A Sociologia dos Tribunais e a Democratização da Justiça – Boaventura de Souza Santos. PARTE I: Sociologia do Direito Período inicial: Visão normativista e substantivista do Direito em detrimento de uma visão processual, institucional e organizacional. A Sociologia do Direito, portanto, interessa-se pelas normas e, dentre estas normas, pelas normas de direito material. A Sociologia do Direito estuda as articulações direito com as estruturas sociais. Alguns debates: 1) Savigny e Bentham. Direito como variável dependente (O Direito limita-se a acompanhar e a incorporar os valores sociais e os padrões de conduta espontânea e paulatinamente construídos na sociedade) vs Direito como variável independente (O Direito deve ser um efetivo promotor de mudança social tanto no domínio material como no da cultura e das mentalidades). 2) Durkheim e Marx Direito como indicador privilegiado dos padrões de solidariedade social e garantidor da decomposição harmoniosa dos conflitos por via da qual se maximiza a integração social e realiza o bem comum vs Direito como expressão última dos interesses de classe e instrumento de dominação econômica e política que por via de sua forma enunciativa (geral e abstrata) opera a transformação ideológica dos interesses particularísticos da classe dominante em interesse coletivo universal. 3) Ehrlich a) Direito vivo: Distinção entre o direito oficialmente estatuído e formalmente vigente e a normatividade emergente das relações sociais pela qual se regem os comportamentos e se previne e resolve a esmagadora maioria dos conflitos. b) Criação judiciária do Direito: Distinção entre a normatividade abstrata da lei e a normatividade concreta e conformadora da decisão do juiz. Esse 2º tema, ao deslocar a questão da normatividade abstrata da lei para as decisões particulares do juiz, já demonstra o início da transição para uma nova visão sociológica centrada nas dimensões processuais, institucionais e organizacionais. Contribuíram para essa transição duas ordens de condições, ambas emergentes nas décadas de 50/60: condições teóricas e condições sociais. Condições teóricas: 1) Desenvolvimento da Sociologia das Organizações (Weber): Estudo das organizações (agrupamentos sociais criados para a obtenção de fins específicos). Este ramo da sociologia se interessou especificamente por uma das organizações de larga escala dominante da nossa sociedade: a organização judiciária e particularmente os tribunais. 2) Desenvolvimento da Ciência Política e interesse que esta revelou pelos tribunais enquanto instância de decisão e de poder políticos. 3) Desenvolvimento da Antropologia do Direito. Ao centrar-se nos litígios e nos mecanismos de sua prevenção e da sua resolução, a Antropologia do Direito desviou a atenção analítica das normas e orientou-se para os processos e para as instituições, seus graus diferentes de formalização e da especialização e sua eficácia estruturadora dos comportamentos. Condições sociais: 1) Lutas sociais. A igualdade dos cidadãos perante a lei passou a ser confrontada com a desigualdade da lei perante os cidadãos: acesso diferencial ao direito e à justiça por parte das diferentes classes sociais. 2) Crise da administração da justiça. As lutas sociais levaram à transformação do Estado Liberal em Estado-Providência. A consolidação do Estado-Providência significou a expansão dos direitos sociais e, através deles, a integração das classes trabalhadoras nos circuitos do consumo anteriormente fora do seu alcance. Desse acesso surge uma explosão de litígios à qual a administração da justiça dificilmente poderia dar resposta. Com a recessão econômica dos anos 70, ainda há uma redução progressiva dos recursos financeiros do Estado para expandir os serviços de administração da justiça que criasse uma oferta de justiça compatível com a procura então verificada. Assim, cria-se um novo e vasto campo de estudos sociológicos sobre a administração da justiça, sobre a organização dos tribunais, sobre a formação e recrutamento dos magistrados, sobre as motivações das sentenças, sobre as ideologias políticas e profissionais dos vários setores da administração da justiça, sobre o curso da justiça, sobre os bloqueios dos processos e sobre o ritmo do seu andamento em suas várias fases. Grupos temáticos: - O Acesso à Justiça - A Administração da Justiça enquanto instituição política e profissional - Os