- O Enigma da InterpretaçãoConstruções e (Re)construções de Realidades, no Processo Analítico. 1 Ana Marques Lito – SPP O tópico central da presente comunicação é o valor e o lugar da interpretação, enquanto processo de mudança psíquica, “de insight”, inspirado na hermenêutica, latus sensus, no campo intersubjectivo de (re)construção de realidades alternativas, internas e externas com pacientes de difícil acesso à simbolização e à verdade psíquica. Resulta de uma reflexão a que nos temos vindo a dedicar e integrar um trabalho em curso. A partir da nossa prática clínica com famílias, sob a égide da epistemologia cibernética de 2ª ordem e da inscrição da função psicanalítica da personalidade (Bion, 1963) como analista, procuramos pensar a relação dinâmica, circular e colaborativa de expansão do pensamento, entre o paciente e o analista, como processo de co-elaboração simbólica e de transformação dos processos mentais, no alívio da dor mental e a sua interferência no “bem estar” pessoal e social. A sessão analítica é por excelência o locus da interpretação. Porque chamar enigma à interpretação? Aristóteles fez a comparação, dizendo que o enigma serve para exprimir factos em condições impossíveis (cf. Poética, 22; Retórica, 3.2, 10), o que constitui um género 1 Comunicação apresentada no II Congresso Luso-Brasileiro de Psicanálise, São Salvador da Baía, Novembro 2007. adequado à compreensão de um facto desconhecido através de um código conhecido que, uma vez compreendido, permitirá a revelação. Partindo quase sempre de uma pergunta, directa ou indirecta, o enigma constrói-se com uma descrição nunca explícita de um facto ou de uma situação, bloqueando desde logo a possibilidade de resposta imediata, por força da contradição que deve presidir aos elementos que o constituem. Tem sido a partir da reflexão do trabalho clínico, do seu impacto enquanto processo de articulação de realidades e de paradigmas, que nos temos colocado nesta aventura de equacionar os processos interpretativos como instrumento de mudança psíquica e de construir pontes entre diferentes estilos e modalidades de tratamento. Para nós, o acto de interpretar, constituiu-se desde sempre como o verso e o reverso de um processo enigmático, de fascínio que, inscrevendo não só um contexto específico que tem estimulado a nossa dimensão subjectiva de desafio à realidade, de explicação do incompreensível ou daquilo que é ambíguo, tem também proporcionado, pelo recurso a metáforas ou “a sentidos figurados” de realidades específicas, um processo criativo de “pró cura” de novos sentidos, porque não o encontro com “unheimlich” (o estranho) – que Freud nos propõe num dos seus trabalhos de 1919. Freud (1900) a partir da descoberta da mensagem oculta dos sonhos (sonho de Irma), desenvolveu a orientação hermenêutica da análise dos sonhos, na busca do desejo recalcado, inconsciente e do fantasma em que se apoia, mas foi naquele encontro com unheimlich, a procura do “duplo” que inscreveu nos mecanismos neuróticos de compulsão à repetição, no pensamento mágico, na omnipotência do pensamento racionalista bem como a superação da vivência do complexo de castração, que trabalhou o valor da interpretação, reenviando-nos para um lugar/espaço, específico e seguro, que possibilitasse uma comunicação do analista para o paciente, que pudesse realizar-se por uma decifração, uma passagem, uma transposição entre o objecto e aquilo que se ia dizendo sobre ele. Freud (1919) escreveu nesse artigo: (...) “refiro-me a que um estranho efeito...quando se extingue a distinção entre imaginação e realidade, como quando algo que até então considerávamos imaginário surge diante de nós na realidade, ou quando o símbolo assume as plenas funções das coisas que simboliza, e assim por diante.” (pp. 261) Pelo processo de interpretação do “estranho” o analista propõe uma substituição metafórica, uma analogia entre os significantes que implica um conhecimento da vivência subjectiva do sujeito. Estes aspectos técnicos da clínica vêm pois, produzir uma mudança radical na Psicologia e na Psiquiatria, a qual eram então na sua época, puramente descritivas. Assim, a Interpretação foi para Freud um processo de “cura” e de “pró cura” e para nós um tema de eleição, senão de encantamento, porque tem sido o resultado de uma memória, de um percurso e também um projecto de dignificação profissional. Enquanto sujeitos catalisadores de expansão de pensamentos, de consciências de si, revelou-se como