecador81”.
Fica assim evidente que o ser humano encontra-se sob uma condição que
inevitavelmente o mostra que ele é um pecador, sua existência está comprometida
com esta “maldição”. E por mais que ele faça algo bom aqui ou ali, ele ainda
assim é um pecador até as últimas conseqüências. É justamente este tema que a
pesquisa tratará a seguir: o ser humano não é apenas parcialmente pecador, mas
todo pecador.
3.2.1.
A integralidade do estado de pecado do ser humano
Para Brunner o pecado não é apenas um elemento secundário no ser
humano, mas uma virada completa na situação do destino humano. O pecado é
uma concepção totalmente nova de vida, trata-se do homem que decidiu viver sua
liberdade a parte de Deus. Este novo estado de vida estende-se à totalidade da
existência humana, não é algo parcial, mas uma ação que compromete
integralmente a vida, apesar de não ser uma situação consciente para todos os
homens. Nosso teólogo de Zürich chega à conclusão de que o fim (telos) do
pecado é a totalidade do ser humano. Pecado são todos os atos da pessoa. Não
existe impessoalidade nem parcialidade no estado do homem como pecador, é
todo o ser humano que encontra-se em rebelião contra Deus. Mas esta verdade só
fica evidente quando é considerada de maneira acertada a Doutrina da Criação.
Pois ali fica claro a integralidade do ser humano como um ser que é constituído de
corpo-mente e espírito. Brunner também diz que o órgão que tem a sede da
personalidade total é o coração, por isso o pecado é gerado e procede do coração.
No coração está representada a totalidade do ser humano, o Eu que fora criado
81
“To be a sinner does not necessarily bring with the particular sins; every particular sin in itself
can be avoided. If it is committed, this increases. But the sinful tendency never becomes absolute
un-feedom, and moral freedom never becomes the freedom of not being a sinner” (Cf.
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 112).
48
para dialogar com Deus, esta pessoalidade – integral – é que peca contra Deus. O
pensamento brunneriano reconhece que há o aspecto parcial do pecado – que está
relacionado com a questão psicológica – mas mesmo aqui é necessário que o todo
deva ser reconhecido primeiro para que o parcial seja compreendido
adequadamente. “O homem total se rebela contra Deus, egos totus, e nesta
rebelião todos os poderes individuais de seu corpo-mente são mobilizados82”, diz
Brunner.
O Autor por nós analisado reconhece que Kant chegou muito próximo do
entendimento da Revelação Cristã ao formular a sua teoria sobre o Mal Radical.
Kant, como mostra Brunner, foi capaz de perceber o mal atrelado à pessoa de
maneira integral. Kant não aceitou que o mal esteja relacionado aos impulsos do
sentido, estes só servem ao mal quando o ser humano se permite estar sob o
controle deles. O pensamento brunneriano mostra que para Kant o mal é um ato
da pessoa, o ser humano inteiro pratica o mal, daí Kant pôde chegar à definição do
“coração mau”. Brunner diz que Kant só chegou a entender, sem o auxílio da
Revelação cristã, o mal como uma ação total, porque ele partira da idéia da lei
Divina, mas logo que passou a lei da Razão ele se distanciou do mal radical.
Sendo assim, a teologia brunneriana entende que Kant foi um grande exemplo de
como através de um “raciocínio imparcial” pode-se chegar próximo à idéia cristã
do pecado como uma ação total no ser humano. Mas Brunner diz que mesmo
Kant, por associar a liberdade e a pessoa humana à Lei divina e não à Revelação
divina, não chega a perceber a intensidade última do mal radical. Tal verdade só
pode ser percebida do ponto de vista de Cristo83.
3.2.2.
O pecado como rebelião à dependência de Deus
Para Brunner o pecado deve ser inevitavelmente entendido como apostasia
e rebelião. Ele disse que a Bíblia, exceto em Gênesis 3, não trata com muito
detalhes a história da Queda. Mas em muitas passagens bíblicas encontra-se a
82
“The whole man rebels against God, ego totus, and in this rebellion all the individual powers of
his body-mind economy are mobilized” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 94).
83
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 95.
49
idéia de que pecado é um distanciar-se de Deus, que o pecado alterou o curso de
uma caminhada, que o pecado é interrupção de um ideal84.
Ele vê a concepção bíblica do pecado, ao contrário da filosofia grega,
como um “não mais” poder viver o que é bom, o ser humano não pode mais
mudar o rumo de sua atual situação de pecado. O pecado é o rompimento daquilo
que Deus havia estabelecido, sendo assim uma atitude de obstinada rebelião
contra o destino idealizado por Deus para a humanidade. Brunner exemplifica para mostrar que é verdadeiro este pensamento na Bíblia - mostrando as várias
parábolas de Jesus que mostram desvios de propósitos, assim é no caso do Filho
Pródigo, como também a parábola dos vinhateiros maus que usurparam a terra, a
ovelha perdida que se desgarrou do rebanho e do Pastor. Para a teologia
brunneriana este desvio para o pecado se configurou como um estado que não é
fiel à origem do ser humano, antes uma deturpação do princípio85.
O teólogo de Zürich traz luz à questão do ser humano em rebelião contra
Deus, ao tratar da idéia da “Lei” no Novo Testamento como algo estranho a
relação original do homem com Deus. Pois a Bíblia deixa transparecer que a
vontade de Deus para o ser humano era que este aceitasse o Seu convite para uma
relação em amor. Nada estava no meio desse chamado, nem lei ou prescrições,
mas apenas o dever que o ser humano tinha de, fazendo uso de sua liberdade, se
entregar completamente ao Santo amor de Deus. A teologia brunneriana mostra
que as categorias que deveriam nortear a relação do homem com Deus não
deveriam ser: faça isso, ou faça aquilo, mas os gestos de total confiança e
dependência do homem para com Deus. O pensamento brunneriano usa as
imagens do relato do Jardim do Éden para mostrar que, como nessa história, o ser
humano se equivocou ao buscar a sua autonomia à semelhança de um filho que
pede a seu pai a parte de sua herança para viver como lhe apraz86.
84
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 90-91.
O especialista em AT Ralph L. Smith entendeu que a natureza do pecado encontra-se na
desorientação de um destino que Deus tinha para o homem. Ele explicou que na Bíblia não há uma
definição única e abrangente acerca do pecado. Mas Smith disse que pecado é sempre entendido
na Bíblia como uma violação da justa vontade divina, é rebelião que destruiu a comunhão pessoal.
Como explica o próprio Smith: “Pecado, no Antigo Testamento, não é perturbação do status quo
da natureza ou uma aberração que destruiu a harmonia dos eventos no estado cósmico. É a
violação da comunhão, a traição do amor de Deus e a revolta contra seu senhorio (Cf. SMITH,
Ralph L. Teologia do Antigo Testamento, História, Método e Mensagem. Vida Nova: São Paulo,
2001, pp. 266-267).
86
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 119-121.
85
50
O ser humano sofreu uma ruptura na sua “relação direta” com Deus, isto
por causa do pecado da rebelião humana à vontade amorosa de Deus. E para
substituir esta ruptura, Deus colocou no lugar a realidade da lei. Sendo assim, a lei
representa uma modalidade que é consequência da Ira de Deus sobre a rebelião
humana. A lei tornou-se para o ser humano a presença representativa de Deus. O
ser humano não tem mais a presença paternal de Deus, sobre ele pesa a frieza e a
impessoalidade da lei. A lei em si é a vontade de Deus, mas a vontade de Deus
exposta de forma concreta e imóvel. Portanto, a lei é qualitativamente negativa do
ponto de vista do existir humano como “sujeito-em-relação” com Deus.87
Brunner entende que quando o ser humano disse não para Deus, Ele levou
a sério a palavra humana. Por isso, Deus fez com que o homem caído preenchesse
a ausência de Seu Santo Amor com a lei. Aqui entra o outro aspecto da lei – que
seria em tese uma coisa boa – pois a lei não satisfaz a necessidade humana. A lei,
com a sua frieza e cobranças radicais faz com que o ser humano se pergunte por
outro caminho para lhe tirar do estado de perdição. Assim, Brunner diz que Deus
usa desse “artifício” para que o ser humano reconheça, e assuma a sua condição
apostasia e pecado diante dEle. Com isso, podemos dizer que a lei visa levar o ser
humano ao Evangelho. Como explica Brunner:
“A lei está embutida no Evangelho, só assim é a verdadeira vontade de Deus. Mas esta
ainda não é toda a verdade. A verdade toda só é vista plenamente onde Deus, antes de
mais nada, e incondicionalmente, revela-se como o amor generoso de Deus em Jesus
Cristo, que é portanto o “fim da lei88”.
O Autor por nós analinado também ataca a herança que o Ocidente
recebeu da filosofia grega no que diz respeito à compreensão do pecado. Pois o
Ocidente entendeu o pecado de maneira dualista, sendo assim a parte elevada do
ser humano (a alma) é dominada pela inferior (os instintos naturais), e no interior
humano há como que uma libertação gradual da parte elevada em relação ao que é
87
Ibid.
“The Law is embedded in the Gospel; only so is it the true will of God. But this is still not the
whole truth. The whole truth is only seen fully where God first of all and without conditions,
reveals Himself as the loving generous God in Jesus Christ, who is Therefore the “end of the Law”
(Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 119).
88
51
inferior. Para Brunner, no entanto, desde a Queda o ser humano passou a ter o
destino permanentemente alterado para um estado de oposição a Deus89.
Ele explica que fora da Bíblia o pecado é quase sempre entendido de
maneira impessoal e nunca é relacionado a Deus. A Bíblia diferentemente mostra
que toda ação pecaminosa é cometida contra Deus. Sendo o pecado uma quebra
de relação do ser humano com Deus, mais especificamente quebra de comunhão
com Deus. Essa quebra de comunhão tem a sua razão de ser na desconfiança e
oposição do ser humano para com Deus, pois no ser humano está o desejo de ser
como Deus. De certa forma, o ser humano fora criado com uma constituição que
facilitava e até o impulsionava ao pecado: o seu destino é ser como Deus, viver
em liberdade90. O pecado é justamente o ser humano viver o seu destino divino
independentemente de Deus. A esse respeito diz Brunner:
“O homem está pretendendo ser livre; ser como Deus; mas agora o homem quer ter
ambos à parte da dependência de Deus. A profunda raiz do pecado, portanto, não são os
sentidos – são no máximo ocasião do pecado – mas a oposição espiritual de alguém que
entende a liberdade como independência, e assim só se sente livre quando “sente que deve
a sua existência apenas a si mesmo (Marx) 91”.
Sendo assim, para o pensamento brunneriano o pecado representa a
desistência do ser humano em viver em comunhão com Deus, ele não quer viver
sob a dependência de Deus, ele quer conquistar total e plena independência e
assim tornar-se igual a Deus. Pecado é o querer livrar-se do controle e da
responsabilidade de viver a liberdade e o seu destino em comunhão com Deus.
Pecado é não querer reconhecer a soberania de Deus e se auto-deificar. Brunner
explica que é óbvio que não é todo ser humano que têm consciência das causas de
seu pecado. E isto não muda em nada a razão pela qual peca, ainda que isto não
lhe seja explícito. Como diz ele mesmo diz: “Seu pecado é mais profundo do que
89
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 91-92.
Sobre isso, Paul Tillich também entendeu que é esta liberdade, à semelhança de Deus, que
paradoxalmente também foi a possibilidade da Queda humana. Como ele mesmo disse em sua
síntese dogmática: “A possibilidade da queda depende de todas as qualidades da liberdade humana
consideradas em sua unidade. Simbolicamente falando, é a imagem de Deus no ser humano que
possibilita a queda. Só aquele que é a imagem de Deus tem o poder de separar-se de Deus. Sua
grandeza é, ao mesmo tempo, a sua fraqueza (Cf. TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. 5. ed. São
Leopoldo: Sinodal, 2005, p. 328).
91
“Man is intended to be free, to be like God; but now man wants to have both apart from
dependence upon God. The deepest root of therefore is not the senses- they are, at most occasions
of sin- but the spiritual defiance of one who understands freedom as independence, and thus only
regards himself as free when he “feels that he owes his existence to himself alone (Marx)” (Cf.
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 121).
90
52
a consciência que tem dele. O mais intenso desejo que possui é mais profundo do
que a sua consciência92”.
Depois de constatar a integralidade do pecado, é importante igualmente
considerar a verdade que todos são pecadores. A teologia brunneriana também
desenvolve sua doutrina do pecado reconhecendo que este mal está sobre todos os
habitantes da terra. É sobre isso que trataremos em seguida.
3.2.3.
O pecado como um elemento universal
O aspecto universal do pecado tem para Brunner grande relevância na
compreensão do estado de pecado em que vive a humanidade. Ele entende que o
estado de pecado foi fruto de uma construção onde todos os seres humanos são
responsáveis coletiva e individualmente. A grande preocupação de Brunner é
deixar claro que cada um é culpado pelo seu pecado. O pecado é uma experiência
pessoal, portanto existencial, pela qual todos os seres humanos passam 93.
Cada ser humano recebe a herança de um estado de pecado, mas cada um
igualmente contribui para a perpetuação desta condição. Este “partilhar do
pecado”, portanto, tem também uma dimensão histórica, visto que cada ser
humano percebe que os seus ancestrais pecaram, ele peca, e a sua descendência
continuará pecando. Nós aprofundaremos nesta compreensão doutrinária de
Brunner tratando da solidariedade do pecado entre todos os seres humanos, e a
solidariedade do pecado no tempo.
3.2.3.1.
A solidariedade do pecado entre os seres humanos
Brunner demonstra que a idéia do pecado como um elemento que abarca a
vida de todos os seres humanos é uma verdade inconteste mesmo para pensadores
92
“His sin is deeper than his awareness of it. The deepest wish that he has is deeper than his
consciousness” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 93).
93
Karl Rahner, por exemplo, usa o tradicional termo “pecado original” para explicar que a
universalidade e a permanência da situação histórica pré-determinada pela culpa só é possível se
tal culpa tiver um teor originário. O “pecado original” não se trata de algo transmitido
biologicamente pelo primeiro homem aos demais. Mas é uma realidade constatada pelo sujeito ao
ter que agir subjetivamente em uma história maculada com pré-determinações que influenciam
consideravelmente a sua ação livre. Sendo assim, a própria experiência existencial do ser humano
no mundo serve como base para se reconhecer ao que tradicionalmente é chamado de “pecado
original” (Cf. RAHNER, Curso Fundamental da Fé, pp. 137-138).
53
não cristãos. E mesmo os teólogos de tendências heréticas (ele cita o pelagiano
Ritschl) acertam quando tratam do pecado como extensivo a toda humanidade.
Isto fica mais claro quando nosso teólogo de Zürich diz que o mal tem um grande
poder de “infectar” as instituições humanas e fazendo isso também contamina o
ser humano de maneira individual. O fato é que o mal apresenta-se como uma
realidade que diz respeito à sociedade de forma geral. O pensamento brunneriano
reconhece que a forma social do pecado é a pior e mais prejudicial configuração
do mal. Pois nesta dimensão pode-se chegar à idéia da existência de um “reino do
mal” (Ritschl) que semeia a injustiça e atinge toda humanidade; aqui Brunner
pôde ver uma autêntica atuação demoníaca 94.
Mas para o teólogo de Zürich só chega-se ao real conhecimento da
solidariedade do pecado quando a revelação cristã mostra que diante de Deus
todos os seres humanos são um em Jesus Cristo. Brunner entende que a forma de
sentir a ação do pecado é igual para todos os homens. Assim como os homens, por
meio da revelação de Cristo, são conscientizados do destino divino da criação, da
mesma forma todos se vêem como responsáveis pelo pecado na realidade que os
cerca. Daí vai dizer ele: “Em Jesus Cristo vemos que este cálculo individualizado
do pecado é farisaísmo, portanto uma mentira95.” Brunner diz que o Apóstolo
Paulo trata da questão da queda para mostrar a ação redentora de Jesus Cristo
sobre todos os seres humanos. A teologia de São Paulo na sua Carta aos Romanos
considera o elemento universal do pecado ao usar a figura de Adão para mostrar
que por meio deste todos pecaram, mas em Cristo Jesus todos são redimidos.
Sendo assim, em Cristo toda a humanidade é reconhecida como pecadora, pois
Cristo morreu por todos. O pecado dos indivíduos representa uma peculiaridade
existente em todos os seres humanos: todos são pecadores e partilham deste mal.
É isto que a teologia brunneriana chama de solidariedade do pecado96.
94
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 95-96.
“In Jesus Christ we see that this individualizing calculation of sin is pharisaism, and therefore a
lie” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 97).
96
Ladaria também trata desta questão da solidariedade do pecado entre os seres humanos à luz de
Jesus Cristo. Ele explica que a teologia avançou na compreensão de que o pecado não pode ser
tratado isoladamente da revelação de Deus na pessoa de Jesus Cristo. A forma tradicional via a
encarnação como uma maneira de corrigir a transgressão do ser humano, que deixou de possuir as
virtuosas características de Adão. A riqueza da visão cristocêntrica encontra-se na consideração de
que o preceito bíblico do Deus gracioso – que cria por liberdade o ser humano, para partilhar o Seu
amor – é reconhecido, e a mudança está em que a partir o Novo Testamento fica claro que o ser
humano não foi criado para ser como Adão, mas desde o início ele já estava destinado a viver a
plenitude do amor gracioso de Deus em Cristo. Com isso, o pecado toma a dimensão de um estado
95
54
Ele reconhece que esta solidariedade do pecado é para nós um mistério
porque só o conhecemos parcialmente. Assim, diz que, como entende
Kierkegaard, pode-se concluir que é parte constitutiva do ser humano ser tanto
indivíduo como humanidade simultaneamente. Como na criação divina, pode-se
dizer que o destino dos seres humanos deve ser considerado igual para todos. Um
ser humano compartilha com todos a sua característica tanto no que é bom como
no que é ruim. Assim, o destino de todos os seres humanos de fazerem parte do
Reino de Deus, não nega a verdade de que todos partilham do estado do pecado.
Brunner, no entanto, entende que tudo isso é apenas uma aproximação do mistério
da fé sobre a unidade do pecado em Adão97.
Mas é importante destacar que a unidade do pecado em Adão na
compreensão brunneriana é diferente daquela doutrina da solidariedade de cada
ser humano com o pecado de Adão, como entendeu Agostinho. Pois enquanto
Brunner entende esta unidade de maneira dinâmica, baseado na responsabilidade
de cada ser humano. Agostinho viu a solidariedade presa a sua doutrina do Pecado
Original onde toda a humanidade pecou voluntariamente na vontade de Adão, “no
qual somos todos feitos um98”.
Brunner também faz um diálogo com a Psicologia ao tratar da
universalidade do pecado. Ele considera que a idéia do inconsciente coletivo,
trazida pela psicologia moderna, pode ajudar em muito a compreender o pecado
como uma característica de todos os seres humanos. A psicologia moderna mostra
que a personalidade do ser humano tem relação com todos os outros indivíduos
que constituem a sociedade, “cada pessoa é como um lago solitário com uma
de rebeldia ao plano originário – Cristo - o que é compartilhada por toda a humanidade (e nisto
Agostinho acertou). É desta alienação que Cristo quer resgatar toda humana criatura, e o Novo
Testamento mostra que tudo foi criado para ter sua plenitude em Cristo. Eis como se expressa
Ladaria a respeito desta questão: “El pecado original tiene que ver con la solidaridad de los
hombres en Cristo, y, por tanto, sólo puede ser plenamente conocido y comprendido a la luz de la
revelación cristiana. Es la centralidad de Cristo y la necesidad que de él tenemos todos lo que ha
llevado san Agustín a su doctrina sobre el pecado original, y lo mismo podemos decir Del concilio
de Trento. Ahora bien, esta significación universal de Jesús, en cuanto cinturón del designio
creador y salvador Del Padre, no se reduce a función de redentor del pecado. Todos los hombres,
desde el primer momento, está llamados reproducir su imagen y a formar parte de la Iglesia que es
su cuerpo. La unión de todos en Cristo, cabeza del cuerpo que es la Iglesia, aparece en relación
íntima con la creación fiel del mundo según el Nuevo Testamento (Cf. Co 1,15-20; Ef 1,3-10)”
(Cf. LADARIA, Teología Del pecado Original y de La Gracia, pp. 108-111).
97
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 97-98.
98
TRAPÈ, A. Pecado, II Pecado Original. BERARDINO, Angelo D (Org.). Dicionário Patrístico
e de Antiguidades Cristãs. Paulus: São Paulo: Vozes: Petrópolis, 2002, pp. 1121-1122.
55
saída para um oceano comum99”, disse Brunner ao se referir ao inconsciente
coletivo100. Dessa forma, a idéia do inconsciente coletivo esclarece muitos
aspectos da mente humana, como também a questão da realidade do pecado como
um substrato comum a todo ser humano. Mas ele alerta que este é apenas um
aspecto do conjunto misterioso do pecado. O ponto mais intrigante de todos é a
unidade retroativa do pecado. E é isso que será tratado no próximo tópico.
3.2.3.2.
A solidariedade do pecado no tempo
Brunner entende que a criação do ser humano é uma ação de Deus que
ainda está em vigor mesmo depois de Adão. Deus usa a mediação dos pais para
criar “diretamente” cada ser humano. Ele trata desta questão quando considera
que a criação é algo já acabado, como também é uma criação contínua de Deus. O
seu objetivo ao mostrar isto é deixar claro que a idéia do pecado hereditário da
tradição eclesiástica desde Agostinho não é aceitável biblicamente. Pois em
nenhuma parte a Bíblia cita a história da Queda entendida da forma
tradicional\eclesiástica ao tratar da questão do pecado. Mesmo o célebre texto do
Apóstolo Paulo em Rm 5,12ss, não tem a intenção teológica de conferir ao
“pecado cometido por Adão” a causa da doença hereditária do pecado. Isto
porque, para o pensamento brunneriano, fica claro que a intenção do Apóstolo era
tão somente usar a compreensão da história corrente em sua época para mostrar
uma verdade mais profunda101. Eis um comentário da própria pena de Brunner em
seu comentário a Carta aos Romanos (1938) no capítulo 5, na pericope 12-21:
“Os descendentes de Adão não são inocentemente apanhados por este poder destrutivo,
mas todos perecem, “porque todos pecaram”. Paulo não está interessado em dar uma
apresentação do pecado original no sentido mais recente do ensino da Igreja. O momento
99
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 98.
Eis o argumento de Jung para a existência de um inconsciente coletivo: “Sonhos, mitos, ritos,
fórmulas químicas, para ele convergem na direção de uma conclusão: a raiz comum são os
arquétipos, pré-formações do psiquismo, ainda sem conteúdo, mas que se tornam “reais”,
“visíveis”, pólos conteúdos diversificados de todos os psiquismos individuais” (Cf. TEPE,
Valfredo. Antropologia Cristã, Diálogo interdisciplinar. Vozes: Petrópolis, 2003, p. 1820).
101
García Rubio comentando Rm 5,12-21, chega a duas conclusões básicas na intencionalidade de
Paulo: “os seres humanos estão intimamente unidos tanto na perdição quanto na salvação”; e “o
texto não fala diretamente de uma herança de pecado, mas afirma, sim, que a nossa situação
pecaminosa atual, evoca a morte, depende não só de nossos pecados, mas também do pecado do
outro, anterior a nossa responsabilidade pessoal” (Cf. RUBIO, Unidade na Pluralidade, p. 627).
100
56
físico da transmissão hereditária não é enfatizado por Paulo – aquele elemento que, desde
Agostinho, penetrou no ensino da Igreja, o modo de pensamento estranho à Bíblia e que
orienta a sua interpretação. Há duas coisas que preocupam o Apóstolo. Primeiro, desde
Adão uma sentença de “morte” permanece sobre a humanidade, sobre a totalidade da
história; um poder destrutivo hostil penetrou nela, uma corrente que causa a morte de todo
o homem individualmente, conduzindo-o à ruína. Nenhum homem possuí a força em si
para fugir desta necessidade de pecar; todos compartilham desta compulsão. Agostinho
compreendeu corretamente o sentido deste texto, bem como a posição dos homens: todos
são incapazes de não pecar. A segunda coisa é esta, que Paulo não chama esta sentença,
como tal, de pecado; nem mesmo menciona uma transmissão hereditária do pecado, mas
diz que esta condição se torna pecado pela própria decisão humana de agir contra a
vontade de Deus e, assim, se torna um transgressor da lei. Não é a treva, poder fatal, que o
Apóstolo chama de pecado, mas a decisão auto-responsável contra a ordem de Deus102.”
O real objetivo de São Paulo era apontar para Cristo como sendo Aquele
em que todos se reconhecem pecadores, é a já usada compreensão dialética de
Brunner de que a salvação que Jesus Cristo proporciona aponta para a verdade de
que todo ser humano é pecador. Na medida em que Cristo mostra que toda a
humanidade partilha de um destino rumo ao Reino de Deus, da mesma forma
Cristo traz a luz a fraternidade do pecado que todos compartilham. Então, o
estado de pecado existe porque cada ser humano através de seus pecados
contribuiu na criação do atual quadro de pecado, todos são responsáveis pelo mal
existente, “o reino do mal” não existe apenas porque um homem pecou lá atrás,
mas ao contrário, todos pecaram103. Comentando ainda a perícope de Rm 5, 1221, Brunner explica:
“Ele (Paulo) não tem a intenção de explicar o pecado pelo uso do fenômeno bem
conhecido da transmissão hereditária das características más através da descendência
natural. Este modo de chamar a atenção ao processo de procriação e reprodução natural é
estranho a ele como o é para o pensamento bíblico em geral. O que ele quer mostrar é a
unidade da raça humana no pecado e na sujeição de cada indivíduo a esta terrível
compulsão que recebe em sua vontade”104.
