A formação de jornalistas socialmente responsáveis

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A formação de jornalistas socialmente responsáveis
*Patricia Smaniotto
Há 15 anos, quando o Estatuto da Criança e do Adolescente foi criado, a realidade do
mercado de trabalho do jornalista era bem diferente da que se vê hoje. A mais
contundente diferença foi a crescente e irreversível incorporação de novas tecnologias,
como a informática e a Internet, que revolucionaram a prática cotidiana da profissão.
Porém, apesar das imensas possibilidades que essas tecnologias abriram para a
comunicação, elas também foram o princípio de uma mudança massiva de foco no que
se refere ao papel do jornalismo. Hoje, os principais veículos de comunicação do País
são, antes de tudo, estruturas empresariais inseridas na economia de mercado global.
A acirrada competição pela maior fatia de negócios de comunicação que transcendem
fronteiras tem levado à preferência por jornalistas tecnicamente qualificados e com
perfis semelhantes aos dos executivos das grandes corporações.
No que se refere à formação do profissional de jornalismo, isso significou maior ênfase
nas novas habilidades técnicas exigidas por um mercado de trabalho cada vez mais
restrito e, em contrapartida, o detrimento das disciplinas sociais e humanas, teóricas e
reflexivas, que já foram um dia o centro da base formativa da profissão. Como
resultado, os milhares de jornalistas graduados a cada ano têm hoje mais domínio e
conhecimento de conceitos de gestão e de ferramentas como Internet e programas de
webdesign do que daqueles saberes diretamente relacionados com o aperfeiçoamento
conceitual e crítico do conteúdo da mensagem a ser comunicada à sociedade, como as
teorias de comunicação, as ciências sociais, a história, a política, a cultura, a realidade
humana e social. Em outras palavras, os futuros jornalistas não são estimulados a
pensar, a refletir, a criticar, a analisar, a investigar – exatamente as ações essenciais
para um jornalismo capaz de mobilizar e transformar a opinião pública de modo a
contribuir para a emergência de novas mentalidades (e soluções) para antigos e
muitas vezes crônicos problemas sociais.
Mercados, ética e ideologia
Nas empresas de comunicação, o espaço para que o jornalista exerça sua função
original como formador de opinião é muito limitado: ele é antes um funcionário que
“veste a camisa” e, portanto, trabalha prioritariamente pelos interesses e valores da
empresa. Sem uma formação crítica, concentra-se nos aspectos operacionais e
estratégicos das suas funções como comunicador. Por outro lado, o atual cenário da
comunicação digital também gerou uma situação antes impensada: a possibilidade
concreta e viável do jornalismo independente, realizado individualmente ou por grupos
de profissionais unidos por uma idéia ou proposta específica. Esse jornalismo se tornou
possível a partir de veículos como blogs, revistas e jornais eletrônicos. Porém, aqui
também a falta de uma formação conceitual, social e humana mais consistente do
profissional traduz-se mais em quantidade do que em qualidade de comunicação, no
que diz respeito ao exercício do papel social do jornalismo.
Esses dois pólos do mercado de trabalho em comunicação têm, no entanto, algo em
comum: ideologias. Não há como fugir delas – todos têm a sua, não importa se estão
conscientes disso ou não. A questão é se o direito de expressão dessas ideologias e
valores vem acompanhado de responsabilidade social e ética. É por esta razão que se
torna imprescindível que a formação de futuros jornalistas contemple na mesma
medida os conteúdos práticos (instrumentais) e teóricos (conceituais e filosóficos) da
profissão. A capacidade de reflexão crítica desenvolvida pelo indivíduo leva ao
reconhecimento e ao exercício, também no âmbito profissional, de princípios éticos e
valores sociais e humanos fundamentais para um jornalismo socialmente responsável.
Jornalismo pluralista
O mundo contemporâneo enfrenta crescentes desafios relativos aos direitos humanos,
sociais e ambientais. Nesse contexto, o jornalismo ganha importância vital e única,
graças ao seu papel de mediação entre os atores sociais. Vale lembrar que, em
diversos países não-democráticos, o jornalismo independente (incluindo aquele
realizado por organizações não-governamentais) ou mesmo “dissidente” é a única
forma de informar e denunciar à população e ao mundo as violações dos direitos de
crianças, adolescentes, mulheres e homens. Mesmo nos países onde a liberdade de
expressão é garantida por lei, pode ser também uma das poucas fontes não
manipuladas ou tendenciosas sobre a realidade social, política, econômica e cultural.
De qualquer modo, para que o jornalismo socialmente responsável se torne possível no
Brasil, seja em empresas de comunicação ou no jornalismo independente (mercado de
trabalho que tende a crescer muito nos próximos anos), a formação profissional
necessita ser revista. É preciso que as universidades preparem os futuros jornalistas
para atender as novas exigências técnicas e operacionais do mercado, mas também os
capacitem – pela equivalente ênfase, no currículo dos cursos, das disciplinas sociais e
humanas – a desenvolver conteúdos editoriais realmente consistentes, pertinentes e
sintonizados com as mais urgentes e legítimas demandas da complexa realidade social
brasileira.
Outra iniciativa nesse sentido é incentivar não apenas a realização de estágios em
empresas de comunicação, mas também em organizações não-governamentais
voltadas aos direitos humanos e outras pautas sociais. A partir de experiências em
organizações com missões, metas e valores diversos, o estudante de jornalismo terá
condições de adquirir uma visão pluralista e abrangente do impacto de seu trabalho na
sociedade. E, certamente, esse novo profissional estará muito mais capacitado, onde
quer que atue, a lutar por um jornalismo que transforme a vida das pessoas para
melhor. Isso poderá fazer toda a diferença para as várias gerações de cidadãos –
crianças, adolescentes, mulheres e homens – que ainda esperam por respeito e
dignidade nesse País.
*Patricia Smaniotto é jornalista voluntária da Ciranda – Central de Notícias dos Direitos
da Infância e da Adolescência.
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