um instrumento de construção de realidades alternativas, um acto espontâneo e criativo, mas reaprendido pelo conhecimento da alteridade analítica. Trata-se de um processo auto-reflexivo que nos tem possibilitado a liberdade de Ser/Estar na relação com o paciente.Um processo fecundo e de encontro simbólico, em que, outrora per vie di porre do nosso analista e, actualmente como analista, também per vie di levare , interferimos na cadeia associativa do paciente, criando, assim, uma dupla intersubjectiva. Não podemos deixar de referir que, também temos tido a influência das ideias contemporâneas de Gergen, (1998), Anderson (1999), Berger e Luchumann (2004), que consideram o paradigma linguístico como um cenário de fundo de construção de realidades, que serve de ecrã ao inconsciente colectivo. A nossa reflexão busca partilhar convosco este percurso que temos desenvolvido no trabalho clínico de escuta flutuante do sofrimento humano que, para nós se organiza em torno da ética do cuidar e de uma prática dialógica, conversacional que é sempre interpretativa de realidades. Para estes autores, bem como para nós próprios, ao encontrarmo-nos com a Psicanálise depois de um tempo de formação e trabalho clínico com problemáticas de toxicodependência, onde a dor mental inscreve o adormecimento dos pensamentos e o silêncio dos afectos e das emoções, algumas das dimensões da análise das narrativas emergentes do Construcionismo Social foram muito úteis na revelação de um campo subjectivo, no eixo dos aspectos “comunicacionais” que estão envolvidos na interacção transferência/contransferência. Hoje, neste caminho psicodinâmico, conceptualizamos o acto interpretativo, como um instrumento específico da técnica analítica, que não sendo arbitrária nem imposta, se realiza pela procura do “negativo”, da ausência, na semântica da linguagem do psiquismo que se revela com a possibilidade de pensar a diferença, a experiência de desamparo e de estranheza que os nossos pacientes trazem com as suas queixas incompreensíveis para eles, e tantas vezes para nós. A interpretação assume-se como um instrumento de interrogação, entre os aspectos não revelados, não construídos coincidentemente por esses actores sociais, que produzem representações e realizam a construção social íntima de realidades. O desconhecido, a “pró cura” do carácter de incompletude do “estranho” que provém de algo familiar que foi reprimido, que habita em nós, não será o trabalho criativo do processo analítico, lugar aonde o inconsciente está vazio à espera de significação? Para nós a Realidade enquanto entidade independente e real, em si mesma, não existe. Ela é apenas construída pela objectivação de processos de comunicação e de significações subjectivas que dão sentido e coerência à experiência humana que pode ser acumulada e conservada. Contudo, é pela definição do campo, que a acção semântica, a interpretação dos símbolos e dos signos, que se constrói e se desconstrói conhecimento, mas é pela linguagem que ele será transmitido de uma geração para outra. (…) “ A linguagem não é a expressão exterior de um estado interior, mas o SOCIAL nas suas origens, no seu uso e nas suas consequências.” (Gergen y Semin, 1990, pp. 14). Wittgenstein (1995) propôs-nos também uma concepção pós-moderna da linguagem considerando-a como representante de factos empíricos, da realidade da nossa experiência subjectiva com o meio, pela qual “dá sentido, [tomar sentido] como fenómeno vivencial (...) [que depende] do modo como as pessoas tratam as coisas do mundo em que habitam”. A linguagem e a experiência vivida estão interligadas, como refere Ricoeur (1997) : “ a linguagem é o modo como os seres humanos vivenciam aquilo que chamamos de realidade.(...) A experiência expressa é a experiência que se converteu em algo substancial, vivo e mutativo com o tempo. Então a linguagem é realidade! Os factos ocorrem, porém, os significados que atribuímos a essas experiências materiais ou simbólicas constróem a linguagem enquanto contexto comunicacional das interrelações humanas. Nesta perspectiva o que sabemos, hoje é que, tal como o conhecimento, os sentimentos as emoções, os pensamentos e as percepções são aquisições da consciência, inscritas em determinados contextos. Se a linguagem, que nos forma e influencia as experiências subjectivas, a fala/narrativa, do quadro circular e co-evolutivo, pacienteanalista- paciente, a relação emergente do trabalho elaborativo e perlaborativo é sustentado