O GOVERNO DOS SEXOS

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O GOVERNO DOS SEXOS
De repente, o nu apareceu na televisão brasileira. Nos fil mes, senados e telenovelas, as
relações heterossexuais tor naram-se cada vez mais explícitas e menos sugeridas. Práti cas
sexuais minoritárias, como o homoerotismo, o sadoma soquismo e o incesto deixaram o
espaço do segredo e ga nharam o da exibição. Quase ao mesmo tempo, ministros de Estado
caem porque tornam públicos seus pretensos amores, e o Ministério da Justiça, respaldado
pelo próprio presidente, restabelece a censura classificatória. Afinal, o Brasil, para quem
governa, é puritano ou liberal? A socieda de brasileira, sexualmente falando, é
conservadora, moder na ou anômica?
Evidentemente, qualquer resposta genérica seria im prudente. Vivemos na era das
relativizações e do repúdio a qualquer afirmação individual sobre a natureza dos predica
dos humanos. O que vale para um indivíduo ou grupo social x não faz sentido quando
aplicado a outros grupos ou indi víduos. O Brasil é um universo de galáxias morais e,
depen dendo do ângulo observado, pode-se encontrar nele tudo ou quase tudo em matéria
de subcultura sexual. Resta, por tanto, extrair destes episódios o que, à primeira vista, apa
rece sem ambigüidades, ou seja, o que pensam OS governan tes do sexo dos governados.
Antes, entretanto, uma breve consideração introdutó ria. Toda cultura cria seus sistemas
morais em função de ideais históricos. Por conseguinte, nenhuma moral sexual é definitiva.
Mas justamente porque entendemos que as mo rais sexuais são contingentes, estabelecemos
códigos de condutas e sentimentos que, em cada época, dizem o que é permitido, o que é
proibido e o que é indiferente diante das
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regras morais. Por relação a estes códigos, as culturas são mais ou menos conservadoras ou
liberais. Urna cultura con servadora é aquela que não tolera as condutas socialmente
desaprovadas e procura impedir que os indivíduos conhe çarn o que se considera
moralmente transgressor ou des viante. A moral conservadora é basicamente negativa e vol
tada para a defesa da tradição. Sua maior expressão é o mo ralismo, isto é, a atitude
intolerante que busca justificar o status quo recorrendo ao argumento de que o que é bom
tem que continuar sendo, pois assim ordena a “natureza” ou a “vontade divina”.
Ao contrário desta moral, a moral liberal entende que o respeito pelos ideais culturais e a
desobediência consenti da a certas leis não significam intolerância ou desrespeito pela
diversidade dos estilos de vida possíveis. Deste prisma, as preferências sexuais distintas dos
ideais da maioria devem ser tratadas com respeito e solidariedade e não com menosprezo,
zombaria, perseguição ou piedade, o que não é melhor. Sabendo que o minoritário ou
dissidente de hoje poderá ter sido ou poderá vir a ser o dominante de hoje ou amanhã, a
cultura liberal prefere orientar-se pelo princípio ético-político que inspirou a grande
revolução norte-ameri cana: “Todos os homens têm direito à Vida, à Liberdade e à Busca
da Felicidade.” No cotidiano, esta injunção pode tra duzir-se por algo mais ou menos assim:
se a Vida e a Liber dade são um problema de todos, e por todos deve ser discu tido e
resolvido, a Busca da Felicidade é problema de cada um. Só a cada uni compete decidir
qual a melhor maneira de ser feliz, desde que não atente contra a vida e a beleza do outro,
fazendo-o sofrer física e moralmente.
A obediência a este princípio caracteriza o ethos indi vidualista e democrático da tradição
ocidental. A moral li beral que nele se baseia condena, deste modo, tanto o mo ralismo
conservador quanto a permissividade. O primeiro porque tenta fossilizar os ideais morais
afirmando que tudo é proibido, exceto aquilo que “eu prefiro”; a segunda por que, a
pretexto de revolucionar a tradição, procura afirmar que tudo é permitido porque “nada nem
ninguém tem o di reito de proibir o que quer que seja”. Historicamente, do moralismo
conservador nasceram a intolerância e a crueldade; da permissividade nasceu a monstruosidade. Pois, neste último caso, quando
deixamos o sonho florido do “é proibido proibir” para a prática do “nada é proibido, faça o
que bem entender”, ganha o mais violento, e o resultado são os gulags, os campos de
extermínio, ou, para lavar a roupa em casa, os assassinatos de crianças ou de travestis,
metra lhados, degolados e incendiados com gasolina, nas valas imundas dos sujos
subúrbios cariocas.
