04 - Transplante

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Acta
Oftalmológica
12;membrana
19-22, 2002
Transplante
ocular de
amniótica
19
Transplante ocular de membrana amniótica
Indicações terapêuticas – a propósito de dois casos clínicos#
Nuno Pontinha*, Jorge Palmares**, Carmo Palmares#, Fernando Falcão-Reis***
A membrana amniótica humana (MA) é utilizada em cirurgia desde há longa data,
embora o seu emprego em oftalmologia seja relativamente recente. Pensa-se que a MA
actua sobre a superfície ocular facilitando a epitelização e inibindo a inflamação e a
fibrose córneo-conjuntival. A MA é obtida a partir da placenta de cesarianas electivas
em grávidas sem qualquer doença infecciosa, sendo depois processada laboratorialmente
e congelada. O transplante ocular de membrana amniótica é útil em situações de deficiência de células estaminais límbicas (“stem-cells”), podendo executar-se de forma
isolada, ou associado a transplante límbico ou a ceratoplastia penetrante. Entre as suas
indicações contam-se os defeitos persistentes do epitélio corneano, o descemetocelo,
as queimaduras químicas e térmicas, os defeitos conjuntivais, a cirurgia de pterígeo e
a ceratopatia bolhosa.
Palavras-chave
Membrana amniótica; Transplante; Células estaminais límbicas.
A membrana amniótica humana (MA) tem vindo
a ser utilizada no tratamento de úlceras dos membros inferiores1, no síndrome de Stevens-Johnson2
e em cirurgia pélvica e vaginal3,4. Também foi usada
como penso temporário em queimaduras5-7 e feridas cirúrgicas8.
A primeira referência à utilização de MA em cirurgia oftalmológica data de 1940, quando De Rotth
a aplicou em defeitos conjuntivais9. Sorsby e
Symons também recorreram à MA para tratar queimaduras químicas oculares10.
Na década de 90, Kim e Tseng aplicaram MA na
reconstrução da superfície ocular de coelhos com
lesões corneanas graves induzidas experimentalmente11.
O âmnios constitui a porção mais interior da placenta e é composto por três camadas: uma camada epitelial, uma membrana basal espessa e um
estroma avascular12. As membranas basais do
âmnios, da córnea e da conjuntiva contêm colagénio tipos IV, V e VII, bem como fibronectina e
laminina. O estudo das subcadeias do colagénio
tipo IV e da laminina revelou que a membrana
* Interno Complementar de Oftalmologia
** Assistente Hospitalar Graduado de Oftalmologia
# Assessora Principal do Serviço de Imunologia - Faculdade de Medicina
- Porto
*** Professor Agregado de Oftalmologia e Director do Serviço de Oftalmologia Faculdade de Medicina/Hospital de S. João - Porto
# Trabalho subsidiado pela Comissão de Fomento da Investigação em
Cuidados de Saúde, do Ministério da Saúde (Projecto nº 145/01).
basal amniótica assemelha-se mais à membrana
basal da conjuntiva do que à da córnea13.
O mecanismo de acção da MA, quando empregue
na reconstrução de superfície ocular danificada,
não se encontra perfeitamente esclarecido. Pensa-se, contudo, que a MA exerce dois efeitos favoráveis: facilita a epitelização e inibe a inflamação
e a formação de fibrose14.
A MA pode ser aplicada sobre a superfície ocular
de duas formas distintas: com o epitélio e a membrana basal voltados para cima (“inlay”), permitindo o crescimento de novo epitélio corneano
sobre a membrana basal15, ou com o epitélio voltado para baixo (“overlay”). Neste último caso a
MA, actuando como um penso ou como uma lente de contacto biológica, protege as células epiteliais em migração da acção de varrimento das pálpebras e das células inflamatórias agressivas e das
proteínas do filme lacrimal16.
Colheita de membrana amniótica
A MA utilizada em cirurgia oftalmológica é obtida a partir de placentas de cesarianas electivas,
em grávidas seronegativas para a sífilis, a hepatite B e C e o vírus da imunodeficiência humana
adquirida. Não são utilizadas placentas de partos
eutócicos, devido ao risco de contaminação pela
população microbiana vaginal (autóctone ou
patogénica).
