Renascimento: Passagem para o futuro

Propaganda
Renascimento: Passagem para o futuro
(Super Interessante fevereiro/1988)
Itália, 1400: a revolução comercial cria novas classes, abre as cidades e impõe
outra mentalidade. Os efeitos sobre a cultura e a ciência são imediatos e
profundos. É a explosão do Renascimento, que lança a semente do mundo
moderno
Por José Tadeu Arantes
O olhar mostra segurança. O corpo, uma nudez sem pudor. A musculatura, relaxada, uma
anatomia perfeita. A figura toda é uma procura de graça e beleza. A estátua é de um
personagem bíblico, Davi, o pastor que virou rei de Israel por volta do ano 1000 a.C. Mas
sua forma lembra antes um jovem deus pagão da mitologia grega. A beleza é fortemente
idealizada, mas ainda assim indiscutivelmente humana. Sob a rigidez do mármore, há
palpitação de vida. Diante do Davi de Michelangelo, esculpido na virada do século XVI
não há dúvida de que se está contemplando um mundo diferente do da Idade Média.
De fato, desenhista soberbo, pintor, escultor, arquiteto e poeta, Michelangelo Buonarroti
(1475-1564) foi uma das maiores expressões do Renascimento — essa grande convulsão
cultural que sacudiu a Europa durante os séculos XV e XVI e abriu caminho aos tempos
modernos. Quando Michelangelo terminou a obra, em abril de 1504, o Renascimento já
havia completado um século na Itália. Foi, antes de tudo, um poderoso movimento artístico
e literário, mas com grandes repercussões na filosofia e nas ciências, no pensamento
político, na moda e nos costumes. Seus precursores foram poetas e prosadores italianos
como Petrarca (1304-1374) e Boccaccio (1313-1375), pintores como Giotto (1266-1336) e
Masaccio (1401-1428).
Por volta do final do século XV, o movimento atravessou os Alpes para atingir a
Alemanha, a região que corresponde atualmente à Bélgica e Holanda, e a Suíça. Ramificouse também pela França, Inglaterra, Espanha e Portugal. Sua força irresistível vinha de
profundas transformações econômicas conduzidas por uma nova classe social urbana em
ascensão — a burguesia mercantil. Na Itália, esses mercadores haviam enriquecido de
maneira fantástica graças ao comércio com o Oriente e traziam consigo uma nova visão de
mundo, baseada na valorização da realidade material, em contraste com a religiosidade
profunda da Idade Média.
Estabelecendo representações nos países orientais, investindo na construção de navios e no
desenvolvimento do transporte terrestre, eles compravam no Oriente, para vender na
Europa, matérias-primas, como minerais para tinturas, produtos de luxo, como seda e
brocados, e especiarias, como cravo e canela, utilizados na conservação e tempero dos
alimentos e na produção de remédios.
O enorme dinheiro acumulado, administrado por novos métodos de contabilidade, era
depois multiplicado várias vezes, por meio de atividades bancárias, com empréstimos a
juros, e manufatureiras, com a produção de tecidos, mineração, siderurgia e metalurgia.
Com esses recursos econômicos, obtinham ainda dos príncipes governantes a concessão
para cobrar tarifas aduaneiras e cunhar moedas. Subordinada à burguesia, surgia também
uma nova e numerosa classe de assalariados, que trabalhavam juntos nas primeiras oficinas
ou separados, cada qual em sua casa, recebendo dos patrões matérias-primas e ferramentas
e entregando-lhes o produto acabado.
Era uma verdadeira revolução na vida européia, com a decadência das fechadas e
hierarquizadas corporações de artesãos, que monopolizavam a produção industrial na Idade
Média. Também os camponeses autônomos passavam a dedicar parte de seu tempo ao
trabalho assalariado pelo sistema doméstico.
Por outro lado, a crescente demanda de alimentos e matérias-primas pelas cidades em
expansão levava também a uma transformação na produção agrícola. Esta se voltava cada
vez mais para o mercado e, portanto, deixava de ser fechada e auto-suficiente. O lugar de
honra na estrutura social, antes ocupado pela nobreza latifundiária, era agora disputado pela
burguesia ascendente. Na Itália, a mais ilustre família da nova classe de comerciantes
enobrecidos foi a dos Medici, que governou Florença do século XV ao XVII.
Giovanni (1360-1429), o fundador da família, havia enriquecido graças ao comércio com o
Oriente e ao monopólio da produção de alumínio, que obteve do papa. Somente no ramo
têxtil, empregava mais de 10 mil trabalhadores, distribuídos por 300 indústrias — números
para nenhum empresário moderno pôr defeito. Com o dinheiro e uma habilidosa política de
casamentos, seus descendentes exerceriam enorme influência em toda a política européia,
tornando-se príncipes e papas.