conflitos sociais e os mecanismos de sua resolução PARTE II: O Acesso à Justiça. O direito ao acesso efetivo à justiça é um direito cuja denegação acarreta a denegação de todos os demais direitos. Uma vez destituídos de mecanismos que fizessem impor o seu respeito, os direitos sociais e econômicos passam a meras declarações políticas, de conteúdo e função mistificadores. Nesse domínio, a contribuição da sociologia consistiu em investigar sistemática e empiricamente os obstáculos ao acesso efetivo à Justiça por parte das classes populares com vistas a propor as soluções que melhor os pudessem superar. Os resultados dessa investigação permitiram a descoberta de obstáculos econômicos, sociais e culturais. Obstáculos econômicos: Os custos da litigação são muito elevados e a relação entre o valor da causa e o custo da sua litigação aumenta conforme seja mais baixo o valor da causa. Assim, a Justiça é cara, mas é proporcionalmente mais cara para os cidadãos economicamente mais débeis. É que são eles fundamentalmente os interessados nas causas de menor valor e é nessas que a justiça é proporcionalmente mais cara. Além disso, a lentidão dos processos acarreta um custo econômico adicional e este também é proporcionalmente mais gravoso para os cidadãos de menos recursos. Estas verificações têm levado a sociologia judiciária a concluir que é preciso analisar a organização judiciária e a racionalidade ou a irracionalidade dos critérios de distribuição territorial dos magistrados, além de analisar a distribuição dos cursos e também dos benefícios decorrentes da lentidão da justiça. (Ex: É importante investigar em que medida a advocacia organiza e rentabiliza a sua atividade com base na demora dos processos e não apesar dela). Obstáculos sociais e culturais: A distância dos cidadãos em relação à administração da justiça é tanto maior quanto mais baixo é a classe social a que pertencem e essa distância tem como causas próximas não apenas fatores econômicos, mas também fatores culturais e sociais. Em primeiro lugar, os cidadãos de menores recursos tendem a conhecer pior os seus direitos e, portanto, a ter mais dificuldades em reconhecer um problema que os afeta como sendo jurídico. Em segundo lugar, mesmo reconhecendo o problema como jurídico, é necessário que a pessoa se disponha em propor a ação. E os indivíduos das classes mais baixas hesitam muito mais que os outros em recorrer aos tribunais. Motivos: Más experiências anteriores com a justiça ou situação geral de dependência e de insegurança que produz o temor de represálias caso recorram ao Poder Judiciário. Em terceiro lugar, ainda que conheçam seus direitos e queiram recorrer aos tribunais, quanto mais baixo é a classe social do cidadão menos provável é que este saiba onde, como e quando pode entrar em contato com um advogado e maior é a distância geográfica entre o lugar onde viva ou trabalha e a zona da cidade onde se encontram os escritórios de advocacia e os tribunais. Houve inovações institucionais e organizacionais levadas a cabo para minimizar as escandalosas discrepâncias entre a justiça civil e a justiça social. Ex: Assistência Judiciária Gratuita. Antes, era organizada pela ordem dos advogados e a qualidade dos serviços era baixíssimo ausenta a motivação econômica. Após, a organização e remuneração deste serviço ficou a cargo do Estado, aperfeiçoando-o. Mas ainda há limitações: Prevalece a assistência judiciária, com raras consultas jurídicas independente da existência de um litígio. Além disso, esse sistema tenta vencer os obstáculos econômicos, mas não os sociais e culturais. Por fim, há pouca utilização das ações coletivas, ainda que a maior parte dos problemas sejam problemas de classe. PARTE III: A Administração da Justiça enquanto instituição política e profissional. A concepção da Administração da Justiça como uma instância política se deu em razão da percepção dos tribunais como um subsistema do sistema político global. Os tribunais são caracterizados por processarem uma série de inputs (estímulos, pressões, exigências sociais e políticas) e produzirem outputs (as decisões, portadores elas próprias de um impacto social e político nos restantes subsistemas). Essa concepção teve duas conseqüências importantes: 1) Colocou os juízes no centro do campo analítico. Buscar a relação das variáveis dependentes com variáveis independentes. Ex: Comportamento do juiz vs origem de classe, formação profissional ou idade. 