Brunner quer mostrar que a idéia cristológica de São Paulo, no que diz
respeito à fraternidade do pecado, pode ser aproveitada sem que seja
necessariamente aceita a visão do tempo e da História de seus contemporâneos.
Ele também aponta para o fato de que em Jesus Cristo há uma compreensão do
pecado no passado, no presente e no futuro muito mais fiel à teologia e à Bíblia.
Isto porque quando olha para Cristo o cristão toma consciência de seu passado
102
BRUNNER, Emil. Romanos. São Paulo: Fonte Editorial, 2007, pp. 73-74.
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 98-99.
104
BRUNNER, Romanos, p. 74.
103
57
como pecador e não somente ele, mas vê que a humanidade compartilha com ele
este estado, quando olha para depois de Cristo o cristão se vê redimido, e também
não somente ele, mas todos os que crêem com ele105.
Nosso teólogo de Zürich, no entanto, reconhece a completa limitação da
“Teologia” para mostrar na história da humanidade, como na história de um
indivíduo, o Como e o Quando da Queda. Ele diz que a “doutrina tradicional da
Queda” não satisfaz pela sua evidente contradição em relação à Bíblia, mas a
teologia brunneriana reconhece que a situação é mais complicada ainda, na
medida em que o próprio Novo Testamento – que não pode ser base da tradicional
doutrina da queda como pensavam – não apresenta nenhuma definição clara a
respeito do como e do quando da Queda106.
A despeito de tudo que foi considerado até aqui sobre a realidade do
pecado na existência humana, uma coisa é certa: por mais que ele tenha se
afastado da vontade de Deus, ainda assim o ser humano é e sempre continuará
sendo Imagem de Deus. E justamente esta proposição brunneriana que será
analisada logo abaixo.
3.3.
A Imagem de Deus como algo inerente ao ser humano
105
Konrad Hilpert, falando sobre a questão do “Pecado Social” na sua problemática ética, dá uma
importante contribuição ao entendimento da solidariedade do pecado no tempo. Ele explica que
uma vez que todo ser humano é na verdade pessoa individual, mas esta individualidade está
condicionada a suas relações sociais e a um mundo já sempre historicamente feito e marcado por
outros. Inevitavelmente o seu agir está em um certo gral condicionado pelo contexto social que lhe
é dado. O sujeito individual em sua liberdade se vê cercado socialmente por estruturas que lhe são
apresentados como o terreno onde deve viver sua liberdade. Mas ao mesmo tempo, este sujeito
livre também se percebe como agente na formação de novas estruturas que passa a contribuir por
meio de suas ações livres e concretas. Para melhor entender esta questão, eis o pensamento de
Hilpert: “O que as pessoas fazem ou omitem, deixa pegadas, cria fatos, tais como hábitos, relações
ou também inimizades, abre ou fecha novas possibilidades de ação, fazem parecerem plausíveis
determinadas mentalidades ou convicções ou precisamente nada. Vice-versa, as estruturas –
hábitos estabelecidos, padrões comportamentais, mentalidades, instituições – são por sua vez não
somente dados antecedentes, mas também formas de expressão, estratificações e incorporações do
agir humano (Cf. HILPERT, Konrad. Pecado Social. EICHER, Peter (Org.). Dicionário de
Conceitos Fundamentais de Teologia. São Paulo: Paulus, 1993, pp. 665-666). Seguindo uma linha
de pensamento parecida com a de Hilpert, a única coisa que Brunner reconhece é a verdade de que
é possível chegar à conclusão de que o ser humano é tanto sujeito como objeto, tanto pessoa como
parte do mundo que está em estado de pecado. Ele cita o pensamento de Kant (ato inteligível),
como também de Fichte (o nascimento do homem) para corroborar a sua compreensão de que o
sujeito consciente é que peca – não trata-se de um mal biologicamente hereditário de Adão – e
assim, junta-se numa unidade com outros seres humanos que pecaram, pecam e hão de pecar. Mas
a limitação está do Quando e Como isso começou na história humana (Cf. BRUNNER, Dogmatics
(vol. II), pp. 100-1001).
106
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 99-100.
58
Nesta parte do capítulo nós trataremos um assunto que é muito importante
na antroplogia brunneriana: o ser humano mesmo sendo pecador é portador da
Imagem de Deus. Brunner tira esta compreensão usando várias evidências bíblicas
e extra-bíblica (fundamentos das ciências humanas).
Sendo assim, é nesta parte que está exposta diretamente a compreensão da
Imagem de Deus no ser humano pecador na teologia de Brunner. Em cada subtópico mostraremos os argumentos usados pelo pensamento brunneriano, a fim de
embasar a premissa de que o ser humano nunca perdeu e nunca perderá esta
dignidade que é ser Imagem de Deus.
3.3.1.
A Imagem de Deus no ser humano em seu aspecto formal
Pode-se dizer que a doutrina da Imago Dei de Brunner seja a espinha
dorsal para se entender todo o desenvolvimento de sua compreensão do ser
humano. É a partir da idéia de um aspecto formal da Imago Dei, por exemplo, que
ele consegue atribuir a todos os seres humanos as características de sujeito, de ser
relacional, de responsabilidade e de liberdade. Por isso, nós iremos aprofundar o
entendimento de Brunner sobre este sentido formal da Imago Dei que há no ser
humano, pois tem a ver com o tema em questão.
Esta Imagem de Deus entendida no sentido formal trata de um aspecto que
o ser humano contém e que o torna apto a responder ao Amor de Deus de maneira
responsável107. Nosso teólogo de Zürich compreende que o ser humano mesmo
depois de entrar em um estado de pecado continuou sendo o portador da Imagem
de Deus em sua constituição. E nesta Imagem em seu aspecto formal, o ser
humano ainda tem elementos que o dignifica e o destaca das demais criaturas
107
O teólogo batista Strong sem tratar da questão da imagem de Deus em si, no entanto tratando de
aspectos que são inerentes a constituição humana, vai dizer que um elemento que é peculiar a todo
ser humano, mesmo no estado de pecado é a consciência de que existe algo que vai além de sua
realidade concreta: “A consciência não é uma autoridade exclusiva. Ela aponta para algo mais
elevado que ela mesma. A “autoridade da consciência” é simplesmente a autoridade da lei moral,
ou melhor, a autoridade do Deus pessoal de cuja natureza a lei é apenas uma transcrição. Por isso a
consciência, com sua determinação contínua e suprema de que o que é ser certo deve ser praticado,
fornece o melhor testemunho ao homem sobre a existência de um Deus pessoal e da supremacia da
santidade daquele a cuja imagem somos feitos” (Cf. STRONG, Augustus H. Teologia Sistemática
(vol. II). São Paulo: Hagnos, 2003, p. 71).
59
criadas por Deus. Pois, para ele nada pode alterar o fato de que o ser humano foi
criado para responder ao seu Criador, mesmo que a sua resposta seja uma negação
da existência de um Deus que o criou para viver uma relação de comunhão com
Ele. Sobre isso diz Brunner:
“Mesmo esta resposta é uma resposta, e está inerentemente sob a lei da responsabilidade.
Esta estrutura formal essencial não pode ser perdida. É idêntica à existência humana
como tal, e, de fato, com a qualidade de existir que todos os seres humanos igualmente
possuem; só cessa onde a vida humana verdadeira cessa – no limite da imbecilidade e da
loucura108”.
Ele tira a idéia de um aspecto formal da Imago Dei a partir do Antigo
Testamento. Quando no texto de Gênesis 1,26 lê-se que o ser humano foi criado
“segundo a imagem de Deus”, Brunner disse que ali está descrito um aspecto
“formal” do ser humano que não pode ser perdido, pois é algo constituinte do ser
humano independentemente das questões de pecado e graça, pecado e lei, porque
trata-se de um elemento ontológico no ser humano. Para ele, o fato do homem ser
Imagem de Deus na ótica do Antigo Testamento está ligado a sua capacidade de
ser sujeito, de agir responsavelmente diante das situações que se lhe apresentam, é
ser portador de liberdade. Estas são qualidades que o ser humano não perdeu por
ocasião da Queda, pois onde se exaurem estas qualidades também chega ao fim a
existência humana e a responsabilidade consequente da liberdade109.
Mas para se entender o aspecto formal da Imagem de Deus no ser humano
é importante citar que Brunner também considera o aspecto material da Imagem
de Deus no ser humano. Enquanto a Imago formal tem o seu entendimento
radicado e proposto no Antigo Testamento, o aspecto material é um entendimento
próprio do Novo Testamento. Aqui, é importante se entender que o aspecto
material da Imagem de Deus tem a ver com a capacidade do ser humano em
realizar a vontade de Deus (viver-em-Amor) livre e conscientemente, e isso é algo
dado (restituído, na verdade) ao ser humano por sua redenção em Cristo. Sendo
assim, o aspecto material foi o que o ser humano perdeu da imagem de Deus na
Queda, mas, por outro lado, o aspecto formal o ser humano não perdeu nem
“nunca perderá”, pois é isto que torna o ser humano responsável diante do convite
108
“Even this answer is an answer, and its comes under the inherent law of responsibility. This
formal essential structure cannot be lost. It is identical with human existence as such, and indeed
which the quality of being which all human beings possess equally; it only ceases-on the
borderline of imbecility or madness” (Cf. BRUNNER. Dogmatics (vol. II), p. 57).
109
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 75-76.
60
de Deus para viver uma relação de Amor. Com isto, é inevitável a conclusão de
que o aspecto formal da Imagem de Deus é que proporciona ao ser humano a
condição de adquirir o aspecto material desta mesma Imago Dei. No próximo
capítulo retomaremos o aspecto material da Imagem de Deus no ser humano 110.
Por hora, depois de considerar a questão material da Imago, nós nos ateremos em
dar seguimento à compreensão do aspecto formal desta doutrina na teologia de
Brunner, a fim de se chegar ao objetivo aqui perseguido.
A idéia de um elemento constitutivo no ser humano que lhe dá o status de
sujeito e responsabilidade diante de Deus, que é representado por Brunner como
uma Imagem de Deus no sentido formal, não pode ser entendida como uma
substância autônoma no ser humano. Para Brunner, este aspecto formal no ser
humano que o classifica como ainda tendo a Imagem de Deus só é possível se for
entendido pela via da relação. Pois uma vez que o ser humano é um ser de
responsabilidade, apenas a relação pode ser coerente com o fato de que é chamado
a responder a Deus111.
O teólogo de Zürich considera que a compreensão da Imagem de Deus
como uma substância pode acarretar muitos problemas, tornando o ser humano
autônomo e um fim em si mesmo, uma vez que é possuidor de uma “centelha”
divina, um Espírito Divino. Isto seria para Brunner a porta de entrada para uma
visão panteísta e dualista da estrutura humana como Imagem de Deus112.
Ele, no entanto, reconhece a dificuldade de um aspecto estrutural (neste
caso da Imagem de Deus) ser combinado com a relação, mas eis a sua saída para
esta aporia: “É, porém, difícil combinarmos a idéia de “estrutura” e “relação”.
Apesar disso é qualidade distintiva da existência humana que a sua “estrutura” é
uma “relação”: existência responsável, realidade responsiva 113”. Sendo assim, o
ser humano na Bíblia, segundo a teologia brunneriana, é visto como estando
“diante de Deus”, mesmo em seu estado de pecado. O pecado não pode mudar a
orientação da existência do ser humano em relação a sua condição de ser
responsável, mesmo que ele aja erradamente frente ao seu destino de estar
vivendo no-Amor-de- Deus. Quando o ser humano nega a sua responsabilidade de
110
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 59.
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 56.
112
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 59-60.
113
“It is, however, difficult for us to combine the ideas of “structure” and “relation”. And yet it is
the distinctive quality of human existence that its “structure” is a “relation”: responsible existence,
responsive actuality” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 60).
111
61
dizer sim à comunhão com Deus, o que acontece é que ele passa a estar perante
Deus como um pecador, e por isso atrai sobre si a “Ira de Deus”. Este ponto é
fundamental para se entender a Imago Dei no sentido formal na teologia de
Brunner, como ele mesmo disse: “A perda da Imago, no sentido material,
pressupõe a Imago no sentido formal. Ser um pecador é o modo negativo de ser
responsável114”.
Brunner explica que do ponto de vista de Deus, no entanto, não há um
aspecto formal da Imago e outro material. Esta dupla realidade só se tornou
possível devido o pecado humano, pois Deus não criou o ser humano com a opção
de escolher a obediência ou a desobediência à sua vontade, mas para que o ser
humano respondesse positivamente a relação de amor para a qual Deus o criara.
Com isso o nosso teólogo de Zürich entende que,
“....da parte de Deus, portanto, esta distinção entre o “formal” e o “material” não existe;
não é legalmente válida. Mas existe erroneamente. Isto significa que quando olhamos a
Imago Dei da nossa perspectiva, isto é, do ponto de vista do homem pecador,
necessariamente aparece sob este duplo aspecto: o “formal, a responsabilidade que não
pode ser perdida; e o “material, destino perdido, “existência no amor de Deus”
perdida115”.
Com isso, fica claro que o pensamento brunneriano reconhece que no
aspecto formal da Imago Dei encontra-se a dignidade do ser humano como sujeito
portador de liberdade e responsabilidade. O ser humano mesmo depois da Queda,
portanto, é portador de um aspecto da Imagem de Deus que o coloca como um ser
em relação constante com o seu Criador. Agora nós trataremos de alguns aspectos
que o ser humano apresenta, e que o configura como ainda sendo um ser que é
Imagem de Deus, pois ele é sujeito, um ser que vive uma relação responsável
diante de Deus.
3.3.2.
O ser humano como sujeito
114
“The loss of the Imago, in the material sense, presupposes the Imago in the formal sense. To be
a sinner is the negative way of being responsible” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 60).
115
From the side of God, therefore, this distinction between the “formal”, and the “material” does
exist; it is not legally valid. But it does exist-wrongly. This means that when we look at the Imago
Dei from our angle, That is, the angle or sinful man, it necessarily appears under this twofold
aspect of the “formal”, that is, the responsibility which cannot be lost, and the “material”, lost
destiny, lost “existence in the love of God” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II) p. 61).
62
Nós já tratamos, de maneira indireta, da questão de que o ser humano é
sujeito que se põe a agir responsavelmente diante do convite de Deus para uma
vida em comunhão. Mas é mister que a compreensão do ser humano como sujeito
seja tratada especificamente, pois isto ajudará em muito a entender como Brunner
vê o ser humano pecador como “possuidor” da Imagem de Deus.
Primeiramente é importante dizer que a posição do ser humano pecador
como um sujeito que é constituído de liberdade e responsabilidade na sua relação
com Deus, deve ser vista como elemento primordial da idéia brunneriana de uma
Imago Dei em seu aspecto formal. Pois a teologia de Brunner aponta para o ser
humano como aquela criatura de Deus que ainda possuí a capacidade de se
relacionar com seu Criador. Isto, de certa forma, o dá status de uma criatura que é
sujeito, que tem em sua constituição humana a condição de realizar algo profundo
e significativo (que envolve mente, corpo e alma: ação do coração). O fato de que
o ser humano precisa responder ao convite divino que lhe é feito, é o elemento
mais significativo e que classifica o ser humano como sujeito que analisa, sente e
se posiciona frente ao seu Criador. Acerca da dignidade do ser humano como
sujeito criado para responder a Deus, explica Brunner:
“A criação de Deus, verdadeira existência humana, é um ato de Deus, que só pode ser
completada na ação responsiva do homem. O homem foi criado de tal maneira que deve
responder, quer queira quer não, quer respondendo a ou reagindo contra a vontade divina
do Criador116.”
Além desta realidade dialógica, outra característica que enquadra o ser
humano como sujeito é a sua vocação para dominar sobre a Natureza. A teologia
do Antigo Testamento entende o decreto divino para que o ser humano “domine
sobre a Natureza”, em estreita relação com o fato de que ele foi criado à Imagem
de Deus117.
Na citação bíblica de Gn 1,26, Brunner percebe que o ser humano é um
sujeito “dominador” da natureza porque foi criado a Imagem de Deus. Ou seja, é a
sua posição como Imagem de Deus que o autoriza a ser aquela criatura de Deus
que se põe a fazer uso dos recursos naturais que Deus lhe disponibilizou. Claro
116
“The creation of God, true human existence, is an act of man. Man has been so created that he
must answer, whether he will or no, either by responding to or reacting against the divine will of
the Creator.” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 73).
117
SMITH, Teologia do Antigo Testamento, p. 229.
63
que neste ponto Brunner leu as Escrituras vendo o ser humano como uma criatura
que possui uma “dignidade maior” do que as demais criaturas. Mas é importante
dizer que o fato dele ter lido a vocação dominadora do ser humano em ligação
direta com a Imagem de Deus neste ser humano, livrou a teologia brunneriana de
descambar para uma postura anti-ecológica. Ao contrário, esta visão de um
dominador que é Imagem de Deus, fornece grande apelo a um posicionamento
ecológico frente à criação realizada por Deus. Pois Brunner diz que o ser humano
não se caracteriza como Imagem de Deus porque domina a natureza, mas o
contrário que é o certo; o ser humano só foi chamado a dominar a natureza porque
é Imagem de Deus118.
Assim, o ser humano como Imagem de Deus é aquela criatura que foi
chamada para agir de maneira humanizadora na sua relação com o ambiente em
que vive. A criação de civilizações e culturas só serão benéficas se for
considerado este aspecto da constituição humana como Imagem de Deus. Pois
sempre quando cultura e civilização têm um fim em si mesmas, elas são
desumanizadoras e não cumprem seus propósitos. Portanto, o ser humano foi
criado para ser um sujeito que por meio da natureza constrói um ambiente que lhe
é propício à existência (civilizações e culturas). Mesmo o homem pecador é
chamado para dominar a natureza, e isto torna evidente o aspecto formal da
Imagem de Deus nele. Mas o grande problema é que o ser humano não
conseguindo materializar a sua vocação de dominador responsável, passa a
depredar e destruir toda obra criada. Esta é a forma incorreta de ser sujeito,
consequência do pecado119.
Outra constituição humana que caracteriza o ser humano como sujeito é a
sua existência como um “eu”. Além desse “eu” (identidade humana) ser o meio
pelo qual o ser humano existe como interlocutor de Deus, ele representa também a
capacidade do ser humano de ser sujeito que questiona e analisa as realidades que
118
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 101.
Pedro Trigo também enxerga o decreto do domínio da natureza desta forma. Pois ele diz - em
sua obra Criação e História - que a Imagem como tal consistiria com uma parecença, tendo em
vista uma representação. Trigo, como Brunner, entende que esta condição de “dominador” quer
mostrar a dignidade humana frente às demais criaturas, como também a adequabilidade do
domínio humano por ser Imagem de Deus. Como explica ele: “Esta missão específica deveria ser
entendida mais como conseqüência da condição de Imagem que o homem ostenta do que como sua
substância” (...) “Deste ponto de vista a expressão sublinha a distância entre os homens e o resto
dos viventes e situa a humanidade na órbita de Deus. Esta origem dá a medida da grandeza, glória
e dignidade da criatura humana” (Cf. TRIGO, Pedro. Criação e História, p. 323).
119
64
lhes são apresentadas. Na sua análise sobre a relação da antropologia cristã com as
várias teorias da ciência natural sobre a unidade da personalidade, Brunner disse:
“À parte da unidade do Eu não haveria unidade da teoria, nem na verdade do experimento
e da observação – à parte da validade das leis da lógica – que são leis causais – nenhuma
afirmação científica poderia reivindicar qualquer validade. Sem a liberdade com que o Eu
examina e pondera, de um modo crítico, não apenas as várias observações e hipóteses que
reúne, mas também as deduções e construções teóricas suscitadas a partir delas, não
haveria progresso da Ciência120.”
Sendo assim, fica evidente que para Brunner o ser humano é sujeito que
age na sua relação com Deus e com as demais criaturas. E este estado de sujeito é
um claro sinal de que o ser humano ainda possui a Imagem de Deus, ainda que
seja em seu aspecto formal. Existem dois outros temas em direta relação com a
compreensão do ser humano como sujeito, que trataremos a seguir: o aspecto
relacional humano e a responsabilidade.
3.3.3.
O ser humano como ser relacional
É de fundamental importância tratar também a dimensão relacional do ser
humano121, para que tanto a questão do homem pecador como Imagem de Deus,
como o ser humano como sujeito fiquem mais claras.
Ao falar sobre a polaridade sexual com a qual o ser humano foi criado por
Deus, Brunner mostra com clareza e eficácia a sua compreensão do ser humano
como um ser criado para viver em relação, para viver em comunidade. Para ele o
fato do ser humano ter sido criado homem e mulher contém uma variedade de
sinalizações que o aponta como sendo alguém que é Imagem de Deus.
A principal esfera do ser humano que a polaridade sexual mostra, é a
verdade de que ele foi criado por Deus para se relacionar com alguém. No relato
120
“Apart from the unity of the Self there would be no unity of theory, nor indeed of experiment
and observation-apart from the validity laws of logic-which are not causal laws-no scientific
statement could claim any validity. Without the freedom with which the Self examines and
ponders, in a critical way, not only the various observations and hypotheses which it meets , but
also the deductions and theoretical constructions drawn from them, there would be no progress in
Science at all”. (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 84-85).
121
Smith diz que de fato uma evidência da Imagem de Deus no ser humano está em sua
capacidade de se relacionar: “A relação do ser humano com Deus não é algo que lhe foi
acrescentado; é o âmago e o fundamento da sua humanitas” (Cf. SMITH, Teologia do Antigo
Testamento, p. 228).
65
bíblico de Gn 1-2, nosso teólogo de Zürich observa que a consideração de que o
ser humano foi criado como homem e mulher é um pressuposto que está presente
desde o início da criação, e é importante também dizer que ele faz menção ao fato
de que a dupla criação vem logo depois da declaração de que o ser humano é
Imagem de Deus. De fato - para se chegar logo ao pretendido - Brunner viu na
polaridade sexual um claro sinal de que o ser humano é Imagem de Deus. Pois a
idéia dele é que a criação do ser humano como dois gêneros é dignificada, e ganha
o status de sinal da Imagem de Deus no ser humano quando essa dupla criação é
consagrada como tendo um propósito relacional: pois macho e fêmea são
declarados marido e mulher. Diferentemente dos demais animais - que a
polaridade tem claro valor reprodutivo - o ser humano está destinado a viver em
relação desde sua origem, pois a presença da mulher dá ao homem sentido de ser e
dignidade, e vice-versa (Gn 2,22-25), como explica Brunner:
“O fato de que o casal humano não é simplesmente macho e fêmea, mas marido e mulher,
pressupõe que o duplo caráter do sexo não é em si mesmo o elemento humano distintivo,
mas que é um filamento neste elemento. Mas existe verdade nesta concepção, na medida
em que, esta polaridade sexual pertence não só a natureza criada por Deus, mas também à
Imago Dei. Não se entende isto enquanto a Imago Dei é vista em razão do homem, e não
é entendida como relação122.”
Sendo assim, fica claro que para Brunner não é a polaridade sexual em si
que é um elemento que evidencia o ser humano como Imagem de Deus, mas é a
verdade de que a polaridade sexual na Bíblia mostra que o ser humano foi criado
para viver em comunidade. O ser humano não pode viver sozinho, ele precisa de
seu par. O teólogo ora analisado por nós explica que isto está profundamente
ligado ao fato de que o ser humano foi criado para uma existência-em-amor. O ser
humano é um “Eu” que só tem o seu sentido de ser diante do “Tu”. Ele é um
sujeito chamado a se relacionar desde seus primeiros dias de vida – já no ventre
vive esta relação. E sobre a relação entre marido e mulher, Brunner enxerga que
“por ela o ser humano aprende o que é o amor, por assim dizer, numa escola
122
“The fact that the human pair are not simply male and female, but are husband and wife,
presupposes that the twofold character of sex not in itself the distinctive human element, but that it
is one strand in this element. But there is truth n this conception, to this extend, that this sex
polarity belongs nor only to the nature which has been created by God, but also the Imago Dei.
This is not understood so long as the Imago Dei is sought in man‟s reason, and it is not understood
as relation (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II),p. 63.)
66
preparatória. Por isso a qualidade e a função sexual do ser humano são plenos de
simbolismos da verdadeira comunidade123.”
Para a teologia brunneriana, portanto, a polaridade sexual e a comunidade
oriunda dela não é a verdadeira relação para a qual o ser humano foi criado. Pois o
verdadeiro “Eu” e “Tu”, a verdadeira relação que o ser humano foi criado para
viver é a comunhão e o companheirismo do Reino de Deus, que tem uma
dimensão que aponta à eternidade.
Para Brunner, desta forma, a polaridade sexual aponta para um aspecto
formal do ser humano: ele é sujeito que é chamado a se relacionar com Deus e seu
Reino. Esta é a responsabilidade que está sobre o ser humano, mesmo em seu
estado de pecador.
3.3.4.