Sob o governo de Cosimo de Medici (1389-1464), filho de Giovanni, e principalmente de
Lorenzo, o Magnífico (1449-1492), neto de Cosimo, Florença foi a capital do
Renascimento. Arquitetos, escultores e pintores, como Donatello, Brunelleschi, Ghiberti e
Filippo Lippi, patrocinados por Cosimo — ou Botticelli, o próprio Michelangelo e
Leonardo da Vinci, protegidos por Lorenzo —, davam à corte dos Medici brilho, prestígio e
sofisticação incomparáveis, que compensavam em muito as origens plebéias da família. O
Renascimento foi também uma época de políticos refinados — e destituídos de escrúpulos.
Homens como Cesare Borgia (1475-1507), filho do papa Alexandre VI, que tentou
conquistar toda a Itália para si e fazia da conspiração e assassínio de seus opositores
sinistras obras de arte. E Niccoló Machiavelli (1469-1527), o fundador da ciência política
moderna, via em Cesare o ideal do príncipe renascentista e nele depositou sua esperança de
unificação da Itália. O que a impediu foi a rivalidade entre as cidades-Estado e a política
papal.
Cultos, humanistas, mundanos e ambiciosos ao extremo, os grandes papas renascentistas
não eram suficientemente fortes para promover eles mesmos a unificação do país, mas eram
fortes e ardilosos o bastante para impedir que outro o fizesse. Paradoxalmente, a
pulverização da Itália representou um forte estímulo ao Renascimento. Em lugar de um
único centro de atração, representado em outros países pela corte real, vários centros, como
Florença, Roma, Veneza e Milão, disputavam e patrocinavam a cultura. Ter a sua volta um
punhado de artistas e intelectuais brilhantes era prova de prestígio para os príncipes e papas
da época.
Nos jardins do palácio Medici, Cosimo fundou em 1440 a Academia Platônica, copiada da
famosa escola de Filosofia ao ar livre mantida por Platão em Atenas, no século IV a.C. Sob
a direção de Marsilio Ficino (1433-1499), a Academia tornou-se durante o governo de
Lorenzo o mais importante centro de irradiação cultural do Renascimento. Ajudado por um
grupo de eruditos bizantinos, fugidos de Constantinopla após a ocupação da cidade pelos
turcos, em 1453, Ficino realizou um imenso trabalho de tradução e comentário das obras de
Platão e seus seguidores. A biblioteca da Academia reunia enorme coleção de manuscritos
gregos.
A obsessão do homem culto renascentista por tudo que viesse da Antiguidade clássica
greco-romana levou os historiadores dos séculos XVIII e XIX a uma imagem tão fácil
quanto falsa do Renascimento. A Idade Média teria sido um período de completo
esquecimento da herança cultural da Antiguidade. Rompendo radicalmente com o
obscurantismo medieval, o Renascimento — daí o seu nome — seria o renascer da cultura
clássica. Essa interpretação é amplamente contestada pela pesquisa histórica do século XX.
Nem a Idade Média foi, em toda a sua duração, um período de trevas nem o Renascimento
representou uma ruptura total com a Idade Média.
Quem leu o livro O nome da rosa, de Umberto Eco, ou assistiu ao filme baseado nele, teve
uma brilhante amostra da veneração quase religiosa do sábio medieval pelo filósofo grego
Aristóteles (384-322 a. C.). A obra de Aristóteles formava uma verdadeira enciclopédia do
saber humano. Nela se encontrava de tudo: Matemática e Lógica, Física e Metafísica,
Medicina e Astronomia, Ciências Naturais e Psicologia, Política, Ética e Estética. Embora
se baseasse mais na especulação do que na observação direta da natureza, era para o mundo
das coisas concretas que ela se voltava. A Igreja refutou muito em aceitar esse corpo de
conhecimentos. Aristóteles teve que ser, de certa forma, cristianizado por filósofos como
São Tomás de Aquino (1224-1274), antes que sua obra se transformasse numa segunda
Bíblia da Idade Média.
Assim, o aristotelismo tornou-se, pouco a pouco, um congelado sistema de dogmas,
verdades prontas e acabadas, em que havia um lugar para cada coisa. Cada coisa devia estar
no seu lugar e nenhum espaço existia para a inovação — um espelho da organização social
da época. Foi justamente contra esse sistema petrificado que o homem culto do
Renascimento se rebelou, estimulado pelas formidáveis transformações materiais que o
desenvolvimento burguês colocava diante de seus olhos. O platonismo da Academia
florentina, altamente espiritual e místico, era antes de tudo uma reação ao aristotelismo na
versão consagrada pela Igreja medieval.
