P sicose e ética do pensador na clínica de B ion : panorama dos artigos dos anos 50 Psychosis and the thinker’s ethics in Bion’s clinic: a scenario of papers from the fifties Resumo Na década de 1950, Wilfred Bion publicou artigos dedicados ao aprofundamento e à ampliação das concepções de Melanie Klein sobre a psicose. O olhar do autor sobre os processos intrapsíquicos ajudou a elucidar as dificuldades do psicótico em constituir e sustentar uma vida subjetiva vinculada à consciência das realidades interna e externa. Porém, o entendimento dessas dificuldades ganhou uma complexidade teórica e técnica ainda maior quando Bion passou a explorar o potencial intersubjetivo da identificação projetiva, tomada como veículo de comunicação e como forma primitiva de se obter conhecimento de si. Neste estudo, mostra-se o processo pelo qual Bion chegou a essa compreensão em uma experiência clínica sua, e a importância desse processo para o tratamento. Também se delineiam as ideias do autor naquela época sobre o significado do objeto externo, em especial sobre o papel do analista no processo de subjetivação. Palavras-chave identificação projetiva normal, pensamento pré-verbal, comunicação primitiva, atitude analítica. Abstract In the 1950s, Wilfred Bion published articles dedicated to deepening and expanding Melanie Klein’s concepts on psychosis. Bion’s view of intrapsychic processes helped to elucidate the difficulties faced by psychotics in constituting and sustaining a subjective life linked to the awareness of internal and external realities. However, the understanding of these difficulties gained even greater theoretical and technical complexity when Bion began to explore the intersubjective potential of projective identification, which was taken as a means of communication and a primitive way of obtaining self-knowledge. This study shows the process through which Bion reached this understanding in a clinical experience and the importance of this process for treatment; it also outlines his ideas at that time regarding the significance of the external object and especially the analyst’s role in the process of subjectivation. Keywords normal projective identification; pre-verbal thought; primitive communication; analytic attitude. A driana S alvitti Universidade de São Paulo (USP). [email protected] Introdução O tema desta edição, voltado para a discussão das noções de alteridade e ética na psicanálise, deflagra o que há de mais central e, ao mesmo tempo, problemático na prática clínica. Certamente o conceito de inconsciente e as compreensões sobre as formas do homem admitir ou ignorar aquilo que há de estranho, intolerável e de desconhecido em si, bem como fora de si, constitui o estofo dessa disciplina desde o plano mais abstrato, teórico explicativo, até o plano mais concreto, ligado ao dia a dia do consultório. As formas de subjetivação e de conduta tendo em vista o outro interno e externo compõem uma discussão fundamental no que diz respeito à clínica psicanalítica, uma vez que as questões relacionadas ao reconhecimento de uma alteridade fazem parte da natureza da relação analítica seja no âmbito transferencial, seja contratransferencial. O trabalho psicanalítico com a psicose, em especial, veio dar a essas questões uma agudeza ainda maior. Do ponto de vista da história da psicanálise, já vem de longa data a problematização em torno das mudanças que ocorreram na teoria e na técnica analítica em função do trabalho com pacientes não neuróticos, isto é, que apresentam transtornos mais ou menos severos na constituição do narcisismo (GREEN, 2008). Essas mudanças se impuseram ao analista pela sua necessidade em examinar o seu papel e a função do enquadre quando falham a manutenção do dispositivo analítico e a capacidade de simbolização no paciente, bem como no próprio analista. Mas não iremos nos deter sobre os aspectos históricos desse tema. Apenas destacamos a excelente abordagem feita por André Green (1975), que combina uma perspectiva objetiva relacionada à diversidade de quadros psicopatológicos que passaram a ser descritos na literatura psicanalítica e nos quais predominam funcionamentos psicóticos, com uma perspectiva subjetiva relacionada a mudanças no analista. Green entende que, ao longo do desenvolvimento da psicanálise, houve uma ampliação na sensibilidade e na percepção para estados 58 de mente mais regredidos, incluindo maior atenção ao próprio estado mental e emocional do analista, muito em função da maneira como o paciente se comporta