Os centros que executam transplante ocular de
membrana amniótica (TMA) têm diferentes protocolos para o processamento laboratorial da pla-
20
Nuno Pontinha, Jorge Palmares, Carmo Palmares, Fernando Falcão-Reis
centa. A maioria, no entanto, utiliza a técnica inicialmente descrita por Kim e Tseng11, com pequenas variações.
Em câmara de fluxo laminar, a placenta foilavada
com solução salina esterilizada com antibióticos,
removendo os coágulos sanguíneos. Após separação da MA do córion por dissecção, a MA foi colocada sobre papel de nitrocelulose esterilizado com
poros de 0,45µm de diâmetro, com a superfície
epitelial voltada para cima. O papel com a MA
aderente foi cortado em fragmentos de 3x4cm e
armazenado a -80ºC em 50% de glicerol. Estudos
de contaminação por microrganismos revelaram-se negativos.
Células estaminais límbicas e doença ocular
Pensa-se actualmente que a superfície ocular externa e o filme lacrimal constituem uma unidade
morfofuncional, cuja integridade e homeostasia
dependem de múltiplos factores – produção e qualidade do filme lacrimal, funcionamento dos anexos oculares externos, existência de mecanismo
protector neuro-anatómico, existência de células
estaminais do epitélio corneano, função das células epiteliais suportada pelos fibroblastos e pela
matriz do estroma corneano17.
Quando o limbo corneo-escleral é gravemente lesado, surge um conjunto de alterações dasuperfície
corneana: invasão pelo epitélio conjuntival, neovascularização, inflamação crónica, erosão recorrente, úlcera persistente e fibrose. Tais complicações, levando a fotofobia grave, desconforto e hipovisão, podem dever-se à destruiçãocompletadas
células estaminais límbicas ou a disfunção dessas
células, tornando os doentes maus candidatos ao
transplante de córnea convencional (que só traz
células epiteliais diferenciadas e não células estaminais). A neovascularização corneana e a inflamação aumentam também o risco de rejeição do
enxerto.
O TMA está indicado nas situações de deficiência
das células estaminais límbicas. Dependendo da
gravidade da deficiência, pode ser necessário associar outros procedimentos terapêuticos. Em casos de deficiência ligeira de células estaminais, o
TMA isolado parece ter bons resultados; em casos
de deficiência moderada pode efectuar-se TMA e
transplante límbico; nos doentes com deficiência
grave justifica-se a associação de TMA, transplante
límbico e ceratoplastia penetrante18.
- Defeitos persistentes do epitélio corneano
- Descemetocelo e perfuração corneana
- Queimaduras químicas e térmicas
- Defeitos conjuntivais
- Cirurgia de pterígeo
- Ceratopatia bolhosa
- Complicações do eritema multiforme major
Quadro I - Indicações clínicas para o transplante de membrana
amniótica.
Defeitos persistentes do epitélio corneano
O TMA é eficaz no tratamento de defeitos persistentes do epitélio corneano, promovendo a re-epitelização em situações clínicas refractárias a outras terapêuticas (eliminação de fármacos tóxicos,
lágrimas artificiais, oclusão dos pontos lacrimais,
lentes de contacto terapêuticas ou tarsorrafia)19.
Apesar dos benefícios do TMA verificados nos
casos de ulceração corneana estéril, não seria de
prever que houvesse vantagem no tratamento de
úlceras corneanas infecciosas. Recentemente, Kim
et al.20 publicaram resultados promissores em doentes com essa patologia.
Descemetocelo e perfuração corneana
Os estudos em que foi aplicada MA na tentativa
de correcção de descemetocelo não são conclusivos. No trabalho de Azuara-Blanco et al.21, todos
os olhos com amolecimento corneano ou perfuração (n=5) necessitaram de ceratoplastia urgente,
após tentativa de correcção por TMA, sem êxito.
Queimaduras químicas e térmicas
O TMA tem sido empregue na reconstrução da superfície ocular em queimaduras químicas e térmicas. Parece ser eficaz em queimaduras ligeiras a
moderadas, embora necessite de associação a transplante límbico nos casos de queimaduras graves22.
Defeitos conjuntivais
Pode recorrer-se a TMA para a correcção de defeitos conjuntivais, embora não esteja demonstrada
a superioridade desta técnica relativamente a outros procedimentos cirúrgicos23.