O ser humano como ser de responsabilidade
A idéia da responsabilidade, de igual forma, é muito importante para se
compreender como Brunner vê o ser humano pecador como “possuindo” ainda a
Imagem de Deus. Ele entende que
é dado a todo ser humano o senso de
responsabilidade desde a sua tomada da razão. A responsabilidade trabalha
juntamente com os aspectos relacional e de sujeito que existem no ser humano.
Com isso, temos o ser humano como sendo aquela criatura de Deus que foi criado
para agir como sujeito que se relaciona com Deus responsavelmente. O ser
humano deve dar uma resposta ao convite de Deus, seja esta resposta um sim, ou
um não à comunhão com o seu criador, esta é uma responsabilidade da qual nunca
poderá escapar. Sendo assim, para Brunner a responsabilidade também é um
elemento do aspecto formal da Imagem de Deus no ser humano.
Na verdade o teólogo de Zürich considera a responsabilidade com a qual o
ser humano foi criado como um elemento inalienável da constituição humana
criada por Deus, que ainda permanece no ser humano mesmo depois do pecado.
Pois para Brunner onde não há responsabilidade, também não há humanidade,
como ele mesmo diz:
123
“…by it man learns what love is, as it were, in a preparatory school. Hence the sexual quality
and function of man is full of the symbolism of true community” (Cf. BRUNNER, Dogmatics
(vol. II), p. 65).
67
“O fato de que o homem deve responder, que é responsável, está fixado; nenhuma
equivalência da liberdade humana, nem do abuso pecaminoso da liberdade, pode alterar
este fato. O homem é, e permanece, responsável, qualquer que possa ser sua atitude
pessoal para com o seu Criador. Ele pode negar a sua responsabilidade, pode fazer mau
uso dela, mas não pode livrar-se dela. A responsabilidade é parte da estrutura inalterável
da existência humana124.”
A questão da responsabilidade humana está inexoravelmente ligada ao
assunto da liberdade humana. Visto que o ser humano ao tornar-se pecador passou
a não mais viver em comunhão com Deus, isto também mudou a forma de lhe dar
com a sua liberdade. Mas isto não tira a responsabilidade humana, antes a
confirma. É o que mostra o pensamento brunneriano sobre a idéia do servo
arbítrio que será exposto abaixo.
Brunner ao falar sobre a questão da liberdade humana, ele explica que
trata-se de um assunto de extrema importância para uma “antropologia acertada”.
Como ele próprio diz: “Aqueles que não entendem a liberdade humana, não
entendem o homem. Aqueles que não entendem a “não liberdade” do homem não
compreendem o pecado125”. Ele explica que através do pecado o ser humano se
desviou completamente de seu destino divino de existir-em-Deus. Esta é a
situação de mal radical, isto porque o ser humano não pode fazer nada para se
libertar desta condição de perdição. A situação torna-se mais dolorosa na medida
em que o ser humano foi criado para ser a Imagem de Deus, para viver em relação
amorosa com Deus e com o próximo, mas não consegue realizar este desígnio em
sua vida por causa do pecado. Assim, o ser humano perdeu a liberdade de viver
seu verdadeiro destino, pois o pecado o escravizou e frustrou seu “horizonte
originário”. É este estado de uma “liberdade mal orientada” que Brunner diz ser o
verdadeiro sentido do servum arbitrium.
Mas ele alerta para o perigo de se entender o servum arbitrium de maneira
determinista à semelhança de uma doutrina da predestinação determinista, onde o
ser humano deixa de ser pessoa responsável126.
124
“The fact that man must respond, that he is responsible, is fixed; no amount of human freedom,
nor of the sinful misuse of freedom, can alter this fact. Man is, and remains, responsible, whatever
his personal attitude to his Creator may be. He may deny his responsibility. Responsibility is part
of the unchangeable structure of man‟s being.” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 57).
125
BRUNNER, Dogmatics (vol. II) p. 121.
126
A compreensão de Karl Rahner acerca do “pecado original e a culpa pessoal” é bem sugestiva
para entender o que se quer dizer sobre o elemento responsável no ato pecaminoso, nesta
68
O fato do ser humano ter se tornado um pecador, não anula a verdade de
que ele foi criado a Imagem de Deus. À semelhança de Deus, o ser humano ainda
é um ser que é pessoa e que age responsavelmente. Isto ainda é um diferencial na
existência humana em relação às demais criaturas. Daí, através do pensamento
brunneriano, pode-se chegar à conclusão de que no ser humano ainda há um tipo
de liberdade que é suficiente para fazê-lo pessoa-responsável, pois o homem
continua sendo Imagem de Deus. Ainda que esta liberdade seja insuficiente para
fazer o ser humano voltar a trilhar, por si só, seu destino divino de
verdadeiramente amar a Deus e as demais criaturas127.
Neste ponto de seu pensamento, Brunner entra em um paradoxo que
inevitavelmente faz parte de uma proposição que tenta explicar esta complexa
relação entre um ser humano responsável-sujeito versos liberdade-rebelde contra
Deus128.
3.3.5.
A importância
antropológica
da
analogia
entis
na
compreensão
O assunto da analogia entis é crucial para compreender como Brunner vê a
Imagem de Deus no ser humano depois do pecado. Ele dá à analogia entis um
status de elemento indispensável à construção teológica. Considera que mesmo os
opositores da analogia entis – querendo rechaçá-la à ala exclusivamente católica –
são obrigados a reconhecer a sua indispensabilidade para a teologia. E o mais
relevante para a nossa pesquisa é que Brunner vê a analogia entis em estreita
relação com o aspecto formal da Imagem de Deus no ser humano.
existência pessoal do ser humano. Para Rahner o pecado original não pode ser entendido como
uma transmissão biológica do (os) primeiro (os) homem (ns) para os demais, nem uma imputação
forense da parte de Deus. Isso porque uma culpa – pecado – realmente pessoal, praticada no
âmbito da liberdade transcendental não pode ser transmitida a outro, ao ponto de furtar-lhe a
possibilidade de construir sua eternidade por meio de atos livres pessoais (Cf. RAHNER, Curso
Fundamental da Fé, pp. 139-140).
127
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 123.
128
Falando sobre as diversas visões do pecado (as de cunho existencial ou bíblicas) Eugen
Drewermann expõe um comentário que pode ajudar a compreender a razão paradoxal do
entendimento do pecado da existência humana: “O problema chave da “doutrina do pecado
original”, que dá a todas estas definições a sua razão de ser e também os seus limites, consiste,
entretanto, no paradoxo de que a apostasia de Deus faz parte da existência de todo homem e,
portanto, deve ser necessariamente e, não obstante, deve representar um ato de liberdade, para que
seja culpa do homem e não parte da criação de Deus” (Cf. EICHER, Peter (Org.). Dicionário de
Conceitos Fundamentais de Teologia, p. 662).
69
O teólogo de Zürich entende que mesmo a Revelação fazendo uma grande
distinção entre a realidade de Deus e a do mundo criado - e sendo a maior
diferença o fato de que tudo o que existe é criado, enquanto Deus não foi criado –
ainda assim é possível enxergar semelhanças entre a obra criada e seu Criador. A
ordem estabelecida matematicamente, a existência orgânica com a sua
extraordinária riqueza de diversidades, a liberdade e a espontaneidade evidentes
nos elementos criados e, sobretudo, o ser humano que a Bíblia reconhece como
sendo a Imagem de Deus, todas estas características dos componentes da criação
refletem a impressão do Espírito Criador que os formara129.
A analogia entis, à qual se refere à teologia brunneriana, tem a sua
compreensão na idéia de que Deus deixou a sua marca em tudo o que criou. E a
criação testemunha a impressão que recebeu por meio de uma certa semelhança
com o seu Criador. Para Brunner esta “parábola”, ou “analogia”, é um fator
indispensável da doutrina bíblica da Criação, e quando diz respeito ao ser humano
é importante destacar as duas analogias mais importantes para toda a teologia: as
idéias da Palavra; e a da Pessoa. Pois só é possível referir-se a Deus, falar sobre
uma “Palavra” de Deus, ou “vontade” e “desejo” de Deus, na medida em que a
linguagem humana ainda tem alguma semelhança com a linguagem divina –
considerando as devidas proporções. Da mesma forma a existência divina pessoal
é similar com a existência humana como pessoa – mais uma vez considerando-se
as proporções. Nas palavras de Brunner lê-se:
“Sem esta similaridade entre o processo humano que chamamos de “linguagem” e
“palavra”, e o processo divino que descrevemos nestes termos, não podemos
absolutamente falar de Deus. A Bíblia fala de Deus tão simples e “antropomorficamente”,
e não de maneira abstrata, tão pessoalmente e não impessoalmente, porque Deus se revela
a nós nas Escrituras como Pessoa, e porque ao mesmo tempo Ele revela o homem como
tendo sido criado a sua Imagem130.” (....) “O fato de que o homem pode falar é idêntico ao
fato de que Deus fala; o fato de que o homem é Pessoa, é uma analogia ao Ser de Deus
como Pessoa131.”
129
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 21.
“Without this similarity between the human process which we call “speech” and “word”, and
the divine process which we describe in these terms, we cannot speak of God at all. The Bible
speaks of God so simply and “ anthropomorphically”, and not in an abstract manner, so personally
and nor impersonally, because God reveals Himself to us in the Scriptures as Person, and because
at the same time. He reveals man as having been created in His Image” (Cf. BRUNNER,
Dogmatics (vol. II), p. 44).
131
“The fact that man can speak is similar to the fact that God speaks; the fact that man is Person,
is an analogy to the Being of God as Person.”(Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 22.)
130
70
Mas o nosso teólogo de Zürich alerta os seus leitores ao explicar que esta
analogia não é como dizem os filósofos, apenas um “antropomorfismo”. Isto
porque esta semelhança da “linguagem” e da “pessoalidade” realmente existe.
Pannenberg – apesar de ter rejeitado qualquer tipo de analogia132, pois defendia a
estrutura doxológica133 e não analógica – pode ajudar nesta compreensão do termo
“antropomorfismo” usado por Brunner. Para Pannenberg o antropomorfismo
aplicado aos deuses deve ser entendido não apenas como uma mera projeção
humana, mas na idéia da solidariedade dos deuses e dos homens na história das
religiões. Essa solidariedade entre o divino e o humano não é apenas uma criação
humana que esboça uma imagem idealizada de si mesmo. Pelo contrário, o ser
humano se encontra em dignidade ao contemplar-se nesta realidade que já lhe é
dada, “isto é o que está envolvido em chamar o homem de Imagem de Deus”. E
continua Pannenberg: “eles se pertencem, mas de tal maneira que um homem
descobre e alcança seu próprio ser apenas através de sua experiência com
Deus134”.
Brunner também defende a credibilidade do uso da analogia entis ao
mostrar os equívocos cometidos por aqueles que rejeitam qualquer noção de
“analogia” na construção teológica, porque a entendem como um elemento
exclusivamente católico. Ele explica que todo equívoco foi oriundo pela fixação
do entendimento do tema tomando como referência apenas o uso da analogia no
âmbito da teologia medieval, e mais tarde da teologia católica derivada dela.
Brunner diz que esta teologia usava um tipo de analogia que tem muito mais a ver
com a filosofia neo-platônica do que com a teologia bíblica. E mais, esta teologia
de substrato medieval usava apenas um dos princípios da analogia, e não o
princípio em si que tem a sua fundamentação na teologia bíblica da criação. O
aspecto que a teologia medieval usou da analogia entis teve como fonte a filosofia
da escola doutrinal mais influente da Idade média, Dionísio, o Areopagita. E esta
mesma compreensão da analogia entis serviu para dar base à construção de uma
Teologia Natural. O próprio Brunner não pretende aprofundar o debate com os
defensores da analogia entis católica, mas só teve a preocupação de mostrar que
132
GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. 2. ed. Loyola: São Paulo, 2002, p. 28.
Doxologia: “Foi esse o nome dado por Leibniz a certas formas de expressão que se coadunam
com o uso popular ou corrente, ainda que não sejam rigorosamente exatos; por exemplo, continuase dizendo que o sol nasce e se põe, mesmo depois de aceita a teoria de Copérnico” (Cf.
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4. ed. Martins Fontes: São Paulo, 2003, p. 294).
134
PANNENBERG, Wolfhart. Fé e Realidade. Novo Século: São Paulo, 2004, pp. 60-61.
133
71
este tipo de analogia não é o único uso possível deste princípio teológico
fundamental à teologia da criação135.
Neste ponto da questão, não se pode deixar de citar que o grande
interlocutor de Brunner neste questionamento da validade do uso da analogia
entis foi o também teólogo suíço Karl Barth (1886-1968). Barth desabonou
qualquer uso da analogia entis, apesar dele ter feito uso do princípio da analogia
com a sua analogia fidei que Brunner diz pressupor a analogia entis em cada um
de seus pontos136. O grande problema da analogia entis segundo o entendimento
brunneriano foi o seu uso pela teologia medieval na construção de uma
antropologia “demasiadamente positiva”. E é isso que Barth também rejeita em
seus escritos teológicos. Pois a analogia entis usada na Idade Média (Brunner cita
Boaventura), e que depois se tornou base da Teologia Natural, via a Imagem de
Deus no ser humano como um elemento que conferia a ele uma suficiência
intelectual para se chegar a um verdadeiro conhecimento de Deus por meio da
razão. Barth rejeitou ferozmente esta postura teológica assumida pelos
católicos137, e Brunner idem. Mas segundo este, Barth também rejeitou uma
verdade da analogia entis indispensável e bíblica: que a obra criada tem uma certa
semelhança com o Criador. Como explica o próprio Brunner:
“Assim, devemos fazer uma clara distinção entre a analogia entis como princípio da
Teologia Natural, e a base bíblica dessa idéia criada, e o homem em particular, porque ele
carrega em si mesmo a “Imagem” do Deus criador, pode – de modo parabólico –
“refletir” de Deus, a fim de expressar a Existência revelada de Deus, e Sua relação
revelada com o Homem138.”
135
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 45.
O teólogo católico Hans Urs von Balthasar em uma monografia escrita em 1951 também disse
que “a analogia fidei é capaz de acolher em si, como o seu momento próprio, purificando-a e
corrigindo-a, a analogia entis”. Pois para Balthasar, “se o plano da criação está subordinado à
aliança, a analogia fidei, de alguma maneira, engloba a analogia entis” (Cf. GIBELLINE, Rosine.
A Teologia do Século XX. 2. ed. Loyola: São Paulo, 2002, p. 28).
137
A Teologia Natural foi assumida pela Igreja Católica em 1870, no Concílio Vaticano I (Cf.
VAN ENGEN, J. Teologia Natural. ELWELL, Walter A. (org.). Enciclopédia Histório-Teológica
da Igreja Cristã (vol. III). São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 489).
138
“Thus we ought to make a very clear distinction between the analogia entis as the principal of
Natural Theology, and the Biblical idea that created existence, and man in particular, because he
bears within himself the “image” as creating God, can-in a parabolic way-“reflect” God, in order
to express God‟s revealed Being, and His relation to Man.” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II),
p. 42-43).
136
72
O mais importante para nossa pesquisa, no entanto, é a constatação de que
Brunner trata a analogia entis como um forte argumento para provar que é
possível entender o ser humano pecador como “possuidor” da Imagem de Deus.
Uma das principais questões de divergências entre Brunner e Barth era quanto à
permanência ou não da Imagem de Deus no ser humano pecador. Esta divergência
doutrinária foi tratada em um texto de Brunner intitulado: Natureza e Graça
(Natur und Gnade, Berlim, 1934), que gerou a resposta de Barth com um texto
sucintamente intitulado: Não! (Nein!, , Munique, 1934). Mas Brunner diz que este
assunto tinha deixado de ser um problema entre ele e Barth. Já que Barth passou a
reconhecer a existência de uma Imagem de Deus no ser humano pecador,
aceitando assim, pelo menos, este princípio da analogia, como também fizera na
sua analogia fidei. Temos esta informação vinda de Brunner, a partir do segundo
volume de sua obra dogmática que trata sobre a Criação e Redenção escrita
originalmente em 1950 em Zürich (texto cuja tradução para o inglês é base de
nossa presente pesquisa)139.
Nós não temos a intenção de aprofundar o debate de Brunner e Barth (pois é
extenso), mas de trazer a luz o pensamento de Brunner sobre o tema por hora
tratado: a Imagem de Deus no ser humano pecador. A citação em si, do debate
entre ambos os teólogos confirma como é importante para a teologia brunneriana
entender o princípio da analogia como um elemento fundamental para se construir
uma Imagem de Deus no sentido formal, que o ser humano possui mesmo em seu
estado de pecado.
CONCLUSÃO
Brunner se enquadra como um daqueles teólogos que procuram dialogar
com o mundo atual. Isso fica evidente quando ele pretende construir uma doutrina
do pecado que esteja desvencilhada de uma chave de leitura que não mais
corresponde com a cosmovisão predominante – fruto dos descobrimentos
científicos. Mas ao mesmo tempo ele procura alicerçar as suas propostas
doutrinárias na Escritura Sagrada. Visto que o mais interessante feito de Brunner
ao propor uma nova visão da doutrina do pecado está no fato dele tirar da Bíblia
139
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 44-45.
73
esta proposta doutrinária. Com isso, ele tem na chave de leitura cristológica a
solução para a correção da má compreensão do pecado como algo biológico e
hereditário. Mas é importante dizer que ele também faz uso da Filosofia, e
sobretudo da Psicologia para mostrar que o pecado é um estado de rebelião contra
Deus.
A teologia brunneriana também considera a doutrina da Queda como um
elemento essencial da Teologia. Pois ele explica que o fato de Jesus Cristo ser
apontado pela Revelação como sendo o Salvador e Restaurador, é mais que
evidente que a Queda é uma doutrina essencial para o corpus neotestamentário.
Ainda é importante pontuar que para Brunner o pecado tem um teor
“existencial” e não biológico – como a doutrina de Agostinho entende. Pois o
pensamento brunneriano compreende que o pecado é uma forma errada de
relação, é o mau uso da responsabilidade humana frente ao seu destino
originário... Por isso Brunner diz que cada ser humano é culpado pelo estado de
pecado que se encontra na história. Visto que o pecado é algo que cada ser
humano gera individualmente – de maneira autônoma – mas que ao mesmo tempo
está em relação com todos os pecados que já foram cometidos, e com os que hão
de ser cometidos (existe uma solidariedade do pecado).
Por fim, ainda é importante dizer que para o teólogo analisado pela nossa
pesquisa o ser humano, mesmo em estado de pecado, ainda sim, ele é portador da
Imagem de Deus e nunca deixará de possuí-la enquanto for ser humano.
74
4.
A Imagem de Deus no ser humano no evento Jesus Cristo
Neste último capítulo apresentaremos o entendimento de Brunner sobre a
Imagem de Deus no ser humano restaurado por Jesus Cristo. Logo na primeira
parte serão mostradas as categorias que servirão para uma compreensão prévia, de
uma doutrina da Imagem de Deus no evento Cristo.
O pensamento brunneriano tem a cristologia como uma chave
hermenêutica essencial. Por isso, é buscada a compreensão do valor da encarnação
de Jesus Cristo como um evento histórico. Será mostrado como para a revelação
bíblica é importante entender a atuação de Deus tendo como base os processos da
realidade histórica. Aqui trata-se da questão da “História da Salvação”. Brunner
entende que esta revelação de Deus se dá no seio da história e se apresenta como o
sentido mais profundo da história. É sobre isto que trataremos na segunda parte
deste capítulo.
A terceira parte será uma analise da compreensão brunneriana acerca dos
ofícios de Cristo. Neste ponto ficará mais clara as implicações da doutrina da
Imago Dei na teologia do teólogo por nós analisado.
Na última parte será uma conclusão de tudo o que foi tratado nos tópicos
precedentes. Apresentaremos sinteticamente como na teologia de Brunner pode
ser entendido o ser humano restaurado por Jesus Cristo. Esta parte servirá também
como uma conclusão do presente capítulo.
Em cada parte é necessário ter atenção para a consideração da doutrina da
Imagem de Deus como elemento fundamental na soteriologia de Brunner.
Pontuaremos sempre que necessário a presença dos pressupostos da doutrina da
Imago Dei a fim de que fique evidente a relevância dos temas tratados para o
entendimento do tema central da presente pesquisa: A doutrina da Imagem de
Deus na teologia brunneriana.
4.1.
A Imagem de Deus no ser humano em seu aspecto
material
75
A compreensão deste primeiro ponto é essencial para que os demais
assuntos sejam entendidos de acordo com o objetivo da pesquisa por nós
realizada. Quando nós falamos de uma Imagem de Deus no ser humano à luz do
evento Jesus Cristo, estamos nos referindo a um aspecto da Imagem de Deus. Este
aspecto é chamado por Brunner de aspecto material da Imago Dei no ser humano.
Pois no capítulo anterior ficou claro que todos os seres humanos têm a Imagem de
Deus como algo constituinte de sua existência (aspecto formal da Imagem de
Deus). Mas a teologia brunneriana também entende que a Imagem de Deus se
caracteriza de maneira diferente naqueles que estão sob a graça de Cristo em
relação àqueles que ainda não estão sob esta graça. Pois a teologia cristã
reconhece que o ser humano que passa a ter sua existência em Cristo (por meio da
fé) recebe um dom que é a mesma coisa que ser restaurado por Deus a fim de que
possa fazer a Sua vontade140. A este dom, Brunner chama de aspecto material da
Imago Dei141.
Para uma compreensão acertada do que vem a ser este aspecto material da
Imagem de Deus, é importante dizermos primeiramente que Brunner desenvolve
esta idéia a partir de uma “leitura” do Novo Testamento. Ele diz que o relato
neotestamentário já pressupõe o ser humano como sendo Imagem de Deus
(aspecto formal, que não se pode perder), e que a preocupação está em como o ser
humano pode viver corretamente esta qualidade. Os Apóstolos estavam
preocupados em mostrar como em Jesus Cristo o pecador podia novamente
responder positivamente ao Amor de Deus, dimensão humana que se perdeu por
causa do pecado. Sendo assim, o Novo Testamento tem a intenção de ensinar
como o pecador restaura em sua vida este aspecto da Imagem de Deus que foi
perdida na situação do pecado. É a realização “material” dela que é o foco
principal do Novo Testamento. Por isso podemos dizer que o ser humano no
estado de pecado perdeu a capacidade de ser a Imagem de Deus, mas devemos
entender que esta Imagem de Deus não é aquele aspecto formal da Imago que a
existência humana nunca perde. Eis como se refere Brunner a este respeito:
“Aqui, portanto, o fato de que o homem foi “feito à imagem de Deus” é falado como
tendo sido perdida, e de fato, como totalmente e não parcialmente perdida. O homem não
mais possui esta Imago Dei; mas é restaurado por meio dEle, por meio dAquele a quem
140
141
STRONG, Teologia Sistemática, p. 92.
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 78.
76
Deus a si mesmo é glorificado: através de Jesus Cristo. A restauração da Imago Dei, a
nova criação da imagem de Deus original de Deus no homem, é idêntica ao dom de Deus
em Jesus Cristo recebido pela fé 142”.
Sendo assim este aspecto material da Imagem de Deus é referente à
maneira correta como o ser humano se relaciona com Deus. Esta atitude correta
em relação a Deus havia se perdido, mas voltou novamente a habitar na realidade
humana por causa de Jesus Cristo. Mas aqui é importante ressaltarmos que está
restauração da Imagem de Deus só é realizada quando o pecador reconhece que a
sua verdadeira humanidade não está em si mesmo. A visão bíblica do ser humano
demonstra que apenas em Jesus Cristo está a verdadeira direção para o destino
humano: “viver-na-Palavra-de-Deus143”. Quando o ser humano reconhece que a
sua existência verdadeira está em Deus, e isto pela fé em Jesus Cristo, ele recebe a
restauração da Imagem de Deus em sua vida144.
Esta verdadeira humanidade dada pela restauração da Imagem de Deus que
o evento Jesus Cristo proporciona, tem a sua base no Amor e companheirismo que
o ser humano passa a viver com Deus. A Imagem de Deus no sentido material,
desta forma, é o existir no amor de Deus, é ter as atitudes que condizem com o
propósito de Deus para a humanidade. Ela não está limitada ao desenvolvimento
das potencialidades do ser humano, antes surge por meio da recepção, da
percepção, e da aceitação145 do amor de Deus, e o seu desenvolvimento e
preservação dependem da permanência na comunhão com o Deus que se
manifesta como Amor. Cristo proporciona esta relação de amor, “visto que pela fé
142
“Here, therefore, the factor that man has been “made in the image of God” is spoken of as
having been lost, and indeed as wholly, and not partially lost. Man no longer possesses this Imago
Dei; but it is restored through Him, through whom God glorifies and gives Himself: thought Jesus
Christ. The restoration of the Imago Dei, the new creation of the original image of God in man, is
identical with the gift of God in Jesus Christ received by faith” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol.
II), p. 58).
143
VAZ, Henrique C. de L. Antropologia Filosófica. 8. Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p.
52.
144
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 58.
145
Mario de França Miranda entende que a salvação não está condicionada apenas a obtenção de
um saber sobre Deus (intelectualização exagerada sob influência helênica e da gnose), antes tem a
ver com um encontro com Aquele que é a salvação e que se faz acessível por meio da Sua kenosis.