na sessão e emprega a linguagem para fazer e comunicar coisas concretas, em vez de transmitir significados verbais. O psicanalista inglês Wilfred R. Bion (1897-1979) desenvolveu a sua obra no bojo das contribuições e inovações trazidas pelo pensamento de Melanie Klein com relação a esse grupo de pacientes; além disso, colaborou de maneira original para o aprofundamento na compreensão dessas questões no âmbito teórico e técnico. A experiência clínica de Bion com esquizofrênicos, neuróticos graves e pacientes borderline deu origem, na década de 1950, a formulações originais sobre o funcionamento mental primitivo e sobre a qualidade da relação analítica. Veremos que ele contribuiu para o entendimento do estado precário das funções do ego em virtude do ódio e do sadismo direcionados a elas, e do quanto era difícil a esses pacientes alcançarem e manterem um contato minimamente enriquecedor com a realidade interna e externa. Essas compreensões são acompanhadas de descrições clínicas bastante minuciosas, que surpreendem pelo conteúdo bizarro das experiências e pela capacidade de Bion perceber os diferentes usos que os pacientes faziam de seus instrumentos psíquicos, tanto no sentido de impedir como de promover o desenvolvimento. A partir da década de 1960, Bion realizou importantes reflexões sobre o método, destacando as funções de personalidade no analista no tratamento de ansiedades primitivas. A essas reflexões Bion acrescentou o interesse pela natureza da “matéria” ou do objeto de investigação psicanalítico combinado à sua possibilidade de apreensão dentro e fora do consultório. Neste último caso, referimo-nos a uma preocupação de Bion com a possibilidade de transmissão da psicanálise por meio de trabalhos científicos. Dada a extensão de seu pensamento, faremos um recorte em sua obra, abrangendo Impulso, Piracicaba • 21(52), 57-64, jul.-dez. 2011 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 apenas o período em que Bion estava em vias de organizar as suas ideias naquela que ficou conhecida como a Teoria do Pensar, apresentada em 1962.1 Nossa intenção é apresentar um panorama das concepções do autor sobre a psicose, presentes em artigos publicados nos anos 50, e chamar a atenção para um momento clínico no qual Bion enfoca o papel do analista no evolver de uma situação analítica. Nesses artigos, ainda não encontramos os conceitos que comumente caracterizam o pensamento de Bion, como função-alfa, elemento beta e reverie, muito menos a formulação já clássica sobre a necessidade do analista manter uma atitude livre de memória, desejo e compreensão. Vale dizer que esses conceitos estão na base de qualquer discussão que se pretenda fazer sobre alteridade e ética em Bion. A pergunta natural a se fazer é por que, então, deixá-las de lado e, mais ainda, por que tirar do leitor a oportunidade de conhecer ou de revisitar conceitos tão complexos? Obviamente não se trata de ignorá-los. O que pretendemos fazer é expor algumas das questões que somente a posteriori irão compor a sua teoria de modo explícito, muito porque encontramos nesses artigos iniciais traços de uma abordagem que está na base de formulações bastante abstratas, presentes em livros como O aprender da experiência (1962b) e Elementos da psicanálise (1963). Entre a publicação desses livros e os artigos da década de 1950 há um grande salto na forma e no conteúdo apresentado. Bion não é um autor sistemático ou didático, e muito do processo de amadurecimento de suas ideias e das questões que fazem a ponte entre seus trabalhos não são evidentes. O interesse de Bion pelo método, associado ao desenvolvimento de uma capacidade de pensar tanto no paciente como no analista pode ser visto em algumas passagens de seus artigos. Nelas, notamos a relação mais ou menos direta entre a emergência de insight no analista e a entrada do paciente em contato com uma vida psíquica que, em seus aspectos fundamentais, mantinha-se inviabilizada.2 Uma análise do artigo Sobre arrogância (1958b) nos permitirá acompanhar a atenção de Bion aos transtornos de pensamento também no que diz respeito à mente do analista e à forma com que foi possível a ele chegar a certas compreensões na sessão, a partir de mudanças em seu estado de mente. Ao contrário do que se poderia imaginar, o enfoque não é propriamente sobre a contratransferência no sentido do que se passa com o analista, e sim na atividade de pensar ansiedades muito primitivas e seus percalços. Além de essas concepções terem uma importância clínica em