Cirurgia de pterígeo
A exérese de pterígeo é, com frequência, ensombrada pela recorrência da lesão, muitas vezes assumindo formas mais agressivas do que a lesão inicial. Pensa-se que o TMA, associado a autotransplante límbico, pode desempenhar um papel importante no tratamento dos doentes com pterígeo24.
Ceratopatia bolhosa
A ceratopatia bolhosa, patologia grave devida à
descompensação do endotélio corneano, é cada
vez mais frequente, devido ao aumento do número de cirurgias de catarata efectuadas por facoemulsificação. O TMA pode constituir uma alternativa terapêutica nesses doentes, como mostraram Pires et al.25.
Casos clínicos
Caso 1
Homem de 28 anos de idade, seropositivo, alcoólico, com uma úlcera corneana recorrente, que apesar do tratamento médico instituído, recidivou
21
Transplante ocular de membrana amniótica
várias vezes provocando amolecimento tecidular
e perfuração corneana. Durante algum tempo foi
colocada uma lente de contacto terapêutica, mas
infelizmente sem cicatrização epitelial. Com consentimento informado e dada a urgência da situação clínica, foi decidido transplantar uma membrana amniótica, com o epitélio para cima e o
estroma para baixo, suturada com pontos separados de monofilamento de nylon 10-0. O pós-operatório com antibióticos e corticóides tópicos decorreu sem complicações e ao décimo dia a membrana dissolveu-se, deixando observar-se uma
córnea cicatrizada.
Caso 2
Homem de 24 anos de idade com queratoconjuntivite atópica grave e dermatite atópica rebelde ao
tratamento sistémico. A córnea do olho direito
apresentava uma queratite punctiforme e algumas
papilas tarsais superiores, que melhoraram sintomaticamente, com anti-histamínicos e estabilizadores dos mastócitos, sistémicos e tópicos. Infelizmente no olho esquerdo surgiu uma úlcera
corneana, semelhante à placa vernal, “em escudo”, com infiltração neovascular, e papilas tarsais
gigantes. Apesar do tratamento médico e da lente
de contacto terapêutica a úlcera nunca cicatrizou,
provocando uma fotofobia incapacitante. Uma
zaragatoa efectuada foi negativa. Como estas úlceras não re-epitelizam sem remoção do material
inflamatório que a constituem, foi realizado um
desbridamento operatório completo da úlcera e
suturada uma membrana amniótica, com a mesma área, com pontos separados de monofilamento
de nylon. Por cima foi colocada uma segunda
membrana amniótica ao contrário, com o estroma
para cima e o epitélio para baixo, suturada à
conjuntiva com fio absorvível (polyglactin), funcionando como verdadeira lente de contacto biológica. À segunda semana a úlcera estava cicatrizada, e o doente estava subjectivamente melhor,
apesar do leucoma resultante.
O transplante de membrana amniótica parece ser
muito útil ao facilitar a epitelização corneana nos
defeitos corneanos persistentes e nas úlceras estéreis cujo tratamento conservador falhou.
Nos dois casos em que aplicamos a MA, a reepitelização da córnea foi rápida e eficaz, tendo-se observado uma reabsorção completa da mesma ao fim de algum tempo.
A escolha criteriosa e o acompanhamento regular
dos doentes são fundamentais para o sucesso do
transplante da membrana amniótica.
AGRADECIMENTO
Ao Professor Doutor Nuno Montenegro, Director
do Serviço de Obstetrícia, pela facilitação das pla-
centas utilizadas na preparação das membranas
amnióticas.
ABSTRACT
Human amniotic membrane (AM) has long been
employed in surgery, although its use in ophthalmology is more recent. It is believed that AM has
two favourable effects on ocular surface: facilitation of epithelialization and inhibition of inflammation and corneal-conjunctival fibrosis. AM is
obtained from elective caesarean section, in women
free of any infectious disease. It is prepared in
laboratory and cryopreserved. AM transplantation
is useful in patients with limbal stem cell deficiency. It may be performed as an isolated procedure, or combined with limbal transplantation or
penetrating keratoplasty. Among its indications are
persistent epithelial defects, descemetocel, chemical and thermal injuries, conjunctival defects,
pterygium surgery and bullous keratopathy.
Key words
Amniotic membrane; transplantation; limbal stem
cells.
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