Por outro lado, se admirava o passado clássico, o homem renascentista tinha também a
consciência de que o estava ultrapassando. A febril exploração dos mares — que levou o
português Bartolomeu Dias a atingir a ponta meridional da África (1487), o genovês
Cristóvão Colombo a alcançar a América (1492), o português Vasco da Gama a chegar à
Índia (1498) e também o português Fernão de Magalhães a circunavegar a Terra (15191522) — exerceu um tremendo impacto no Renascimento. Ficava claro que havia muito
mais maravilhas no mundo do que haviam pensado os gregos.
O desenvolvimento das cidades na época renascentista ampliou o lugar ocupado pela
cultura. Antes, o conhecimento estava confinado às raras universidades e aos mosteiros.
Agora, a multiplicação das universidades, junto com a invenção da imprensa de tipos
móveis pelo alemão Johannes Gutenberg (1400-1468), permitia uma difusão muitíssimo
maior do conhecimento. A laboriosa atividade do copista medieval, que reproduzia a mão
os preciosos manuscritos gregos e latinos, era substituída com enorme vantagem pelo
trabalho dos impressores.
Do ponto de vista cultural, um dos resultados mais espetaculares da Reforma protestante foi
a tradução da Bíblia do latim para o alemão, por Martinho Lutero (1483-1546) e o amplo
movimento de educação inspirado pela idéia de que todo fiel deveria ser capaz de ler e
interpretar por conta própria as Escrituras Sagradas. No mundo da grande cultura, porém, o
latim continuava a ser a língua oficial. Um dos traços mais característicos da época, aliás,
era a existência de uma multinacional comunidade de eruditos que dominavam o saber
clássico e não só se expressavam em latim como tinham seus próprios nomes latinizados.
Eles formavam o que o escritor húngaro Arthur Koestler (1905-1983) denominou a
“República das Letras” e foram a própria alma do Renascimento. Para esses homens, a
demolição do sistema escolástico representava uma enorme liberdade de pensamento, a
possibilidade de uma especulação intelectual sem limites. A verdade já não devia ser
procurada nos livros de Aristóteles, mas na grande obra da natureza. Ocorre que a
destruição da ciência aristotélica deixou o Renascimento desprovido de uma ciência
sistematizada. Os sábios da época estavam deslumbrados demais com a infinita variedade
das coisas deste mundo para se dar ao árido trabalho de sistematização dos novos
conhecimentos.
Eles procuravam por toda a parte a diversidade, lançavam-se à aventurosa exploração de
mundos desconhecidos, criavam jardins botânicos e jardins zoológicos, colecionavam
minerais, dissecavam cadáveres humanos e de animais, mediam o movimento dos astros,
escreviam minuciosas descrições das mais diversas atividades profissionais e técnicas, mas
seus tratados não ultrapassavam ainda o estágio dos catálogos. O alemão Leonhard Fuchs
(1501-1566), por exemplo, escreveu e arrolou em ordem alfabética cerca de quinhentas
plantas. Foi incapaz, porém, de formular qualquer teoria sobre a vida vegetal.
As exceções são o monumental livro de anatomia do belga André Vesálio (1514-1564), De
humani corporis fabrica (A organização do corpo humano), e o livro de cosmologia do
polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), De revolutionibus orbium coelestium (A
revolução das esferas celestes). Nele, o cônego Copérnico afirmava, contrariando as teorias
dominantes, que o Sol — e não a Terra — estava no centro do Cosmo. Antes, o alemão
Nicolau de Cusa (1401-1464) já havia dito que o Sol era apenas o centro de um sistema, e
não do Universo.
As idéias de Cusa influenciaram o filósofo italiano Giordano Bruno (1548-1600). Ele
afirmava existirem no Universo infinitos mundos habitados, como a Terra. Mas nem Cusa
nem Bruno eram astrônomos, e suas corajosas hipóteses permaneceram meras
especulações. A grande sistematização científica na qual iria se basear o pensamento
moderno foi um produto do século XVII. Mas aí já não se pode falar em Renascimento. No
período renascentista, assistiu-se a um enorme interesse pela magia e pelo hermetismo. A
idéia de um Renascimento banhado em ciência, em oposição a uma Idade Média mística e
supersticiosa, é outro estereótipo que não resistiu à pesquisa histórica.
