O Enigma da Interpretação

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- O Enigma da InterpretaçãoConstruções e (Re)construções de Realidades, no Processo Analítico. 1
Ana Marques Lito – SPP
O tópico central da presente comunicação é o valor e o lugar da interpretação,
enquanto processo de mudança psíquica, “de insight”, inspirado na hermenêutica, latus
sensus, no campo intersubjectivo de (re)construção de realidades alternativas, internas e
externas com pacientes de difícil acesso à simbolização e à verdade psíquica. Resulta
de uma reflexão a que nos temos vindo a dedicar e integrar um trabalho em curso.
A partir da nossa prática clínica com famílias, sob a égide da epistemologia
cibernética de 2ª ordem e da inscrição da função psicanalítica da personalidade (Bion,
1963) como analista, procuramos pensar a relação dinâmica, circular e colaborativa de
expansão do pensamento, entre o paciente e o analista, como processo de co-elaboração
simbólica e de transformação dos processos mentais, no alívio da dor mental e a sua
interferência no “bem estar” pessoal e social.
A sessão analítica é por excelência o locus da interpretação.
Porque chamar enigma à interpretação?
Aristóteles fez a comparação, dizendo que o enigma serve para exprimir factos
em condições impossíveis (cf. Poética, 22; Retórica, 3.2, 10), o que constitui um género
1
Comunicação apresentada no II Congresso Luso-Brasileiro de Psicanálise, São
Salvador da Baía, Novembro 2007.
adequado à compreensão de um facto desconhecido através de um código conhecido
que, uma vez compreendido, permitirá a revelação.
Partindo quase sempre de uma pergunta, directa ou indirecta, o enigma constrói-se com
uma descrição nunca explícita de um facto ou de uma situação, bloqueando desde logo a
possibilidade de resposta imediata, por força da contradição que deve presidir aos
elementos que o constituem.
Tem sido a partir da reflexão do trabalho clínico, do seu impacto enquanto
processo de articulação de realidades e de paradigmas, que nos temos colocado nesta
aventura de equacionar os processos interpretativos como instrumento de mudança
psíquica e de construir pontes entre diferentes estilos e modalidades de tratamento.
Para nós, o acto de interpretar, constituiu-se desde sempre como o verso e o
reverso de um processo enigmático, de fascínio que, inscrevendo não só um contexto
específico que tem estimulado a nossa dimensão subjectiva de desafio à realidade, de
explicação do incompreensível ou daquilo que é ambíguo, tem também proporcionado,
pelo recurso a metáforas ou “a sentidos figurados” de realidades específicas, um
processo criativo de “pró cura” de novos sentidos, porque não o encontro com
“unheimlich” (o estranho) – que Freud nos propõe num dos seus trabalhos de 1919.
Freud (1900) a partir da descoberta da mensagem oculta dos sonhos (sonho de
Irma), desenvolveu a orientação hermenêutica da análise dos sonhos, na busca do desejo
recalcado, inconsciente e do fantasma em que se apoia, mas foi naquele encontro com
unheimlich, a procura do “duplo” que inscreveu nos mecanismos neuróticos de
compulsão à repetição, no pensamento mágico, na omnipotência do pensamento
racionalista bem como a superação da vivência do complexo de castração, que trabalhou
o valor da interpretação, reenviando-nos para um lugar/espaço, específico e seguro, que
possibilitasse uma comunicação do analista para o paciente, que pudesse realizar-se por
uma decifração, uma passagem, uma transposição entre o objecto e aquilo que se ia
dizendo sobre ele.
Freud (1919) escreveu nesse artigo:
(...) “refiro-me a que um estranho efeito...quando se extingue a distinção entre
imaginação e realidade, como quando algo que até então considerávamos imaginário
surge diante de nós na realidade, ou quando o símbolo assume as plenas funções das
coisas que simboliza, e assim por diante.” (pp. 261)
Pelo processo de interpretação do “estranho” o analista propõe uma substituição
metafórica, uma analogia entre os significantes que implica um conhecimento da
vivência subjectiva do sujeito. Estes aspectos técnicos da clínica vêm pois, produzir
uma mudança radical na Psicologia e na Psiquiatria, a qual eram então na sua época,
puramente descritivas.