pela co-representação das palavras, bem como pela interpretação da transferência e das relações de objecto que se estabelecem no espaço analítico, dizemos nós, no ecossistema analítico, em que a comunicação se estabelece, pela possibilidade narrativa do paciente e pela interpretação do analista. Ambos constróem um quadro motivacional intersubjectivo (Stern, 2006) de “pró cura” da verdade psiquica. Heidegger (1996) na sua obra “Ser e o Tempo”, demonstrou bem a importância e a amplitude da línguagem que estabelecemos para compreendermos a nossa existência, da forma como podemos construir a realidade: “As mudanças no mundo requerem mudanças de linguagem, tal como as mudanças na linguagem afectam aquilo que somos capazes de compreender acerca do mundo” O propósito ontológico e fenomenológico de Heidegger veio pois também trazer à luz o que significa ser para o homem, ou "como é ser” para o homo sapiens sapiens que é também homo socius. Na “sociedade contemporânea do instante”, a estética que caracteriza o que se vive no mundo global, não é mais do que uma insegurança crescente de medos e de realidades “estranhas” ou impensáveis ao sujeito pensante. A proposta da cura analítica, na contemporaneidade, não se baseará, hoje, na renuncia às verdades cartesianas do pensamento dualista, para um processo de “pró cura” de verdades plurais, que assentam na tradução simbólica da relação pela relação, por uma conversação dialógica, no aqui e agora, que recontextualiza o passado no presente e que se projecta no futuro? Determo-nos nesta reflexividade recursiva, oferecendo-nos por uma participação social de legitimização do “estranho”, do incognoscível, quer na sociedade em geral, quer no ecossistema analítico, por uma atitude relacional constante, uma relação nova, regular e duradoira, emocionalmente suportada pelo entusiasmo (des)alienante, propósito incondicional do analista em atingir “curas milagrosas” ou respostas definitivas, (porque a certeza é, por certo a paradoxalidade de sujeito-pensante), a interpretação constitui-se como um instrumento de transformação social, de desenvolvimento de mentalidades e tradutor/ propulsor, gerador de futuro e de desenvolvimento tecnológico, próprio do processo evolutivo da Humanidade . Assim, a legitimação e a metalinguagem da relação analítica vai criar novas realidades, tal como as palavras servem para desenvolver a narrativa e comunicar os significados das experiências significativas, que se reactualizam no “aqui e agora” da fala. O nosso foco tem-se dirigido para o problema da relação entre as palavras e o mundo, “proposições que se constróem na nossa cabeça”, que são veiculadas pela linguagem falada e escrita. O que permanece essencial segundo Berger e Luchumann (2004) (...) “é o reconhecimento de que todos os universos simbólicos e todas as legitimações são produtos humanos, cuja existência tem a base na vida dos indivíduos e que não possui qualquer estatuto empírico separado dessas vidas” (pp. 135) e que o veículo mais importante para a construção de realidades é o da conversação. Gergen (1998) escreveu que “o significado de uma palavra não reside na intenção subjacente, nem está fechada na profundidade do inconsciente. Pelo contrário, os significados das palavras tal como as acções actualizam-se nas pautas mutantes das relações”. Pergunto-me e, afirmo frequentemente, que Freud, se fosse nosso contemporâneo identificar-se-ia, também, com uma visão co-evolutiva do pensamento e das relações. Aliás, é por nós reconhecida essa sua capacidade e interesse, pois foi-se tornando óbvio a riqueza e a transformação de algumas das suas conceptualizações do aparelho psíquico da mente, ideias que foram evoluindo com a prática clínica e com o debate científico das suas pesquisas. A obra de Freud foi pioneira relativamente à construção de sistemas de referência para a compreensão da vida mental e da sociedade em geral. Procurou incessantemente reflectir a Humanidade, que reside dentro e fora de nós, a partir duma posição crítica e reflexiva, quer da medicina quer da psicologia, e de outras ciências, como a filosofia, a literatura, a religião e a política. Observou e analisou, ainda, os diversos contextos influentes no Conhecimento. Ofereceu-se como um Homem de Cultura implicado no alívio do sofrimento mental e na transformação social. A cultura, refere Umberto Eco (2000) (…) “é como um todo, é um fenómeno de significação e de comunicação, em que a humanidade e a sociedade