Um trabalho mais orientado para a ciência, embora dispersivo, como o de Leonardo da
Vinci (1452-1519), permaneceu inédito. Para os homens cultos do Renascimento, já que
Aristóteles não era mais a autoridade suprema, então tudo era possível. E foi com óculos de
mágico que procuraram ler o livro da natureza. Quando, em 1460, um agente de Cosimo de
Medici trouxe-lhe da Macedônia um manuscrito grego com catorze dos quinze tratados que
constituíam o Corpus hermeticum, isso causou enorme sensação. O texto era atribuído a um
autor mitológico, Hermes Trismegisto, ou Hermes “Três Vezes Grande”, síntese do deus
egípcio Toth, inventor do cálculo e da escrita, e do deus grego Hermes, mensageiro e
detentor dos segredos dos deuses.
Na verdade, tratava-se de um escrito dos primeiros séculos da era cristã, originário
provavelmente de Alexandria, no Egito, o grande centro da cultura helenística. Com caráter
misterioso, os manuscritos combinavam filosofia grega e helenística (Pitágoras, Platão,
Aristóteles, Plotino etc. ), cabala (o misticismo judaico) e elementos cristãos. Seu corpo
englobava Matemática e Alquimia, Astronomia e astrologia, magia e várias formas de
ocultismo. A idéia central era a de uma afinidade mística entre o mundo e o homem, sendo
este capaz de descobrir elementos divinos dentro de si.
Pela tradução de Ficino, o diretor da Academia Platônica, esses escritores exerceram
enorme influência no Renascimento, mexendo com as artes, as ciências e a Filosofia. Seu
principal herdeiro foi o suíço Paracelso. Ele pode ser considerado o mais acabado
representante de um momento na História da civilização que, sem romper drasticamente
com o passado, plantou uma semente de exuberância e ousadia da qual nasceria o mundo
moderno.
Para saber mais:
Colombo: herói (ou vilão) do novo mundo?
(SUPER número 11, ano 5)
Michelangelo, o artista do cristianismo
(SUPER número 2, ano 6)
Boxes da reportagem
Um tipo muito curioso.
O próprio nome latino que adotou já era um exagero: Theophrastus Philippus Aureolus
Bombastus Paracelsus. Não se sabe se a palavra Paracelsus queria dizer “superior a
Celsus”, o célebre médico romano do século I. Mas não há dúvida de que Theophrastus von
Hohenheim, como foi batizado, se considerava superior a qualquer medalhão da
Antiguidade. Esse personagem tipicamente renascentista nasceu numa família de médicos,
em Einsiedeln, Suíça, em 1493. Depois de estudar nas universidades de Basiléia (Suíça) e
Ferrara (Itália), tornou-se um Robin Hood da medicina, cobrando honorários exorbitantes
dos ricos e tratando os pobres de graça.
Seu espírito anticonvencional e incansável curiosidade, aliás, surpreendem mesmo pelos
padrões atuais. Condenava com estardalhaço as ciências tradicionais, ao mesmo tempo que
procurava aprender com os camponeses outros métodos de cura. Bebedor de marca maior,
vencia os camponeses em monumentais competições etílicas nas tabernas; depois, passava
a noite ditando seus tratados.
O fato de ter salvado a vida do influente editor Johannes Froben e de ter curado também o
escritor e filósofo humanista Erasmo de Rotterdam (1466-1536) assegurou-lhe, em 1527, o
cargo de médico municipal e professor de Medicina em Basiléia. Logo, porém, entrou em
atrito com as autoridades acadêmicas, recusando-se a apresentar seus documentos de
qualificação, fazendo conferências em alemão em vez de latim e admitindo cirurgiõesbarbeiros em suas classes. Com a morte do protetor Froben, teve de abandonar a cidade —
não sem antes queimar em praça pública o célebre cânon de medicina do persa Avicena
(980-1037). Daí para a frente, até sua morte, em 1541, perambulou de lugar em lugar, como
uma espécie de cavaleiro andante do anticonvencionalismo.
Alquimista, ao lado dos “quatro elementos fundamentais” enunciados no pensamento grego
clássico — terra, água, ar e fogo —, reconhecia “três princípios básicos” — sal, enxofre e
mercúrio —, que estariam presentes, em diferentes proporções, em todas as substâncias. O
sal, simbolizado pelas cinzas que sobrevivem ao fogo, seria responsável pelo estado sólido;
o enxofre, que desaparece ao queimar, pela natureza inflamável das coisas; e o mercúrio,
que se volatiliza, pelo estado líquido e gasoso. Uma força geradora universal, o arqueu,
combinaria os três princípios. De uma falha dela se originariam as doenças. Paracelso é
reconhecido como um dos precursores da homeopatia.
Download