Assim, a Interpretação foi para Freud um processo de “cura” e de “pró cura” e
para nós um tema de eleição, senão de encantamento, porque tem sido o resultado de
uma memória, de um percurso e também um projecto de dignificação profissional.
Enquanto sujeitos catalisadores de expansão de pensamentos, de consciências
de si, revelou-se como um instrumento de construção de realidades alternativas, um acto
espontâneo e criativo, mas reaprendido pelo conhecimento da alteridade analítica.
Trata-se de um processo auto-reflexivo que nos tem possibilitado a liberdade de
Ser/Estar na relação com o paciente.Um processo fecundo e de encontro simbólico, em
que, outrora per vie di porre do nosso analista e, actualmente como analista, também
per vie di levare , interferimos na cadeia associativa do paciente, criando, assim, uma
dupla intersubjectiva.
Não podemos deixar de referir que, também temos tido a influência das ideias
contemporâneas de Gergen, (1998), Anderson (1999), Berger e Luchumann (2004), que
consideram o paradigma linguístico como um cenário de fundo de construção de
realidades, que serve de ecrã ao inconsciente colectivo.
A nossa reflexão busca partilhar convosco este percurso que temos
desenvolvido no trabalho clínico de escuta flutuante do sofrimento humano que, para
nós se organiza em torno da ética do cuidar e de uma prática dialógica, conversacional
que é sempre interpretativa de realidades.
Para estes autores, bem como para nós próprios, ao encontrarmo-nos com a
Psicanálise depois de um tempo de formação e trabalho clínico com problemáticas de
toxicodependência, onde a dor mental inscreve o adormecimento dos pensamentos e o
silêncio dos afectos e das emoções, algumas das dimensões da análise das narrativas
emergentes do Construcionismo Social foram muito úteis na revelação de um campo
subjectivo, no eixo dos aspectos “comunicacionais” que estão envolvidos na interacção
transferência/contransferência.
Hoje, neste caminho psicodinâmico, conceptualizamos o acto interpretativo,
como um instrumento específico da técnica analítica, que não sendo arbitrária nem
imposta, se realiza pela procura do “negativo”, da ausência, na semântica da linguagem
do psiquismo que se revela com a possibilidade de pensar a diferença, a experiência de
desamparo e de estranheza que os nossos pacientes trazem com as suas queixas
incompreensíveis para eles, e tantas vezes para nós.
A interpretação assume-se como um instrumento de interrogação, entre os
aspectos não revelados, não construídos coincidentemente por esses actores sociais, que
produzem representações e realizam a construção social íntima de realidades.
O desconhecido, a “pró cura” do carácter de incompletude do “estranho” que
provém de algo familiar que foi reprimido, que habita em nós, não será o trabalho
criativo do processo analítico, lugar aonde o inconsciente está vazio à espera de
significação?
Para nós a Realidade enquanto entidade independente e real, em si mesma, não
existe. Ela é apenas construída pela objectivação de processos de comunicação e de
significações subjectivas que dão sentido e coerência à experiência humana que pode
ser acumulada e conservada. Contudo, é pela definição do campo, que a acção
semântica, a interpretação dos símbolos e dos signos, que se constrói e se desconstrói
conhecimento, mas é pela linguagem que ele será transmitido de uma geração para
outra.
(…) “ A linguagem não é a expressão exterior de um estado interior, mas o
SOCIAL nas suas origens, no seu uso e nas suas consequências.” (Gergen y Semin,
1990, pp. 14).
Wittgenstein (1995) propôs-nos também uma concepção
pós-moderna da
linguagem considerando-a como representante de factos empíricos, da realidade da
nossa experiência subjectiva com o meio, pela qual “dá sentido, [tomar sentido] como
fenómeno vivencial (...) [que depende] do modo como as pessoas tratam as coisas do
mundo em que habitam”.