Sendo assim, a salvação é na verdade uma experiência salvífica, onde o ser humano acolhe pela fé
a este dom que lhe é manifesto na história (Cf. MIRANDA, Mario de F. Inculturação da Fé: uma
abordagem teológica. São Paulo: Edições Loyola, 2001, pp. 63-66). “Essa afirmação, que perpassa
toda a Bíblia, implica também que o ser humano capte e experimente de algum modo essa ação de
Deus. Caso contrário nem poderíamos falar de revelação salvífica. Pois a autocomunicação de
Deus chega à sua meta na medida em que é acolhida pelo ser humano. Portanto, o acolhimento na
fé é parte constitutiva da realidade da revelação de Deus” (Cf. MIRANDA, Inculturação da Fé:
uma abordagem teológica p. 66).
77
em Jesus Cristo o homem mais uma vez recebe a Palavra de Deus Primeva do
amor, mais uma vez a Imagem divina (Urbild) é refletida nele, a Imago Dei
perdida é restaurada146”.
Brunner também traz o entendimento de que ser Imagem de Deus é “ser
como Deus”. Ao viver no Amor de Deus, ele diz que o ser humano se assemelha
com o próprio Deus. Ele diz que esta leitura “da divinização do ser humano” pode
ser feita de maneira implícita no Novo Testamento (Rm 8,29; 2 Co 3,18; Ef 4,24 e
Cl 3,10). Eis como o pensamento brunneriano explicita esta idéia:
“Assim, aqui o que é pretendido não é a “natureza humana” como tal, mas o completo
cumprimento do destino do homem; na linguagem atual, isto quer dizer: não o fato
(formal) de ser responsável (que não podemos perder), mas o cumprimento real (material)
da responsabilidade, vivendo em amor (no amor de Deus), que é o mesmo que estar em
Cristo, vivendo como “filhos de Deus”, etc.147”.
Sendo assim, a Imagem de Deus no sentido material, que Jesus Cristo
restaura no ser humano, leva-o a viver corretamente diante de Deus. A Imagem de
Deus dada pela fé em Cristo dá condições da pessoa tanto viver acertadamente em
relação a Deus como também em relação ao seu próximo. Isto porque, este
aspecto material da Imagem de Deus é semelhante a um dom que Deus dá ao
pecador, capacitando-o a viver interiormente, pessoalmente o ágape, amor
perfeito que é dado por Deus. Por isso, aqueles que são restaurados por Jesus
Cristo chegam ao cumprimento da lei, pois recebem, e dizem sim, ao convite
gracioso de Deus que deseja que todos vivam segundo o propósito de sua vontade
na criação148.
Para se entender a visão brunneriana da restauração do aspecto material da
Imago Dei, que foi perdida na Queda, ajuda muito compreendermos a crítica que
Brunner faz a idéia de uma lex aeterna que foi formulada pela teologia escolástica
e seguida pela teologia Reformada e Protestante Ortodoxa.
Ele diz que a concepção da lex aeterna é consequência de uma reinterpretação platônica da vontade de Deus revelada na Bíblia. Pois a lex aeterna
146
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 59.
“Thus here what is meant is not “human nature” as such, but the complete fulfillment of man‟s
destiny; in the language of the present day this means: not the (formal) fact of being responsible
(which we cannot lose), but the actual (material) fulfillment of responsibility, living in love (in the
love of God), which is same as being “in Christ”, living as the “Children of God”, etc.” (Cf.
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 76).
148
GRUDEM, Wayne A. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 1999, pp. 584-590.
147
78
pretende fazer uma síntese de duas idéias da vontade de Deus que são diferentes
entre si. Ela quer juntar a vontade de Deus dirigida à pessoa, que não é lei, com a
ordem estabelecida desde o início da criação 149.
Vontade de Deus dirigida à pessoa. Brunner explica que esta vontade de
Deus é aquela que tem a ver com o desejo de Deus de formar uma verdadeira
relação amorosa com o ser humano, onde este é convidado a livremente “viverno-amor-de-Deus”. Este mandamento de Deus como vontade não tem a intenção
de requerer do ser humano um “fazer algo”. Não pode ser entendido como uma
“ordenança”150. Pois esta vontade de Deus se manifesta como um amor que é
dado, que convida a pessoa a receber e deixar-se nortear por esta vontade de amar
(por isso também se anula como mandamento). Daí ser esta idéia de vontade de
Deus um contraste com a lei. É o fim da lei. Pois tem um teor originário e eterno.
É a vontade de Deus para a sua criação, mais especificamente para o ser humano,
Sua Imagem e semelhança151.
Ordem divina estabelecida na Criação. Esta idéia da vontade de Deus tem
um caráter prático e está ligada às maneiras definidas do comportamento humano,
ações necessárias dadas na ordem da Criação152. Brunner dá o exemplo da ordem
estabelecida para o casamento. Onde existe um decreto que norteia a relação
amorosa entre dois seres humanos. Esta forma de viver a vontade de Deus é
diferente do ágape, pois este aponta para um sentimento amoroso que vem de
Deus e leva o ser humano a amar mais de um ser humano. O mesmo se aplica a
questão das relações de pai para filho, dos filhos para com os pais, etc. Esta
vontade de Deus não é pessoal, pois não tem a ver com o interior humano
exclusivamente, mas sim com o casamento e com o problema do relacionamento
sexual corretamente ordenado, por exemplo. Por isso estas ordenanças
estabelecidas para a criação têm um caráter temporário, tal qual tem a criação no
estado atual153.
149
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp.223-224.
O teólogo batista norte-americano Augustus H. Strong usando a idéia da regeneração, como
sinônimo de restauração, assim compreende a questão de viver o amor de Deus: “É a operação
contínua do Espírito Santo, pela qual a santa disposição concedida na regeneração mantém-se e se
fortalece (Cf. STRONG, Teologia Sistemática (vol. II), p. 605).
151
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p.224.
152
Tillich identifica esta ambiguidade da dimensão humana na criação ao tratar sobre a questão do
Reino de Deus e a história (Cf. TILLICH, Teologia Sistemática, pp. 782-784).
153
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 225.
150
79
Desta forma, a vontade de Deus dirigida à pessoa, que é dada e
apresentada a ela como um elemento da gratuidade de um Deus que deseja ter o
coração humano livremente tem a ver com o motivo que impulsiona o ser humano
a amar ao próprio Deus e ao próximo. Já, a ordem de Deus para a criação envolve
a exigência feita a todo ser humano para que caminhe bem nas realidades que
fazem parte dos relacionamentos humanos (casamento, paternidade, profissão,
etc.). Para a teologia brunneriana o ser humano deveria possuir as duas vontades
como prática diária de sua vida (mas mantendo a distinção: uma é interior e eterna
- ágape; e a outra exterior e temporal - ordem). Esta questão está no âmago do
tema da presente pesquisa, pois Cristo, através de sua obra, torna real novamente
esta possibilidade do ser humano cumprir a ordem da criação. O ser humano só
consegue viver estas duas vontades quando a Imagem de Deus no sentido material
lhe é restaurada por Jesus Cristo154. Eis como o próprio Brunner exemplifica a
correta relação, e distinção, de ambas as vontades de Deus:
“O mandamento do amor nunca diz o que devemos fazer. Não conta ao Bom
Samaritano o que deve fazer pelo pobre homem que caiu nas mãos dos salteadores. Tudo
o que lhe é dito é isto: aqui e agora faça tudo o que for possível por ele! O que ele tem a
fazer, ele sabe a partir da observação da ordem da criação, e da saúde do corpo humano.
Isto ele deve observar se fizer a coisa certa para o homem ferido155”.
Depois de tudo o que já foi visto, é necessário lembrar novamente que este
assunto da Imago Dei no sentido material será a chave de leitura que norteará
todos os tópicos, e sub-tópicos que seguirão. Pois o nosso objetivo é mostrar
como Brunner considera, ora de maneira implícita e ora explícita, o aspecto
material da Imago. A nossa premissa neste capítulo é identificar na teologia
brunneriana, em cada doutrina que envolve a salvação, a consideração desta
Imagem de Deus que é restaurada no pecador por meio da manifestação máxima
do Amor de Deus: Seu filho Jesus Cristo. Sendo assim, faremos logo a seguir,
uma consideração histórica do evento Jesus Cristo, para depois entrarmos com
mais propriedade no tema da restauração desta Imago material realizada por
Cristo.
154
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 60-61.
“The commandment of Love never says what we are to do; it does not tell the Good Samaritan
what he ought to do for the poor man who fell among robbers. All it says to him is this: here and
now do everything you can for him! What he has to do, he knows from observing the order of
creation, and the sound human body. This he must observe if he is to do the right thing for the
wounded man” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 225).
155
80
4.2.
A Importância histórica do evento Jesus Cristo
Nesta parte da pesquisa nós apresentaremos as considerações históricas do
autor ora analisado. Brunnner é um daqueles teólogos que procura construir seu
pensamento em diálogo com a modernidade156. Por isso, é evidente em sua
sistematização a presença do respeito para com as descobertas científicas, como
também para a história da teologia. No capítulo primeiro citamos o seu apelo para
que os teólogos deixassem de lado a preguiça e encarassem as novas perspectivas
trazidas pelas descobertas científicas no que diz respeito à natureza humana. No
capítulo segundo mostramos a sua proposta de construir uma doutrina do pecado
original que fosse atual e pudesse dialogar com outras disciplinas do saber
(Arqueologia, Psicologia, Sociologia, Filosofia, etc.).
Já aqui, neste tópico, Brunner mostra como é importante considerar o
Evento Jesus Cristo, e a salvação por Ele trazida, à luz da história de forma geral.
Ele aponta para o fato de que a Bíblia apresenta a revelação de um Deus que está
em conexão direta com a história de todo o universo. Ele é o próprio Criador da
história. A Bíblia também demonstra que a salvação é um evento que abarca toda
a história da humanidade, pois a narrativa bíblica expõe uma construção que tem a
pretensão de mostrar como o pecado entrou na realidade humana desde o início de
sua existência. E é isso relatam as narrativas referentes a Adão e a seus
156
Libanio faz um interessante comentário sobre a mudança na perspectiva moderna de uma visão
tradicional e dogmática para uma visão antropocêntrica e histórica. Ele explica que o ser humano
moderno, sobre tudo por influência de Hegel, tem a sua compreensão da realidade mediada pela
história em oposição à “metafísica da tradição”, que trabalhava a realidade sob modalidades a
priori, já a história tem em consideração os processos pessoas e sociais que levaram a uma
realidade. Sendo assim, a própria revelação passa a ser vista sob os princípios que norteiam o
processo histórico. “O homem moderno procura compreender-se numa orientação do passado no
presente para o futuro”. A idéia de uma impotência humana frente à realidade passa a ser
questionada, e mesmo abandonada, e em seu lugar toma forma a compreensão de que a realidade
está condicionada a um processo de intercâmbio entre sujeito e objeto. Este processo de
historização, segundo Libanio, consiste no desmoronamento dos sistemas supratemporais e no
estabelecimento da construção histórica em todas as árias do trato humano, mesmo nas esferas ahistóricas e supra-históricas (Cf. LIBANIO, João B. Teologia da Revelação A Partir da
Modernidade. 5. ed. São Paulo: Loyola, 2005, pp. 85-86). Eis as palavras do próprio Libanio a
respeito da importância da história na visão moderna: “Neste contexto cultural moderno, a história
tornou-se parâmetro para julgar a eficácia das reflexões, descobertas. As categorias históricas
foram assumidas para dentro das pesquisas e se tornam constitutivas do diálogo científico. Pode-se
negar a história, mas não voltar atrás. Só passando por ela, pode-se chegar a um pós-historicismo e
nunca recuar ao pré-historicismo” (Cf. LIBANIO, Teologia da Revelação A Partir da
Modernidade, p. 86).
81
descendentes. Apesar de seu teor mitológico, estas narrativas mostram o quanto
para a revelação bíblica é importante entender por meio dos princípios da historia
os elementos que formam o seu ambiente religioso.
É a partir destas considerações que nós analisaremos alguns elementos
históricos pelos quais a salvação cristã passou, até que chegasse ao cume de sua
compreensão. Será visto como a “História da Salvação” se enquadra na história
geral; a lei e a importância de sua compreensão no processo da Revelação, e a
idéia de uma plenitude dos tempos para que a máxima revelação de Deus se
manifestasse na história humana.
4.2.1.
A salvação como um momento específico da história
Brunner diz que a Bíblia não conhece a idéia de história, mas ao mesmo
tempo afirma que a Teologia Bíblica se distingue das outras doutrinas religiosas
por ser completamente histórica. Pois para ele a questão histórica não é uma
preocupação a priori da narrativa bíblica157. Ele entende que a narrativa, no
entanto, é feita tendo a história como elemento fundamental, porque todas as
afirmações teológicas da Bíblia estão diretamente ligadas à história de forma
geral. Sendo assim, a Revelação (Jesus Cristo, Antigo Testamento e o Novo
Testamento) é uma “História da Salvação” que, por outro lado, é um momento
específico da história mais ampla158.
Brunner diz que apesar de que a idéia bíblica de um Deus criador vá
totalmente contra a noção de história dos dias atuais159, mesmo assim a narrativa
bíblica é respeitosa à história – e deve ser compreendida à sua luz – porque este
Deus criou um mundo histórico. Ele entende que a preocupação central da
narrativa bíblica não é a de mostrar detalhadamente o processo de como cada
coisa foi criada. E isto vale para as origens do ser humano. Antes a preocupação
157
De forma objetiva, eis o que Libanio diz sobre a história no “cristianismo antigo” e na
antiguidade: “Tanto para a mentalidade antiga como para a consciência cristã, a história era um
problema marginal” (Cf. LIBANIO, Teologia da Revelação A Partir da Modernidade, p. 286).
158
BRUNNER, Dogmatics, (vol. II), p. 193-194.
159
Libanio também ratifica esta certa contradição entre a revelação e a história (visão científica),
mas ele, como Brunner, reconhece que o processo histórico é uma chave hermenêutica
fundamental para se entender a revelação de Deus. “A revelação nasce do ato livre e gratuito de
Deus que quer se comunicar-se a si e a seu plano salvífico ao homem situado na história” (Cf.
LIBANIO, Teologia da Revelação A Partir da Modernidade, p. 287).
82
do texto bíblico é mostrar uma “unidade fundamental” que existe em toda a
humanidade: vivência de sua existência concreta como alguém que está “diante de
Deus160”.
O teólogo de Zürich entende que esta “unidade fundamental”, portanto,
não está presa à questão biológica – apesar de a Bíblia apresentar um mito da
unidade biológica comum, isto não é tão importante – mas ao fato de todos os
seres humanos serem Imagem de Deus, ou seja, estarem direcionados para uma
relação com Deus, e com os outros homens em comunidade. Aqui ele traz a idéia
do “Humanus” em analogia (na forma de sinônimo) direta com a posição do ser
humano como Imagem de Deus. A relação existente entre a história e esta
“unidade fundamental” do ser humano que Brunner disse existir, está no fato de
que as Escrituras colocam esse ser “Humanus” – Imagem de Deus – inserido em
uma compreensão total da história. Como explica o próprio Brunner:
“O homem, absolutamente, de qualquer raça ou origem biológica, pode ser, sempre é,
em toda parte, e em todo o tempo, onde quer que nos deparemos com ele, o mesmo, com
os mesmos fatos constantes fundamentais de sua natureza, como Humanus, sempre e em
todo lugar o ser capaz de humanidade, civilização e cultura, o ser que pode falar, e
possuidor de uma consciência. O homem é sempre e em toda parte “Adão”... Por meio
deste destino como Humanitas, dado por Deus a todo ser humano, a unidade da raça
humana e de sua história é garantida, mesmo se a unidade biológica, que a narrativa do
Antigo Testamento implica, sejam meramente trajes temporários de uma verdade mais
profunda161.”
Outra consideração que a teologia bruneriana faz, está ligada a questão de
que o ser humano é considerado pela bíblica como tendo uma unidade de destino
160
Mario de França Miranda também entende que o ser humano tem esta percepção de que a sua
existência concreta tem a ver com algo além da mera concretude. Falando sobre a experiência em
um aspecto inter-religioso Miranda comenta: “Mantida a pertinência e o sentido da leitura
funcional ou da leitura fenomenológica do nosso tema, faz-se mister abordar também a
interpretação teológica, intrínseca e substantiva, porque deriva da principal convicção do adepto
ou fiel de uma religião, a saber, que sua compreensão do universo e da história, do indivíduo e da
sociedade, da vida e da morte, da felicidade e do sofrimento, provem de uma realidade metahistórica, transcendente, divina (MIRANDA, Mario F. Existência Cristã Hoje. São Paulo: Loyola,
2005, p. 165).
161
“Man, absolutely, of whatever race or whatever biological origin he may be, is always,
everywhere, and at all times, wherever we may meet him, the same, with the same fundamental
constant factors of his nature, as Humanus, always everywhere the being capable of humanity,
civilization and culture, the being who can speak, and who has a conscience. Man is always and
everywhere “Adam”, the being of whom (on the evidence of the Bible) we have been speaking in
the previous chapters. Through this destiny as Humanitas, given by God to every human being, the
unity of the human race and the human history is guaranteed, even if the biological unity, which
the Old Testament narrative implies, is merely the temporary garment of a deeper truth” (Cf.
BRUNNER, Emil. Dogmatics (vol. II), p. 195).
83
ligada as demais coisas criadas. A humanitas tem em si o aspecto da
universalitas162. A historicidade é um elemento constituinte do ser humano criado
por Deus, e não fruto do pecado como vê o neoplatonismo. Porque o ser humano
foi criado para ter uma existência formada por decisões onde ele projeta a sua
vida, ele não foi criado para ter uma existência vegetativa163.
Brunner também explica que uma característica histórica do testemunho
bíblico está em apontar a todas as civilizações um fim comum. É evidente que no
Antigo Testamento isto não é explícito, mas em Gênesis e nos Profetas há uma
interessante história teológica para toda a humanidade (e não apenas para os
judeus): todas as “famílias” da terra são conduzidas ao propósito de Deus. Já no
Novo Testamento é demasiadamente explícito o alcance universal do Reino de
Deus trazido pela mensagem de Jesus Cristo:
“Jesus Cristo é o salvador do mundo todo. Sua salvação é o Propósito de Deus para todas
as nações. Todas as correntes da história devem fundir-se no único objetivo do reino de
Deus. A história da humanidade é o correlato da mensagem de Cristo; onde Cristo é
proclamado, humanidade e história mundial devem ser vista como uma coisa só 164”.
Segundo o nosso teólogo de Zürich as religiões bíblicas têm a sua
peculiaridade, frente às demais religiões, pelo fato de entender a história como
elemento fundamental para compreensão de sua fé165. Este teólogo entende que a
visão histórica de âmbito mundial desenvolvida no Ocidente, e em outros países,
foi criada a partir da Bíblia166. “Por outro lado, a forma que este pensamento
162
Ibid.
RAHNER, Curso Fundamental da Fé, p. 51.
164
“Jesus Christ is the Savior of the whole world. His salvation is God‟s Purpose for all nations;
all the currents of history must merge in the one goal of the Kingdom of God. The history of
humanity is the correlate of the message of Christ; where Christ is proclaimed humanity and wordhistory are seen to be one” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 196).
165
Bruno Forte explica que foi a “religião bíblica” que trouxe pela primeira vez a idéia de história
no sentido linear, saindo, assim, da cosmo-visão arcaica e nostálgica de eterno retorno, uma idéia
cíclica da história. Eis como diz o próprio Bruno Forte: “Foram os profetas hebreus que
valorizaram a história e superaram a visão tradicional do ciclo, descobrindo um tempo linear que
avança em sentido único para o futuro: se para as religiões arcaicas as revelações tinham ocorrido
no tempo mítico, “no instante extratemporal do início, para a fé de Israel a revelação ocorre no
tempo histórico” (Cf. FORTE, Bruno. Teologia da História: Ensaios sobre a Revelação, o Início e
a Consumação. São Paulo: Paulus, 1995, p. 15).
166
Ronald J. Blank diz que a visão de história pode ser percebida a partir da experiência de fé do
povo de Israel. Israel leu a situação caótica e a fé na atuação de Deus neste estado caótico, como
elementos que deveriam ser considerados. Esta memória deu a Israel a noção de uma história, que
para aquele povo era uma História da Salvação. Blank entende que ao logo de sua vivência, Israel
adquiriu o hábito de olhar a sua realidade considerando o que já havia acontecido no passado, na
compreensão de Blank esta prática de interpretar o presente à luz das experiências passadas deu
163
84
histórico mundial assumiu nos tempos modernos, é uma mistura de teologia
bíblica e uma teoria idealista ou naturalista do processo evolucionário da
história167”.
Mas para a teologia brunneriana o mais importante do pensamento bíblico
em relação á história no seu aspecto global, está no propósito “estabelecido” por
Deus para toda criação: tudo convergir em Cristo. Eis novamente a hermenêutica
cristológica brunneriana. A história, que abrange toda humanidade e o cosmos, é
conduzida misteriosamente ao Reino de Deus revelado por Cristo, onde seu
significado mais íntimo é aludido168.
Esta idéia escatológica brunneriana tem ligação direta com a antropologia.
Visto que este teólogo entende que a restauração da Imagem de Deus em seu
aspecto material é o propósito de Deus para o ser humano pecador169.
Por isso Brunner dá grande ênfase a esta história específica, que é parte da
história em seu aspecto geral, dizendo que sem a história da salvação o Deus vivo
que quer restaurar o ser humano de seu estado de pecado em Cristo Jesus, não
seria conhecido. Ele diz que há uma manifestação de Deus na obra criada, mas
sem a revelação especial de Deus no seio da história, jamais o ser humano tornarse-ia conhecedor do propósito de Deus de dar um novo início à história da
humanidade170. Ele, no entanto, ressalta que esta história da salvação não foi
executada sem considerar os processos peculiarmente humanos na história. Pois
foi em meio ao paganismo, por exemplo, que Deus forma um povo particular para
si, a fim de cumprir o seu propósito universal. Sendo assim, Brunner entende que
formação à idéia de história (Cf. BLANK, Ronald J. Deus na História: Centros Temáticos da
Revelação. São Paulo: Paulinas, 2005, pp. 8-14).
167
“On the other hand, the form which this world-historical thought has assumed in modern times,
is a mixture of Biblical theology and an Idealistic or Naturalistic theory of the evolutionary process
in History” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 197).
168
BRUNNER, Emil. Dogmatics (vol. II), pp. 197-198.
169
BRUNNER, Emil. Dogmatics (vol. II), p. 59.
170
Nesta questão de uma nova realidade histórica para a humanidade, Bruno Forte pode dar uma
importante contribuição ao considerar que a mensagem cristã além de superar a visão arcaica do
eterno retorno, dando um dinâmico sentido ao tempo linear como uma construção “livre” e
esperançosa onde as pessoas desenvolvem o seu futuro, ela pode também mostrar que no evento
Cristo Deus estava “salvando a história”. A idéia de Bruno Forte é que a história não pode ser
considerada apenas como um pano de fundo onde ocorre a salvação, antes, o evento da salvação
tem um efeito geral e irreversível na realidade histórica. Aqui fica evidente que para ele a salvação
tem um valor de restauração, pois se estabelece em Jesus Cristo o cumprimento último da “história
da salvação”, “história” (específica) esta que é o propósito da história no seu aspecto geral. Assim
explica Bruno Forte: “A “história da salvação” se constrói sobre a possibilidade da “salvação da
história”, baseada no mistério do advento mediante o qual o Deus vivo fez sua a história dos
homens” (Cf. FORTE, Bruno. Teologia da História, p. 17).
85
Deus usou todos os condicionamentos históricos e do progresso humano, até
finalmente se revelar como o Deus Criador-Salvador em Jesus Cristo171.
O próprio registro da revelação nas Escrituras deve ser considerado sob a
realidade da existência histórica do ser humano, segundo o pensamento
brunneriano. Pois se a relação entre o Antigo e o Novo Testamento for vista
apenas considerando o aspecto da coerência doutrinária entre ambas as alianças,
certamente se evidenciará uma contradição irreconciliável. Isto porque, enquanto
no Antigo Testamento prevalece o regime da Lei, o Novo Testamento tem a sua
centralidade doutrinária ligada à gratuidade de Deus recebida pela fé. Mas se os
dois Testamentos são olhados à luz do Deus vivo que se revela na história da
humanidade, até mesmo as “aparentes contradições” doutrinárias entre o Antigo e
o Novo Testamento podem ser superadas pela unidade do propósito da revelação
que se manifesta em Cristo Jesus. Eis as palavras de Brunner ao tratar do assunto:
“Para todos os testemunhos, o do Antigo ou do Novo Testamento, o Deus do
Antigo Testamento é sempre o Deus da História, que revela-se a Si mesmo por
meio de seus “atos poderosos”, e não por meio do ditado de um Livro
Infalível172”. Falando sobre o propósito da história e da revelação que é Cristo, ele
continua dizendo: “Assim, a identidade (dos dois Testamentos) só existe em
retrospecto, quando visto do ponto de vista de Cristo173”.
Fica evidente, então, que Brunner entende a história da salvação como um
processo dinâmico que se insere na história de forma geral. E que o registro desta
revelação de Deus em Jesus Cristo também foi entregue aos processos próprios da
realidade histórica em que se encontram o ser humano e o cosmos174. Por isso,
para a teologia brunneriana a despeito da contradição entre o Antigo e o Novo
Testamento (Lei e Evangelho), há um elemento que une as duas alianças e as
171
BRUNNER, Emil. Dogmatics (vol. II), pp. 198-2001.