só existem a partir do momento em que se estabelecem relações de significação e processos de comunicação”. Sabemos, portanto, que a cultura num sentido mais lato é o lugar do conhecimento intersubjectivo que permite intuir, reconhecer, experimentar ou integrar hábitos linguísticos, onde os mecanismos inconscientes podem estar por detrás da produção da “fala”, da narrativa dos sujeitos. A cultura oferece-se, então, como um contributo para a emergência do campo inter-subjectivo, como um espaço de busca do Outro, de alteridade recalcada ou perdida. Nos processos analíticos, em que a Psicanálise se impõe como método de investigação, estamos sistematicamente a lidar com uma organização mental particular, idiossincrática, quer do analista, quer do paciente, onde a linguagem desempenha um papel fulcral na transmissão de experiências subjectivas, de valores culturais do contexto de referencia de ambos. A convergência e o encontro bem como a emergência de novas realidades de análise, emanam da interpretação dos factos psíquicos, os quais pressupõem um sistema de referenciação que se constrói na e pela relação transferencial/contratransferencial. Apesar da regra da neutralidade, perguntamo-nos se o banho cultural circundante não interfere na forma como nós escutamos, compreendemos e comunicamos com os nossos pacientes, bem como a posição de “não saber”, a postura de investigação clínica adoptada por Freud, bem como a sua humildade perante a extensão e desconhecimento do psiquismo do Outro, não corresponderá àquilo que hoje denominamos como o campo de construção de novas realidades ? O contexto cultural que se transmite na e pela linguagem, não só com a sua plurisignificação caleidoscópica não se constituirá também como um quadro de conotações que serve de cenário para quem selecciona interpretações possíveis para cada situação ou vivência, que o sujeito analisante traz e leva, para e da, sessão de psicanálise ? O nosso psiquismo não é, ele mesmo, um lugar cultural e social privado, onde o sujeito se afirma por aquilo que “narra” e que “vive ali” no ecossistema analítico ? O pensamento analítico inaugurou portanto uma nova realidade de “pró cura” da consciência humana, transferência/contratransferência, pela entre relação transformadora paciente-analista-paciente, o campo da da intersubjectividade psíquica que se inscreve na apropriação de uma convicção, uma coconstrução, fornecida pelo analista produzida por processos de interpretação do material narrativo. No seu trabalho “Construções em Análise” (1937) Freud escreveu: (…)”Convicção que alcança o mesmo resultado terapêutico que uma recordação recapturada. O problema de saber quais as circunstâncias em que isso ocorre e de saber como é possível que aquilo que parece ser um substituto incompleto, produza todavia um resultado completo…tudo isto constitui assunto para uma investigação posterior”. (pp. 284). O paradigma comunicacional da condição humana revela-se assim, como um lugar extenso, complexo e sempre inacabado, campo intersubjectivo onde a função terapêutica se desenrola no processo circular da linguagem “entre o projecto e o introjecto” (Amaral Dias, 1983), que nos empurra para a compreensão cientifica da cura. A linguagem, a língua, bem como o dialecto emocional sustentam a relação coevolutiva e recursiva entre o mundo interno e externo dos interlocutores, entre o espaço simbólico e afectivo do paciente-analista-paciente, permitindo assim desenvolver níveis de entendimento e de encontro subjectivo, em que a interpretação da experiência psíquica marca a passagem de modelos dualistas indíviduo-mundo interno (modelo intrapsíquico, positivista) para um quadro pós-moderno, de análise construtivista, sociolinguística das relações humanas. A “neutralidade” acolhedora, o instante esclarecedor, o insight do analista, bem como a sua empatia e disponibilidade, facilita a transferência do sujeito e é co-criadora desse processo de confiança mútua, que se instala como mola propulsora de crescimento psíquico suspenso. Propicia um renascer da capacidade de fazer encontros implícitos na procura do “estranho”que está dentro do campo intersubjectivo daqueles sujeitos pensantes ligados por um desejo de verdade e de rêverie. Na psicanálise relacional contemporânea também conhecida a partir da Psicologia Psicanalítica do Self formulada por Kohut (1978), a ciência relativista parece-nos também aproximar-se do construtivismo. (…) “A psicanálise clássica descobriu o