A linguagem e a experiência vivida estão interligadas, como refere Ricoeur (1997) : “ a
linguagem é o modo como os seres humanos vivenciam aquilo que chamamos de
realidade.(...) A experiência expressa é a experiência que se converteu em algo
substancial, vivo e mutativo com o tempo.
Então a linguagem é realidade! Os factos ocorrem, porém, os significados que
atribuímos a essas experiências materiais ou simbólicas constróem a linguagem
enquanto contexto comunicacional das interrelações humanas.
Nesta perspectiva o que sabemos, hoje é que, tal como o conhecimento, os
sentimentos as emoções, os pensamentos e as percepções são aquisições da consciência,
inscritas em determinados contextos. Se a linguagem, que nos forma e influencia as
experiências subjectivas, a fala/narrativa, do quadro circular e co-evolutivo, pacienteanalista- paciente, a relação emergente do trabalho elaborativo e
perlaborativo é
sustentado pela co-representação das palavras, bem como pela interpretação da
transferência e das relações de objecto que se estabelecem no espaço analítico, dizemos
nós, no ecossistema analítico, em que a comunicação se estabelece, pela possibilidade
narrativa do paciente e pela interpretação do analista. Ambos constróem um quadro
motivacional intersubjectivo (Stern, 2006) de “pró cura” da verdade psiquica.
Heidegger (1996) na sua obra “Ser e o Tempo”, demonstrou bem a importância
e a amplitude da línguagem que estabelecemos para compreendermos a nossa
existência, da forma como podemos construir a realidade: “As mudanças no mundo
requerem mudanças de linguagem, tal como as mudanças na linguagem afectam aquilo
que somos capazes de compreender acerca do mundo”
O propósito ontológico e fenomenológico de Heidegger veio pois também trazer
à luz o que significa ser para o homem, ou "como é ser” para o homo sapiens sapiens
que é também homo socius.
Na “sociedade contemporânea do instante”, a estética que caracteriza o que se
vive no mundo global, não é mais do que uma insegurança crescente de medos e de
realidades “estranhas” ou impensáveis ao sujeito pensante.
A proposta da cura analítica, na contemporaneidade, não se baseará, hoje, na
renuncia às verdades cartesianas do pensamento dualista, para um processo de “pró
cura” de verdades plurais, que assentam na tradução simbólica da relação pela
relação, por uma conversação dialógica, no aqui e agora, que recontextualiza o
passado no presente e que se projecta no futuro?
Determo-nos nesta reflexividade recursiva, oferecendo-nos por uma participação
social de legitimização do “estranho”, do incognoscível, quer na sociedade em geral,
quer no ecossistema analítico, por uma atitude relacional constante, uma relação nova,
regular e duradoira, emocionalmente suportada pelo entusiasmo (des)alienante,
propósito incondicional do analista
em
atingir “curas milagrosas” ou respostas
definitivas, (porque a certeza é, por certo a paradoxalidade de sujeito-pensante), a
interpretação constitui-se como um instrumento de transformação social, de
desenvolvimento de mentalidades
e tradutor/ propulsor, gerador de futuro e de
desenvolvimento tecnológico, próprio do processo evolutivo da Humanidade .
Assim, a legitimação e a metalinguagem da relação analítica vai criar novas
realidades, tal como as palavras servem para desenvolver a narrativa e comunicar os
significados das experiências significativas, que se reactualizam no “aqui e agora” da
fala.
O nosso foco tem-se dirigido para o problema da relação entre as palavras e o
mundo, “proposições que se constróem na nossa cabeça”, que são veiculadas pela
linguagem falada e escrita.
O que permanece essencial segundo Berger e Luchumann (2004) (...) “é o
reconhecimento de que todos os universos simbólicos e todas as legitimações são
produtos humanos, cuja existência tem a base na vida dos indivíduos e que não possui
qualquer estatuto empírico separado dessas vidas” (pp. 135) e que o veículo mais
importante para a construção de realidades é o da conversação.