si, esperamos que elas ajudem o leitor interessado em Bion a construir pontes entre ideias que se encontram espalhadas em sua obra, e facilitem o acompanhamento de alguns desdobramentos em seu pensamento. Concepções teóricas sobre a psicose e experiências clínicas Quando nos voltamos aos textos escritos por Bion na década de 1950, observamos todo o seu empenho em elucidar os mecanismos arcaicos do funcionamento mental, a gênese psíquica da psicose, bem como a descrição de uma série de fenômenos psicóticos em pacientes severamente perturbados. Notamos também que essas descrições tiveram como base a observação da qualidade da comunicação entre paciente e analista, principalmente no que diz respeito à forma de o paciente empregar a linguagem verbal. Esta, além de ser um modo de pensamento e comunicação, é um veículo para a concretização de fantasias primitivas com o objeto. A fim de evitar ansiedades aniquiladoras, mas também a fim de fazer valer seus impulsos sádicos e seu anseio pela onipotência, o psicótico fragmenta o pensamento verbal e usa a linguagem para descarregar ansiedades e fazer coisas concretas com o objeto externo. Ao invés Nos últimos anos, essas ideias têm sido aprofundadas por nós por meio de diferentes ângulos (SALVITTI, 2004, 2006, 2011). 2 1 BION, 1962a. Uma visão geral sobre a obra e a vida de Bion pode ser encontrada em BLÉANDONU, 1993. Impulso, Piracicaba • 21(52), 57-64, jul.-dez. 2011 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 59 de as palavras representarem ideias e emoções e servirem para pensar, elas equivalem a uma parte não admitida da personalidade. Por meio de fantasias onipotentes que subjazem à fala e às ações, as ansiedades primitivas seriam expelidas e colocadas para dentro de uma pessoa, ou de uma coisa qualquer, provocando, de fato, reações no ambiente externo. Em um conhecido trecho de Notas sobre a teoria da esquizofrenia (1954), Bion faz a seguinte afirmação: [...] o paciente fala de um modo sonolento com a intenção de fazer o analista dormir. Ao mesmo tempo, estimula a curiosidade do analista. A intenção [...] é dividir o analista, que é impedido de dormir e de ficar acordado.3 Como diz Meltzer (1998), o recém-apresentado conceito de identificação projetiva por Melanie Klein, em 1946, estava no centro dessas constatações, proporcionando importantes ampliações teóricas e avanços na técnica. Segundo a concepção original de Klein (1946), a identificação projetiva seria o meio pelo qual, em fantasia, um aspecto odiado ou idealizado que está cindido da personalidade é reconhecido como pertencente a outra pessoa, deixando o projetor esvaziado desse mesmo aspecto. As ansiedades envolvidas nesse processo acarretariam inibições no intelecto e na formação de símbolos, prejudicando a formulação e resolução de problemas relacionados com o conhecimento e o desenvolvimento da personalidade. Bion foi um dos principais colaboradores de Klein na investigação da dimensão patológica e anormal da identificação projetiva, descrevendo os efeitos da destrutividade direcionada ao ego e às suas funções. Em seus artigos sobre a psicose, mostra que o paciente fica impossibilitado de usar a atenção, a memória, o pensamento verbal e a capacidade de julgar para conhecer a si mesmo e a 3 BION, 1954, p. 35. 60 realidade ao seu redor, tornando ainda mais intoleráveis as ansiedades as quais está submetido. Ousar sonhar, pensar e constituir um mundo interno mais enriquecido promoveria a percepção de toda essa destrutividade e o surgimento de significados bastante dolorosos e quase impossíveis de serem admitidos. Porém, Bion também mostrou as formas com que esses pacientes tentam reconstituir seu aparelho psíquico e tomar contato com a realidade odiada. Mecanismos comumente associados à psicopatologia psicótica, como a alucinação, o delírio e a identificação projetiva, também seriam usados para a reconstituição do ego na busca por conhecimento. Em meio a tantas dificuldades e contando com recursos tão incipientes, é surpreendente encontrarmos nos relatos de Bion pequenos momentos – não menos sofridos – nos quais o paciente sente que há cooperação, em que experimenta alívio diante de um objeto que o ajuda quando consegue dar vazão ao seu “impulso para comunicar” e obter a “ingestão de cura”. Especialmente em Sobre alucinação (1958a), Bion mostra que a cisão, a alucinação e o delírio poderiam ser usados como atividades criativas a serviço da “intuição terapêutica”.4 Bion detectava, assim, a presença de um pensamento primitivo