desespero da criança no adulto profundo – realidade do passado, a psicologia do self descobriu o desespero do adulto na criança profunda – realidade do futuro”(cit. Roudinesco & Plon, pp.437) Trabalhamos as nossas atitudes, as relações e as interrelações precoces (Bégoin, 2005) através da linguagem, do vocabulário e das narrativas/falas que utilizamos na vida. Desde que nascemos, nomeadamente na relação recursiva entre mãe-bébe, emerge um campo intersubjectivo em que os primeiros investimentos maternos e identificações primárias se implicam sob o princípio da mutualidade e da reciprocidade. A linguagem e a expressão dos afectos emana dessa interrelação suficientemente harmoniosa, do sistema motivacional básico (Stern, 2006) conhecimento implícito primordial, onde a alegria de viver e de comunicar co-organiza a confiança e a segurança. Também nos sistemas terapêuticos, no ecossistema analítico onde se privilegia a segurança de base de modo a constituir um espaço suficientemente protegido das angustias primordiais de aniquilação o analista e o paciente comunicam entre si por associação livre e por interpretações do discurso consciente e inconsciente, por uma atitude de abertura de possibilidades – por uma atitude de indagação partilhada em que paciente e analista exploram os enigmas da interpretação na construção social interna. Inicialmente, a linguagem transformadora em Psicanálise baseou-se essencialmente nos processos de interpretação das falas, enquanto elaborações de representações derivadas de factos externos, da percepção à representação. Actualmente, com o desenvolvimento do pensamento de Bion (1970) como uma teoria construtivista do pensar (Symington, 1999) encontramos um diálogo interno, vivo e dinâmico em que: (…) “A interpretação é um acontecimento actual numa evolução do O, comum ao analista e ao analisando.” Com efeito, por uma ética de abertura existencial, procuramos o Outro no campo dialéctico de observação-transformção intersubjectivo. Mas não se trata de compreender a pessoa no Outro, nem somente a interacção do paciente com o analista – a transferência. Parece-nos muito mais complexo, que o processo de análise das defesas ou das resistências e, da natureza das relações de objecto que ali se estabelecem. É a comunhão do nosso pensamento, de “dois aparelhos de pensar e sonhar” é o viver/ co-sentindo a narrativa, que se exprime na sessão analítica. Aí realizamos a escuta flutuante, co-associativa, co-construtiva, aprendendo com a experiência, a qual nos tem permitido “alfa-betizar” a técnica psicanalítica de interpretar os factos psíquicos, com a neutralidade possível, com a melhor empatia e a menor projecção da nossa visão do mundo. A visão binocular, bidireccional, como uma acção consciente do analista, associando-se à intuição como uma variante do insight, bem como a utilização da linguagem, enquanto veículo da nossa experiência emocional, caminhamos na resolução do “estranho” da constelação emocional que decorre da natureza do vínculo, que temos estabelecido na comunicação esclarecedora e transformativa da história encobridora (sintomas) que cada paciente nos traz para a análise. É verdade que a teoria do pensamento de Bion acredita na capacidade do analista constituir-se num contínuum intersubjectivo continente/conteúdo do sofrimento, da criatividade, procurando a sua transformação na busca da verdade de ambos. Mas é na atitude: “sem memória, sem desejo ”, um estado de relaxação ou de rêverie, ou de livre atenção flutuante que criamos o contexto emocional e relacional de desapego à memória em que a linguagem repõe o histórico-social, na narrativa ontológica. A relação nova e diferente que surge no campo da intersubjectividade psíquica, o seu processo de interpretação coloca-nos numa atitude de amor à verdade. Se no estado de rêverie do analista ocorrer uma recordação, então essa recordação enquanto símbolo da realidade psíquica revela-se como relevante. Bion acrescentou: (…) “Pior do que uma interpretação certa ou errada é a falha da interpretação não significativa, embora não baste que ela seja significativa (…) Ela deve ser também verdadeira (…) Não pode existir um resultado genuíno baseado na falsidade. Portanto o resultado depende da proximidade que a avaliação interpretativa mantêm com a verdade.” A capacidade negativa (Bion, 1970) não será também um processo de identidade simbólica que nos coloca numa posição epistemológica equivalente à capacidade imaginativa do