Gergen (1998) escreveu que “o significado de uma palavra não reside na
intenção subjacente, nem está fechada na profundidade do inconsciente. Pelo contrário,
os significados das palavras tal como as acções actualizam-se nas pautas mutantes das
relações”.
Pergunto-me
e,
afirmo
frequentemente,
que
Freud,
se
fosse
nosso
contemporâneo identificar-se-ia, também, com uma visão co-evolutiva do pensamento
e das relações. Aliás, é por nós reconhecida essa sua capacidade e interesse, pois foi-se
tornando óbvio a riqueza e a transformação de algumas das suas conceptualizações do
aparelho psíquico da mente, ideias que foram evoluindo com a prática clínica e com o
debate científico das suas pesquisas.
A obra de Freud foi pioneira relativamente à construção de sistemas de referência
para a compreensão da vida mental e da sociedade em geral. Procurou incessantemente
reflectir a Humanidade, que reside dentro e fora de nós, a partir duma posição crítica e
reflexiva, quer da medicina quer da psicologia, e de outras ciências, como a filosofia, a
literatura, a religião e a política. Observou e analisou, ainda, os diversos contextos
influentes no Conhecimento. Ofereceu-se como um Homem de Cultura implicado no
alívio do sofrimento mental e na transformação social.
A cultura, refere Umberto Eco (2000) (…) “é como um todo, é um fenómeno de
significação e de comunicação, em que a humanidade e a sociedade só existem a partir
do momento em que se estabelecem relações de significação e processos de
comunicação”.
Sabemos, portanto, que a cultura num sentido mais lato é o lugar do
conhecimento intersubjectivo que permite intuir, reconhecer, experimentar ou integrar
hábitos linguísticos, onde os mecanismos inconscientes podem estar por detrás da
produção da “fala”, da narrativa dos sujeitos. A cultura oferece-se, então, como um
contributo para a emergência do campo inter-subjectivo, como um espaço de busca do
Outro, de alteridade recalcada ou perdida.
Nos processos analíticos, em que a Psicanálise se impõe como método de
investigação, estamos sistematicamente a lidar com uma organização mental particular,
idiossincrática, quer do analista, quer do paciente, onde a linguagem desempenha um
papel fulcral na transmissão de experiências subjectivas, de valores culturais do
contexto de referencia de ambos.
A convergência e o encontro bem como a emergência de novas realidades de
análise, emanam da interpretação dos factos psíquicos, os quais pressupõem um sistema
de referenciação que se constrói na e pela relação transferencial/contratransferencial.
Apesar da regra da neutralidade, perguntamo-nos se o banho cultural circundante
não interfere na forma como nós escutamos, compreendemos e comunicamos com os
nossos pacientes, bem como a posição de “não saber”, a postura de investigação
clínica adoptada por Freud, bem como a sua humildade perante a extensão e
desconhecimento do psiquismo do Outro, não corresponderá àquilo que hoje
denominamos como o campo de construção de novas realidades ?
O contexto cultural que se transmite na e pela linguagem, não só com a sua
plurisignificação caleidoscópica não se constituirá também como um quadro de
conotações que serve de cenário para quem selecciona interpretações possíveis para
cada situação ou vivência, que o sujeito analisante traz e leva, para e da, sessão de
psicanálise ?
O nosso psiquismo não é, ele mesmo, um lugar cultural e social privado, onde o
sujeito se afirma por aquilo que “narra” e que “vive ali” no ecossistema analítico ?
O pensamento analítico inaugurou portanto uma nova realidade de “pró cura”
da
consciência
humana,
transferência/contratransferência,
pela
entre
relação
transformadora
paciente-analista-paciente,
o
campo
da
da
intersubjectividade psíquica que se inscreve na apropriação de uma convicção, uma coconstrução, fornecida pelo analista produzida por processos de interpretação do material
narrativo.
No seu trabalho “Construções em Análise” (1937) Freud escreveu:
(…)”Convicção que alcança o mesmo resultado terapêutico que uma recordação
recapturada. O problema de saber quais as circunstâncias em que isso ocorre e de
saber como é possível que aquilo que parece ser um substituto incompleto, produza
todavia um resultado completo…tudo isto constitui assunto para uma investigação
posterior”. (pp. 284).