que existiria à parte de significados verbais, relacionado a mecanismos tipicamente patológicos, que não tinham essa como sua única característica. A descrição de aspectos criativos presentes na psicose trouxe uma importante contribuição à literatura da área, cujo enfoque se dá, sobretudo, nos aspectos mais doentios do paciente. Essa descrição é importante, também, por deixar entrever o significado clínico de o analista acompanhar as diferentes qualidades e empregos que os fenômenos assumem na sessão de momento a momento. Voltaremos a isso no próximo item. Bion nota que na posição esquizoparanoide haveria a expressão de um simbolismo rudimentar ou de um pré-simbolismo seme4 Idem, 1958a, p. 82;96. Impulso, Piracicaba • 21(52), 57-64, jul.-dez. 2011 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 lhante ao material onírico, capaz de proporcionar alguma consciência da realidade psíquica e uma comunicação primitiva. Se de um lado o pensamento verbal estaria associado à posição depressiva devido a sua qualidade de síntese e de integração, por outro, seria possível detectar já na posição esquizoparanoide um pensamento pré-verbal e tentativas de reconstituição do ego. Essas ideias foram bastante discutidas em um de seus artigos mais importantes, intitulado Diferenciação entre a personalidade psicótica e a personalidade não-psicótica (1957), por meio de uma perspectiva eminentemente intrapsíquica, mas já com algum destaque para a maneira como o analista lidou com material tão primitivo. A dimensão intersubjetiva ganhará uma exposição mais ampla nos artigos Sobre arrogância (1958b) e Ataques à ligação (1959), quando Bion descreve em maiores detalhes a natureza da relação analítica. Sem fazer menções diretas, Bion parecia estar refletindo intensamente sobre o papel do analista no tratamento quando predominam formas primitivas de pensamento e de comunicação. Em acréscimo à descrição dos modos com os quais o paciente impede a formação do psiquismo, em Ataques à ligação (1959) Bion inclui o ódio dirigido a tudo aquilo que promove vínculo intrapsíquico e intersubjetivo, como a linguagem, a curiosidade, as emoções, a capacidade de entendimento, o seio, o pênis, a criatividade do casal parental e, por extensão, da dupla analítica. Porém, Bion chama a nossa atenção para a importância e a necessidade de o psicótico habitar plenamente a posição esquizoparanoide e nela encontrar uma forma de transmitir e de elucidar as suas ansiedades. Reproduzimos a seguir uma passagem que explicita bastante bem essa problemática. Esta impressão decorre em parte de uma característica da análise de um paciente que foi difícil de interpretar pois não parecia, em momento algum, chamativa o bastante para que a interpretação se apoiasse em evidência convincente. Por toda a análise, o paciente recorreu à identificação projetiva com uma persistência tal que sugeria que se tratava de um mecanismo de que jamais conseguira valer-se o suficiente; a análise deu-lhe uma oportunidade para o exercício de um mecanismo de que havia sido privado. [...] Quando o paciente se esforçava por livrar-se dos temores de morte, sentidos como sendo demasiado intensos [...], ele cindia e afastava tais temores e os colocava dentro de mim, com a ideia de que, se lhes fosse permitido ali repousar por tempo suficiente, minha psique os modificaria, podendo eles então ser reintrojetados sem perigo.5 A partir de constatações clínicas como essa, a identificação projetiva, que até então havia sido amplamente descrita em seus aspectos defensivos, ganhou novos contornos conceituais e proporcionou importantes desdobramentos técnicos. Além de Bion explicitar as diferenças do conceito, mostrando as suas implicações metapsicológicas, ele também enfocou o trabalho clínico, em especial, a importância de o analista atentar para as diferentes qualidades que os fenômenos primitivos poderiam assumir durante a sessão. Notamos, assim, nesses últimos artigos da década de 1950, a exposição de uma característica nova do conceito de identificação projetiva, associada à descrição de uma percepção nova que surge no analista no decorrer da situação analítica. Sobre arrogância (1958b) é o artigo que melhor ilustra essa mudança subjetiva no analista, conforme a afirmação de Green (1975) mencionada na introdução de nosso texto. Dado o enfoque de Bion, tomamos essa afirmação também como expressão de mudanças que ocorrem na singularidade de um processo analítico. Apesar de representar um avanço técnico, a atenção do analista à qualidade assumida pelos 5 Idem, 1959, p. 119-120. Impulso, Piracicaba • 21(52), 57-64, jul.