Editorial / Editorial Saúde Mental Mental Health Hodologia Cerebral: o novo paradigma Brain Hodology: the new paradigm As teorias das alucinações ora enfatizam as alterações disfuncionais de regiões específicas do cérebro, ora enfatizam as alterações disfuncionais das conexões entre essas regiões. As primeiras baseiam-se em estudos imagiológicos com suficiente resolução temporal para localizarem diferenças estruturais ou, mesmo, funcionais em grupos de doentes com e sem alucinações, ou em diferentes períodos de tempo nos mesmos doentes, com e sem alucinações. No essencial, estas técnicas (PET e VBM - “voxel-basel morphometry”) permitem fazer inferências directas e indirectas sobre o aumento ou a diminuição da actividade em regiões cerebrais específicas. De seguida, com um grau elevado de simplificação e de atribuição redutora de causalidade, estas alterações de actividade são interpretadas como significando traduções da hiper ou hipofuncionalidade daquelas regiões. Em relação ao segundo tipo de teorias, as suas asserções baseiam-se na análise das conexões entre diferentes áreas, com ênfase ora na anatomia, ora na função dessas ligações. Por exemplo, as técnicas de imagiologia da substância branca (DTI - Diffusion Tension Imagiology) enfatizam a anatomia, enquanto que a VBM da substância branca identifica as alterações da substância branca a partir das quais são inferidas alterações funcionais dessas conexões. No extremo oposto, as técnicas de conectividade por fMRI (Functional Magnetic Ressonance Imagiology) enfatizam a função em detrimento da anatomia. Neste aspecto particular temos que fazer referência às técnicas electrofisiológicas, como por exemplo o EEG de conectividade, que também enfatiza a função sem especificar a anatomia conexional. Apesar de aparentemente semelhantes nos resultados, a FMRI e o EEG de conectividade diferem entre si: o EEG apresenta uma maior sensibilidade para diferentes aspectos do funcionamento cerebral. Por exemplo, a coerência electroencefalográfica é uma medida de sincronia entre diferentes localizações do escalpe em bandas de frequência específicas, em que cada banda está ligada a aspectos diferentes do funcionamento neuronal. Também o EEG transcorrelacional ou mesmo os potenciais relacionados com eventos correlacionais, são técnicas importantes para esta análise das conexões entre diferentes áreas cerebrais, pois permitem analisar as relações das ondas electroencefalográficas em diferentes localizações do escalpe, podendo ser usados para se retirarem inferências acerca da propagação temporal da actividade que possam implicar algum tipo de conexão sobre outro. De uma maneira geral cada uma destas técnicas (tractografia, FMRI, e EEG de conectividade) têm sido usadas para se inferir uma hipo ou hiperconectividade hodológica em populações clínicas. Estas questões encaminham-nos para uma área relativamente recente - a hodologia cerebral - muito na dependência dos trabalhos pioneiros de M. Catani. É sobre essa nova área que irei ocupar-me neste editorial. Esta nova área do conhecimento do cérebro está a revolucionar o conhecimento da anatomia do cérebro, muito em razão desse avanço colossal que foi a DTI. Essa revolução ocorre em duas frentes: (1) pela primeira vez se está a conseguir reconstruir as vias de substância branca em cérebros de humanos vivos 6 Volume XIII Nº2 Março/Abril 2011 Editorial / Editorial e a re-explorar a anatomia conexional após um longo período de estagnação desde os trabalhos dos neuro-anatomistas do século XIX; (2) por outro lado, as técnicas imagiológicas baseadas na difusão têm permitido adoptar uma abordagem hodológica às doenças do cérebro. No que respeita à primeira frente, acredito que estamos face a um conhecimento emergente que vai alterar a forma como descrevemos o cérebro - por regiões anatómicas – para passar a ser descrito por regiões de conexões, dando cobertura empírica aos modelos conexionistas do funcionamento cerebral. No que respeita à segunda frente, estou em crer que vai haver um recrudescimento do modelo disconexional como o modelo explicativo das doenças com base cerebral, incluindo nestas algumas das mais graves doenças psiquiátricas. Se não se evoluir para aí, pelo menos evoluir-se-à para a velha ambição de se construir uma teoria clínica abrangente com o regresso das correlações clínico-patológicas e com a facilitação do discurso entre a clínica e a neurociência laboratorial. Dito de outra forma, ver-se-á a abertura à emergência de uma nova neuropsiquiatria. E isto porquê? Porque pela primeira vez se está em condições de não só correlacionar as lesões disconexionais com os seus sintomas clínicos in vivo mas também correlacionar os sintomas clínicos com uma conectividade aumentada entre diferentes regiões cerebrais. É evidente que estas questões levantadas por estes avanços tecnológicos já estão a levantar velhas disputas entre os defensores da necessidade de um conhecimento preciso da natureza anatómica das doenças do comportamento e os seus opositores. A metáfora do computador ajuda-me aqui a esclarecer esses pontos de vista: os primeiros afirmam que sem o conhecimento do hardware não se consegue perceber e explicar adequadamente o funcionamento do software, enquanto que os segundos afirmam que para se conhecer o produto final bastará conhecer o software. Mas o cérebro não é como um computador na sua estrutura, funções ou génese. É precisamente em relação à sua génese que não posso deixar de chamar a esta discussão a teleologia: em termos teleológicos tem de se afirmar que uma única forma sustenta uma função específica mas, em termos evolutivos, é a função que faz a forma. Daqui resulta que a modificação da forma leva à disfunção, um corolário que se aplica na natureza a qualquer nível