Tendo em vista estes princípios liberais, vejamos como podem ser observadas as atitudes
do governo e das emisso ras de televisão. Ao abordarem a sexualidade, nos termos
referidos, as cadeias de televisão não escondem o interesse que comanda o espetáculo:
deliberadamente pensam mani pular nossa vida privada com vista à disputa de mercado.
Vendem o que acham vendável, pouco importando os meios e os resultados. Até aí, tudo
seria mais ou menos inocente, não fosse o caldo de cultura moral existente em nosso país.
Uma andorinha só não faz verão. Acontece que, produzindo sexo televisivo, a televisão
dança conforme a música. Entra no compasso atual do “tudo é bom contanto que me dê
lucro”. Proibido é apenas o que é ineficiente economica mente. Por acaso, um competente
arquiteto não disse re centemente que o Rio só sairá da falência quando souber explorar o
potencial de sexo e sol que possui? Abençoado por natureza, o Rio recebeu de mão beijada
os dois S que fazem a alegria dos turistas. Basta, então, incrementar o ter ceiro S (serviços)
para que a alegria se estenda aos donos dos hotéis e aos donos da noite. Portanto, do ponto
de vista da lógica empresarial, nada a acrescentar. A cada público a promessa do gozo
possível ou merecido. Nas ruas, calçadas e portas de hotéis ou boates, o sexo turístico, para
quem tem dólares; no aconchego dos lares, canalhice, estupro, in cesto, sadomasoquismo e
preconceito em dose dupla, para quem só tem cruzeiros a oferecer. Quem vai ser
mercadoria de turista ou quem vai consumir sordidez nos horários no bres, estes não são
problemas para nossos eficientes e dinâ micos empresários.
Do outro lado está o Estado, que também concorre para a produção de moral sexual, seja
transformando fritu ra política em culto à fidelidade monogâmica e conjugal,
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seja combatendo por decretos o “dinamismo” inescrupulo so da indústria cultural que tanto
incentiva. As eventuais perdas em dinheiro de uns são compensadas com os lucros políticos
de outros. Os ganhos continuam entre amigos que, após os arrufos da praxe, logo logo
voltam a trocar favores quando a situação exige.
Para quem insiste em pensar com a própria cabeça, tudo isso é deprimente. O moralismo
governamental e o des caramento dos empresários do sexo apenas confirmam o que, de
longa data, suspeitamos: as elites no poder são \ pirescas. Depois de negar-nos a cidadania
política a que temos direito, buscam agora lesar nossa dignidade de pes soas morais.
Querem imbecilizar-nos de alto a baixo. Tratar de temas como o homoerotismo, o incesto
ou o sadomaso quismo, como quem exibe curiosidade em circos de horro res, não significa
liberalização de costumes sexuais, mas sinal verde para a permissividade que, embora
colorida e en feitada com cartões-postais do Rio, não consegue dissimular suas baixas
origens e a desfaçatez de seus propósitos.
E não se venha argumentar que isso é calvinismo fora de hora e lugar. Não se trata de fazer
o Brasil regredir ao tempo da caça às bruxas ou às fogueiras da Inquisição, mas de
perguntar até onde vai o direito das redes de televisão de explorar nossas fantasias ou
possibilidades de gozar com montagens perversas, sem prestar contas ao bom sen so ou ao
consenso moral da nação. Já que esse direito não tem limites, por que não avançar um passo
e apimentar o prato com fetichismo, coprofihia, necrofihia, canibalismo ou sadismo sexual
contra crianças? O público não iria gostar? Isto é o de menos; gosto se aprende e se cultiva.
Em breve, com o hábito, criaríamos mercado consumidor para estes acepipes refinados.