“For all the witnesses, whether of the Old or of the New Testament, the God of the Old
Testament is always the God of History, who reveals Himself through His “mighty acts”, and not
through the dictation of an Infallible book (Cf. BRUNNER, Emil. Dogmatics (Vol. II), p. 201).
173
“Thus the identity (of the two Testament) only exists in retrospect, when seen from the
standpoint of Christ‟ (Cf. BRUNNER, Emil. Dogmatics (Vol. II), p. 203).
174
Aqui, vale apena citar a compreensão de Juan L. Segundo no que se refere aos
condicionamentos históricos aos quais Jesus Cristo se submeteu a fim de cumprir o projeto do
Reino: “Jesus não somente anunciava a proximidade do Reino; mas prepara-a. E o faz, enraizandose nos mais ricos, complexos e profundos mecanismos históricos. O Reino entra na história para
permanecer” (Cf. SEGUNDO, Juan L. A História Perdida e Recuperada de Jesus de Nazaré: dos
Sinóticos a Paulo. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1997, p. 225).
172
86
direcionam para o cumprimento do propósito de Deus na vida de toda a
humanidade: a dupla idéia de Promessa e Cumprimento175.
Pois para o presente teólogo o mais importante é perceber que as
diferenças existentes entre ambas as alianças são fruto do condicionamento
histórico. Trata-se de um Deus vivo que se revela a uma humanidade que
gradualmente chega ao ápice do propósito divino para a criação176. Por isso que
quando se vê a relação entre o Antigo e o Novo Testamento através da idéia de
Promessa e Cumprimento percebe-se uma unidade entre os dois testamentos. Para
Brunner “todo o Antigo Testamento é promessa messiânica177”. Ele toma o
ministério profético178, sobre tudo, para mostrar que no Antigo Testamento já
havia a figura de um Deus Santo e Misericordioso, e que é Senhor de todo o
mundo. Este Deus escolheu um povo e o santificou, mas o seu propósito vai além
das limitações étnicas e “raciais”, pois deseja que todos os povos e nações tomem
parte deste propósito contido em sua revelação. E são os profetas que trazem esse
alargamento da revelação de Deus no Antigo Testamento, e criam como que um
link para o Novo Testamento179.
Brunner reconhece que os estudos científicos modernos do Antigo
Testamento trazem a compreensão de que os profetas não eram primariamente
“vaticinadores” do futuro, antes o profeta era alguém que em seu tempo
proclamava a reivindicação da fidelidade à soberania de Deus. Para a teologia
brunneriana, no entanto, seria um grande desastre o abandono daquela visão
hermenêutica que leu os oráculos proféticos como algo que estavam se cumprindo
na pessoa de Jesus Cristo. Como diz Brunner:
175
BRUNNER, Dogmatics (Vol. II), p. 202.
Neste ponto Brunner se apropria da idéia de “uma revelação educativa e gradativa” contida na
concepção econômica da revelação de Irineu que entendia a Lei como uma preparação para que os
seres humanos finalmente chegassem à perfeição, sendo esta perfeição a revelação de Jesus Cristo
(Cf. BRUNNER, Dogmatics (Vol. II), pp. 199-200; 203).
177
BRUNNER, Dogmatics (Vol. II), p. 202.
178
Mis ele também usa o exemplo de outros estilos literário como mostra este comentário do valor
dos Salmos para a importância da vinda de Cristo: “Foi só a piedade pessoal dos Salmos, que foi o
resultado do enfraquecimento político de Israel no judaísmo pós-exílico, que preparou o caminho e
obra de Jesus (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 206).
179
Edward Schillebeeckx faz um interessante comentário sobre a dimensão universal da história da
salvação segundo a compreensão cristã: “História humana, enquanto liberta homens para uma
humanidade melhor e para mais profunda atenção de uns aos outros, é, para os cristãos, história da
salvação de Deus, e o é independentemente do fato de sabermos desta estrutura salvífica de graça
e ter havido libertação humana consciente” (Cf. SCHILLEBEECKX, Edward. História Humana:
Revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994, 27).
176
87
“Contudo, a mais antiga concepção, a qual, de fato, pode ser traçada a origem do Novo
Testamento, estava certa na medida em que a coisa mais bonita acerca desta profecia do
Antigo Testamento é o fato de que aponta para além de si mesma. Os profetas sabem que
são os precursores Daquele que vem, como o último dos profetas, João, o batista, é o
arauto divino que aponta para o Cristo que está vindo e que já está presente. A profecia do
Antigo Testamento está inválida se for concebida apenas como “profecia”. Nós a
esvaziamos de qualquer sentido se suprimirmos está característica que aponta para o Fim,
àquilo que não é ainda, mas que chegará 180”.
Nosso teólogo de Zürich faz uso da figura do “Servo Sofredor” de Isaías
para dizer que há partes dos oráculos proféticos que dão abertura para um préanuncio do que está por vir do propósito de Deus em um tempo futuro. Ele diz
que este Servo Sofredor, por exemplo, é um enigma que não pode ser entendido à
sua própria luz. “Nenhuma exegese “histórica sóbria” deste maravilhoso e
misterioso capítulo no Antigo Testamento, poderia realmente lhe fazer justiça181”.
Pois esta figura é tida pela pesquisa exegética moderna como um rei Persa que é
apresentado como um “libertador” que foi usado por Deus em favor do Povo de
Israel, mas que se confunde com a imagem de alguém que sofre por outras nações,
um solitário que tem uma morte vicária, ficando evidente a dificuldade da
sustentação histórica de Ciro como sendo o Servo Sofredor sem se ter grandes
problemas. Brunner diz que realmente é impossível dizer com certeza de quem o
profeta está falando. Mas ele entende que o Servo Sofredor é muito mais
inteligível quando é olhado à luz da vida de Jesus Cristo, como um personagem
histórico que foi crucificado no Gólgota182. Eis o que diz o próprio Brunner:
“Assim, a interpretação cristã antiga acerta em cheio, embora não possamos afirmar que o
Profeta que escreveu este capítulo “indicava Jesus”. Aqui somos confrontados por um
enigma exegético, que não pode ser resolvido satisfatoriamente pelos métodos da exegese
científica. [....] A unidade, e o verdadeiro sentido da revelação histórica do Antigo
Testamento não pode ser entendido a partir do próprio Antigo Testamento, mas somente
do ponto de vista de Jesus Cristo, exatamente como, inversamente, Jesus não pode ser
180
“And yet the older conception, which indeed can be traced to the New Testament, was right to
this extent, that the most wonderful thing about this prophecy of the Old Testament is the fact that
it points beyond itself. The Prophets know themselves to be the forerunners of the Coming One, as
the last of the Prophets, John the Baptist, is the divine Herald who points to the Christ who is
coming and is already present. Old Testament prophecy is nullified if it is conceived only as
“prophesying”; we empty it of meaning no less if we suppress this feature which points to End, to
that which is not yet, but is to come” (BRUNNER, Emil. Dogmatics (vol. II), p. 207).
181
Ibid.
182
Balthasar faz um comentário sobre a relação entre o AT e o NT que pode contribuir nesta
presente questão: “Deus Pai estabeleceu a Aliança, promulgou a Lei e enviou os Profetas para
abrir o caminho terrenal a seu Filho, criando para ele um determinado modo de corresponder, uma
medida de relação, uma possibilidade de compreensão determinada por fé e padecimento” (Cf.
BALTHASAR, Hans U. von. Teologia da História. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, p.46.)
88
conhecido como Cristo onde Ele não é entendido como Aquele que cumpri a revelação do
Antigo Testamento através da história 183”.
É com esta consideração ao processo histórico, que toda humana criatura
vive, que o pensamento brunneriano começa a desenvolver a sua doutrina da
salvação. Para que o ser humano pudesse novamente rever a Imagem de Deus em
seu aspecto material - ter restaurada esta capacidade para viver no amor de Deus foi necessário que o “Senhor da história” entrasse nos condicionamentos
históricos e construísse uma “História da Salvação” (Heilsgeschichte). Por isso,
esta salvação pode ser uma interpelação concreta para todo ser humano, pois o
Deus criador da história chama a todos para que se transformem na imagem
daquele que os criou. Vejamos a seguir como se deu o chamado de Deus, na
história, para que o ser humano pecador fizesse com Ele uma aliança por meio de
sua Palavra Encarnada.
4.2.2.
O Ser humano chamado para uma Aliança com Deus
Nesta parte de seu pensamento, Brunner faz uso da idéia da “Lei” para
mostrar que esta compreensão de origem veterotestamentária, e que sofreu muitas
distorções ao longo da história, pode ser um elemento que historicamente
proporciona conexão entre o Antigo e Novo Testamento. Como também serve
para mostrar a vontade de Deus, que deseja estabelecer uma aliança de amor com
todos os seres humanos e que tem o seu clímax na aliança que estabelece por meio
de Jesus Cristo.
Preocupada ainda com a questão histórica, a teologia brunneriana procura
entender a Lei e sua prática no Antigo Testamento à luz da compreensão da idéia
da Aliança que Deus sempre quis estabelecer com o ser humano 184, e assim,
183
“So the early Christian interpretation hits the nail on the head, although certainly we cannot
assert that that the Prophet who wrote this chapter “meant Jesus”. He we are confronted by an
exegetical enigma, which cannot be satisfactorily solved by the methods of scientific exegesis.
[…] The unity, and the real meaning of the historical revelation of the Old Testament cannot be
understood from the Old testament itself, but only from the standpoint of Jesus Christ, just as,
conversely, Jesus cannot be known as Christ where He is not understood as the one who fulfils the
Old testament revelation through history” (Cf. BRUNNER, Emil. Dogmatics (vol. II), p. 208).
184
“Outro elemento de grande importância teológica em Gênesis é a aliança que Deus fez com
Abraão. A aliança é o tema central em toda a Escritura” (Cf. LASOR, William S.; HUBBARD,
89
formar comunidade. Mas é importante que se diga que, apesar de necessário, o
trato da questão da visão da Lei no Antigo Testamento é muito complexo e às
vezes indefinido, coisa que Brunner assume ao iniciar a análise da questão185. Pois
ele trata a compreensão da Lei não só do ponto de vista do Novo Testamento,
daquela visão de Paulo, sobretudo, da Lei como um inevitável contraste com o
Evangelho. Mas também apresenta a visão otimista da Lei como Torah que
representa toda a revelação de Deus para o seu povo no Antigo Testamento e a
verdade de que Deus exige direção para a vida do homem. Ele diz seguir uma
tradição teológica Reformada, mais especificamente a tradição de Zürich, que tem
por método sempre retornar a idéia da Aliança como forma de esclarecer o
pensamento186. Por isso, fica evidente que quanto mais aproxima-se os princípios
da Lei à idéia bíblica da Aliança, mais positiva e útil é a posição da Lei. Mas
quando a Lei é compreendida apenas sob o foco do comportamento humano –
visão predominante do Novo Testamento – torna-se sempre negativa e
inadequada.
Para o pensamento brunneriano existem duas linhas de pensamento no
Antigo Testamento que correm lado a lado (como apontaram Paulo e João). Uma
é legalista e é representada pelas figuras de Hagar, Sinai, Moisés, “a Jerusalém
que é aqui de baixo”. A outra corre em direção às idéias da Promessa e da Graça,
e tem como modelo: Sara, Abraão, a “Jerusalém lá de cima”. O Novo Testamento
traz a figura de personagens - Ana, Simeão e João Batista - que estão esperando o
cumprimento da Promessa que somente seria realizada em Jesus Cristo, onde o ser
humano pode novamente viver uma amizade com Deus187. Mas este cumprimento
David A.; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1999, pp.
54).
185
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 214-215.
186
Brunner diz que este método foi retomado novamente pelos eruditos modernos do Antigo
Testamento, que consideram a idéia da Aliança como o centro da compreensão da revelação do
Antigo Testamento (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p.215). Mas é também importante
ressaltar que Brunner diz que a compreensão de que a vontade Deus é estabelecer uma Aliança, é
um elemento que está também presente como o centro do Novo Testamento. O Deus da Bíblia é o
Deus da Aliança (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p.216).
187
Jon Sobrino também identifica este duplo sentido da Lei na “religião judaica” ao mostrar que a
postura de Jesus em relação à lei é ora revolucionária e inconformista e ora conservadora e até
tradicional, pois propõe um retorno as origens. Sobrino trabalha a questão ao tratar da posição
denunciativa de Jesus frente à postura legalista dos escribas e fariseus referente à lei. No entanto,
Sobrino também expõe uma visão positiva de Jesus em relação à lei. “O que nos parece claro é que
Jesus defende radicalmente a lei enquanto é lei de Deus em favor dos homens” (Cf. SOBRINO,
Jon. Jesus, o Libertador. A História de Jesus de Nazaré. São Paulo: Vozes, 1994, pp. 259-262).
90
nada tem a ver com a forma pejorativa de se ver a Lei, antes deve ser aceito como
generosa Graça de Deus188.
Para o entendimento da Imagem de Deus no Evento Jesus Cristo, faz-se
necessário continuarmos esta análise do pensamento do autor. Pois este assunto,
da revelação de um Deus que quer estabelecer uma Aliança, é importante para se
entender a atuação histórica de Deus até a manifestação de seu Amor na pessoa de
Jesus Cristo. Primeiramente nós trataremos do sentido negativo da Lei e seu
contraste com a Graça e “justiça pela fé”. Depois será tratado o aspecto “positivo”
da Lei e sua utilidade e conexão com o evento Cristo.
4.2.2.1.
Sentido negativo da Lei
Brunner diz que a maior diferença entre o Antigo e o Novo Testamento
está no desconhecimento que o Antigo Testamento possui do contraste entre Lei e
Graça, a clássica oposição paulina entre “justiça da Lei” e “justiça da fé”, da qual
João também está consciente (Jo 1,17)189. Fica evidente que para o Novo
Testamento, e majoritariamente em Paulo, este contraste entre Lei e Graça é
fundamental para mostrar o caráter temporário da revelação do Antigo
Testamento. Ou será que a conotação que Paulo dá à Lei tem um sentido
pejorativo e legalista, que não é o real entendimento veterotestamentário? Brunner
reconhece que esta possibilidade traz em si conseqüências drásticas tanto para a
história da teologia como também coloca um valor secundário na luta de Paulo
contra a “justiça da Lei”190.
188
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 222-223.
O exegeta e especialista em Novo Testamento George E. Ladd diz que o pensamento de Paulo a
respeito da Lei é de difícil compreensão, pois parece fazer numerosas afirmações contraditórias.
Ora afirma que aqueles que praticam a Lei serão justificados (Rm 2,13), e encontrarão a vida pela
Lei (Rm 10,5; Gl 3,12); ora afirma que nenhum homem será justificado pelas obras da lei (Rm
3,20), mas apenas levados à morte pela letra da Lei (2Co 3,6). Ele também reivindica que foi
irrepreensível em sua obediência à Lei (Fp 3,6) e, no entanto, afirma que nenhum homem pode
estar perfeitamente sujeito à Lei (Rm 8,7). Para Ledd a má compreensão do pensamento de Paulo
sobre a Lei está na mania de se tratar do assunto do ponto de vista histórico. Para Ledd eis a
solução: “Contudo, o pensamento de Paulo não deve ser visto nem como uma confissão de sua
biografia espiritual, nem como uma descrição do caráter legalista do farisaísmo do primeiro
século, mas como uma interpretação teológica, feita por um pensador cristão, de duas maneiras de
justiça: o legalismo e a fé” (Cf. LEDD, George E. Teologia do Novo Testamento. São Paulo:
Hagnos, 2003, p. 672). Ledd chega a dizer que a visão teológica de Paulo era que Israel fez um
mau uso da Lei, pois quando deveria relativizá-la pela justiça da fé em Cristo, Israel se apegou de
maneira legalista a Lei (Cf. LEDD, Teologia do Novo Testamento, p. 672-673).
190
BRUNNER, Emil. Dogmatics (vol. II) p. 220.
189
91
O teólogo de Zürich dá uma resposta (que ele chama de provisória) a esta
questão tendo como chave de leitura a idéia bíblica central da Aliança. Com isso,
ele diz que a idéia bíblica da Aliança traz consigo duas verdades: “que Deus é
amor livre e generoso, e que Ele reclama o ser humano para Si, para este amor191”.
Fica assim em relevo, em primeiro lugar, o aspecto da gratuidade do dom
de Deus na vida humana. Pois segundo a teologia brunneriana, viver a vontade de
Deus, viver no Santo amor de Deus, é ter uma atitude receptiva à generosa
bondade de Deus. Isto aponta para algo que jamais se poderia ter por “méritos e
esforços humanos”. A segunda verdade que a visão bíblica da Aliança mostra é
que o ser humano só recebe o amor de Deus na medida em que o próprio Deus
interpela-o a aceitar o que já foi feito por Ele.
Brunner explica que estas duas verdades da Aliança são ofuscadas pela
compreensão e prática da Lei no Antigo Testamento192. Mesmo nos profetas é
inconteste a existência de uma “teologia” que tende a colocar ênfase ao
cumprimento a determinadas regras pré-estabelecidas. Mesmo nos textos onde
existe uma teologia da Eleição divina de Israel, onde desponta o sinal da graça
divina que torna o ser humano justo, mesmo aqui esta compreensão é logo
substituída por uma idéia de algo que pode ser cumprido, que, portanto, é regido
pela lógica legalista da “justiça pelas obras da lei”. O teólogo de Zürich
comentando sobre a inevitabilidade de tornar a Lei legalista, mesmo que às vezes
pareça ser diferente, sobre isso, assim comenta:
“A idéia da Lei torna a vontade de Deus concreta: “alguma coisa” é requerida, e
porque algo é requerido, deve existir algo que pode ser cumprido. Nenhuma distinção é
feita entre a lei que pode ser cumprida, que se encontra no código civil, e o mandamento
radical do amor. A justitia civilis, que mesmo um ser humano pecador pode observar, e o
mandamento incondicional do amor, diante do qual mesmo o melhor e o mais religioso
dos homens se torna pecador, não são suficiente e claramente distinguidos um do
outro193”.
191
Ibid.
No entanto, é importante considerar que para Ledd os Profetas sempre atuaram contra o
indevido uso da Lei. E que a má compreensão da Lei, e o seu uso para sufocar o sentido maior da
fé de Israel que era a Aliança (Ledd uma a palavra Pacto), foi um processo que aconteceu no
período intertestamentário. Como Ledd mesmo diz: “Esse novo papel da Lei caracteriza o
judaísmo rabínico; e, por esta razão, o ponto de partida básico do Antigo Testamento é
característica e decisivamente alterado e invalido. A Torá trona-se a única mediadora entre Deus e
a humanidade; todos os outros relacionamentos entre Deus e o homem, entre Deus e Israel, ou
entre Deus e o mundo, estão subordinados à Torá. Tanto a justiça como a vida no século futuro são
assegurados pela obediência à Torá” (LEDD, Teologia do Novo Testamento, p. 674).
193
“The Idea of Law makes the will of God concrete. “Something”, is demanded, and because
“something” is demanded, it must be something that can be fulfilled. No distinction is made
192
92
Para o pensamento brunneriano a suspeita sobre o uso da Lei no Antigo
Testamento como algo inevitavelmente legalista ganha mais força pelo fato do
Novo Testamento ratificar tal compreensão. Pois a idéia neotestamentária do
chamado divino, da reivindicação amorosa de Deus para com o ser humano como
um dom da graça nunca é identificado com a idéia da Lei. Isto porque a Lei
sempre traz consigo a velha soberba humana de querer pagar por tudo que recebe,
e de a partir da “Lei” criar muitas leis194. A natureza da Lei pressupõe o legalismo.
“Mas a graça de Cristo envolve uma existência, “um modo de ser”, existir “em
Cristo”, existir “no amor de Deus”, existir “no Espírito Santo” ou estar “cheio do
Espírito Santo”, que emana no fazer a vontade de Deus 195”. É justamente isto que
Paulo aponta quando faz o contraste entre “justiça da lei” com a “justiça da fé”.
O autor por nós analisado também considera o pensamento do apóstolo
Paulo quanto ao fato de que pensando como a Bíblia pensa historicamente, a lei
não é um elemento constituinte do ser humano criado segundo Deus, mas
resultado da queda e desobediência. É dessa forma que o homem pecador é
colocado sob a lei, que é o contraste com a consciência de que deve viver pela
generosa manifestação de Deus, e por isso vive-no-amor-Deus, plano originário
da criação. Mas agora sob o regime da lei o ser humano é em todo o momento
confrontado com a conseqüência de querer ter uma vida autônoma, longe da
dependência de Deus (Queda), sendo assim, precisa viver na lógica da “justiça
pelas obras” da lei. O pecado é justamente conseqüência da rebeldia do ser
humano de querer conhecer o bem e o mal, de conduzir a sua vida sem o auxílio
de ninguém. A lei é dada por Deus para que a nova lógica humana tente conseguir
seus objetivos. Por isso, Brunner explica que a Lei em si não é má, mas o fato de
between the Law which can be fulfilled, which stands in the civil code, and the radical personal
commandment of love. The justitia civilis, which even a sinful human being can observe, and the
unconditional commandment of love, before which even the best and the most religious of men
become sinners, are not sufficiently clearly distinguished from each other” (Cf. BRUNNER,
Dogmatics (vol. II), p. 221).
194
García Rubio diz que no tempo de Jesus, por exemplo, havia a Torá (que representava os
escritos que compõe a Bíblia hebraica) que representa a Lei propriamente dita, mas havia também
a “Halaká” que era o conjunto de interpretações da Torá, feitas pelos mestres judaicos, e que tinha
um teor profundamente legalista (Cf. RUBIO, García. O Encontro com Jesus Cristo Vivo. 11. ed.
São Paulo: Paulinas, 2007, pp. 54-57).
195
“But the grace of Christ involves an existence, “a way of being”, being “in Christ”, being “in
the love of God”, being “in the Holy Spirit”, or being “filled with the holy Spirit”, which issues in
the doing of God‟s will” (BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 222).
93
que o ser humano possuí a coisa boa e santa na forma da Lei é resultado do
pecado196.
Sendo assim, a lei não é um elemento originário, mas conseqüência do
pecado. Ela “está entre”, não é da origem e nem é o fim que Deus deseja para a
humanidade. Pois a vontade de Deus expressa pela lei é neutra, externa e, por isso,
impessoal. Já o desejo de Deus para o ser humano tem uma dimensão pessoal. Ele
não quer que se “faça algo”, mas Ele deseja que o coração humano seja Dele e
esteja voltado para Ele. Esta vontade de Deus é originária e também é final. Por
isso Jesus Cristo é aquele que restaura a vontade de Deus “originária” no ser
humano e dá fim aquilo que “está entre”, o amor é o fim da lei. Como diz
Brunner:
“A vontade de Deus que é dirigida à pessoa é a vontade do Deus de amor. Isto implica
no paradoxo de que é o resumo de toda lei, que é a verdadeira intenção da lei, e que por
esta razão não pode ser em última análise lei absolutamente. O mandamento do amor não
é apenas o centro da lei, é também o seu fim. Cristo é o fim da Lei, não apenas o seu
cumprimento. Aquele que está em Cristo “não está debaixo da lei 197”.
Fica, assim, evidente o valor desta consideração negativa da lei para a
compreensão de que Jesus Cristo é aquele que dá ao ser humano algo que lhe era
originário, mas que foi perdido. O que para a
nossa presente pesquisa pode ter direta ligação com a questão da restauração do
aspecto material da Imagem de Deus que leva o ser humano a viver no verdadeiro
Amor de Deus.
4.2.2.2.
Sentido positivo da Lei e sua conexão com Jesus Cristo
Ao tratar o tema da Lei em relação mais direta com a idéia da Aliança
(Brunner diz que a Aliança é o centro da revelação), a teologia brunneriana vê a
Lei por um viés mais positivo. Apesar de todo legalismo da Lei no Antigo
Testamento, “o Deus da revelação, o Deus vivo e verdadeiro que é revelado em
196
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 223
“The will of God which is directed to the person, is a God‟s will of love. This implies the
paradox that it is the sum of all law, that it is the actual intention of the law, and that for this very
reason is cannot ultimately be law, it is also its end. Christ is the end of the Law, not only its
fulfillment. He who is in Christ is “non longer under the law” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol.
II), p. 224).
197
94
Jesus Cristo, é o Deus da Aliança. Este não é só o testemunho explícito do Antigo
Testamento, mas também do Novo Testamento198”, diz Brunner.
Pensando historicamente, é evidente no Antigo Testamento que “a ação
fundamental de Deus na História é o estabelecimento de uma Aliança 199”. Pois o
evento do Sinai demonstra a intenção de Deus de não se relacionar apenas com
indivíduos isoladamente, mas de formar “O Seu Povo”. Por isso, Brunner diz que
Deus tem o propósito de construir comunidade. E dando a palavra “povo” um
sentido mais amplo, pode-se dizer que esta vontade por comunidade também
abarca o Novo Testamento. E esta palavra também está profundamente ligada à
soberania de Deus, pois a eficácia da realização da vontade de Deus por uma
comunidade encontra-se na transmissão (oferta) e aceitação do Amor santo do
próprio Deus. Aqui, começa a despontar o que há de positivo na Lei, quando
relacionada de forma mais profunda à idéia da Aliança200, criação de uma
comunidade.