e em relação ao qual os cientistas exploraram para perceberem as causas das doenças humanas movendo-se – numa lógica inversa – dos défices funcionais para as modificações estruturais. Mas no que respeita ao cérebro, muito cedo os anatomistas perceberam que as relações entre a forma (lesões cerebrais) e a função (os sintomas) não podiam ser interpretadas de maneira directa e redutora mas, antes, ser concebida como algo que ocorre a um nível “supra regional”, entre padrões/partes de conexões e desempenho clinicamente avaliado em aspectos específicos do comportamento e da cognição. Talvez por isso Dejerine, em 1895[1], um eminente neuro-anatomista francês escreveu: “A anatomia do sistema nervoso central transformou-se acima de tudo numa anatomia da textura; a descrição dos detalhes das fibras de associação é a chave para a compreensão do funcionamento do cérebro.” Apesar disso, a conectividade real do cérebro tem sido um enigma há mais de um século; talvez por isso se compreenda que a tractografia por difusão seja muito apelativa para os neuro-anatomistas enquanto método para se fazerem dissecações anatómicas virtuais in vivo. Mas também o é para os clínicos, pois 7 Editorial / Editorial Saúde Mental Mental Health constitui um meio não invasivo para se proceder a correlações clínico-anatómicas nas doenças em que as alterações da substância branca não são visíveis com métodos mais convencionais de neuro-imagem (por exemplo, as doenças neurodesenvolvimentais). Dito isto, parece evidente que a tractografia, muito embora não tenha a precisão da dissecação anatómica post-mortem, constitui um grande avanço para a compreensão da anatomia da substância branca do cérebro humano e das suas alterações em determinadas doenças psiquiátricas. Outras técnicas que exploram, matematicamente, as conexões entre áreas cerebrais a partir dos dados quer electrofisiológicos, quer neuro-imagéticos, têm fornecido evidência complementar sobre os papeis funcionais de tais conexões. No seu conjunto, estas técnicas têm permitido alargar o panorama das correlações clínico-patológicas contemporâneas para além dos síndromas de desconexão e dos défices corticais, para incluir as alterações de hiperconexões e de hiperfuncionamento cortical. Neste sentido, alguns autores (por exemplo Catani e colaboradores[2]) propuseram uma nova terminologia para estes quadros baseados em mecanismos base subjacentes a esses mesmos quadros. Assim, aqueles autores proposeram que se designe por mecanismo topológico as disfunções do córtice independentemente do facto de a disfunção ser deficitária, de hiperfunção ou uma combinação das duas. As disfunções relacionadas com este mecanismo variam desde défices relacionados com a perda de uma região cortical especializada, por exemplo, prosopagnosia resultante das lesões do córtice especializado na descodificação de faces na área fusiforme, até sintomas positivos específicos tais como alucinações faciais relacionadas com a hiperexcitabilidade e activação espontânea do córtice especializado na face. Já o mecanismo hodológico está na base de sintomas tais como a afasia de condução das lesões subcorticais ou a combinação da da hiperconectividade fronto-frontal com desconexão frontal de outras regiões como acontece no autismo. Neste quadro de referências hodológicas várias são as possibilidades de referentes para a explicação de um conjunto de quadros clínicos. Sempre que haja uma patologia das vias de substância branca, as regiões corticais distantes ligadas por essas vias ficam disfuncionais por um efeito hodológico. Para algumas tarefas, essa disfuncionalidade pode simplesmente reflectir a falência ou o excesso de transferência de sinais de uma área para outra; mas, para tarefas que requeiram a participação simultânea de diferentes regiões corticais (por exemplo, a coordenação bimanual síncrona) pode-se considerar que essa função está afectada. Isto é, esta função só se revela afectada nas tarefas que requeiram uma acção coordenada das duas regiões, estando normal a função de cada área individualmente, sempre que façam parte de uma rede de tarefas diferentes (na terminologia de Price[3], este rede designa-se por diáscase dinâmica). A patologia cortical causa um padrão diferente de disfunções através de um mecanismo topológico. Essa disfunção pode-se estender para além do local cortical, incluindo regiões que lhe estejam conectadas. Estes processos ocorrem por mecanismo hodológico, mas de natureza diferente do atrás referido porque a substância branca não foi afectada. Por essa razão esse mecanismo é designado como “mecanismo hodológico secundário”. Um padrão equivalente de défices pode pode também ocorrer num vasto conjunto de doenças neurovegetativas, como acontece na demência fronto-temporal, para nomear apenas uma. O terceiro tipo de disfunção envolve ambos os mecanismos. Em relação aos défices, este é o meca- 8 Editorial / Editorial Volume XIII Nº2 Março/Abril 2011 nismo mais encontrado na clínica, como acontece nos casos de AVC, tumores ou traumatismos. As lesões atingem não só estruturas corticais e sub-corticais, mas também as vias de substância branca, quer superficial, quer profundamente. A disfunção daqui resultante atinge o córtice de forma alargada. As alucinações auditivas dos esquizofrénicos são um exemplo psiquiátrico da conjugação destes dois mecanismos. João Marques-Teixeira Referências Bibliográficas [1] Dejerine, J. (1895). Anatomie des Centres Nerveux, Vol. 1, Rueff et Cie, Paris. [2] Catani, M. (2005). The rises and falls of disconnection syndromes. Brain, 128(10), 2224–2239. [3] Price CJ, Warburton EA, Moore CJ, Frackowiak RS, Friston KJ. (2001). Dynamic diaschisis: anatomically remote and context-sensitive human brain lesions. J Cogn Neurosci, 13: 419–29. 9