2) Desmentiu a idéia de administração da justiça como uma função neutra protagonizada por um juiz apostado apenas em fazer justiça acima e eqüidistante dos interesses das partes. “Tipos ideais” de magistrados. Importância crucial dos sistemas de formação e de recrutamento dos magistrados e a necessidade urgente de os dotar de conhecimentos culturais, sociológicos e econômicos que os esclareçam sobre as suas próprias opções pessoais e sobre o significado político do corpo profissional a que pertencem, com vista a possibilitar-lhes um certo distanciamento crítico e uma atitude de prudente vigilância pessoal no exercício da suas funções. PARTE IV: Os conflitos sociais e os mecanismos de sua resolução Estudos sobre os mecanismos de resolução jurídica informal de conflitos existentes nas sociedades contemporâneas e operando à margem do direito estatal e dos tribunais oficiais. (Exemplos: Produtores e comerciantes de automóveis nos EUA e Favelas do Rio de Janeiro). Conclui-se que o Estado Contemporâneo não tem o monopólio da produção e da distribuição do direito. Embora dominante, o direito estatal coexiste com outros modos de juridicidade. Há outros mecanismos de resolução informais, mais baratos e expeditos, existentes na sociedade. Esse fenômeno influenciou dois tipos de reformas na Administração da Justiça: 1) Reformas no interior da Justiça Civil tradicional: Reforço dos poderes do juiz na apreciação da prova e na condução do processos segundo os princípios da oralidade, da concentração e da imediação; a criação de um novo tipo de relacionamento entre os vários participantes do processo, mais informal, mais horizontal, visando um processamento mais inteligível e uma participação mais ativa das partes e das testemunhas; ampliação e incentivo do uso da conciliação entre as partes sob o controle do juiz. 2) Criação de alternativas. Em paralelo à administração da justiça convencional, criam-se novos mecanismos de resolução de conflitos. PARTE V: Para uma nova Política Judiciária A nova política judiciária é comprometida com o processo de democratização. Essa democratização tem duas vertentes: 1) Constituição interna do processo: maior envolvimento e participação dos cidadãos na administração da justiça; a simplificação dos atos processuais e o incentivo à conciliação das partes; o aumento dos poderes do juiz; a ampliação dos conceitos de legitimidade das partes e do interesse em agir. 2) Democratização do acesso à justiça; Eliminar os obstáculos ao acesso à justiça Essas medidas de democratização têm limites óbvios. Não faz sentido, por exemplo, lutar pelo acesso à justiça pelas classes populares, se o direito substantivo for discriminatório em relação a elas. Assim, a luta democrática pelo direito deve ser uma luta pela aplicação do direito vigente tanto quanto uma luta pela mudança do direito. A diminuição relativa do contencioso civil detectada em vários países tem sido considerada disfuncional, ou seja, como negativa em relação ao processo de democratização da justiça. Além dos obstáculos ao acesso à justiça pelas classes de menores recursos, também as classes de maiores recursos tendem igualmente a resolver os seus litígios fora do campo judiciário. É certo que as reformas da administração da justiça visam reduzir a sua marginalidade ou residualidade. Daí, por exemplo, a informalização da justiça. Mas nem sempre esta será um genuíno fator de democratização. Nos litígios que ocorrem entre cidadãos de poder socioeconômico parificável, será. Mas, ao contrário, nos litígios entre cidadãos desiguais é bem possível que a informalização acarrete a deterioração da posição jurídica da parte mais fraca em face da perda de garantias processuais. Daí porque a ampliação dos poderes do juiz para compensar essa perda das garantias. As reformas do processo ou mesmo do direito substantivo não terão muito significado se não forem complementadas com outros dois tipos de reforma: 1) É preciso reformar a organização judiciária, a qual deve ser internamente democrática (racionalização da divisão do trabalho e nova gestão dos recursos de tempo e capacidade técnica). 2) É preciso reformar a formação e dos processos de recrutamento dos magistrados. As novas gerações de juízes deverão ser equipadas com conhecimentos vastos e diversificados (econômicos, sociológicos e políticos).