poeta, do artista, do tecelão que co-constrói uma tapeçaria para suportar a Vida, um aparelho de pensar os pensamentos? Para nós, no processo comunicacional, na interpretação psicanalítica da narrativa do paciente, emerso no contexto conceptual de Bion, a aventura psicanalítica centra-se pois, na análise do discurso mental, nas suas dinâmicas disruptivas face à inveja e à avidez, problemáticas que encontramos em pacientes borderline com difícil acesso à verdade psíquica. Encontrando pontos de convergência entre os diferentes quadros conceptuais já referidos, aquilo que chamamos de Realidade é a nossa particular interpretação no mundo. Uma forma pessoal, por vezes, intima de entender o mundo objectal – visão do mundo. Hans Von Foerster (1982) epistemólogo do pensamento cibernético, relembranos: Ética é: “ACTUAR sempre de modo a aumentar o número de alternativas” Estética é: “Se queres VER, aprende como ACTUAR” Assim, partindo da capacidade de estruturar o negativo, de ligar, de interrogar a dor do desamparo mais do que o lugar onde o sujeito resolve, a sessão analítica constitui-se como um campo de expansão da competência narrativa (Ferro, 2004). As narrativas que se actualizam pela linguagem, que decorrem das significações da experiência, porque a conduta humana inscreve intenções, a interpretação implícita e luminosa de esperança, reenvia-nos para o mundo intersubjectivo, que é o da palavra e da indagação partilhada, enquanto processo de construção de realidades alternativas, de busca de verdades reprimidas. No mundo global de relações efémeras e funcionais, de “amor líquido” (Baumann, 2006), a interpretação enquanto processo de cura, vive da produção de um diálogo interno “amoroso”, da consciência reflexiva, de constituição e de legitimização de identidades, cujas mudanças exigem o nosso afecto inscrito na reconstrução simbólica dos pensamentos e das falas emergentes. Sem uma linguagem de afectos e a sua interpretação, não poderíamos pensar o amor, a cooperação, o poder e a inveja tal como as experiências sociais complexas, como é o caso da psicoterapia ou a transformação psíquica operada no processo psicanalítico. A partir desta perspectiva vivemos com os nossos pacientes processos de conarração transformante (Ferro, 2005), onde a interpretação pela palavra permite a construção de um espaço de crescimento mutuo, que qualifica, adjectiva e nomeia a natureza do pensamento e da relação intersubjectiva paciente-analista-paciente, bem como articula modelos histórico-sociais de referência e, práticas de vida idiossincráticas. Então, as mudanças psíquicas não constituirão uma reconstrução dos objectos internos danificados, que na relação transferencial se vão tornando mais coesos e mais consistentes” (Alexandre, 2007) que veiculam um sistema de referência, de reconstrução das relações primordiais geradoras de uma nova narrativa à procura de novos sentidos, novas realidades? A mudança psíquica não se constituirá na busca recursiva das “convicções” subjacentes e/ou irracionais, que residem naqueles enredos das estórias, no “duplo” emergente nos processos narrativos da fala do paciente? Para nós, a narrativa psicanalítica é narrativa de uma narrativa (a do paciente) e resulta de uma organização secundária, consciente, subjectiva, que revela a lógica e o estilo de pensamento circular daqueles: paciente- analista-paciente. Como escreveu Anzieu (1979): (…) "a narrativa contada pelo contador fornece ao narrador a ilusão de trazer um sentido à história”. Não é apenas, organizada por um fantasma, nem somente histórica, nem mesmo dramática. Ela é desenvolvimento, é palavra do id e/ou do superego, mas essencialmente palavra do ego... é expressão do ego, de qualquer forma. A interpretação revela-se assim como um trabalho enigmático de reflexividade co-construida, interminável, que nos empurra para a descoberta da qualidade inefável do sonho, da indagação de Ser Analista na experiência analítica, tal como a competência narrativa do paciente (Ferro, 2004) instala para ambos, a possibilidade de novas experiências emocionais, transformadoras de relação: Reparar o passado pela recontextualização de novos sentidos intersubjectivos, abrir, renovar e preparar o futuro. A escuta flutuante, a atitude de indagação partilhada, assim como os efeitos enigmáticos da interpretação da construção social interna do paciente são as dinâmicas que põem o processo psicanalítico em movimento, que geram impasses, que provocam