Entretanto, esta vontade por uma comunidade nada tem a ver com uma
unidade uniforme, pois a comunidade que Deus quer criar pressupõe a existência
de diversidades, “oposição”, alguém que é verdadeiramente uma “contraparte”,
alguém que genuinamente está apto a responder e que não é esmagado e
subjugado pela vontade de Deus. Eis como o próprio Brunner expõe os princípios
desta comunidade:
“O “Eu e Tu” da relação divina com o mundo e com o Homem certamente não é um
schema, introduzido na doutrina cristã pelo “Eu-Tu da filosofia”, mas é a verdadeira, a
fundamental relação entre Deus e o Homem. Deus leva a sério o seu companheirismo. Por
isso, Ele não está preocupado apenas em firmar sua reivindicação como “Eu” – o Senhor
– mas também aprecia o humano “Tu”. Ele deseja “dominar” de tal modo que Sua
soberania seja livremente aceita pelo homem. Seu amor deseja despertar amor responsivo
no homem, a “obediência da fé”. A verdadeira comunhão entre Deus e o homem só pode
ser expressa nas palavras: “Vamos amá-lo, pois Ele nos amou primeiro 201”.
198
“The God of revelation, the true and living God who is revealed in Jesus Christ, is a God of the
Covenant. This is not only the explicit testimony of the Old testament, but also of the New
Testament” (BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 215).
199
“God‟s fundamental action in History is the establishment of a Covenant” (Ibid).
200
Ledd também corrobora o pensamento de que a Aliança (ele usa o substantivo Pacto) é onde a
lei tem um sentido positivo: “A Lei foi dada com o objetivo de unir Israel a seu Deus. A
obediência à Lei não faz de Israel o povo de Deus; pelo contrário, fornece a Israel um padrão a ser
obedecido, pelo qual o relacionamento pactual deveria ser preservado. Assim, o objetivo da Lei é
estabelecer o relacionamento da nação do pacto e do indivíduo com o Deus do pacto, como
também com os membros da nação que pertencem ao mesmo pacto” (LEDD, Teologia do Novo
Testamento, p. 673).
201
“I and You” of the divine relation to the world and Man is certainly not a schema, introduced
into Christian doctrine by the “I-Thou philosophy”, but it is the true, fundamental relation between
95
Sendo assim, o centro da compreensão da idéia bíblica da Aliança está
nesta realização da auto-comunicação divina em comunhão com e entre os
homens, que toma forma em uma resposta livre à generosa graça de Deus. A
soberania de Deus em cumprir o seu desejo por uma comunidade se caracteriza
pelo fato de que o ser humano ao responder o convite de viver uma relação de
amor com Deus, já recebeu de Deus a capacidade de dizer sim. Mas esse dom de
Deus que é dado ao ser humano, esta capacidade de dizer sim, também deve ser
entendida como uma postura respeitosa de Deus em relação à liberdade humana.
Nisto se caracteriza a legítima comunidade que Deus cria por meio da Aliança.
Brunner diz que a unidade do Antigo e do Novo Testamento está na
revelação de que Deus é desejoso por Aliança. Em ambos os Testamentos a
questão central é o convite de Deus ao ser humano para formar uma comunidade,
um povo, ter uma Aliança com a humanidade por meio de Sua generosa graça que
O levou a “descer” para dialogar na limitação humana. Foi desta forma que os
profetas entenderam a revelação do Sinai. Foi assim também que a tradição
sacerdotal considerou este evento como a ação de Deus na história. Esta era a
convicção daquelas instituições veterotestamentárias. O teólogo de Zürich diz
que esta primitiva concepção que o Antigo Testamento teve da história foi a base
que serviu de resistência contra os assaltos do criticismo histórico – ainda que
muitos detalhes da narrativa tenham sido expurgados202.
É justamente neste ponto que o pensamento brunneriano aponta a
necessidade de se considerar a Lei à luz do estabelecimento desta Aliança. Ele diz
que a “escola de Zürich” prestou um grande serviço à Teologia ao dar ênfase à
conexão entre a Aliança e a Lei, que é um contraste com a polêmica unilateral da
Lei e do Evangelho. “Corretamente entendida, a “Lei” do Antigo Testamento não
é o Nomos de Paulo203, que é uma má compreensão judaica da verdadeira Torah.
God and Man. God takes fellowship seriously; hence He is not only concerned to assert His claim
as “I” – the Lord – but He also cares for the human “Thou”. He wills to “rule” in such a way that
His sovereignty is freely accepted by man; His love desires to awaken responsive love in man, the
“obedience of faith”. True communion between God and man can only be express in the words:
“let us love Him, for He has first loved us” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 216).
202
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 216-217.
203
Aqui é interessante o comentário de Leed sobre o parecer de estudiosos judeus acerca do
sentido negativo da Lei exposto pelo pensamento paulino: “Muitas das características da
interpretação que Paulo tinha da Lei não apenas não encontra nenhum paralelo no judaísmo, como,
na realidade, defere tanto do pensamento judaico que os estudiosos judeus modernos recusam-se a
96
Mas esta verdadeira Torah só pode ser corretamente entendida do ponto de vista
de Jesus Cristo204”. Com isso, Brunner explica que sem a consideração de que a
Lei e a Aliança do Antigo Testamento apontam para Cristo - pois o evento no
Sinai era o início da manifestação do amor gratuito de Deus no ato da eleição de
Israel - a Torah é entendida apenas como um Nomos de uma “justiça pelas obras”.
O próprio Jesus, nos Evangelhos, não condena a lei, condena o mau uso
dela pelos fariseus e escribas. Ele até disse que não veio revogar a lei, mas
cumpri-la (Mt 5, 17-19). A lei, na verdade, deve ser vista como um elemento
libertador, pois Deus deu ao ser humano os princípios de sua vontade. Na lei está
o início do governo do Deus da Aliança, que toma a sua plenitude em Cristo; o
cumprimento da lei. Desta forma, é interessante observar que nos evangelhos
Jesus sempre condena o indevido uso legalista da lei, mas nunca a lei em si 205.
É importante também considerar a lei sob mais um ponto de vista positivo:
a lei como um método divino de educação. A lei deve ser entendida como um
elemento preparatório. Algo que é dado por primeiro, com o fim de se chegar a
uma plenitude e “perfeição”. Brunner usa a idéia do Novo Testamento – que foi
também seguida por Lutero e Calvino – de que a lei foi algo necessário para que
chegasse o tempo do Evangelho. Assim diz Brunner a esse respeito:
“A lei é comparada com um “tutor”, que prepara a juventude para o crescimento rumo a
coisas melhores, ou atua como um tipo de guardião que preserva o tutelado para uma
posterior experiência da graça. Ou é comparada com a relação de um servo que precede a
esse de um filho. Nossa reação contra uma teoria naturalista ou Idealista do
“desenvolvimento” não deveria cegar-nos ao fato desta visão nivelada, que é inerente à
própria Bíblia. A relação da lei com a revelação da graça generosa de Deus não é somente
negativa, mas positiva – neste sentido de “educação” ou “preparação”206.
aceitar sua declaração de que fora um rabino palestino, e insistem que ele representa um judaísmo
distorcido da Diáspora” (Cf. LEDD, Teologia do Novo Testamento, p. 677).
204
“Rightly understood, the “Law” of the Old Testament is not the “Nomos” of Paul, which is a
Jewish misunderstanding of the true Torah. But this true Torah can only be rightly understood
from the standpoint of Jesus Christ” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 217).
205
GRELOT, Pierre. Libertação dos Homens e Salvação em Jesus Cristo. São Paulo: Paulinas,
1984, pp. 66-67.
206
“The Law is compared with a “tutor”, who prepares the growing youth for something better, or
acts as a king of “guardian” who preserves the “ward” for a later experience of grace; or it is
compared with the relation of a servant which precedes that of a son. Our reaction against a
naturalistic or Idealistic theory of “development” should not blind us to the fact of this graded
view, which is inherent in the Bible itself. The relation of the law to the revelation of the generous
Grace of God is not only negative, but positive – in this sense of “education” or “preparation”. (Cf.
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 228-229).
97
Com isso, o pensamento brunneriano entende que o pecador deve passar
pelo estágio do aprendizado da lei, antes que possa entender a graça. A lei lhe
mostra que é um pecador, só então terá condições de compreender a mensagem do
gratuito perdão de Deus.
Sendo assim, fica evidente que a partir da lei constata-se uma complexa
relação entre o Antigo e o Novo Testamento. A distinção entre a lei e a gratuidade
não foi claramente feita no Antigo Testamento, por isso é sensato dizer que por
este motivo a revelação do Antigo Testamento contém um elemento de
imperfeição. Deve-se, então, assumir que há muitos aspectos no Antigo
Testamento que de fato dá fundamento à construção negativa de uma “religião da
Lei”, que Paulo formula com a lógica da “justiça pelas obras”. Mas também há
muitos outros indícios que mostram que houve uma má compreensão da Lei que
foi tomada, em muitos de seus elementos, separadamente do contexto da
revelação na Aliança, na qual a Lei encontra o seu sentido mais fiel207.
Por isso, que Brunner chega à conclusão de que a visão legalista do Antigo
Testamento é uma má compreensão208, pois a idéia central do Antigo Testamento
é aquela de um Deus que elege gratuitamente a Israel. A Lei deveria cumprir o seu
“papel” de ser uma roupa que guarda o sentido mais íntimo da generosa graça e
eleição de Deus, apontar para Aquele que cumpre o desejo de um Deus por
Aliança. “Mas este véu não poderia ser removido pelo próprio homem; só poderia
207
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 230.
O teólogo alemão Leonhard Goppelt apresenta uma importante contribuição ao mostrar que a
Lei no tempo de Jesus (e na época pós-pascal, onde são acrescentadas narrativas catequéticas na
vida de Jesus) era tratada e apreciada pelos judeus em estreita relação com a Halaká. A Halaká
(comportamento) era preceitos casuísticos que serviam para interpretar a Torá na sua aplicação em
várias situações específicas e individuais. A Halaká chegou a ser indicada por uma linha rabínica
como uma tradição oral secreta que fora transmitida desde os lábios de Moisés. Com isso, queriase dá à Halaká o mesmo peso que a Torá. Goppelt diz que Jesus critica tenazmente esta postura ao
contrapor o mandamento de Deus a tradição dos homens (isso fica claro nas discussões a respeito
do lavar as mãos: Mc 7,1-8; e sobre a questão do Corbã: Mc 7,9-13). Ele ainda diz que a escola de
Qumran também apresentou uma forte oposição à Halaká quando o Mestre da Justiça critica a
linha dominante por ter radicalizado a lei em suas exigências. O fato é que para Goppelt há um
claro respeito de Jesus frente à lei como Torá – manifestação da vontade de Deus -, da onde tira o
duplo mandamento do amor. Já em relação a Halaká, Jesus a rejeita completamente (Cf.
GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. 3. ed. São Paulo: Teológica, 2002, pp. 117130). Mas apesar de tudo é muito difícil chegar ao real parecer de Jesus sobre a Lei, visto que em
seu tempo a Torá está em estreita relação com a Halaká, por isso diz Goppelt: “A pergunta pela
posição de Jesus frente à lei se torna concreta apenas quando se vê que, no judaísmo, há Halaká e
Torá lado a lado” (GOPPELT, Teologia do Novo Testamento, p. 118).
208
98
ser removido pelo novo ato da revelação em Jesus Cristo, a Palavra
Encarnada209”.
Com o que até aqui foi visto, nós quisemos mostrar como o pensamento
brunneriano entende o evento Jesus Cristo como algo entranhado na história. Para
que a Nova Aliança em Cristo Jesus fosse possível, para que a restauração da
Imagem de Deus no ser humano se realizasse, muitas idéias e compreensões da
revelação (como a lei, por exemplo) tiveram que ser esclarecidas ao longo desta
História da Salvação. Agora, nós apresentaremos o último assunto deste ponto,
assunto que trata dos fatos que precederam a vinda Daquele que dá ao ser humano
a condição de viver novamente no Amor de Deus (ser Imagem de Deus). Trata-se
da questão da Plenitude dos tempos.
4.2.3.
A “plenitude dos tempos”
Brunner ainda tendo a preocupação de mostrar a revelação de Deus na
história, até chegar ao cumprimento de seu propósito “universal”, usa a
compreensão paulina de “um tempo determinado”: “Quando a plenitude dos
tempos veio, Deus enviou seu Filho”.
A teologia brunneriana trabalha com a idéia de “um tempo determinado
por Deus” para a salvação de todo o mundo. Por isso a Lei tem um caráter
provisório, como também a revelação do Antigo Testamento. Mas é importante
ressaltar que Brunner, com a intenção de trabalhar uma época propícia para a
revelação máxima do Amor de Deus, toma como base aquela compreensão
negativa da Lei que foi acentuada pela teologia paulina. Trata-se, como já foi
visto, daquela consideração do evento do Sinai desconectada da idéia bíblica da
Aliança. Ele faz esse uso do entendimento da Lei no sentido negativo, e paulino,
porque tem a intenção de abrir a idéia da existência de um tempo preparatório, até
que viesse Cristo, para todas as nações e não apenas para Israel. Como ele mesmo
comenta:
“A Lei como princípio da relação do homem com Deus, não associa o Antigo e o Novo
Testamento, mas relaciona o Antigo Testamento com o paganismo. A Lex, separada da
209
“But this veil could not be removed by man himself; it could only be removed by the new Act
of revelation in Jesus Christ, the Incarnate Word” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 230).
99
Aliança, é um princípio comum a todas as religiões, pertence ao homem natural como
tal210”.
Brunner tem a preocupação de explicar que ele não estava colocando a fé
do Antigo Testamento no mesmo “pé de igualdade” com as outras religiões pagãs.
Mas do ponto de vista da prática da Lei (no sentido paulino), sem considerar a
Eleição e a Aliança, pode-se igualar tanto judeus como gentios como seres
humanos que estavam sob uma condição preparatória até que na “plenitude dos
tempos” viesse Cristo211. O pensamento brunneriano quer ressaltar aquele aspecto
coletivo da humanidade no que diz respeito à condição do pecado. A revelação de
Jesus Cristo mostra isto a todos os seres humanos: vocês estão em um estado de
pecado indistintamente. Sendo assim, ele quer ressaltar que do ponto de vista de
Jesus Cristo todos (quer judeu ou gentio) são um, quer no pecado, quer na
possibilidade da graça212.
É importante também dizer que a história do povo de Deus está em íntima
relação com a história das demais nações. No Antigo Testamento é muito evidente
como a atuação de Deus vai bem além do que meramente uma relação exclusivista
com Israel. Pois Israel é tirado do meio das nações, mas ao mesmo tempo as
demais nações são o alvo de Deus na atuação do povo de Israel. Deus usa a
Babilônia e a Assíria a fim de repreender o pecado de Israel e Judá. Como
também usa Ciro, rei da Persa, para libertar os judeus do exílio. Para Brunner fica
evidente como a história do povo judeu está em conexão com os outros povos213.
Para um historiador “secular” isto é apenas um fato, mas do ponto de vista da fé
em Deus, e da Revelação, trata-se da concretização do propósito divino sobre toda
a Criação, trata-se da ação na história do Senhor da história. Por isso diz Brunner:
“Assim estamos certos, e, na verdade, somos obrigados, a falar de uma preparação
divina para a revelação de Cristo, não apenas em Israel, mas também no mundo
das nações em geral214”.
210
“The Law, as the principle of man‟s relation to God, does not connect the Old Testament with
paganism. The Lex, severed from the Covenant, is a principle common tall religions, it belongs to
the natural man as such” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 232).
211
Ibid.
212
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 95-98.
213
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 232-233.
214
“Thus we are right, and indeed we are obliged, to speak of a divine preparation for the
revelation for the revelation of Christ, not only in Israel but also in the world of nations as a
whole” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 232).
100
O próprio fato dos judeus se encontrarem privados de sua soberania como
estado, deles serem apenas uma comunidade religiosa nacional, e por isso estarem
esperando pelo Redentor, mostra como nesta preparação as outras nações tiveram
uma ação objetiva ao acabarem com o reino davídico e consequentemente com o
poder judaico civil. Pensando a partir da expansão da Igreja no mundo, Brunner
expõe alguns fatores que contribuíram para esta preparação, que foi chamado pelo
Apóstolo Paulo como a “plenitude dos tempos215”.
Nosso teólogo de Zürich arrisca delinear alguns acontecimentos históricos
que, a seu ver, compõem esta “plenitude dos tempos” necessária para a expansão
da Mensagem do Evangelho pelo mundo. Vê-se claramente que o ponto de partida
do pensamento brunnrerino para consideração da plenitude dos tempos é a
configuração de um ambiente favorável à expansão da mensagem cristã pelo
mundo. Apresentaremos, resumidamente, os acontecimentos históricos que
segundo Brunner apontam para a constituição de uma época ideal para que Cristo
viesse.
Com isso, o primeiro elemento que o pensamento brunneriano considerou
de suma importância, e que se evidencia como elemento de uma “plenitude dos
tempos”, foi o ambiente religioso mundial estabelecido depois das campanhas de
Alexandre o Grande e dos romanos. Pois as religiões deixaram de ser nacionais e
passaram a considerar adeptos de outras nacionalidades. Os cristãos acharam um
ambiente mundial aberto para novas experiências do sagrado. Outro sinal da
plenitude dos tempos foi a insatisfação experimentada pelas pessoas frente aos
sistemas religiosos e filosóficos tradicionais, que não mais satisfaziam o anseio
pela verdade e criava a expectativa por uma “libertação216”. A Dispersão dos
judeus pelo mundo também é apontado como um fator favorável à expansão da
mensagem cristã, como mostra o livro dos Atos dos Apóstolos. Outros eventos de
cunho mais material tiveram importância crucial no sucesso da comunicação da fé
cristã, como foi o caso do domínio do mundo mediterrâneo pelo Império Romano.
Roma preparou o mundo para que tanto no aspecto da locomoção (construção de
estradas e portos seguros), como na cultura (língua comum, leis mais
diplomáticas) fosse possível o anúncio de uma nova fé de matriz semita para todo
215
216
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 233.
Pode-se dizer que isto tinha relação com a esperança de um libertador, ou verdade libertadora.
101
o mundo de então217. Finalmente, o último elemento que Brunner considerou
fundamental para que estivesse formada a “plenitude dos tempos” foi à situação
da religião judaica nos dias de Jesus. Somente este judaísmo tardio poderia dar
base à formação que Jesus teve como judeu. Somente Jesus sendo um judeu do
seu tempo, aquele tempo em particular, poderia ele realizar o propósito do Pai218.
Brunner explica, entretanto, que a despeito dos sinais observados e
julgados como componentes que formam este tempo apropriado para a vinda de
Cristo, somente em Deus havia, e há, a resposta do porquê a vinda de Cristo foi
quando foi. Na medida em que Paulo fala sobre uma “plenitude dos tempos”
deve-se considerar que ele está apontando para Aquele que é supratemporal, e
criador do tempo. Esta consideração traz consigo a necessidade de reconhecer que
de alguma forma, Deus construiu a história para que ela servisse ao seu propósito
salvador. E, na medida que em Jesus Cristo Deus restaura a sua criação, deve-se
inevitavelmente dizer que a história em si é messiânica. Assim, também pode-se
dizer que o propósito que foi de maneira informe anunciado pela Lei e os Profetas
no Antigo Testamento toma forma na nova aliança estabelecida em Jesus Cristo.
Como explica o próprio Brunner:
“Mas à luz deste cumprimento especial podemos, e devemos, ver como o todo da história
mundial é direcionada para Jesus Cristo como seu Cumpridor. Assim é precisamente da
relação do Antigo e do Novo Testamento somente que esta visão histórica universal está
correta. A saber, significa olhar para trás, não para frente; de cima, não de baixo. O Novo
Testamento não pode ser entendido a partir do Antigo, mas ao contrário o Antigo deve
ser entendido à luz do Novo. Jesus Cristo não pode ser entendido do ponto de vista da
história mundial, mas a história mundial deve ser entendida à luz de Jesus Cristo 219”.
Brunner explica que o fato de que a história deva ser entendida como
estando “subordinada” ao propósito de Deus, que é Jesus Cristo, não significa que
arbitrariamente pode-se fazer uma leitura cristológica de todos os acontecimentos.
217
O historiador J. M. Roberts diz que os romanos dispunham de uma tecnologia de engenharia
inigualável, pois os gregos e outros povos não conheciam tais técnicas. Ele cita, por exemplo, o
fato de que os romanos foram os primeiros no Ocidente a construir os tetos em forma de abobada
(Cf. ROBERTS, J. M. O Livro de Ouro da História do Mundo. 11. ed. Rio de Janeiro: Ediouro,
2002, pp. 231-235).
218
BRUNNER, Dogmatics, (vol. II), pp. 233-236.
219
“But in the light of this special fulfillment we way, and ought, to see how the whole of world
history is directed towards Jesus Christ as its Fulfiller. Thus is precisely from the relation between
the Old and New Testament alone that this universal-historical view is above, not from below. The
New Testament cannot be understood from the Old, but conversely the Old must be understood
from the point of the view of world history, but world history is to be understood in the light of
Jesus Christ” (Cf. BRUNNER, Dogmatics, (vol. II), p. 237).
102
Porém, aqui, ou ali, nos muitos fatores da história pode-se constatar algo do
caráter preparatório de alguns eventos. É a estas “evidências” que o teólogo se
apega. Eis a convicção da teologia brunneriana:
“Há muito tempo, desde os inícios mais antigos, Deus preparou aquilo que Ele então
desejou dar como salvação do mundo “na plenitude dos tempos”, como algo que por um
lado – de acordo com a sua natureza humana – provém desta história, bem como algo que
adentra a esta história, como algo que não poderia ser explicado a partir de si mesmo.
Doravante, nos envolvemos com esta “coisa nova”, com a salvação a nós comunicada em
Jesus Cristo220.
Nós proseguiremos falando mais especificamente da obra Deste que é a
salvação e propósito amoroso de Deus para a sua criação. Para o qual a história foi
direcionada e tudo foi criado. Aquele que restaura o aspecto material da Imagem
de Deus no ser humano, que o capacita novamente a viver-no-Amor-de-Deus.
Sendo assim, depois desta necessária consideração histórica, o pensamento
brunneriano passa a tratar mais diretamente do evento Jesus Cristo. Cabe agora a
nossa pesquisa mostrar como o autor vê a obra de Cristo no ser humano em
contato com esta “Boa Nova” esperada desde os tempos remotos.
4.3.
A Obra salvífica de Deus em Jesus Cristo
Nesta parte nós trataremos mais especificamente a questão da obra de
salvação realizada por Jesus Cristo. Este tópico toca mais diretamente o tema da
presente pesquisa. Visto que daqui em diante será analisado o pensamento de
Brunner no que diz respeito à realização da restauração do ser humano a sua
condição de interlocutor do Amor de Deus. Será constatada a relevância da
questão da Imagem de Deus no sentido “material” nos três ofícios destacados por
Brunner como essenciais para se entender a obra salvífica de Deus realizada no
evento Jesus Cristo. Em primeiro lugar será visto a questão do ofício profético de
Cristo, depois o ofício sacerdotal e por fim, a obra real de Cristo.
220
“Long ago, from the very earliest beginnings, God had prepared that which He then willed to
give as the salvation of the world “in the fullness of the times”, as something which on the one
hand – according to its human nature – grows out of this history, as well as something which came
into history, as something which could not be explained from itself. Henceforth we shall be
dealing with this “new thing”, with the salvation given to us in Jesus Christ” (Cf. BRUNNER,
Dogmatics (vol. II), p. 238).
103
4.3.1.
O ofício profético de Jesus Cristo
Nosso teólogo de Zürich explica que no seu ministério Jesus foi por várias
vezes apontado como sendo um profeta. Ele foi apontado como profeta porque
expunha as Escrituras, não como os escribas, mas com autoridade. Jesus também,
como João Batista, trazia coisas novas ao povo, e isto era sintetizado nas
inusitadas palavras: “É chegado a vós o Reino de Deus”. Jesus, para os seus
contemporâneos, certamente tinha tudo que o caracteriza um “grande profeta”.
Mas ele mostra que o próprio Jesus nunca aceitou o título de profeta, como
também nunca reivindicou-o para si. Pois na medida em que os profetas usavam
as palavras: “Assim diz o Senhor!” Eles mostravam que a mensagem era algo
vindo de fora, nunca incluíam sua personalidade como um componente da
mensagem. Já no caso de Jesus, apesar de como os profetas Ele ter uma
mensagem que diz respeito à coisa divina, no entanto Ele mostra a novidade da
sua mensagem no fato de que a Sua pessoa está indelevelmente ligada à sua
“profecia”. Jesus aponta João Batista como sendo “mais que um profeta”, porque,
em contraste com os Profetas, ele é o precursor da revelação final. Mas a grandeza
de João não muda a verdade de que ele representa à antiga dispersão 221.
“Mas agora o novo dia raiou, começou a nova era, porque Jesus está aqui. Ele traz na
Nova Era o Reino de Deus. Por isso, sua Palavra não pode ser separada de Sua pessoa.