O paradigma comunicacional da condição humana revela-se assim, como um
lugar extenso, complexo e sempre inacabado, campo intersubjectivo onde a função
terapêutica se desenrola no processo circular da linguagem “entre o projecto e o
introjecto” (Amaral Dias, 1983), que nos empurra para a compreensão cientifica da
cura.
A linguagem, a língua, bem como o dialecto emocional sustentam a relação coevolutiva e recursiva entre o mundo interno e externo dos interlocutores, entre o espaço
simbólico e afectivo do paciente-analista-paciente, permitindo assim desenvolver níveis
de entendimento e de encontro subjectivo, em que a interpretação da experiência
psíquica marca a passagem de modelos dualistas indíviduo-mundo interno (modelo
intrapsíquico, positivista) para um quadro pós-moderno, de análise construtivista,
sociolinguística das relações humanas.
A “neutralidade” acolhedora, o instante esclarecedor, o insight do analista, bem
como a sua empatia e disponibilidade, facilita a transferência do sujeito e é co-criadora
desse processo de confiança mútua, que se instala como mola propulsora de crescimento
psíquico suspenso. Propicia um renascer da capacidade de fazer encontros implícitos na
procura do “estranho”que está dentro do campo intersubjectivo daqueles sujeitos
pensantes ligados por um desejo de verdade e de rêverie.
Na psicanálise relacional contemporânea também conhecida a partir da
Psicologia Psicanalítica do Self formulada por Kohut (1978), a ciência relativista
parece-nos também aproximar-se do construtivismo.
(…) “A psicanálise clássica descobriu o desespero da criança no adulto
profundo – realidade do passado, a psicologia do self descobriu o desespero do adulto
na criança profunda – realidade do futuro”(cit. Roudinesco & Plon, pp.437)
Trabalhamos as nossas atitudes, as relações e as interrelações precoces (Bégoin,
2005) através da linguagem, do vocabulário e das narrativas/falas que utilizamos na
vida. Desde que nascemos, nomeadamente na relação recursiva entre mãe-bébe, emerge
um campo intersubjectivo em que os primeiros investimentos maternos e identificações
primárias se implicam sob o princípio da mutualidade e da reciprocidade. A linguagem
e a expressão dos afectos emana dessa interrelação suficientemente harmoniosa, do
sistema motivacional básico (Stern, 2006) conhecimento implícito primordial, onde a
alegria de viver e de comunicar co-organiza a confiança e a segurança.
Também nos sistemas terapêuticos, no ecossistema analítico onde se privilegia
a segurança de base de modo a constituir um espaço suficientemente protegido das
angustias primordiais de aniquilação o analista e o paciente comunicam entre si por
associação livre e por interpretações do discurso consciente e inconsciente, por uma
atitude de abertura de possibilidades – por uma atitude de indagação partilhada em que
paciente e analista exploram os enigmas da interpretação na construção social
interna.
Inicialmente,
a
linguagem
transformadora
em
Psicanálise
baseou-se
essencialmente nos processos de interpretação das falas, enquanto elaborações de
representações derivadas de factos externos, da percepção à representação.
Actualmente, com o desenvolvimento do pensamento de Bion (1970) como uma
teoria construtivista do pensar (Symington, 1999) encontramos um diálogo interno, vivo
e dinâmico em que:
(…) “A interpretação é um acontecimento actual numa evolução do O, comum
ao analista e ao analisando.”
Com efeito, por uma ética de abertura existencial, procuramos o Outro no
campo dialéctico de observação-transformção intersubjectivo.
Mas não se trata de compreender a pessoa no Outro, nem somente a interacção
do paciente com o analista – a transferência. Parece-nos muito mais complexo, que o
processo de análise das defesas ou das resistências e, da natureza das relações de
objecto que ali se estabelecem. É a comunhão do nosso pensamento, de “dois
aparelhos de pensar e sonhar” é o viver/ co-sentindo a narrativa, que se exprime na
sessão analítica. Aí realizamos a escuta flutuante, co-associativa, co-construtiva,
aprendendo com a experiência, a qual nos tem permitido “alfa-betizar” a técnica
psicanalítica de interpretar os factos psíquicos, com a neutralidade possível, com a
melhor empatia e a menor projecção da nossa visão do mundo.
