A IMPERFEIÇÃO DA FILOSOFIA “Chamá-lo sábio, na minha opinião, é excessivo e só fica bem à divindade. Chamálo amigo da sabedoria (filósofo) ou qualquer coisa de análogo, isso convir-lhe-á mais e, ao mesmo tempo, será mais adequado.” Platão, Fedro DE ACORDO com a tradição, é a Pitágoras que se atribui o baptismo da actividade contemplativa como filosofia. No entanto, esta passagem do Fedro parece indicar que o uso da palavra filósofo não estava ainda rigorosamente determinado. É o momento em que, tendo mostrado como a escrita pode ser a fonte de equívocos entre o que vale a pena ser fixado e o que por estar fixado artificialmente tem a aparência de valer; Platão introduz o projecto de uma arte de escrita que não pretende encantar os leitores, que não quer persuadir à maneira dos retóricos, dos políticos e dos pedagogos de profissão. Trata-se de um projecto de uma arte filosófica da escrita, unicamente realizável por aquele que se ocupa com a verdade. Ocupar-se significa estudar, significa solicitude, atenção, persistência, i. é., significa que o saber nos pode deixar, que a todo o momento nos pode deixar. Por isso, aquele que se ocupa com a verdade não pode ser chamado sábio, porque não é sábio, convém-lhe melhor o nome de amigo da sabedoria, filósofo ou qualquer coisa de análogo. Apesar de, á primeira vista, apontar para a determinação sensata dos limites do humano, aquele furtar-se ao título de sábio dá conta, ao invés, de uma desmedida que é a marca da nascença da filosofia e que se pode formular deste modo: como se pode amar aquilo que não se possui? A acreditar nas palavras de Diotima no Banquete, o amor é um ser duplo, vagabundo ágil e empreendedor, que herdou da mãe (Pénia) a pobreza e do pai (Poros) os inesgotáveis recursos. Eros é um demónio, um ser imperfeito, inquieto, sem casa certa nem família, fértil em expedientes, imprevisível. Amar é assim a expressão de uma instabilidade originária. Dar forma viva, concreta, divina às experiências sentimentais (ou às actividades artísticas) é um procedimento cognitivo que teve entre os gregos uma das suas realizações mais admiráveis. Estabelecer narrativamente uma genealogia, contar um mito, era uma forma de metamorfose que reconhecia no seu objecto um segredo para sempre guardado, ao mesmo tempo que evitava qualquer esvaziamento nas descrições indutivas, i.e., qualquer forma de explicação positiva. 1 Essa metamorfose proporciona-nos um vislumbre, simultaneamente conciso e expansivo, do nosso chegar a compreender. A história de Eros também o confirma. A partir da sua genealogia descobrimos que Eros é um movimento que tende, força anímica e cósmica que liga, que reúne todos os seres e cada ser consigo mesmo; o amor é mover-se para a frente que tem a sua sede na alma e ressoa por todo o universo, uma obscura antecipação que procura sem descanso confirmar-se, é por assim dizer, o futuro da alma. Instabilidade que não equivale, por conseguinte, à confusão; pelo contrário, é o sinal de um impulso de gerar sempre renascendo; Eros é a distância, o pequeno intervalo do que está para ser, que mantém unidos – e não confundidos – todos os seres. Chamá-lo sábio, na minha opinião, é excessivo e só fica bem à divindade; reencontramos aqui a ironia socrática, esse prodigioso “fazer de conta” que constitui o ingrediente indispensável de qualquer propósito de pensar, quer dizer, Platão pela boca de Sócrates está a lembrar que existem alguns que se julgam sábios, acumulando pesos e medidas a que as coisas hão-de obedecer, convictos de que sabem o que fazem. Pois aquele que ama está num embaraço, não sabe o que faz, anda à procura. Não é esta a maneira menos decisiva de justificar a natureza incompleta da filosofia – termo cujo significado nunca se fixou definitivamente -, tarefa intrigante que leva de cada vez a uma inquirição de identidade, desde sempre grande motivo de escárnio e de escândalo. Com efeito, só se pode amar aquilo que não se possui. A imoderação própria da actividade filosófica tem a ver com a natureza do amor. Maria Filomena Molder, Revista Kapa 2