Enquanto que para o Profeta o que importa é a “Palavra” dada a ele por Deus, mas a sua
personalidade absolutamente não importa. Isto é o porquê Jesus fala com absoluta
autoridade: “Eu vos digo”. Por isso, Ele não reivindica ser “inspirado”; pelo contrário, em
Suas palavras Ele frequentemente aponta para Si mesmo como Aquele que anuncia o
221
Juan Luis Segundo, falando sobre a obra profética de Jesus, mostra o contraste entre a
mensagem de João Batista e a de Jesus. Segundo, usando as narrativas do documento “Q” e dos
relatos de Lucas, diz que fica evidente que o grande contraste entre a mensagem do Batista e de
Jesus está no fato de que enquanto João anuncia o Juízo de Deus eminente, por isso a necessidade
da conversão para um fim próximo; já Jesus anuncia a Chegada do Reino de Deus, e a
conclamação para a adesão necessária para a instauração deste Reino na realidade terrena (Cf.
SEGUNDO, Juan L. A História Perdida e Recuperada de Jesus de Nazaré, pp. 142-167). Este
contraste central mostra como João Batista tinha o seu ministério pautado nos moldes dos “grandes
profetas clássicos”, e apesar dos relatos pós-pascais tentarem fazer do Batista um Precursor,
Segundo explica: “Incontestavelmente, este anúncio de João Batista abalou grande parte da
população da Palestina (cf. Mc 1,5). Depois de muito tempo, tornava-se a ouvir uma voz profética
semelhante à que se ouviu tantas vezes no passado de Israel” (Cf. SEGUNDO, A História Perdida
e Recuperada de Jesus de Nazaré, p. 145).
104
novo Dia, o dia que aponta para o Fim, o mundo celestial. Por isso Ele poderia dizer –
como nenhum profeta jamais fez – “Eu vim...” Eis a razão porque Ele convoca os homens
para confiar Nele222”.
Sendo assim, o pensamento brunneriano deixa claro que é justamente esta
relação entre a mensagem que Jesus anuncia e a Sua pessoa que o diferencia dos
Profetas (chamados “servos de Deus”), que O faz reivindicar “uma designação”
incomum, e que só cabe a Ele: o de ser Filho de Deus. Por isso, em contraste com
os Profetas, a “Palavra” de Jesus tem um caráter de nova etapa da revelação, como
também é revestida de uma autoridade final e completa. Eis como explica o
próprio Brunner:
“Aqui a Palavra e a Pessoa são um: a Palavra não é mais o indicador de algo além, mas a
“Palavra” realmente expressa a presença desse mundo além, pois esta é a categoria do
“Emanuel” – o próprio Deus agindo e falando na ação e no discurso desta Pessoa
singular: Jesus. 223”.
Ele tem esta preocupação de mostrar que a mensagem de Jesus está
intimamente ligada a sua pessoa. E no que diz respeito aos ensinos de Jesus mais
especificamente, ele diz que é um erro considerá-los independentemente da
Pessoa que os proferem. Pois este foi o erro da teologia “liberal” e das
proposições de Harnack, ambos entenderam que apenas a mensagem religiosa de
Jesus era singular, ele foi considerado apenas um grande mestre de doutrinas
religiosas e uma alma virtuosa, semelhante a muitos outros sábios224. Apesar da
grande aceitação desta idéia, os exegetas do Novo Testamento do século XX
(nomes como Albert Schweitzer e Kümmel) demoliram os fundamentos desta
concepção. Pois mostraram que a mensagem de Jesus não apontava apenas para
uma doutrina extraordinária e profunda, que era pregada por “poder e pureza”.
222
“But now the new day has dawned, the new era has begun, because Jesus is here. He brings in
the New Age, the Kingdom of God. Where Jesus is, “in the midst of you”, there is the Kingdom of
God. Hence His Word cannot be severed from His Person; whereas for the Prophet all that matters
at all. This is why Jesus speaks with such absolute authority: “I say unto you”; hence He does not
claim to be “inspired”; on the contrary, in His words He often points to Himself as the One who
ushers in the new Day, the day that point to the End, the heavenly world. Hence could say – as no
prophet could ever do – “I am come”... That is why He summons men to trust in Himself” (Cf.
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 275-276).
223
“Here the Word and the Person are one: the Word is no longer a pointer to something beyond,
but the “Word” expresses the presence of that world beyond, for this is the category of
“Emmanuel” – God Himself acting and speaking in the action and the speech of this Unique
Person: Jesus” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 276).
224
Tillich também mostra a incoerência tanto de Harnack, quanto da teologia liberal sobre o
assunto (Cf. TILLICH, Teologia Sistemática, pp. 407-408).
105
Antes, os ensinos de Jesus inevitavelmente pressupõem a sua Vinda, a sua
presença que se dá em um tempo determinado (kairos)225. “Nenhum dito de Jesus
está baseado – como no caso das “verdades eternas” – em si mesmo, mas toda
declaração está relacionada com Ele, o Comunicador226”.
Brunner mostra que a própria estrutura dos “ditos de Jesus” o incluem
como um elemento fundamental da sua mensagem. É o que mostra a Parábola da
Ovelha Perdida, a Parábola do Filho Pródigo e a Parábola dos Lavradores Maus,
por exemplo. Nestes ditos de Jesus, Ele é um personagem fundamental, Ele é o
personagem que é essencial para a compreensão das parábolas. E muitos destes
ditos e palavras conferem a Jesus poderes que deixaram os fariseus perplexos como o do poder de perdoar os pecados. São estas características dadas a Jesus
que o diferenciam de todos os seus predecessores, pois com Ele algo jamais dito
antes é anunciado ao povo: o Reino de Deus não apenas se aproximou, antes “o
Reino de Deus se faz presente entre vós”. É esta autoridade messiânica que faz de
Jesus um elemento fundamental227 (a pedra angular), a sua mensagem é vinda de
Deus e Lhe aponta como Aquele no qual Deus estabelece uma Nova Aliança com
os seres humanos que crêem Nele228.
Nosso teólogo de Zürich também explica que outro grande erro é
considerar os ensinos de Jesus como algo preso somente a Ele. Como se Jesus
fosse o “conteúdo” de sua mensagem e ensinos. Jesus é o ponto de referência,
mas não o conteúdo de seus ensinos, caso contrário, suas palavras seriam pura
“Cristologia”. A preocupação do pensamento brunneriano está no fato de que uma
vez que a mensagem de Jesus diz respeito apenas a Ele, se torna impossível outro
ser humano viver estes ensinos. Veja que este erro é oposto ao anteriormente
delineado (separar a mensagem da Pessoa), e porque é sutil, também é mais
perigoso. Diante disso, Brunner explica que o Sermão do Monte, por exemplo,
225
BRUNNER, Dogmatics (vil. II), pp. 276-277.
“No saying of Jesus is based – as in the case of “eternal truths” – in itself, but every statement is
related to Him, the Speaker” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 277).
227
O teólogo espanhol Andrés Torres Queiruga ao explicar como as Escrituras receberam a
designação de Palavra de Deus e se referindo especificamente ao Nono Testamento vai fizer que a
compreensão que passou a reinar entre os discípulos de Jesus era de que Ele não era apenas
portador, mas era a própria Palavra de Deus encarnada. Eis como diz o próprio Queiruga: “Sem
dúvida a aparição de Jesus supôs um acontecimento de tal magnitude, que sua presença viva
constituiu-se para a experiência original na figura real e palpável da revelação de Deus. A palavra
aparecia sustentada e transcendida pela encarnação. Ele foi mestre e revelador com a doutrina, mas
também com as obras e com a vida inteira” (Cf. QUEIRUGA, Andrés T. A Revelação de Deus na
Realização Humana. São Paulo: Paulus, 1995, pp. 19-44).
228
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 277
226
106
não se refere a Jesus, mas àqueles que já se abriram a esta “nova era” que Ele traz,
trata-se do que eles devem fazer como pessoas que O têm recebido como Senhor.
Trata-se de exigências que podem já serem cumpridas por aqueles que vivem no
Amor de Deus, que se tornou realidade pela presença de Jesus Cristo.
Mais uma vez se encontra implícita a referência à restauração da Imagem
de Deus no ser humano - aquele aspecto material da Imago que é alvo do presente
capítulo da nassa pesquisa. Pois apenas Jesus Cristo devolve ao ser humano a
capacidade de viver no Amor de Deus com responsabilidade, estar em Cristo é
viver a restauração que só vem Dele 229. Voltando agora a questão do conteúdo do
ensino de Jesus, fica evidente que Brunner pressupõe a compreensão da
restauração da Imago Dei na vida dos que são chamados à prática da justiça de
Deus. Eis as palavras do próprio Brunner:
“Qual é este elemento distintivo no ensino de Jesus? Ele tem um conteúdo. E embora
nunca devemos nos esquecer que Aquele que fala é a fonte do ensino, mas seu
“conteúdo” não pode ser meramente rotulado de “Cristologia”. Jesus ensina duas coisas –
ambas só podem ser corretamente entendidas com referência a Si mesmo: a nova
exigência por justiça, a qual é requerida daqueles que pertencem à nova era, e é a
condição sobre a qual eles estão aptos para compartilhar Sua vida; e perdão e a vinda da
nova era em Sua plenitude como o dom de Deus 230”.
Brunner aprofunda mais sobre a capacidade que em Cristo Jesus é dada a
todos que receberam o perdão de Deus. Pois estes que agora possuem o dom dado
por Jesus Cristo, podem cumprir em suas vidas o grande mandamento: viver-noamor-de-Deus. Seguir a lei do amor tornou-se possível, mas “só é possível onde o
coração está cheio de Deus, onde o homem já está vivendo na nova existência, no
Reino de Deus que “chegou” em Jesus231”. A partir daí o pensamento brunneriano
também ressalta que esta convocação para uma existência segundo o Reino de
Deus, viver no Amor, não é mera exigência ética e subjetiva das doutrinas de
Jesus (algo metafísico). Mas trata-se de uma realidade que é historicamente
229
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 76.
“What is this distinctive element in the teaching of Jesus? It has a content; and although we
must never forget that the One who speaks is the Source of the teaching, yet His “content” cannot
merely be labeled “Christology”. Jesus teaches two things – both can only be rightly understood in
reference to Himself: the new demand for righteousness, which is required of those who belong to
the new age, and is the condition upon which they are able to share in His life; and forgiveness and
the coming of the new age in its fullness as the gift of God” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II),
p. 278).
231
“…it is only possible where the heart is filled with God, where man is already living in the new
existence, in the Kingdom of God which has “come” in Jesus” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol.
II), p. 278).
230
107
instalada com a presença de Jesus entre os homens. Deus começa o seu governo e
mostra o real sentido da vida, eis a instalação do Reino de Deus. É a vontade de
Deus que se torna manifesta e pode ser obedecida porque Jesus “implanta” o
Reino “no meio” dos seres humanos. Brunner diz que isto é a „única coisa” que
importa: O governo de Deus, pois os propósitos anunciados pelos Profetas, são
cumpridos em Jesus Cristo.
Mas é importante ressaltar que a teologia brunneriana considera como
fundamental a postura do ser humano frente a esta soberania de Deus que é trazida
por Jesus Cristo. Pois o ser humano precisa se reconhecer necessitado da graça de
Deus e assim ser perdoado, Brunner diz que o perdão que Jesus oferece está
ligado à graça e a tarefa. Daí constata-se novamente a importância da consciência
de que a obra de Jesus atua de maneira integral na vida humana, pois tem a ver
com a pessoa. Viver a restauração que Jesus proporciona é investir toda a vida na
relação com uma Pessoa que é reconhecida, e crida, como o propósito de Deus
para a sua criação. O Reino de Deus é constituído de pessoas que tem uma
“relação”
responsável
com
Aquele
que
companheirismo de Deus com os seres humanos
torna
possível
novamente
o
232
. Aqui aparece mais uma vez a
consideração implícita da questão da Imagem de Deus. Pois vê-se que o que está
em questão é o ser humano que tem a Imagem de Deus em seu aspecto formal
(liberdade, consciência de pecado, etc.), mas que precisa que Cristo lhe restaure
aquele aspecto material da Imago para que ele possa viver no amor de Deus, e
assim fazer o que é bom e agradável a Deus.
Sendo assim, como profeta Jesus traz a mais alta revelação de Deus para
os seres humanos, pois Sua vida e ações demonstraram que Deus se faz presente
na realidade humana, Ele é o “Emanuel”. Na Cruz e na Ressurreição Jesus desce
ao mais profundo da realidade humana, e assim revela a verdadeira humanidade
do ser humano. Como explica o próprio Brunner acerca da atuação profética de
Jesus:
“No ponto onde Jesus completa a sua vida Ele revela estas três coisas: a realidade de
Deus como santo e misericordioso, a realidade do homem como pecador, e a genuína
realidade do homem em Deus. Assim a obra reveladora de Jesus Cristo culmina em Sua
obra Sacerdotal de reconciliação 233”.
232
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 278-280.
“At the point where Jesus completes His life He reveals these three things: the Reality of God
as Holy and Merciful, the reality of man as sinner, and the genuine reality of man in God. Thus the
233
108
4.3.2.
A obra sacerdotal de Jesus Cristo
Neste momento nós mostraremos como Brunner entende o valor salvífico
da vida e morte de Jesus Cristo no ser humano em estado de pecado e rebeldia
contra Deus. Pois a teologia brunneriana ao falar sobre a obra sacerdotal de Cristo
retoma a questão da Imago dizendo que esta obra salvadora de Jesus é a
restauração da posição originária do homem diante de Deus. Eis as palavras do
próprio Brunner explicando esta restauração realizada por Cristo na vida humana:
“Neste ato de “fazer a paz” o homem é restaurado à sua posição original do fim da
criação, visto que ele é colocado mais uma vez em atitude original para com Deus, que
constitui sua verdadeira natureza. A expiação é também a restitutio imaginis. Visto que o
homem vê a si mesmo julgado e justificado na Cruz de Jesus Cristo, ele está ao mesmo
tempo nascendo de novo e é santificado. Ele se torna o que Deus pretende que seja. O
verdadeiro homem é alguém, que, através de Jesus Cristo, vive no amor de Deus234”.
Sendo assim, já identificamos que quando o pensamento brunneriano
formula a sua doutrina da obra sacerdotal de Cristo, ele também traz em seu bojo
a consideração implícita (e até certo ponto explicita, como foi mostrado acima) de
que está retomando novamente o tema da Imagem de Deus, e especialmente
aquele aspecto material dela, que tem a ver com a restauração do companheirismo
entre Deus e os seres humanos realizada por Jesus Cristo. Cabe agora à nossa
pesquisa expor como se dá, no entendimento de Brunner, esta restauração da
Imagem de Deus no ser humano pecador à luz desta obra sacerdotal de Cristo. E é
isto que perseguiremos de agora em diante.
Logo de início é importante pontuarmos que Brunner tem uma
compreensão da obra sacerdotal de Cristo que inclui toda a sua vida, e não apenas
o momento de sua morte. “A totalidade da vida de Jesus, incluindo o seu ensino, é
revealing work of Jesus culminates in His priestly work of reconciliation” (Cf. BRUNNER,
Dogmatics (vol. II), p. 280-281).
234
“In this act of “making peace” man is restored to his original position in the purpose of the
creation, since he is placed once more in his original attitude to God, which constitutes his true
nature. The Atonement is also the restitutio imaginis. Since man sees himself judged and justified
at the Cross of Jesus Christ, he is at the same time born again and sanctified. He becomes what
God intends him to be. The true man is one, who, through Jesus Christ, lives in the love of God”
(Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 296).
109
o Deus misericordioso estendendo suas mãos para sua criação rebelde,
perdida235”. Tomando como base a história do “Lava Pés”, Brunner explica que ao
relatar este gesto de Jesus, João queria mostrar que a vida e a morte de Cristo
eram uma só coisa. A totalidade da vida e atividade de Jesus é Deus se inclinando
para o ser humano a fim de salvá-lo. O “Lava Pés” também mostra que Ele
cumpriu a Lei, pois viveu o ágape que é amor generoso, que serve, que O leva a
se inclinar para suprir uma necessidade objetiva. E o fato deste evento estar
localizado nas vésperas da Paixão mostra como é um erro desconectar a vida de
Jesus com o seu fim trágico na Cruz236.
O teólogo de Zürich acentua esta importância de considerar a vida de Jesus
como um todo ao criticar a postura assumida pela ortodoxia protestante que
formulou a idéia de que apenas a oboedientia passiva Christi tem valor salvífico e
que a oboedientia activa não tem nada a ver com a salvação. A necessidade da
ênfase na pregação de um Deus que morre pela humanidade em uma cruz, não
pode desmerecer a história da vida de Jesus. Ele também explica que a igreja
antiga acertou ao considerar profundamente importante a unidade entre o que
Jesus fez durante sua vida histórica e a sua morte de cruz 237, entendendo ambas as
coisas como elementos que formam uma só salvação (os Evangelhos mostram
isso). Para o pensamento brunneriano a Cruz na verdade é o estágio mais alto da
entrega de Deus pelo ser humano na pessoa de Jesus, mas a cruz nunca pode estar
dissociada de toda a vida de Jesus238.
O presente teólogo, analisado pela nossa pesquisa, entende que desde o
início a Igreja Cristã teve a preocupação de refletir sobre o sentido da morte de
Cristo na cruz, e obter uma visão positiva deste evento que ao mesmo tempo era
tão terrível. A experiência com o Cristo ressuscitado produziu como que uma
chave hermenêutica pela qual os discípulos puderam ver a morte de Jesus com um
valor salvífico. Esta interpretação tinha sua base nas Escrituras, e principalmente
235
“The whole life of Jesus, including His teaching, is the Merciful God stretching out His hands
to His rebellious, lost creation” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 281).
236
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 281-283.
237
Schillebeeckx também compreende a importância de se considerar a integralidade da vida de
Jesus como um evento salvador, e quanto é perigoso o isolamento do valor da cruz: “A morte de
Jesus não se deve separar de todo o contexto do seu caminho de vida, de sua mensagem e do seu
modo de viver; do contrário, o significado redentor da morte de Jesus vira um mito, e muitas vezes
até mito sádico e cruel. Quando se abstrai da prédica e prática de Jesus, que o levaram à morte,
obscurece-se o conteúdo cristão do sentido salvífico de sua morte” (Cf. SCHILLEBEECKX,
História Humana: Revelação de Deus, p. 160).
238
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 282-283.
110
na leitura de Is 53. Brunnner, no entanto, explica que é impossível construir uma
doutrina fechada sobre os pormenores da morte de Jesus na cruz. Isto porque ao
longo de sua história a Igreja foi formulando interpretações paralelas sobre o
sentido da morte de cruz pela qual Cristo sofreu. Eis as cinco principais
formulações que se solidificaram no “pensamento da Igreja”: o entendimento
sacrificial judaico, antes da destruição do Templo; o Servo Sofredor de Isaías, que
alude a uma morte de valor penal; a idéia de pagamento de um “título de dívida”
que havia contra o pecador; Redenção, como libertação sobre os poderes das
trevas; e finalmente a compreensão da morte de Jesus na cruz como o verdadeiro
sacrifício do Cordeiro Pascal que serve como uma Nova Aliança239.
Segundo o pensamento brunneriano todas estas concepções sobre a morte
de Jesus na cruz, apesar de diferentes entre si, contém princípios afinados com a
Bíblia. Por isso, estas cinco visões do tipo de morte de Jesus estão indelevelmente
arraigadas no pensamento cristão e é quase impossível distingui-las umas das
outras. Aqui vale a pena expor diretamente as palavras de Brunner:
“Primeiramente, porém, devemos notar que todas estas concepções tentam expressar
uma verdade. São todas idéias a posteriori. Delas alguém pretende esclarecer, à luz da fé,
o fato histórico da Cruz de Jesus Cristo, que à primeira vista pareceu ser algo
completamente irracional e obscuro. Em seus diferentes modos todas elas querem dizer
duas coisas: por causa do pecado, a situação do homem em relação a Deus é perigosa,
sinistra e desastrosa. Mas o homem não pode alterar esta situação. Só Deus pode fazer
isto; e Ele fez isto em Jesus Cristo, através de sua morte na cruz. Há um tipo de conexão
inevitável entre este Evento, e esta situação humana perigosa e desastrosa, um senso de
que “isto tinha que acontecer240”.
Ele explica que a leitura a posteriori daquele evento terrível só poderia ter
uma explicação: Jesus deveria morrer na cruz para que o ser humano fosse
reconciliado com Deus. A morte na Cruz deve fazer parte de toda a história de
Jesus, por isso tem valor salvífico. É importante observar que a teologia
brunneriana enquadra a morte de Jesus na cruz como um evento que faz parte da
“História da Salvação”, portanto é um acontecimento que está ligado com a
239
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 283-285.
“First of all, however, we must note that all these conception are trying to express one truth.
They are all a posteriori ideas; their one aim is to clarify, in the light of faith, the historical fact of
the Cross of Jesus Christ, which at first sight seemed to be something completely irrational and
obscure. In their different ways they all want to say two things: owing to Sin, man‟s situation in
relation to God is dangerous, sinister, and disastrous. But man cannot alter this situation. God
alone can do this; and He has done it in Jesus Christ, through His death on the Cross. There is a
kind of inevitable connection between this Event, and that dangerous disastrous human situation,
a sense that “this had to happen” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 286).
240
111
história de forma geral. Daí dizer Brunner que as cinco idéias sobre a morte de
Cristo ser a busca a posteriori do entendimento de um fato que passou a ser visto
como algo que deveria acontecer. A idéia de um “deve” acontecer passou a
nortear a visão dos primeiros cristãos 241.
Ele compreende que esse “deve” está ligado não exclusivamente a questão
da Cruz, mas ao fato de que Deus precisa agir na realidade humana para que o ser
humano possa sair de seu estado de perdição – ele usa a idéia paulina da
escravidão da Lei como exemplos de estado de perdição da qual o pecador precisa
ser livre242. Aqui fica evidente a militância do pensamento brunneriano contra a
idéia liberal de um sentimento de “culpa subjetivo”, sentimento que seria uma
criação humana apenas e que não existiria realmente. Pois para Brunner o ser
humano está sob uma condição de perdição realmente, e somente uma atuação
transformadora de Deus pode solucionar a situação do pecador. Neste ponto, a
teologia brunneriana mais uma vez considera a necessidade de uma restauração do
companheirismo entre Deus e o ser humano que somente pode ser realizada por
atuação divina, isto é, por Jesus o Cristo. Isto tem relação direta com a questão da
restauração da Imagem de Deus no pecador, eis como diz Brunner:
“A separação só pode ser removida por Deus, e deve ser removida, se ali deve haver uma
restauração de um companheirismo entre o homem e Deus. Mas isso só pode acontecer se
Deus realmente remover aquilo que constitui a separação. Esta remoção deve ser tanto um
ato real quanto o é a realidade da culpa. Um ato de restauração deve acontecer, se deve
ser uma restauração real, e isso deve ser atuação de Deus243”.
241
Sobre isto, é importante dizer que Brunner se posiciona tenazmente contra a “teoria da
satisfação de Anselmo”. Isto porque Anselmo usa uma categoria a priori para Entender a morte de
Jesus na Cruz. Desta forma a Cruz torna-se algo objetivo e por demais racional, elementos que
nada tem a ver com a visão do Novo Testamento. Eis como explica o próprio Brunner: “A despeito
do fato de que a teoria de Anselmo não foi só adotada pela Igreja Católica, mas também pela
teologia Reformada, e pelo Protestantismo ortodoxo, e a despeito do fato de que ela contém
importantes elementos de verdade, não está de acordo com o ensino do Novo Testamento. É
verdade que ela preserva a principal concernência dos diferentes modos nos quais os escritos do
Novo Testamento apresentam esta verdade, e na qual eles dão suas interpretações do evento da
cruz: o problema é este “dever”; mas no pensamento de Anselmo este “dever” não é, como no
Novo Testamento, a posteriori e portanto condicionado, mas a priori, e portanto necessidade
incondicionada. Anselmo não diz: “podemos entender o evento neste sentido”, mas: “Deus não
poderia fazer diferente”. Então há uma diferença a mais: a teoria de Anselmo da “satisfação”
pretende ser uma expressão adequada, completamente suficiente, que não precisa ser acrescentada
por quaisquer outras idéias – nem mesmo concede a elas – enquanto que para os escritos do Novo
Testamento a variedade de conceitos e expressões apontam para o fato de que nenhuma dessas
expressões em si mesmas são consideradas como suficientes, mas que todas, como expressões
figurativas, são intencionadas indicar para um fato que apor sua natureza jamais pode ser
plenamente entendida” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 289-290).
242
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 291; 292-293.
243
“The separation can only be removed by God, and it must be removed, if there is to be a
restoration of fellowship between man and God. But this can only happen if God actually removes
112
Com isso, ele concorda com a idéia da existência de algo que realmente
separa o ser humano de Deus, por isso é necessário a restauração. Esta teologia
“intervencionista” de Brunner, no entanto, deve ser vista como uma visão
intervencionista em conexão com a realidade histórica da vida de Jesus. Pois o ser
humano tem a sua relação com Deus restaurada por uma atuação divina, mas
trata-se daquele evento reconhecido como sendo a encarnação do Filho de Deus
para a salvação do pecador. Sendo assim, a obra que Jesus efetua tem a ver com o
perdão de Deus realizado no seu Filho Amado. Que na morte de Jesus encontra-se
o clímax da “concretização” deste perdão divino, apenas depois dos
acontecimentos (a posteriori) a comunidade cristã foi percebendo.
