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1. O Direito como exigência da justiça
1.1 A teoria da justiça
A teoria da justiça é um dos capítulos fundamentais da ciência jurídica.
Se o Direito é essencialmente uma ciência “normativa” e a estrutura lógica de toda a
proposição jurídica é um dever-ser, colocam-se naturalmente as perguntas: Qual a
direção ou ideal visado pela “norma”? Qual o valor fundamental que orienta esse deverser?
Basicamente, a sentença deve ser “justa”, a lei deve ser “justa”, a obrigação e a
indenização devem ser “justas”, o salário e o preço devem ser “justos”. Com razão
escreveu Del Vecchio: “A noção de justo é a pedra angular de todo o edifício jurídico”.
Além disso, a noção de “princípios gerais do direito” – a que devem, a cada
momento, recorrerem o juiz e os demais aplicadores da lei – corresponde
fundamentalmente aos princípios de “justiça”, como procuramos mostrar no Capítulo 11
da terceira parte deste presente trabalho. “Princípios generales del derecho, es decir,
princípios de justicia”.
Mas, que é a justiça? Quais as suas características, sua natureza, suas espécies, seu
fundamento? Os demais valores jurídicos – a segurança, o interesse social, a ordem, o
bem comum – são opostos, redutíveis ou irredutíveis à justiça?
É esse um velho tema. Seu estudo recebe modernamente os nomes de axiologia
jurídica, teoria dos valores jurídicos, deontologia jurídica, estimativa jurídica etc.
1.2 Perspectivas diferentes
Como vimos na primeira parte deste livro, o direito pode ser estudado sob
perspectivas diversas.
Alguns o analisam simplesmente como um sistema de normas positivas que regem a
vida de determinada comunidade. É esse o ponto de vista de Kelsen, em sua Teoria
pura do direito.
Outros, como Lévy-Bruhl, colocando-se no campo da sociologia, consideram o
direito ou as regras jurídicas como fatos sociais ou, até mesmo, como coisas.
Certos autores preferem estudá-lo sob o prisma dos direitos subjetivos através das
Declarações de Direitos e do reconhecimento histórico das prerrogativas da pessoa
humana. É o caso, entre outros, do estudo de Jayme de Altavila sobre a Origem dos
direitos dos povos. E modernamente, A theorie of justice, de J. Rawls.
Pode, ainda, o direito ser considerado não como lei positiva, fato social ou direito
subjetivo, mas como ciência. É a perspectiva em que se colocam, em geral, os tratados e
as introduções ao estudo do direito, à frente dos quais, por sua importância histórica, é
de justiça colocar as Institutas de Justiniano, destinadas a ser “os primeiros elementos
de toda a ciência das leis”.
1.3 Devido por justiça
Há, finalmente, outra modalidade de focalizar o direito, que é a de considerá-lo
como exigência da justiça. Esse, como vimos, é o significado fundamental do vocábulo
direito. Os latinos o chamavam de jus e não o confundiam com a lex. Nesse sentido,
direito é propriamente aquilo que é “devido” por justiça a uma pessoa ou uma
comunidade: o respeito à vida é direito de todo homem, a educação é direito da criança,
o salário é direito do empregado, a habitação é direito da família, o imposto é direito do
Estado. A essa acepção corresponde a expressão clássica “dar a cada um o seu direito”.
1.4 Direito e justiça
Mas até que ponto o direito se identifica com o justo? Poder-se-á sustentar que todas
as exigências do direito são baseadas na justiça?
Alguns autores afirmam que o direito nada tem a ver com a justiça. É simples
convenção, como afirmaram Carneades ou Epicuro, no passado, e de certa forma
reafirmaram certas correntes do liberalismo moderno ao admitir que “quem diz
contratual diz justo”.
Para a generalidade dos seguidores do positivismo jurídico, o direito se reduz a uma
imposição da força social, e a justiça é considerada um elemento estranho à sua
formação e validade. Para alguns, como Kelsen, os critérios da justiça são simplesmente
emocionais e subjetivos e sua determinação deve ser deixada à religião ou à metafísica.
Outros autores, como Renard, pretendem que apenas uma parte das instituições
jurídicas se fundamente na justiça; outra parte teria seu fundamento na segurança ou
ordem social.
De outra parte, escreveu um dos grandes estudiosos do direito contemporâneo,
Gurvithc: “É preciso reconhecer, como fazem R. Pound, B. Cardozo, F. Geny, M.
Hauriou, G. Radbruch e outros, que um elemento constitutivo de todo direito é um
elemento ideal, a JUSTIÇA”. E, ao prefaciar a tradução francesa da obra de Del
Vecchio, escreveu Lévy-Ullmann: “Direito e Estado serão criações ininteligíveis,
arbitrárias e inoperantes, se não houver um princípio ideal que legitime sua existência,
organização e conteúdo. Esse princípio é a justiça. A noção do justo é fundamental ao
Direito. Daí a necessidade de um exame a que a nossa consciência não pode se subtrair
e que constitui a tarefa suprema da filosofia de direito”.
Para a aceitação ou a recusa dessas opiniões, e o encaminhamento dos problemas
referidos – que são básicos para a vida do direito – é necessário examinar o conceito de
justiça. Esse é o objetivo do presente capítulo.
MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 29. ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2011. 688 p.
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