-dez. 2011 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 61 estados primitivos de mente não é uma condição a priori de observação. Na década de 1960, Bion indica que será necessário explorar as condições emocionais e as funções de personalidade envolvidas nos impedimentos e favorecimentos da observação em psicanálise. Sobre atitude analítica, arrogância e tratamento A união entre a percepção da natureza da relação analítica e a atitude do analista relacionada a uma ética é talvez o grande tema de Sobre arrogância (1985b). Este artigo dá uma ideia muito clara do momento em que um sentido emerge e organiza uma situação caótica na qual paciente e analista formavam uma dupla frustrada. O texto ilustra por meios clínicos algumas das reflexões mais abstratas de Bion sobre a teoria da técnica na década seguinte, formuladas em torno da relação entre o pensador que passa a existir para dar conta de pensamentos até então não pensados. Vamos agora à narrativa clínica presente no artigo. Bion iniciou seu relato de caso no momento em que passam a predominar características psicóticas em um paciente neurótico. A ênfase é sobre uma forma especial de objeto interno ou de força – Bion usou os dois termos, um teórico e outro mais próximo ao caráter “palpável” do fenômeno –, que passou a impedir o contato criativo do par e a emergência de insight. Ao longo da narrativa, constatamos que se trata de um objeto que falha em suas capacidades de tolerar a identificação projetiva, e que há uma relação intrínseca entre essa falha e a qualidade excessiva no emprego da identificação projetiva. Antes de Bion nos apresentar essa compreensão, há a descrição de uma situação caótica, em que o pensamento e a comunicação verbal do paciente tornaram-se prejudicadas. As interpretações alcançadas ao longo dos anos de nada serviam para dar conta dessa nova circunstância. Bion, percebendo-se desorientado, formou, com o paciente, um casal impotente e frustrado. A psicanálise e o emprego da comunicação verbal eram sentidos pelo paciente como uma forma do analista se impor sobre ele, mostrar 62 a sua superioridade e, principalmente, atacar um modo singular de comunicação. Aos poucos, Bion notou uma ligação entre arrogância, curiosidade e estupidez, surgidas nas sessões de maneira esparsa e isolada, e que ora seriam identificadas com o paciente, ora com o analista. O trabalho de recolhimento e reunião em um todo significativo dessas informações esparsas é um dos pontos mais interessantes e inovadores do artigo. A ideia de Bion é que elementos edipianos poderiam ser reconhecidos no processo de investigação analítico em si. Isto é, a busca de um sentido para o caos, seja por parte do paciente, seja por parte do analista, poderia se dar por meio do respeito à realidade psíquica e sua verdade, ou de modo arrogante, impaciente e sem medidas, tal qual Édipo quando busca desvendar o crime a qualquer custo e impõe a sentença antes de ter mais informações sobre o criminoso. Esses elementos do mito compõem uma imagem significativa da natureza do relacionamento analítico, no qual tanto o paciente como o analista representaria um objeto pouco tolerante que rapidamente procura uma resposta para se livrar de culpa persecutória, ou para evitar qualquer desconhecimento. Embora Bion estivesse perdido em meio a um caos de significados já esclarecidos, porém ineficientes do ponto de vista interpretativo, o paciente diz sentir que o analista era tanto capaz quanto incapaz de suportar “algo”. O significado desse “algo” foi alcançado quando Bion se deu conta de que a identificação projetiva, mais que a linguagem verbal, seria uma forma de relação de objeto apoiada não apenas na destrutividade. Nomeou de normal essa forma de identificação projetiva, em contraposição ao seu caráter excessivo e patológico. A identificação projetiva normal estaria relacionada à constituição do narcisismo de vida (GREEN, 1988) desde que o objeto externo, alvo das projeções e identificações pudesse tolerar, modificar e nomear as ansiedades primitivas despertadas. Essas constatações de Bion podem ser aproximadas ao trabalho de colegas como Winnicott, que tinha no ambiente emocional primitivo um importante foco de Impulso, Piracicaba • 21(52), 57-64, jul.