“O ensino de Jesus está sempre relacionado à sua autoridade Messiânica e à ação de Deus
Nele, mas a elação com Sua vida e morte ainda falta a plena clareza que só poderia ser
percebida após sua vida na terra tenha sido encerrada pela morte. Todo estágio posterior
da revelação apresenta ainda mais claramente a verdade essencial, a saber, que o evento
no qual o perdão acontece não pode ser tomado por garantido, como algo completamente
natural, mas que é algo despercebido, inacreditável, isto é, este evento histórico traz as
marcas de uma intervenção transcendente divina 244”.
A mensagem da cruz é primeiramente a revelação do amor
incompreensivo e incondicional de Deus. Aqui Brunner trabalha com a idéia do
ágape, amor que não depende das ações legalistas dos seres humanos. Mas o
grande questionamento é: se o amor de Deus é incondicional, porque teve que
existir a Cruz?
A resposta de nosso teólogo a este questionamento está no que a própria
Cruz representa: a atitude de um Deus que se “despe” da sua glória para se
encontrar com o ser humano em uma condição de fragilidade e morte 245. Por isso
that which constitutes the separation. This removal must be as real an act as the reality of guilt. An
act of restoration must take place, if there is to be a real restoration, and this must be God‟s doing”
(Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 291).
244
“The teaching of Jesus is always related to His Messianic authority and to God‟s action in Him,
but its relation to His life and death still lacks the full clarity which could only be perceived after
His life on earth had been closed by death. Every later stage of revelation brings out still more
clearly truth, namely, that the event in which forgiveness takes place cannot be taken for granted,
as something unheard of, incredible, that is, the historical event bears the marks of a transcendent
divine intervention” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 294).
245
Aqui é importante citar a contribuição de Ronald Blank comentando o fato de que em Jesus
Cristo, a auto-revelação de Deus chega a sua plenitude. Ele chama a atenção para o fato de que em
Jesus é apresentado uma visão de Deus que frustra aqueles que estavam presos a uma compreensão
triunfalista e simplista da revelação de Deus. Pois em Jesus o “Evangelho” mostra um Deus que
entra nos caminhos tortuosos da história para se encontrar com o ser humano. Esta atitude deve
113
a Cruz tem um valor salvífico, pois ali o Deus Criador manifesta a mais alta
declaração de seu amor no fato de ter morrido no lugar do pecador, morrido pelo
pecador. Mas é preciso assumir que o pensamento brunneriano realmente assume
este evento da cruz como sendo uma manifestação da justiça de Deus em relação
aos pecados humanos. Mas a diferença entre esta morte expiatória, que Brunner
entende ser verdadeira, e a teoria da “satisfação” de Anselmo está no fato de que
Brunner formula a idéia de uma morte “substitutiva” não como algo apenas
objetivo, que deveria acontecer a todo custo (a priori), mas como um
acontecimento objetivo e subjetivo ao mesmo tempo: a “prova da justiça” de Deus
só é efetiva onde o ser humano por meio da fé se identifica com o Cristo
Crucificado, e recebe de Deus a compreensão que realmente deveria ter morrido
como um criminoso, e que Cristo está sofrendo em seu lugar, e suportando a
penalidade que ele merecia246.
Brunner diz que não há relevância no questionamento se tudo poderia ser
diferente, se Deus poderia ter usado outro meio do que a Cruz. Mas ele esclarece
que não está querendo dizer que a cruz de Cristo deva ter uma compreensão a
priori (como Anselmo a entendeu), algo que deveria acontecer a todo custo. Isto
seria uma forma de colocar em padrões lógicos e racionais o evento da Cruz. O
evento da cruz jamais pode ser entendido de modo racional, só pode ser crido.
“Não é um fato objetivo “em si”, mas é um fato que inclui a fé. Relembrando, o
fiel sabe que não havia outro caminho para ele, a fim de alcançar a renovação do
companheirismo com Deus247”.
“Sobre a base do fato da Cruz, e apenas assim, nós podemos falar que a ira
de Deus não é uma realidade objetiva, mas “objetiva-subjetiva”, uma realidade de
“encontro”, uma realidade para tudo que não está no campo da fé 248”. Com este
raciocínio Brunner quer mostrar que a ira nunca é a natureza de Deus, mas é algo
inevitavelmente ser vista como um Deus que leva a sério o amor pelo ser humano, ao ponto de se
submeter ao condicionamento histórico, demonstrando assim a profundidade de seu amor (Cf.
BLANK, Deus na História, pp. 37-41). Como explica o próprio Blank: “Em Jesus, Deus obrigou
os seus seguidores a repensar a imagem que estes lhe tinham feito. Isso porque, em Jesus, Deus se
revelou de maneira específica, como Deus kenótico, como Deus que auto-esvazia, que se aniquila
para os outros” (Cf. BLANK, Deus na História, p. 38).
246
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 295-296.
247
“It is not an objective fact “in itself”, but it is a fact which includes faith. Looking back, the
believer knows that there was no other way for him, in order to attain the renewal of fellowship
with God” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 296).
248
“On the basis of the fact of the Cross, and only thus, we may say that the wrath of God is not an
objective reality, but “subjective-objective”, a reality of “encounter”, a reality for everyone who is
not in the realm of faith” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 296-297).
114
que está entre o ser humano pecador e Deus. Porque o ser humano não acredita no
Amor de Deus, por esta razão, realmente existe algo entre o pecador e o eterno
Amor de Deus, e só pode ser removido pelo evento real da morte de Cristo na
Cruz, e pela fé Nele. O pensamento brunneriano aponta este “algo entre” Deus e o
ser humano como sendo semelhante à culpa e a maldição da lei, por isso Deus
parece irado. “O pecado cria uma realidade, a qual se encontra entre o amor de
Deus e o homem, e o homem não pode remover este obstáculo real. Só Deus pode
fazer isto. Esta remoção da realidade da ira é a Expiação249”. O que o pensamento
brunneriano está tratando aqui tem relação com aquela condição de pecado que o
ser humano vive, estado de rebelião e inimizade contra o Amor de Deus – que já
tratamos no capítulo passado250.
Sendo assim, a Expiação é uma ação reveladora que traz à luz tanto o
Amor como a justiça de Deus, e ao ser humano é mostrado a sua real situação. Por
isso a Cruz tem um valor tão significativo, pois ali vê-se o ponto mais alto do
amor de Deus pelo ser humano, ao ponto de fazer-Se criminoso para vir ao
encontro do pecador. A Crucificação é o clímax da vida de Jesus Cristo. Brunner
reconhece que este é o grande diferencial da fé cristã em relação às outras
religiões – um Deus que “desce de sua glória” até um ponto mais baixo da
dignidade humana, por amor a sua criatura251. Como conclui o próprio Brunner:
“É também algo que nenhum criticismo histórico foi apto a afetar. “Crucificado sob o
poder de Pôncio Pilatos” aponta para o fato de que desde o início a Igreja Cristã tinha
consciência de que a sua mais sagrada possessão está contida neste período da história
humana – e mundial – com toda a sua vergonha. Esta história é de fato: o Evangelho 252”.
249
“Sin creates a reality, which lies between the love of God and man, and man cont remove this
real obstacle; God alone do this. This removal of the reality of wrath is the Atonement” (Cf.
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 297).
250
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), pp. 89-132.
251
Moltmann ao tratar da auto-limitação de Deus ao criar o ser humano como sua imagem e
semelhança, e assim Deus se permite criar um ser diferente dele (oposto), também trata do evento
da cruz como auto-humilhação de Deus em prol do pecador. Eis as palavras de Moltmann: “Se
esse é o sentido da encarnação do Filho como tal, então a auto-humilhação de Deus completa-se na
paixão e morte de Jesus, o Filho. Também aqui pode ser reconhecer um sentido mais íntimo: Deus
não apenas assume a finitude humana, mas também a condição de seu pecado e do seu abandono
por Deus. Ele não apenas ingressa nesta situação, mas assume-a e faz dela uma parte do seu
próprio e eterno amor. A “kenosis” realiza-se nacruz” (MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino
de Deus: Uma contribuição para a Teologia. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 129).
252
“It is also one that no historical skepticism has been able to affect. “Crucified under Pontius
Pilate” points to the fact that from the very beginning the Christian Church was conscious that it is
most sacred possession is contained in this period of human-and world-history, with all its shame.
This history is in very deed: the Gospel” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 297).
115
Agora é possível entender como esta profunda obra de amor que Deus
realizou em Jesus muda o interior do ser humano rebelde contra Deus. Pois
através de sua descida até ao encontro do pecador, Deus ao mesmo tempo
estabelece um Governo divino, mas constituído de homens, que tem a sua base no
amor, e no serviço voluntário. E justamente este assunto do Reino de Deus que
nós trataremos no próximo tópico.
4.3.3.
A obra real de Jesus Cristo
Brunnner desenvolve o tema da realeza de Jesus Cristo dizendo que este
assunto não é comumente tratado na sua plenitude pela “Teologia Cristã”, e ele
identifica isto como um disparate, visto que a mensagem de Jesus é: “Chegou a
vós o Reino de Deus”. No entanto, este tema é muito importante para o
desenvolvimento da nossa presente pesquisa.
O autor por nós ora analisado compreende que o que distingue tanto a
religião do Antigo Testamento, como a pregação do Novo Testamento – tradição
de Jesus – das outras religiões é justamente o contraste entre o mundo atual e o
desejo de Deus de construir uma nova realidade de convívio humano. Esta nova
era que Deus quer estabelecer está ligada a constituição de um povo realmente
obediente a Ele, Deus deseja estabelecer o Seu Governo no mundo. É
precisamente esta a outra obra que Jesus veio realizar: concretizar o alvo final de
toda a história: formar um povo que realmente pratica a vontade de Deus
concretizando o estabelecimento do Reino de Deus na realidade humana. Daí ser
fundamental este assunto para noos pesquisa, visto que Brunner alicerça o
estabelecimento do Reino de Deus sobre a questão da restauração do
companheirismo entre Deus e os seres humanos. Eis como diz o próprio
Brunnner: “Certamente, como em toda religião, “salvação” é importante, mas esta
“salvação” consiste em unidade da vontade com, e comunhão pessoal entre, Deus
e o homem253”.
253
“Certainly, as in every religion, “salvation” is important, but this “salvation” sits in unity of will
with, and personal communion between, God and man” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p.
298).
116
Sendo assim, esta idéia da obra real de Jesus Cristo tem a ver com a idéia
que norteia este presente capítulo: em Jesus Cristo o ser humano tem a imagem de
Deus restaurada em sua existência. Pois a relação existe na medida em que a
instalação do Reino de Deus está ligada com a idéia da submissão voluntária e
verdadeira pela fé em Jesus Cristo que leva a realização da vontade de Deus. Isto
só é possível àqueles que passaram pela restauratio imaginis, que a experiência de
fé em Jesus Cristo ocasiona254. É importante ressaltar que aqui está se referindo
aquele aspecto material da Imagem de Deus. Ditas estas coisas, iremos agora dar
sequência a idéia brunneriana do ofício real de Cristo, pontuando sempre aquilo
que tem a acrescenta neste tema da restauração da Imagem de Deus no ser
humano.
Brunner explica que a grande diferença de Jesus em relação aos profetas
está no fato de que enquanto a palavra profética sempre exigia a vivência do
Governo de Deus, na pessoa de Cristo Jesus o próprio Reino de Deus se fazia
presente. Ele mesmo inaugurou uma nova era da soberania de Deus. Pois a própria
autoridade de Sua presença, e vida, revela que algo diferente está acontecendo, eis
a instalação do Reino de Deus. Mas é importante ressaltar que este governo tem a
sua característica por ser um domínio diferente dos reinos humanos, pois estes são
em sua essência déspota, enquanto o Reino que Jesus estabelece não se caracteriza
por uma demanda por obediência, mas um dom.
“O reino divino que Jesus inaugura, é libertação, restauração, presença perdoadora de
Deus, que gera comunhão. Aqui está Aquele em quem, porque Ele é Santo Amor
encarnado, podemos confiar completamente, e que podemos ama r em retorno sem nos
perder. Por isso a idéia do Governo ou Reino de Deus aqui alcança um novo sentido 255”.
Por isso a teologia brunneriana entende que este governo tem um valor
interior. É um tipo de soberania que conquista o coração, pois releva ao pecador o
dom gratuito de Deus que lhe perdoa os pecados. Jesus é um novo tipo de Rei, que
exerce seu poder real através do perdão dos pecados, e pela recriação do coração
humano anteriormente rebelde, tornando-o um coração cheio de vontade para
servir. Aqui, Brunner entende que este dom que transforma o ser humano rebelde
254
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 58.
“The divine Kingdom which Jesus inaugurates, is God‟s liberating, restoring, forgiving
presence, which creates communion. Here is One whom, because His Holy Love incarnate, we can
trust utterly, and whom we can love in return without losing ourselves. Hence the idea of the Rule
or the Kingdom of God here gains a new meaning” (Cf. BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p.299).
255
117
em um ser humano obediente à vontade de Deus é conseqüência da obra vicária
de Jesus na Cruz, e a adesão a este dom por meio da fé que o pecador deposita
neste evento. Na Cruz são vencidos tantos os poderes hostis do mal, como
também é abatido o “eu” rebelde do ser humano em estado de pecado. “Através da
palavra da cruz recebida pela fé, o novo homem, aquele que serve a Deus, é
criado, aquele que não mais vive em si mesmo e para si mesmo, mas que vive em
e para o amor de Deus256”. Este é o verdadeiro Governo de Deus, pois é regido
pela livre obediência daqueles que viveram uma experiência profunda de amor
com Aquele que desceu em mais profunda humilhação a fim de libertar os cativos
do “Reino do Mal”, e transportá-los para o Reino de seu amor.
As considerações levantadas acima trazem outra questão que para Brunner
é importante: Jesus é Senhor daqueles que “dobram os seus joelhos” livremente
diante de seu senhorio. Não que esteja fora de questão a soberania universal de
Cristo. Mas o que é realmente importante para o pensamento brunneriano é este
“governo real”, que só pode ser constituído por corações que estão conscientes do
dom de Deus, e por isso são movidos pela fé e amor que agora habitam em seus
corações257.
Sendo assim, para a teologia brunneriana só pode se falar em Reino de
Deus onde há “joelhos dobrados” livremente em obediência ao Senhor. Aqui,
Brunner faz uma consideração eclesiológica, pois diz que o verdadeiro governo de
Deus encontra-se na Igreja. Na Igreja estão aqueles que passaram pelo processo da
experiência do amor de Deus e receberam a Palavra e o Espírito Santo, que são os
meios pelos quais Deus realmente exerce o seu Governo sobre os seres humanos
que Nele depositam a fé258. Nisto, diferem-se completamente os “reinos”
seculares e a forma que Jesus exerce o seu Governo, visto que a Igreja é formada
por pessoas que realmente submete o seu coração na obediência a Jesus e no
“seguimento de sua mensagem e estilo de vida 259”, enquanto os outros
256
“Through the word of the Cross received in faith, the new man, the who serves God, is created,
who no longer lives on himself and for himself, but on for the love of God” (Cf. BRUNNER,
Dogmatics (vol. II), p. 300).
257
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 300-303.
258
O teólogo presbiteriano Louis Berkhof assim expões a visão protestante de Igreja: “Tanto para
Lutero como para Calvino, a Igreja era simplesmente a comunidade dos santos, isto é, a
comunidade dos que crêem e são santificados em Cristo, e que estão ligados a Ele, sendo Ele a sua
Cabeça” (Cf. BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p.
518).
259
BOFF, Leonardo. Eclesiogênese: A Reinvenção da Igreja. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.92.
118
governantes precisam da violência para estabelecer seus governos. Mas Brunner
lembra que mesmo na Igreja o domínio de Deus, o Reino de Deus, não está ainda
completamente estabelecido, visto que o ser humano continua - apesar de
restaurado pelo amor de Deus - sendo frágil e constantemente deixa-se levar pelos
valores do mundo. Este conflito não pode ser negligenciado, pois a vitória final de
Cristo, e consequentemente a transformação completa do ser humano à Imagem
Daquele que o criou, é a esperança na qual a fé da Igreja está alicerçada 260.
4.4.
O ser humano restaurado por Jesus Cristo
Este tópico servirá como que uma conclusão deste presente capítulo. Pois
de tudo que foi tratado já nos é possível formar uma síntese do que é a Imagem de
Deus no evento Jesus Cristo na vida do ser humano.
Primeiramente é preciso considerar que a restauração pela qual o ser
humano passa, da qual nos fala o Novo Testamento, trata de um evento que tem o
seu entendimento pautado na compreensão teológica. A teologia cristã reconhece
que a pessoa histórica: Jesus de Nazaré é uma figura ímpar na história do cosmo, e
mais precisamente na história humana. Pois a teologia aponta Jesus como sendo a
manifestação humana de um Deus que é o único criador dos céus e da terra, e esta
manifestação se caracteriza como manifestação salvífica e amorosa (vem à luz a
revelação de um Deus criador-salvador), daí dizer que Jesus é o Cristo, Jesus de
Nazaré, vira Jesus Cristo o Salvador.
O teólogo cristão Emil Brunner alicerça a construção de seu pensamento
sobre as bases dos pressupostos acima descritos, foi o que pôde ser visto na
consideração histórica por ele feita ao se referir à pessoa de Jesus Cristo. Para ele
é fundamental assimilar a salvação de Jesus Cristo em conexão com a questão
histórica. A teologia brunneriana vê a salvação cristã como um evento específico
que tem parte na história geral. O Deus de Jesus Cristo revela-se em Sua Palavra
como tendo relação com toda a humanidade, seu propósito abrange um fim
salvador para toda obra da criação. Deus é o criador de todos os seres humanos, e
a narrativa bíblica também O apresenta como o Deus Salvador. Por isso, tanto no
260
BRUNNER, Dogmatics (vol. II), p. 303-305.
119
Antigo como no Novo Testamento Deus manifesta-se convidando o ser humano
para uma Aliança.
A Aliança representa o desejo de Deus em formar comunidade. Deus
sempre quis estabelecer uma relação com o ser humano. Tanto no Antigo como no
Novo Testamento Ele se revela como quem busca uma “contraparte”, busca
alguém que lhe possa responder verdadeiramente, que seja “oposto” a Ele (relação
“Eu” e “Tu”). É isto que mostra a eleição de Israel, com quem Deus firma uma
Aliança. Mas em Jesus Cristo é revelado o clímax do desejo divino por formar
comunidade com o ser humano, pois em Seu Filho Ele desce na mais profunda
realidade humana, se faz um ser humano, se enquadra nos condicionamentos
históricos, vive intensamente e morre em uma cruz, a fim de mostrar a seriedade
de Seu Amor.
Esta Nova Aliança realiza pela completa entrega de Jesus Cristo é idêntica
a um dom. Pois em Jesus Cristo o Reino de Deus, o desejo de Deus em formar
comunidade, se concretizada. A história mundial passa a conter também uma
“História da Salvação”, compreensão teológica de um Deus que adentra na
história, mesmo sendo o Senhor da história, Ele se submete à história, para
recolocar o ser humano (que se encontrava em estado de pecado-perdição) no seu
devido lugar: estar no-Amor-de-Deus. Esta salvação é semelhante a uma entrega
que realmente foi vivida na história de Jesus Cristo, o Salvador.
A comunidade dos primeiros cristãos entendeu que a auto-entrega de Jesus
pelos pecadores é semelhante a um dom de salvação, pois no todo da vida de
Cristo, e sobretudo na morte na Cruz (píncaro de sua entrega), vê-se uma morte
salvífica; o pagamento de uma dívida que o pecador não podia pagar; a redenção
daqueles que estavam sob os domínios do mal; um Justo que sofre por outrem; e a
figura do perfeito Cordeiro Pascal que estabelece uma Nova Aliança.
Reconhecendo a complexidade destas imagens plásticas, Brunner diz que o fato é
que em Jesus Cristo aquilo que separava o ser humano de Deus é transposto, e de
rebelde o ser humano pode agora, restaurado, voltar a viver o companheirismo
entre ele e Deus.
Mas o ser humano precisa dizer sim a este dom, ele necessita depositar fé
nesta manifestação de amor. Ao fazer isto, porque Deus tudo já realizou, ele pode
ser restaurado à posição que Deus sempre quis que estivesse. Em Jesus Cristo o
pecador pode viver corretamente a sua responsabilidade diante de seu Criador.
120
Pois foi-lhe restaurada aquela Imagem de Deus que é idêntica a viver em Deus, ter
condição de realizar “materialmente” a vontade divina em seu ser. Ele agora segue
a lei do ágape, o seu ego foi liberto da soberba lógica da lei e se submeteu a
gratuidade do Amor de Deus em Jesus Cristo. Por isso pode-se dizer que nele foi
restaurada aquela Imagem de Deus (aspecto material) que se perdeu na ocasião da
Queda. Os olhos humanos se abriram para a chegada do Reino de Deus, por isso
podem dizer: “Vamos amá-Lo, pois Ele nos amou primeiro!”
121
5.
Conclusão
Uma vez que já foram feitas no final de cada capítulo as conclusões mais
importantes a respeito da Imagem de Deus nas três fases histórica da existência
humana, seria supérfluo repeti-las.
Cabe-nos, no entanto, algumas conclusões gerais que podemos chegar tendo
como conteúdo o todo da presente pesquisa. Por isso, é sensato dizer que a partir
do pensamento de Brunner fica evidente a necessidade da construção teológica
estar pronta para dialogar com as descobertas das demais áreas do saber humano.
Mas a ânsia de fazer uma teologia dialogal não pode levar o teólogo a sucumbir na
grande tentação de relativizar o que é essencial do material teológico. Pensamos
que da pesquisa pode-se também concluir que, a exemplo do que foi visto na
construção teológica brunneriana, a teologia não precisa ter o seu trabalho
direcionado à construção de respostas fechadas e hermeticamente satisfatórias,
pois o objeto de estudo da teologia é por demais inefável. Cabe à teologia cristã
atual produzir chaves de leituras (no caso de Brunner: cristológica) que sejam
coerentes com as Sagradas Escrituras e com a tradição teológica, a fim de ter as
suas formulações teológicas fincadas nos alicerces da coerência e do respeito ao
mistério de Deus.
No que diz respeito à antropologia, mais especificamente, podemos dizer que a
teologia cristã apresenta o ser humano como sendo a Imagem de Deus, e isto tem
a ver com a capacidade humana de se relacionar com um diferente de si, um
outro, e com isso gerar sentimentos e motivações que “determinarão” a maneira
de efetuar sua existência. A pessoa de Deus aparece como sendo a razão última de
toda a existência humana, e a resposta à interpelação do amor de Deus é algo do
qual o ser humano não pode fugir. Ele precisa responder ao amor de Deus, e a
partir desta resposta ele escolhe a direção que dá a sua vida. Brunner diz que não
há nenhuma humana criatura que não tem um relacionamento com Deus, não há
ninguém que não tenha dito sim ou não ao amor de Deus.
Em Jesus Cristo apresenta-se a máxima do convite de Deus para o ser humano.
A teologia brunneriana mostra que ao ser humano rebelde, que disse não ao Amor
divino, Deus manifesta em Jesus Cristo o seu mais profundo desejo de com ele se
relacionar. Jesus é aquele que se entrega a fim de eliminar o que está entre o ser
122
humano e Deus: a inimizade. Na medida em que o ser humano foi criado para
viver-no-amor-de-Deus, sendo isto que o caracteriza como Imagem de Deus,
Jesus Cristo é quem restaura na realidade humana esta vocação que lhe é indelével
(pois nunca deixou de ser Imagem de Deus). Na vida e morte de Cristo o pecador
percebe uma atuação de Deus em seu favor, e pela fé pode dizer: “sim, amarei a
esse Deus que tão grandemente me amou!”
Desejamos ainda dizer que a partir do que foi tratado na pesquisa, nós
chegamos a temas que podem ser posteriormente desenvolvidos. Referimo-nos,
por exemplo, as considerações que Brunner faz ao fato de que ao ser humano só
foi dado o “domínio” da natureza porque ele foi criado a Imagem de Deus, e ele
não é imagem de Deus porque domina a natureza. Aqui cabe uma interessante
reflexão sobre a responsabilidade ecológica como algo inerente a natureza
humana criada por Deus. Outra consideração de Brunner que segue a mesma linha
de pensamento é a idéia de que o ser humano ao cumprir sua vocação de Imagem
de Deus passa a construir relações humanizadoras com o seu próximo. E cada vez
que ele nega sua existência como Imagem de Deus, o ser humano constrói
civilizações desumanizadoras. Aqui também cabe um bom trabalho de pesquisa
sobre a justiça social como elemento próprio a existência humana.
Por fim, gostariamos de expor um tema que muito nos estimula a continuarmos
na jornada da pesquisa acadêmica. Trata-se da incontestável existência de um link
na teologia brunneriana que a possibilita dialogar com as teologias de diferentes
confissões cristãs. A antropologia desenvolvida por Brunner tem claras pretensões
“ecumênicas”. Pois ao tratar da doutrina da Imago Dei, ele assumiu elementos
tanto protestantes, quanto católicos. E ele constata as diferentes compreensões
antropológicas no seio do protestantismo e se coloca numa posição de diálogo em
relação a elas. Por isso, entendemos ser viável e pertinente o desenvolvimento de
uma pesquisa que tenha por tese a antropologia brunneriana como uma
antropologia “ecumênica”. O que poderia ser feito em diálogo com um teólogo de
outra confissão cristã.
123
5.
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