A visão binocular, bidireccional, como uma acção consciente do analista,
associando-se à intuição como uma variante do insight, bem como a utilização da
linguagem, enquanto veículo da nossa experiência emocional, caminhamos na resolução
do “estranho” da constelação emocional que decorre da natureza do vínculo, que temos
estabelecido na comunicação esclarecedora e transformativa da história encobridora
(sintomas) que cada paciente nos traz para a análise.
É verdade que a teoria do pensamento de Bion acredita na capacidade do analista
constituir-se num contínuum intersubjectivo continente/conteúdo do sofrimento, da
criatividade, procurando a sua transformação na busca da verdade de ambos.
Mas é na atitude: “sem memória, sem desejo ”, um estado de relaxação ou de
rêverie, ou de livre atenção flutuante que criamos o contexto emocional e relacional de
desapego à memória em que a linguagem repõe o histórico-social, na narrativa
ontológica.
A relação nova e diferente que surge no campo da intersubjectividade psíquica,
o seu processo de interpretação coloca-nos numa atitude de amor à verdade. Se no
estado de rêverie do analista ocorrer uma recordação, então essa recordação enquanto
símbolo da realidade psíquica revela-se como relevante.
Bion acrescentou: (…) “Pior do que uma interpretação certa ou errada é a falha
da interpretação não significativa, embora não baste que ela seja significativa (…) Ela
deve ser também verdadeira (…) Não pode existir um resultado genuíno baseado na
falsidade. Portanto o resultado depende da proximidade que a avaliação interpretativa
mantêm com a verdade.”
A capacidade negativa (Bion, 1970) não será também um processo de
identidade simbólica que nos coloca numa posição epistemológica equivalente à
capacidade imaginativa do poeta, do artista, do tecelão que co-constrói uma tapeçaria
para suportar a Vida, um aparelho de pensar os pensamentos?
Para nós, no processo comunicacional,
na interpretação psicanalítica da
narrativa do paciente, emerso no contexto conceptual de Bion, a aventura psicanalítica
centra-se pois, na análise do discurso mental, nas suas dinâmicas disruptivas face à
inveja e à avidez, problemáticas que encontramos em pacientes borderline com difícil
acesso à verdade psíquica.
Encontrando pontos de convergência entre os diferentes quadros conceptuais já
referidos, aquilo que chamamos de Realidade é a nossa particular interpretação no
mundo. Uma forma pessoal, por vezes, intima de entender o mundo objectal – visão do
mundo.
Hans Von Foerster (1982) epistemólogo do pensamento cibernético, relembranos:
Ética é: “ACTUAR sempre de modo a aumentar o número de alternativas”
Estética é:
“Se queres VER, aprende como ACTUAR”
Assim, partindo da capacidade de estruturar o negativo, de ligar, de interrogar a
dor do desamparo mais do que o lugar onde o sujeito resolve, a sessão analítica
constitui-se como um campo de expansão da competência narrativa (Ferro, 2004).
As narrativas que se actualizam pela linguagem, que decorrem das
significações da experiência, porque a conduta humana inscreve intenções, a
interpretação implícita e luminosa de esperança, reenvia-nos para o mundo
intersubjectivo, que é o da palavra e da indagação partilhada, enquanto processo de
construção de realidades alternativas, de busca de verdades reprimidas.
No mundo global de relações efémeras e funcionais, de “amor líquido”
(Baumann, 2006), a interpretação enquanto processo de cura, vive da produção de um
diálogo interno “amoroso”, da consciência reflexiva, de constituição e de legitimização
de identidades, cujas mudanças exigem o nosso afecto inscrito na reconstrução
simbólica dos pensamentos e das falas emergentes. Sem uma linguagem de afectos e a
sua interpretação, não poderíamos pensar o amor, a cooperação, o poder e a inveja tal
como as experiências sociais complexas, como é o caso da psicoterapia ou a
transformação psíquica operada no processo psicanalítico.