intervenções, e, principalmente, empurra-nos para a criatividade, para as metáforas, para as imagens e as palavras “frescas” de esperança, por vezes quiça para a transgressão teórica que nos possibilita co-equacionar as mudanças psíquicas do paciente. Em nosso entendimento, as tendências contemporâneas apontam para uma mudança epistemológica radical. A relação psicanalítica começa a aparecer como um encontro interrelacional, que tem regras próprias e que produz uma "realidade" específica, que não é mais a mera revelação de uma outra, que estaria latente, mas o desenvolvimento mesmo de potencialidades da subjetividade e da intersubjetividade dos participantes. Em SUMA, a psicanálise precisa somar recursos ao invés de substituir estilos, para fazer face aos desafios de tratar pacientes com distintas especificidades emocionais e com as mais variadas exigências de análise A Psicanálise não deverá seguir apenas um estilo conversacional em voga. Deverá abrir-se, integrando uma posição epistemológica co-evolutiva do Conhecimento, que se permita inovar como as ciências contemporaneas. Navegando com a narrativa do poeta Bernardo Soares, heterónimo de Fernando Pessoa, no seu livro Desassossego (2001) terminamos a pensar com ele: …“ Mas como se faz, então? Não fazendo. Sonhando. Cumprindo os nossos deveres quotidianos, mas vivendo, simultaneamente, na imaginação. Viajando imenso na imaginação”… (pp. 29). Porém, na co-evolução da e na escuta do Outro ! Ana Marques Lito [email protected] Bibliografia Alexandre, M. F. (2007). Mudanças Psíquicas no Processo Terapêutico: o papel do narcisismo. Lisboa: Fenda. Amaral Dias, C. (1983). Espaço e Relação Terapêutica. Coimbra: Coimbra Editora, Lda. Amaral Dias, C. (2003). Modelos de Interpretação em Psicanálise. Coimbra: Almedina.Anderson, H. (1999). Conversación, lenguage y posibilidades: un enfoque posmoderno de la terapia. Buenos Aires: Amorrortu editores. Anzieu, D. e AL (1979). Psicanálise e Linguagem do Corpo à Fala. Lisboa: Moraes Editores. Baumann, Z, (2006). Amor Líquido. Lisboa: Relógio D’Água Editores. Bégoin, J. (2005). Do Traumatismo do Nascimento à Emoção Estética. Lisboa: Fenda. Berger, P. L.; Luckman, T. ( 2004). A Construção Social da Realidade: um livro sobre a sociologia do conhecimento. Lisboa: Dinalivro. Bion, W. (1963). Elementos em Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. Bion, W. (1970), Atenção e Interpretação. Rio de Janeiro: Imago. Eco, U. (2000). Tratado geral de semiótica. São Paulo: Perspectiva. Ferro, A. (2004). Facteurs de maladie, facteurs de guérison. Paris: Press Edition. Ferro, A. (2006). Micro transformations, macro transformations et transformations narratives. In: Psychanalyse en Europe, Bull. 60, 15-29. Foerster, H. (1982). Observing Systems. Barcelona: Editorial Gedisa. Freud, S. (1900). A Interpretaçao dos Sonhos. Rio de Janeiro: Imago. Freud, S. (1919). O estranho. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. XVII, Rio de Janeiro, Imago. Freud, S. (1937). Análise terminável e interminável. Obras Psicológicas Completas – Edição Standard Brasileira. São Paulo: Imago. Gergen, K. J. & Kaye, J. (1998). Além da narrativa na negociação do sentido terapêutico (C. O. Dornelles, Trad.). Em S. Mcnamee & K. J. Gergen (Orgs.), A terapia como construção social (pp. 201-222). Porto Alegre: Artes Médicas. Gergen, K.; Semin, G. (1990). Everyday Understanding in Science and Daily Life, in Everyday Understanding. Social and Scientific Implications. Edited by K.J.Gergen and G.R.Semin, pp. 1-18. London: Sage. Green, A. (1976). Le concept de limite. In La folie privée – Psychanalyse dês cas limites, pp. 103-140. Paris: Éditions Gallimard. Heidegger, M. (1996). Ser e tempo. Petrópolis: Vozes. Kohut, H. (1978). The disorders of the self and their treatment: An outline. International Journal of Psychoanalysis, 59 (4), 413-425. Ricoeur, P. (1997). Tempo e narrativa (tomo III). São Paulo: Papirus. Roudinesco, E.; Plon, M. ( 2000). Dicionário de Psicanálise. Sintra: Editorial Inquérito. Soares, B. (2001). O Livro do Desassossego. Lisboa: Assírio & Alvim. Stern, D. (2006). O Momento Presente na Psicoterapia e na vida de todos os dias. Lisboa: Climepsi. Symington, J.; Symington, N. (1999). O Pensamento Clínico de Wilfred Bion. Lisboa: Climepsi. Wittgenstein, L. (1995). Tratado Lógico-Filosófico. Investigações Filosóficas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Wittgenstein, L. (1980). Cultura e Valor. Lisboa. Edições 70.