-dez. 2011 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 compreensão acerca do estabelecimento do narcisismo primário e de suas perturbações.6 Em Ataques à ligação (1959), Bion constrói uma imagem da relação primitiva de objeto e indica as sua importância para a análise: Sentia que o paciente experimentara na infância uma mãe que correspondia zelosa às demonstrações emocionais do bebê. Esta resposta zelosa continha certo laivo de um impaciente ‘não sei o que há com essa criança’. Minha dedução foi de que a mãe, para entender a criança, deveria ter tratado o choro do bebê como algo mais do que uma exigência da presença dela. [...]. É possível observar-se na análise uma situação complexa. O paciente sente estar tendo uma oportunidade que até então lhe havia sido negada [...]. A gratidão por essa oportunidade coexiste ao lado da hostilidade ao analista como alguém que não entenderá e impedirá o uso, por parte do paciente, do único método de comunicação mediante o qual ele se sente capaz de se fazer entendido.7 Diante de um objeto que é capaz de acompanhar o tipo de emprego da identificação projetiva de modo a poder contê-la em si e discriminar a sua natureza por meio da linguagem verbal, o paciente terá a chance de conhecer as suas sensações e seus sentimentos, como amor, medo, ódio, inveja, e começar a forjar para si uma vida subjetiva até então renegada. O analista torna-se, assim, um pensador que passa a existir como uma espécie de órgão transformador de pensamentos primitivos e ansiedades insuportáveis, com o qual o paciente poderá se identificar. A diferença na abordagem teórica e técnica entre os autores não nos impede de observar um diálogo intertextual entre eles. Imaginamos se parte das ideias apresentadas por Bion não poderia ser uma resposta sua às colocações feitas por Winnicott nas cartas dirigidas ao autor em meados das décadas de 1950 e 60 (cf. WINNICOTT, 1990). 7 Idem, 1959, p. 120-121. 6 Breve conclusão A sequência dos artigos escritos por Bion na década de 1950, principalmente seus textos finais, nos leva a ver que o tratamento psicanalítico implica uma abertura para o outro no sentido de uma disposição para acompanhar e pensar o que o paciente faz de seu próprio psiquismo e de suas ansiedades. Mas ao invés de explorar aquilo que se passa no analista no âmbito contratransferencial, Bion, na década de 1960, voltará sua atenção à elucidação dos elementos e das funções de personalidade envolvidas com a sustentação emocional dos estados de mente primitivos (BION, 1962a e 1962b). A atitude do analista no sentido de acolher e notar esses estados certamente tem um efeito sobre a disposição mental e emocional do próprio paciente. Em seus artigos, percebemos que a coexistência de processos doentios e normais no funcionamento mental primitivo e nas relações de objeto exige do analista uma abertura para a observação de fenômenos que não se reduzem a definições psicopatológicas estanques. Porém, não basta o analista saber que a cisão, a alucinação, o delírio e a identificação projetiva poderiam se direcionar para a busca de conhecimento sobre a vida emocional. Uma vez que é a partir da qualidade da relação com o paciente que o analista poderá determinar a natureza dos fenômenos, tornar-se-á importante discutir as condições de observação em psicanálise, a relação entre teoria e prática, e a natureza do objeto psicanalítico (BION, 1962b, 1963). Em Sobre arrogância (1958b), o leitor encontra uma descrição muito viva dessa problemática quando Bion faz a aproximação entre a identificação projetiva como comunicação e a conquista dessa percepção pelo analista em uma sessão. Vemos, assim, a constituição de um método de trabalho que pode ser mais bem explicitado como uma ética, e que pressupõe do analista uma disposição para conter estados de não saber, uma abertura ao desconhecido de cada situação, e a capacidade de transformar em matéria simbólica aspectos dolorosos e insuportáveis da personalidade. Impulso, Piracicaba • 21(52), 57-64, jul.-dez. 2011 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 63 Referências BION, W. R. [1954]. “Notas sobre a Teoria da Esquizofrenia.” In: BION, W. R. Estudos psicanalíticos revisados. Rio de Janeiro: Imago, 1994. p. 33-54. _____. [1957]. “Diferenciação entre a personalidade psicótica e a personalidade não-psicótica.” In: BION, W. R. Estudos psicanalíticos revisados. Rio de Janeiro: Imago 1994. p. 55-77. _____. [1958a]. “Sobre alucinação.” In: BION, W. R. Estudos psicanalíticos revisados. Rio de Janeiro: Imago, 1994. p. 79-100. _____. [1958b] “Sobre arrogância.” In: BION, W. R. Estudos psicanalíticos revisados. 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