A televisão abusa, sim, do direito de informar e diver tir quando, sem pedir licença, invade
nossa privacidade e impõe-nos cabeça adentro a marca do desrespeito que seus mentores
intelectuais têm por nossas vidas morais. Mais que isso, manipulam o voyenïismo, o
sadismo ou qualquer outra perversão latente em todos nós, exclusivarnente de olho nos
índices de audiência e nas contas bancárias. Con tando com a passividade dos indivíduos
reduzidos ao estado de massas, vendem escroqueria, sabendo que a maioria é incapaz de desligar o botão ou
passar para outro canal quando se vê moralmente agredida.
Por princípio, sou contra a interdição da pornografía, contanto que ela diga o que é e
contente-se de estar à dispo sição de quem dela necessita para excitar-se sexualmente. Mas
fabricar pornografia “versão familiar” e travesti-la de diversão bem-pensante é
desonestidade e abuso de força. Pois os managers da televisão brasileira sabem muito bem
que se dirigem a um público sedado pela publicidade e pela propaganda, portanto
incompetente, na maioria das vezes, para reagir aos excessos programados em estúdios. Em
conseqüência, preparam o terreno para a reação conserva dora e abrem as portas para as
decisões autoritárias. Ao abuso segue-se a repressão. O moralismo que chega é aplaudido
com a mesma apatia e indiferença de antes, quando não incita à intolerância com a
diferença. O público continua infantilizado enquanto é amamentado pela tutela e preparado
para novas investidas e investimentos.
Esta infantilização não é figura de retórica. Pensemos bem no que representa fazer de um
namorico extraconjugal motivo para remanejamento de escalões executivos. Pouco
importa, aliás, que o tal namoro seja ou não “pra inglês ver”. Que adulto, neste país, veria
neste suposto affaire razão para queda de ministros? Para um povo habituado a engolir
diariamente o lixo programado pela televisão, relações extraconjugais chocam tanto quanto
ursinhos que batem palmas. No melhor dos casos, este tipo de moralismo chei ra a
fihisteísmo. Cheira à mofada hipocrisia das ruling clas ses que teimam em praticar o que
Tournel, personagem de Peyrefitte, cinicamente aconselhava: “Entre nós, o impor tante não
é a virtude, é a reputação.” Censurando amores ministeriais e programas de televisão, o
governo, como o rei da fábula, está nu, e apenas dá mostras do que pensa sobre a moral de
seus governados. Para Brasilia, ou somos todos moralmente descerebrados ou todos
desmemoriados. Pois há um ano, aproximadamente, boa parte da equipe go vernamental,
ora empenhada nesta cruzada moral, despia- se da candura de hoje para expor, sem nenhum
pudor, fatos
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absurdamente constrangedores envolvendo a vida privada do então candidato adversário à
presidência da República.
O mais grave, contudo, é que toda esta desmoralização de nossa sociedade, de nossas casas
e de nossas famílias acontece com nossa conivência. As elites brasileiras já con seguiram
converter-nos à moral do vale-tudo no que concer ne ao respeito por nossas instituições
políticas e sociais:
nossa degradação como seres morais. Já deixaram nossas cidades chegarem perto de
Medeilín e tentam, no momento, torná-las réplicas da Havana de Fulgencio Batista ou da
Ná poles de Curzio Malaparte. Antes, para obter o que queriam, exploraram nossa força de
trabalho, nossas esperanças no futuro e nossa crença num país melhor; agora, exploram
nossos coipos, nossos sexos, nossas angústias e nossos conflitos afetivos, violentando
moralmente adultos e crian ças, homens e mulheres, pais e filhos. E, quando nossas ci
dades se tornarem cópias exatas do universo moral pintado nas telinhas, não duvidem, os
senhores proprietários das in dústrias artísticas e culturais arrumam as malas, juntam o resto
dos dólares que ainda estão aqui e vão instalar-se em outros mercados mais promissores.
Eficiência oblige.
Nós outros, no entanto, ficaremos aqui. E, certamente,
nosso suor e nossas mãos serão poucos para tanto trabalho.
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Jornal do Brasil, 11/11/90
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