A partir desta perspectiva vivemos com os nossos pacientes processos de
conarração transformante (Ferro, 2005), onde a interpretação pela palavra permite a
construção de um espaço de crescimento mutuo, que qualifica, adjectiva e nomeia a
natureza do pensamento e da relação intersubjectiva paciente-analista-paciente, bem
como articula modelos histórico-sociais de referência e, práticas de vida
idiossincráticas.
Então, as mudanças psíquicas não constituirão uma reconstrução dos objectos
internos danificados, que na relação transferencial se vão tornando mais coesos e
mais consistentes” (Alexandre, 2007) que veiculam um sistema de referência, de
reconstrução das relações primordiais geradoras de uma nova narrativa à procura de
novos sentidos, novas realidades?
A mudança psíquica não se constituirá na busca recursiva das “convicções”
subjacentes e/ou irracionais, que residem naqueles enredos das estórias, no “duplo”
emergente nos processos narrativos da fala do paciente?
Para nós, a narrativa psicanalítica é narrativa de uma narrativa (a do paciente) e
resulta de uma organização secundária, consciente, subjectiva, que revela a lógica e o
estilo de pensamento circular daqueles: paciente- analista-paciente.
Como escreveu Anzieu (1979): (…) "a narrativa contada pelo contador fornece
ao narrador a ilusão de trazer um sentido à história”. Não é apenas, organizada por um
fantasma, nem somente histórica, nem mesmo dramática. Ela é desenvolvimento, é
palavra do id e/ou do superego, mas essencialmente palavra do ego... é expressão do
ego, de qualquer forma.
A interpretação revela-se assim como um trabalho enigmático de reflexividade
co-construida, interminável, que nos empurra para a descoberta da qualidade inefável do
sonho, da indagação de Ser Analista na experiência analítica, tal como a competência
narrativa do paciente (Ferro, 2004) instala para ambos, a possibilidade de novas
experiências emocionais, transformadoras de relação: Reparar o passado pela
recontextualização de novos sentidos intersubjectivos, abrir, renovar e preparar o futuro.
A escuta flutuante, a atitude de indagação partilhada, assim como os efeitos
enigmáticos da interpretação da construção social interna do paciente são as dinâmicas
que põem o processo psicanalítico em movimento, que geram impasses, que provocam
intervenções, e, principalmente, empurra-nos para a criatividade, para as metáforas, para
as imagens e as palavras “frescas” de esperança, por vezes quiça para a transgressão
teórica que nos possibilita co-equacionar as mudanças psíquicas do paciente.
Em nosso entendimento, as tendências contemporâneas apontam para uma
mudança epistemológica radical.
A relação psicanalítica começa a aparecer como um encontro interrelacional, que
tem regras próprias e que produz uma "realidade" específica, que não é mais a mera
revelação de uma outra, que estaria latente, mas o desenvolvimento mesmo de
potencialidades da subjetividade e da intersubjetividade dos participantes.
Em SUMA, a psicanálise precisa somar recursos ao invés de substituir estilos,
para fazer face aos desafios de tratar pacientes com distintas especificidades emocionais
e com as mais variadas exigências de análise
A Psicanálise não deverá seguir apenas um estilo conversacional em voga.
Deverá abrir-se, integrando uma posição epistemológica co-evolutiva do Conhecimento,
que se permita inovar como as ciências contemporaneas.
Navegando com a narrativa do poeta Bernardo Soares, heterónimo de Fernando Pessoa,
no seu livro Desassossego (2001) terminamos a pensar com ele:
…“ Mas como se faz, então? Não fazendo. Sonhando. Cumprindo os nossos
deveres quotidianos, mas vivendo, simultaneamente, na imaginação. Viajando
imenso na imaginação”… (pp. 29).
Porém, na co-evolução da e na escuta do Outro !
Ana Marques Lito
[email protected]
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